Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e82643, doi:10.12957/epp.2025.82643
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA SOCIAL
Vivências do Racismo Anti-Indígena Contra Mulheres Graduandas da UFAM
Experiences of Anti-Indigenous Racism Against UFAM's Undergraduate Women
Experiencias de Racismo Antiindígena Contra Mujeres de Pregrado de la UFAM
Marcelo Calegare a, Jeicy Hellen Pereira dos Santos a
a Universidade Federal do Amazonas, Manaus, AM, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Ao lidar com o preconceito e discriminação contra a pessoa indígena, a literatura a tem nomeado como racismo anti-indígena, fenômeno que também acontece entre estudantes universitários(as). Nosso objetivo foi analisar sob viés psicossocial as vivências de racismo anti-indígena relatadas por graduandas indígenas da Universidade Federal do Amazonas durante sua escolarização e na graduação. Por pesquisa qualitativa, com entrevista narrativa aberta, participaram quatro alunas autodeclaradas das etnias Baniwa, Mura, Sateré-Maué e Yanomami. Após análise de conteúdo temática, chegamos às categorias: choque cultural com a escolarização e universidade; questionamentos às cotas e identidade indígena; aparência e beleza; silenciamento da língua e heteroidentificação. Verificamos que os episódios de racismo anti-indígena pelo preconceito, discriminação e humilhação social geraram sofrimento e não reconhecimento das estudantes. Concluímos que o ambiente universitário ainda não é um local plenamente acolhedor ou respeitador das diferenças, mas sim um lugar reprodutor dos padrões ocidentais etnocêntricos de estética, privilégios e de saberes.
Palavras-chave: racismo anti-indígena, indígena, mulher, universidade, racismo religioso.
ABSTRACT
When dealing with prejudice and discrimination against indigenous people, literature has named it anti-indigenous racism, a phenomenon that also occurs among university students. Our objective was to analyze, from a psychosocial perspective, the experiences of anti-indigenous racism reported by indigenous undergraduate women at the Federal University of Amazonas during their schooling and graduation. Through qualitative research, with an open narrative interview, four self-declared students from the Baniwa, Mura, Sateré-Maué and Yanomami ethnicities participated. After thematic content analysis, we arrived at the categories: cultural shock with schooling and university; questionings about quotas and indigenous identity; appearance and beauty; language silencing and heteroidentification. We found that episodes of anti-indigenous racism due to prejudice, discrimination and social humiliation generated suffering and non-recognition of the students. We conclude that the university environment is not yet a place that is fully welcoming or respectful of differences, but rather a place that reproduces ethnocentric Western standards of aesthetics, privileges and knowledge.
Keywords: anti-indigenous racism, indigenous people, women, college, religious racism.
RESUMEN
Al abordar el prejuicio y discriminación contra las personas indígenas, la literatura lo ha denominado racismo antiindígena, fenómeno que también se presenta entre estudiantes universitarios(as). Nuestro objetivo fue analizar, desde una perspectiva psicosocial, las experiencias de racismo antiindígena relatadas por estudiantes indígenas mujeres de la Universidad Federal del Amazonas durante su escolarización y graduación. A través de una investigación cualitativa, con entrevista narrativa abierta, participaron cuatro estudiantes autodeclaradas de las etnias Baniwa, Mura, Sateré-Maué, Yanomami. Luego del análisis de contenido temático, llegamos a las categorías: choque cultural con la escolaridad y la universidad; cuestionamientos sobre cuotas e identidad indígena; apariencia y belleza; silenciamiento del lenguaje y heteroidentificación. Encontramos que los episodios de racismo antiindígena por prejuicios, discriminación y humillación social generaron sufrimiento y no reconocimiento de las estudiantes. Concluimos que el ambiente universitario aún no es un lugar plenamente acogedor o respetuoso de diferencias, sino un lugar que reproduce estándares etnocéntricos occidentales de estética, privilegios y conocimiento.
Palabras clave: racismo antiindígena, indígena, mujer, universidad, racismo religioso.
A construção do Estado brasileiro como conhecemos hoje é o reflexo de um longo processo de colonização, exploração e genocídio de populações indígenas e negras. Todavia, a relação da população brasileira com seu passado escravista é permeada por aspectos negacionistas e de imposição de narrativas, como o mito da democracia racial, que visam ocultar os acontecimentos e silenciar as sequelas sociais que afetam os povos descendentes desse período (Guimarães, 2003). Nesse sentido, com a negação da própria história, o Brasil manteve os padrões de discriminação racial utilizados no período colonial, porém com uma nova roupagem, mais sutil e velada, no entanto, não menos violenta (Melo & Santos, 2018).
Conforme argumentou Takuá (2019), desde o início da colonização do território brasileiro, as populações indígenas vêm sofrendo transformações no seu estilo de vida e cultura. Além do processo dinâmico de mudanças do modo de vida inerente ao movimento de toda cultura, a autora ressaltou que muitas dessas transformações foram consequências de atos violentos, como a imposição truculenta da religião cristã baseada na culpa e no pecado que julgava as populações indígenas como povos desalmados. Dessa forma, estimulados pela missão de evangelizar os nativos, os portugueses estupraram mulheres, queimaram casas de reza indígenas, extinguiram línguas nativas e destruíram diversas culturas milenares. E aqueles(as) que resistiam à imposição portuguesa eram mortos(as) e/ou escravizados(as).
É importante salientar que o colonialismo surgiu como uma forma de garantir a expansão econômica imperial europeia, que funcionava como um mecanismo de controle que implicava no domínio e subjugação dos povos colonizados (Smith, 2018). Para Tonial et al. (2017), o colonialismo esteve associado à colonialidade, que correspondeu a um processo de extermínio dos corpos, culturas, territórios, cosmologias e linguagens das populações indígenas, ou dito de outra forma, da colonização do poder, do ser e do saber. Pela colonialidade se desautorizava as diferentes formas de pensamento e condenava ao esquecimento os conhecimentos dos povos tradicionais, por meio da sobreposição de um modelo hegemônico europeu que se baseou na epistemologia, hierarquização do racialismo, gênero, relação com a natureza e controle do trabalho.
Deste modo, entende-se que para as populações e aos corpos racializados não é designada a mesma dignidade humana que é atribuída àqueles que os dominam, pois "são populações e corpos que, pese embora todas as declarações universais de direitos humanos, são existencialmente considerados sub-humanos, seres inferiores na escala do ser, facilmente descartáveis" (Leite & Gomes, 2022, p. 152). Assim, as populações indígenas eram consideradas tanto como "parte da paisagem" das terras "descobertas", quanto objetos de propriedade colonial e por isso passíveis de serem escravizadas.
Dito isso, Almeida (2020) apontou ser importante destacar que raça é um fator político "utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários" (p. 31). Conforme discutiu Longhini (2022), o termo "raça" foi uma invenção da Modernidade a partir da Botânica que, ao ser aplicada aos seres humanos, passou a narrar, classificar e hierarquizar as pessoas pela associação entre o corpo físico e atributos de beleza, cultura, inteligência e moral. A pessoa "branca" foi colocada como padrão e sem raça, enquanto os demais grupos foram racializados e considerados inferiores. Essa invenção social, sem respaldo nos estudos da Genética do século XX, continua a garantir a manutenção dos privilégios estruturais concretos e simbólicos das pessoas brancas. A autora ressaltou que, em geral, na racialização há binarismo de brancos(as) e negros(as), invisibilizando os povos indígenas, argumentando que "esta invisibilidade conceitual se articula com a expectativa racista e etnogenocida segundo a qual no Brasil não haveria mais indígenas, apenas ‘descendentes' ou ‘mestiços'" (p. 31). Não obstante, a categoria raça tem utilidade para nomear violências vividas pelos indígenas, porém sem abarcar a especificidade de seu genocídio.
Dessa feita, Longhini (2022) problematizou que o termo "etnia" também é um constructo cultural, histórico e político para expressar certa especificidade, particularidade e singularidade de grupos sociais sem a variante biológica, suavizando e sendo mais sutil que o uso de raça no debate antirracista. Se "raça" é mais utilizado para designar as pessoas negras brasileiras e seu processo diaspórico-colonial, "etnia" designa os distintos povos originários de nosso território, cujo processo histórico foi e continua caracterizado pela violência colonial (física e cultural) que resultam em seu genocídio. Pela etnia também se chama genericamente o(a) "índio(a)" (termo oriundo da interpretação errônea colonial) ou "indígena" (designativo do que é "nativo, original do lugar"), já que cada povo ou nação tem sua própria autodesignação. Apesar da diferença terminológica, permanece a inferiorização em relação às pessoas brancas, que tampouco possuem etnia, por meio do escárnio, intolerância e repúdio das práticas culturais dos grupos étnicos. E continua também o processo de invisibilização.
Segundo a sistematização de Lima (2020), por seu viés da Psicologia Social norte-americana, o racismo é um tipo de preconceito "étnico-racial" – termo que Longhini (2022) considera como invisibilizador da especificidade indígena – que resulta no exercício de poder e opressão de um grupo, gerando também sua discriminação. É regido por sistema de crenças estereotipadas, afetos e comportamentos discriminatórios, que se expressam por ações nas relações de dominação de um grupo sobre o outro e na manutenção de privilégios raciais. Trata-se, portanto, de um sistema de crenças e de imposição de valores e ideologia que: distingue grupos segundo critério genético-racial; hierarquiza e inferioriza grupos segundo percepção real ou imaginária que produz determinação naturalizante de habilidades sociais e culturais de grupo; limita e exclui pessoas/grupos pelo pertencimento étnico-racial ao acesso a recursos, status e liberdades civis, incorporada em práticas (implícitas em preconceitos ou explícitas em falas, discriminações ou restrições de acesso); gera discriminação e exclusão social. Ou como resumiu Almeida (2020), o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento e se expressa concretamente como desigualdade econômica, jurídica e política.
Na perspectiva da Psicologia Social Crítica de Melo e Santos (2018), a integridade e reconhecimento do ser humano na constituição da identidade acontece por meio de três dimensões: o reconhecimento emocional nas relações primárias de amor e amizade; o reconhecimento do respeito cognitivo do direito comum e inalienável a todos; a estima social ligada a comunidades de valores e solidariedade. Entretanto, em situações de rebaixamento de uma pessoa pelo racismo, há desrespeito e recusa do reconhecimento por maus-tratos e violações, privação de direitos e exclusão, degradação pública/política e ofensas. Isso resulta em impactos no desenvolvimento psicológico no contexto social, impedindo a pessoa de sua liberdade de ação e gerando danos na compreensão positiva de si (autoconfiança, autorrespeito e autoestima). Dessa feita, os autores teorizaram que os efeitos psicossociais do racismo e do não reconhecimento são:
Preconceito étnico-racial. É um predicado atitudinal, ou seja, uma pré-disposição à ação expressa por antipatia, aversão, hostilidade, raiva e repulsa, baseada em julgamento infundado e não facilmente modificável, sentido e/ou pensado a respeito de membros de um grupo étnico-racializado. Está relacionado à tendência fascista inerentes ao antissemitismo, etnocentrismo e discriminações políticas e religiosas que se manifestam no autoritarismo. Quanto maior for a motivação interna da pessoa de controle do preconceito, menor será sua manifestação de preconceito, e vice-versa.
Discriminação étnico-racial. É o que cria, mantém ou reforça vantagens do grupo dominante, às custas das desvantagens sobre aquele alvo do racismo, cumulativa individualmente ou por gerações, expressando-se pela diferenciação nas formas de tratamento e acesso a bens públicos e privados. Como complementado por Almeida (2020), é um mecanismo de segregação que enquadra as pessoas amarelas, indígenas e negras em situações de subalternidades.
Humilhação social. É o sentimento de rebaixamento e vergonha pública, de angústia, decorrentes da violência material (golpes físicos e maus-tratos) e simbólica (golpes morais pela linguagem de inferiorização) de um ambiente político de dominação e opressão, que age cronicamente no sentimento de não possuir direitos. A percepção da desigualdade política pelo humilhado socialmente gera degradação, exclusão, espoliação, invisibilidade pública, servilismo e subserviência.
Quando lidamos com o fenômeno do preconceito e discriminação contra a pessoa indígena, a literatura o tem nomeado como "racismo anti-indígena" (Milanez e al., 2019). Longhini (2022) argumentou que se podem traçar alguns paralelos a partir do racismo anti-negro, que se manifesta por cinco eixos centrais na manifestação do racismo anti-indígena: animalização (pessoa considerada não humana, sem alma), incivilização (selvagem sem civilidade e cultura), erotização (culpabiliza as mulheres indígenas pela nudez e estupro de seus corpos), infantilização (manter povos sob tutela estatal), primitivização (considerados segundo a imagem colonial congelada).
Nesse sentido, Lima (2019) apontou que o racismo anti-indígena se expressa pela alegação de que devido ao "primitivismo" dos povos originários, caberia às civilizações "avançadas" as tirarem desse ciclo de barbárie e oferecerem a oportunidade de "evoluírem" para um estágio civilizacional mais avançado. Ainda segundo o autor, a discriminação contra os povos originários apresenta também características de racismo religioso, pois atribui características negativas e de demonização das culturas indígenas como práticas nocivas que devem ser erradicadas. Em suma, "o racismo dirigido aos povos originários se ampara em um discurso desenvolvimentista que os considera como um entrave que deve ser suprimido para que se possa alcançar o progresso" (p. 22).
De acordo com a revisão de Silva et al. (2024), tal racismo contra as pessoas indígenas ainda é pouco abordado e disperso, sendo alvo de estudo de diferentes áreas e sem aprofundamento conceitual e empírico. Não obstante, temos indicativos na literatura que apontam que esse racismo se ampara no discurso desenvolvimentista de suplantação do(a) indígena para o progresso (Lima, 2019), que atrela a imagem do(a) indígena ao imaginário colonial pejorativo (Terena, 2019), o(a) representa em livros didáticos como ser primitivo sem papel relevante na sociedade contemporânea (Munduruku, 2009), exige que esteja em terras demarcadas e fale a língua indígena (Longhini, 2022, 2023), fossiliza sua cultura (sem dinamismo e transformações inerentes a qualquer cultura), nega sua espiritualidade e sua existência enquanto ser diferente do não branco (Milanez et al., 2019).
Se por um lado houve tentativas de extermínio das pessoas indígenas desde a colonização até o presente (Milanez et al., 2019), por outro houve reconhecimento de alguns direitos a esses povos a partir de mobilizações sociais e políticas constantes a partir da Constituição de 1988, que possibilitou o direito à educação bilíngue nas comunidades indígenas. Além deste, Calegare e Sales (2023) salientaram o direito de acesso às universidades que abrangeu distintos grupos marginalizados, incluindo os(as) indígenas, por meio do Programa Universidade para Todos (PROUNI), a lei n.º 12.711/2012 (a "lei das cotas") e o Bolsa Permanência, por exemplo. Tais incentivos, além do próprio ativismo indígena, têm feito com que a procura pela universidade por esse público tenha aumentado: entre 2011 e 2021, o quantitativo de matrículas de alunos(as) autodeclarados(as) indígenas no ensino superior aumentou 374% entre os anos de 2011 e 2021 (Bond, 2023).
Todavia, enquanto o aumento desse número é um indicativo positivo sobre a inclusão e representatividade de indígenas no ensino superior, isso desperta indagações sobre como essas pessoas se sentem e são tratadas quando inseridas nesse contexto. Dessa forma, pesquisas com pessoas universitárias indígenas têm revelado dificuldades enfrentadas para a permanência e conclusão do curso universitário: sofrem preconceito e discriminação, há desrespeito aos conhecimentos e cultura indígenas, faltam políticas institucionais específicas a elas, lidam com o translado à cidade, as mulheres estudantes sofrem pressão em função de seu papel de gênero e, especialmente, defrontam-se com colonialidade inerente à estrutura universitária (Calegare & Sales, 2023; Bergamaschi et al., 2018; Martes & Pereira, 2023; Pereira & Amaral, 2024; Souza, 2019).
Consideramos, dessa feita, que o preconceito e discriminação sofrido pelas pessoas estudantes indígenas, sob distintas expressões de racismo anti-indígena, causam prejuízos profundos nelas. Diante disso, neste artigo temos como objetivo analisar sob viés psicossocial as vivências de racismo anti-indígena entre graduandas indígenas da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) durante sua escolarização e na graduação. A partir das experiências dessas estudantes, ressaltaremos episódios de racismo anti-indígena que elas sofreram (e sofrem) desde sua trajetória escolar até o presente no ambiente acadêmico. Por meio deste artigo, demonstraremos que, não obstante a UFAM seja uma universidade localizada na região Norte e num estado com grande número de habitantes indígenas, isso parece não diminuir os efeitos psicossociais do racismo anti-indígena.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa qualitativa e descritiva, que buscou entender, reconstruir e recuperar experiências de estudantes mulheres e indígenas diante de situações de preconceito e discriminação contra indígenas a partir da vivência na trajetória escolar e ambiente universitário. Almejamos, assim, gerar conhecimentos úteis ao campo psicossocial para a compreensão do fenômeno do racismo anti-indígena.
Como instrumento utilizamos a entrevista narrativa aberta, com a pergunta disparadora: "como foi sua trajetória escolar até chegar na universidade?". Tal pergunta se enquadrou dentro de projeto guarda-chuva que abordou a trajetória de escolarização de distintos grupos sociais na universidade. A partir da pergunta inicial, buscamos proporcionar às estudantes a possibilidade de verbalizar livremente suas vivências, seus interesses em cursar o ensino superior, o contato com os estudantes não-indígenas, as diferenças culturais percebidas e o processo de adaptação a esse novo contexto. O fato da entrevistadora ser também uma mulher, não indígena de descendência indígena distante (bisavó), colaborou para que houvesse abertura das entrevistadas. Dessa feita, os depoimentos das estudantes indígenas se voltaram aos episódios de racismo anti-indígena e, por tal razão, demos ênfase neste artigo ao que elas nos trouxeram em seus relatos.
Participaram deste estudo quatro estudantes autodeclaradas indígenas, todas do gênero feminino, maiores de 18 anos e cursando diferentes cursos de graduação da UFAM. Os nomes fictícios para sigilo ético, com uma breve descrição do perfil, são:
Amora, ascendência Mura (de pais e avós maternos), 20 anos, nascida em Manaus, estudante de História, passou a reconhecer-se indígena a partir da entrada na universidade, resgatando vivências na infância em bairro com migrantes indígenas.
Lua, ascendência Yanomami (da avó e mãe), 20 anos, nascida em Manaus, estudante de Psicologia, apesar de não ter crescido em comunidade indígenas se sente vinculada a seu povo pelos laços com a avó.
Nádia, ascendência Sateré-Mawe (de pai), 22 anos, oriunda do município de Parintins, estudante de Psicologia, não se sente totalmente pertencente a seu povo, não obstante seu pai a tenha levado à comunidade durante toda infância.
Olga, etnia Baniwa, 22 anos, oriunda de comunidade indígena no município de São Gabriel da Cachoeira, estudante de Fisioterapia, é mãe de dois filhos e recebe auxílio financeiro por programa da universidade e da família para concluir o curso.
Seguindo os parâmetros éticos das resoluções 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, bem como aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (n.º 3.516.303), as participantes deram anuência à pesquisa pela assinatura digital do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Em função do contexto da pandemia da COVID-19, realizamos as entrevistas entre setembro/2022 e fevereiro/2023 por meio de uma plataforma virtual (Google meet), a fim de resguardar a segurança e saúde das participantes e da pesquisadora. Cada entrevista durou aproximadamente 60 minutos e foram audiogravadas e posteriormente transcritas.
Procedemos à análise de conteúdo temática segundo Bardin (2011), que contemplou: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Chegamos, dessa feita, às seguintes categorias/temas que expressam as vivências de racismo anti-indígena: choque cultural com a escolarização e universidade; questionamentos às cotas e identidade indígena; aparência e beleza; silenciamento da língua e heteroidentificação.
Resultados e Discussões
A trajetória escolar das estudantes indígenas, da alfabetização até a entrada e permanência na universidade, foi marcada por diversos fatores que direcionam a forma como experienciam o espaço acadêmico. Nesse sentido, além das dificuldades de acesso e permanência, notou-se no discurso das participantes que suas vivências dentro do contexto escolar e universitário contêm episódios de preconceito, discriminação e humilhação social inerentes ao racismo anti-indígena, que interferiram na sua relação com o(a) outro(a) e consigo mesmas, como exporemos a seguir. Para dar mais ênfase às falas de cada entrevistada, preferimos expor em cada categoria temática um trecho representativo de cada participante.
Choque Cultural com a Escolarização e Universidade
Nesta categoria abordamos o estranhamento sentido pelas estudantes no processo de escolarização e ao entrarem na universidade, que gerou nelas um choque cultural e que pode ser observado nos trechos abaixo:
A minha alimentação, eu acho até que foi isso que se perpetuou aqui na universidade. Porque, por exemplo, quando eu era pequena a minha alimentação era muito ligada a carne de caça, ao que mais, a raízes, é, hortaliças, essas coisas. Peixe principalmente e quando a gente vai pra escola parece que a gente tem acesso a muito Mucilon, muito mingau, coisas industrializadas (…) Então umas coisas que não eram tão do meu cotidiano, então tipo eu criava repulsa pelo cheiro porque eu não era acostumada com aqueles temperos (Amora).
Quando foi, é, pra entrar na universidade, eu tive um baque muito forte, porque os próprios amazonenses não conhecem suas culturas, né. E quando você encontra uma pessoa que: "ah, eu sou indígena". Aí a pessoa olha assim, mas, e começa a perguntar o quê que você faz, o quê que você fazia, eu me surpreendi nessa questão (…) Como a minha infância foi na comunidade, nessa questão de, das doenças de tuberculose, por exemplo, a maioria das coisas eles falam: "ah, mas foi porque a pessoa soprou fulano de tal e por isso que ela tá assim". Quando você estuda a fundo, na área da saúde, você vê que não é essa a realidade (Olga).
Cada pessoa ao nascer está inserida num contexto sociocultural específico que faz parte da sua construção subjetiva. Assim, nos processos migratórios, além de se deslocarem de um ambiente para o outro, as pessoas também deslocam suas culturas para outros locais onde a sua cultura não está socialmente inserida (Paiva, 2019). Com isso ocorre um estranhamento e comparações entre a cultura local e a que foi socialmente internalizada. Ou seja, essa ausência de coincidência entre os fenômenos culturais faz com que haja comparação entre o que é normal e o que é estranho, o que é certo e o que é errado, podendo gerar vários desconfortos interpretativos (Godoy, 2021).
Percebe-se, assim, que Olga e Amora sentiram o estranhamento em relação ao ambiente escolar e acadêmico devido às diferenças culturais. Olga relata que seus(suas) colegas de turma não conhecem a história dos povos indígenas do estado do Amazonas e não reconhecem a existência de outras culturas. Da mesma maneira, ela afirma que os conhecimentos científicos estudados na universidade entram em conflito com os conhecimentos ancestrais que ela aprendeu na sua comunidade. Assim, ela tenta conciliar os dois saberes e dialogar com as pessoas para que conheçam a história do seu povo.
Todavia, o discurso de Olga sobre sua vivência dentro do ambiente universitário vai ao encontro do que apontou Souza (2019) sobre como a presença indígena na universidade: esta ainda causa estranhamento às pessoas não indígenas e gera curiosidades e questionamentos sobre veracidade da ascendência étnica das estudantes. Esse estranhamento expressa devido um distanciamento e desconhecimento da sociedade brasileira com relação à sua própria história e cultura.
Além desse estranhamento, Olga expressou também o embate existente entre os conhecimentos científicos e aqueles indígenas, o que é recorrente nas pesquisas com esses estudantes (Calegare & Sales, 2023; Souza, 2019). Isso a conduz, inevitavelmente, a questionar o que aprendeu na sua comunidade ao entrar em contato com o conhecimento científico. A esse respeito, Baniwa (2013) afirmou que o maior desafio na formação no ensino superior de estudantes indígenas está na organização, produção e reprodução de um saber que desconsidera outras formas de conhecimento. Segundo o autor, ao chegar na universidade a pessoa estudante indígena se depara com valores e conhecimentos que se chocam com seu mundo e que colocam em xeque tudo que ela aprendeu. Complementou que para uma universidade se tornar inclusiva deve investir na circulação e validação de outros saberes pautados em outras bases cosmológicas, filosóficas e epistemológicas, que ajudem a concretizar um ensino intercultural. Além disso, conforme acrescentaram Pereira e Amaral (2024), é fundamental que as narrativas de mulheres indígenas estejam presentes nesse espaço de produção acadêmica como forma de enfrentamento do racismo anti-indígena.
Por outro lado, Amora contou que foi impactante para ela ter que lidar com a alimentação escolar, visto ser um cardápio completamente diferente do que ela estava acostumada. Ela contou no seguimento da entrevista que desenvolveu um transtorno alimentar porque não conseguir se adaptar à alimentação da escola e que se sentiu melhor quando passou a levar sua comida caseira para a universidade.
Conforme debateram Martes e Pereira (2023), uma das dificuldades encontradas pelas pessoas indígenas que migram para a cidade diz respeito à alimentação. Isto é, a mudança de hábitos alimentares causa estranhamentos e repulsas nas populações indígenas, pois a relação que cada etnia possui com a comida tem um significado particular. Assim, "a escolha do que será considerado ‘comida' e do como, quando e por que comer tal alimento, é relacionada com o arbitrário cultural e com uma classificação estabelecida culturalmente" (Maciel, 2001, p. 149).
Dessa forma, a cultura é essencial não somente para definir o que é ou não comida, mas para estabelecer o que e quando deve ser ingerido e determinar as proibições culturais do que seria um bom ou mau alimento (Maciel, 2001). Assim, a dificuldade de Amora em se adaptar a alimentos como frangos congelados e industrializados revelam que não se escolhe somente o que se come, mas também como se come.
Em suma, isso tudo indica como a universidade não está preparada para receber estudantes indígenas, que possuem especificidades e particularidades culturais e de modo de vida (Calegare & Sales, 2023). Ao não terem tais características reconhecidas, podemos compreender que isso gera o sofrimento decorrente dos efeitos psicossociais do racismo, como apontado por Melo e Santos (2018).
Questionamento às Cotas e Identidade Indígena
Nesta categoria temática exemplificamos as críticas e questionamentos que pessoas não indígenas tecem a respeito da capacidade das pessoas estudantes indígenas de conseguirem ingressar na universidade sem as cotas raciais, exemplificando situações de preconceito vivenciadas por muitas delas na universidade e de questionamentos e invalidação de sua identidade indígena. Vejamos os exemplos abaixo:
Uma parte que me dói realmente, mas é algo mais assim de desinformação, né, das pessoas (…) As pessoas pensam: "nossa, mas tu tem muita sorte, tu pode fazer qualquer curso que tu quiser é só tu escolher, porque tem cota". Como se eu não tivesse por mim mesma, né (…) As pessoas não conseguem ver que uma pessoa mesmo indígena poderia passar por ampla concorrência quer dizer que elas não acreditam na capacidade da pessoa. Como pessoa mesmo, né. Como se ela não pudesse tá inserida em qualquer lugar (Nádia).
Quando foi início do período passado, eu me senti, triste. Porque uma pessoa chegou perguntando de onde que eram as minhas características. Aí eu respondi, né, de onde eu era, aí tudo mais. Aí ele falou bem assim: "ah, então por isso que você passou na universidade" (…) Tem outros que não admitem ser por conta disso, desse preconceito. É até chato, né, a pessoa falar: "ah, mas você é indígena, como assim?" (…) Eu tenho até comigo, assim, que quanto mais você estuda, mais você questiona, o que você aprendeu, né, do seu povo. Tanto é que tem coisas assim que eu falo: "ah, tudo bem, isso aqui é mais pro lado da ciência, né". Mas, por outro lado, ainda tenho comigo o que é da minha cultura e a resistência e tudo mais (Olga).
Conforme explicaram Calegare e Sales (2023), as cotas se configuram como uma das estratégias das políticas de ações afirmativas. Estas são medidas que buscam combater as diferentes formas de desigualdade, discriminação e exclusão de grupos que historicamente sofreram exposição a processos de exploração e dominação que resultaram, além disso, em preconceito e discriminação contra estes. As ações afirmativas são consideradas ações de reparação histórica, para que tais grupos possam ter condições de igualdade de oportunidades na sociedade. Entretanto, apesar dessa ação estatal reparatória das contas étnico-raciais, nota-se nos trechos acimas que circula entre os estudantes o preconceito característico do racismo, que aponta que os privilégios devem ser usufruídos apenas pelos grupos dominantes (Lima, 2020).
Para Pereira e Amaral (2024), a existência de falas racistas sobre as vagas indígenas e cotas raciais revelam o desconhecimento sobre a dívida social e histórica do país com o povo negro e indígena. Essas falam colocam o ingresso de indígenas na universidade como uma queda de qualidade dos cursos de graduação. Segunda a experiência pessoal da autora indígena, foi possível sentir toda a força do racismo e da discriminação racial com a entrada na universidade. O autor não indígena e a autora indígena comentaram que percebiam em vários momentos como as palavras ofendiam não somente as mulheres indígenas, mas ao seu povo.
Diante disso, assim como Nádia e Olga, muitas pessoas estudantes indígenas preferem não assumir sua identidade étnica porque têm receio de sofrerem preconceito e discriminação pelos(as) colegas, o que nos remete aos apontamentos de Melo e Santos (2018) a respeito do desrespeito e recusa ao reconhecimento que resultam em rebaixamento e danos na compreensão positiva de si. Nesse sentido, Terena (2019) afirmou que as pessoas não indígenas se sentem à vontade para definir o que a pessoa indígena é a partir de estereótipos que viram na mídia, ou de acordo com meias-verdades que ouviram na escola. A autora lembrou que o estado brasileiro possui um histórico de silenciamento e distorção da imagem indígena que está atrelada a uma relação colonialista de negar suas origens e a existência dos povos originários.
Ou seja, a ausência de um diálogo entre os povos indígenas e a sociedade em geral, a carência de informações, educação e interação fizeram com que surgisse um distanciamento entre indígenas e não-indígenas. Ainda com Terena (2019), "sem nos conhecer as pessoas passam a acreditar naquilo que aqueles que têm voz dizem sobre nós, que somos atrasados, exóticos, inexistentes e o mais comum, que atrapalhamos o desenvolvimento do país" (p. 101). Desse modo, para a maioria dos brasileiros, a imagem da pessoa indígena está atrelada a um ser que vive isolado na floresta e que a partir do momento em que cruza a fronteira deixa de ser indígenas e perde a sua identidade. Como reforçou a autora, apesar da relação indígena com a natureza, com a aldeia e com a comunidade serem importantes para afirmação da identidade indígena, esta não limita quem é a pessoa indígena.
Portanto, compreendemos que ao entrar no espaço universitário a pessoa estudante indígena tende a enfrentar diversos questionamentos sobre sua identidade, suas origens e sua capacidade cognitiva de cursar o ensino superior. Assim, em virtude dos preconceitos vivenciados, muitos(as) estudantes têm receio de se autodeclararem indígenas e se tornarem alvo de discriminação. Por outro lado, Olga também mencionou que alguns(mas) estudantes acabam aderindo ao discurso preconceituoso de desmerecer as conquistas dos(as) colegas indígenas para serem aceitos(as) pelo grupo majoritário. Isso pode ser entendido como uma expressão da manutenção de privilégios materiais e simbólicos dos dominadores, como apontou Lima (2020).
Aparência e Beleza
Nesta categoria destacamos questões relacionadas à aparência e beleza, que denotam como os traços físicos indígenas são constantemente inferiorizados e comparados com o de mulheres brancas. Selecionamos o seguinte trecho:
Quando eu era criança é, eu parecia bem mais, fazia bem mais parte daquele estereótipo de indígena, né. Então eu lembro que teve um dia do índio que pediram pra eu me fantasiar de indígena e eu achava que todo mundo ia se fantasiar de indígena e eu cheguei lá e eu tava super animada, eu pedi pra minha avó comprar roupa com aquelas peninhas e tal quando eu cheguei lá era só eu e isso me deixou até constrangida, eu criança. E eu fiquei assim "ué, por que só eu? (…) Teve um episódio que eu tinha uns 14 anos, tava ali no ensino fundamental e tava na moda usar franjinha e a minha melhor amiga ela era branca e ela era ruiva, ai ela cortou a franjinha dela e eu cortei a minha e uma professora veio falar com a gente: "ah, fulana, você não pode usar franjinha porque você, a gente mora no Amazonas, você fica muito parecida com uma índia, a beltrana pode porque ela é branca e ruiva, mas você, você fica muito, você fica parecendo uma índia". E eu fiquei: "ué, o quê que tem errado eu parecer uma índia?" (...) O máximo que já aconteceu foi assim comentário do tipo: "ah, você tem uma beleza exótica", sabe? (…) Eu me sinto deslocada quando alguém faz um comentário desse tipo. Não no sentido de, é, deu achar que a pessoa me acha feia. Mas é mais no sentido de eu não posso ser só bonita, eu preciso ser colocada num lugar de além disso, de uma beleza estranha (Lua).
Como argumentou Braga (2023), entende-se que o conceito de belo remete a um "produto de símbolos culturais, sociais e históricos que transita de um padrão a outro, sustentado por um acordo de olhares, que de tempo em tempo ressignifica o modelo de beleza" (p. 20). Isto é, a concepção de beleza tende a se moldar conforme os movimentos socioculturais da humanidade. Porém, tudo aquilo que foge ao que é estabelecido como belo é considerado inadequado e divergente. Assim, mesmo diante do quadro de miscigenação do Brasil, a estética da branquitude ainda é o padrão de beleza pré-determinado pela sociedade. E tudo que não se adequa a esse modelo passa por um processo de discriminação e desumanização. Nesse sentido, os episódios do "dia do índio" vivenciados por Lua corresponde ao que Longhini (2023) indicou como a imagem estereotipada de "índio" alocado no passado e que deve sempre estar nu, corpo pintado, olhos puxados e com cabelos lisos e pretos, que tem servido como impulsionador do etnogenocídio ao colocar a existência indígena no presente como inválida.
Da mesma maneira, a fala de Lua apresentou diferentes situações em que os traços físicos dela foram constantemente enquadrados em estereótipos sobre a fisionomia indígena, que lhe causaram sensações de constrangimento e invalidação. Como lembraram Lima et al. (2016), "a associação de traços físicos a traços morais e sociais juntamente com a hierarquização e essencialização das diferenças são os princípios operativos fundamentais de todas as formas de racismo" (p. 219). Nesse sentido, a comparação dos corpos indígenas com o ideal de beleza da branquitude e a definição do que é esteticamente belo a partir desses parâmetros se constitui como um ato de discriminação e racismo, que tende a desumanizar, excluir moralmente e deslegitimar a indígena. Dessa forma, podemos afirmar que os comentários sobre a aparência da participante se constituem como falas preconceituosas e discriminatórias que generalizam as características indígenas classificando-as como inferiores, exóticas e/ou esquisitas.
Silenciamento da Língua e Heteroidentificação
Por esta categoria temática ressaltamos episódios de silenciamento em que a pessoa indígena não podia falar sua língua materna no ambiente escolar, não podia se declarar indígena ou usar seus adornos e adereços no local de trabalho. Também ressaltamos por esta categoria a heteroidentificação que muitos(as) indígenas sofrem. Vejamos o trecho a seguir:
Quando eu ia pra escola, eu ganhava apelidos para além do meu contexto. Por exemplo, aparecer com a pele atuira [acinzentada pela tintura de jenipapo] ou sei lá aparecer suja com urucum [tinta avermelhada], ou qualquer coisa do tipo (…) Não poder falar a língua materna acho que era uma coisa porque as pessoas falavam que era coisa do capeta estar falando em línguas. É, ou cantar músicas da língua nativa também era uma coisa que tá invocando o diabo. Então não era uma coisa confortável, aí foi praticamente se perdendo (…) Dificulta as pessoas olharem pra mim em debate dentro do ensino médio e falarem tipo: "tu não é indígena". É, começa a questionar o que eu sou e não saber exatamente da minha vivência ou das minhas etnias ou, enfim, da minha história (…) No ensino superior, tipo as pessoas sempre questionaram: "pô, mas tu é isso?". Ou sempre me colocaram de volta pra identidade preta, mesmo eles sabendo que eu me identifico enquanto pessoa indígena, falarem: "mas tu é preta e tal". (…) De violência dentro da UFAM, as pessoas ficam me olhando meio torto e em locais mais elitizados, ou ficam tocando, sabe? Te tocando como se fosse um objeto. E essas divergências sociais dificultam as nossas rodas de amizade porque pessoas espalham coisas sobre você. As pessoas criam estereótipos sobre você (Amora).
O relato de Amora nos traz diversos pontos a respeito do preconceito, discriminação e humilhação social característicos do racismo anti-indígena, carregado de violências, dificuldades de estabelecer laços sociais e receio de sofre julgamentos por fazer coisas erradas do "demônio". Diferente da entrevistada Lua, a aparência de Amora não é lida como exótica, mas sim de forma pejorativa, como uma pessoa suja e bruta. No seguimento de sua entrevista ela afirmou que se sente cansada com essa disparidade de privilégios que as pessoas brancas possuem e, às vezes, pensa em desistir do curso para não ter que continuar lidando com alguns entraves institucionais da universidade.
Compreende-se que "no racismo o indivíduo é cirurgicamente retirado e violentamente separado de qualquer identidade que ela/ele possa realmente ter" (Kilomba, 2019, p. 39). Logo, o fato da entrevistada não poder manifestar sua língua materna e os cânticos do seu povo dentro da escola se enquadram em um processo de silenciamento e num mecanismo racista de censura e controle. Nesse sentido, Longhini (2023) explicou que a proibição de línguas indígenas está historicamente ligada à construção do Estado brasileiro, remontando a uma violência desde o período da catequização em que falar a língua indígena era um ato demonizado pela Igreja Católica, até a implementação da ditadura militar em que falar línguas indígenas era um ato violentamente reprimido por não se enquadrar na expectativa de sociedade brasileira homogênea.
Nesse sentido, Smith (2018) argumentou que a imposição da língua (portuguesa, em nosso caso) à pessoa indígena é um ato de dominação que carrega a cultura e a linguagem do(a) colonizador(a) e, além disso, serve como meio pelo qual a mente dos povos colonizados pode ser dominada. Conforme a autora, "embora a linguagem oral ainda seja frequentemente ouvida em casa, o uso da literatura associada à escolarização resultou na alienação das crianças de sua própria história, geografia, música e outras dimensões culturais" (p. 52). Assim, o racismo passou da destruição de culturas e corpos para a domesticação de culturas e corpos.
Da mesma maneira, as situações em que a participante se sentia menosprezada quando recebia apelidos na escola, por conta da sua cor de pele ou quando alguém questionava sua origem indígena e tentavam defini-la com outra identidade, também se constituem como episódios racistas de controle de corpos. A esse respeito, Kilomba (2019) afirmou que no racismo os corpos negros e indígenas são considerados como corpos impróprios, fora do lugar e que não podem pertencer à sociedade. Logo, os sentimentos de rebaixamento e vergonha pública desencadeados por esses episódios estão "ligados a relações de dominação e opressão, que impedem o direito à cidadania e é capaz de produzir a depreciação da integridade das pessoas rebaixadas" (Melo & Santos, 2018, p. 60). Diante desse contexto, podemos compreender por que a entrevistada se sentia acuada no ensino médio e na universidade, percebendo as relações interpessoais como excludentes devido às diferenças sociais entre indígenas e não indígenas.
Além disso, a participante apontou ainda às tentativas de heteroidentificação racial pelos colegas, colocando-a na categoria "preta" em função de sua pele ser escura, o que é uma significação comum no Amazonas. Conforme explicou Longhini (2023), ainda nos anos 1970 houve reivindicações do movimento negro que indicavam similaridade nos dados sociais de populações pretas e pardas, o que conduziu à categorização de "negros(as)" como resultante da união entre ambas. Entretanto, os inúmeros termos usados desde o primeiro recenseamento, em 1872, até censos recentes, apontavam para uma classificação decorrente da miscigenação que produziu o apagamento do povo indígena por distintas nomenclaturas difundidas socialmente: bugre, caboclo(a) descendente de índio(a), mestiço(a), moreno(a), pardo(a), etc. Em tempos recentes, a designação de "pardo(a)" persistiu com a negação da existência da pessoa indígena. Assim, há um efeito de apagamento político dos povos indígenas ao colocá-los como negro ou pardo, que invisibiliza o racismo como uma violência que incide sobre eles. E isso foi expresso pela participante Amora.
Conclusão
Esta pesquisa buscou analisar sob viés psicossocial as vivências de racismo anti-indígena de graduandas da UFAM desde o período da escolarização até o atual curso de graduação. Pudemos constatar que estes aconteceram por meio de alguns episódios ao longo dessa trajetória escolar. Vimos que houve um choque cultural relacionado à alimentação, ao desconhecimento da história dos povos indígenas e da invalidação de seus saberes na universidade que, ao não serem reconhecidos, geraram sofrimento e conflitos internos nessas estudantes, que passam a questionar seus próprios conhecimentos indígenas.
Em relação ao questionamento das cotas pelos(as) demais estudantes, pudemos notar que este é uma das expressões mais típicas do preconceito e discriminação inerentes ao racismo, pois revela o quanto a manutenção de benefícios e privilégios faz parte do ideário e práticas dos grupos dominantes na sociedade. Assim, a capacidade de uma mulher indígena na universidade é colocada em xeque tanto porque se inferioriza suas habilidades culturais, intelectuais e sociais, quanto porque isso representa uma ameaça e competição das minorias ao acesso à distribuição do poder.
Também pudemos constatar que a aparência e beleza das indígenas são comparadas segundo os parâmetros da mulher branca e, ao serem pejorativamente consideradas como exóticas e/ou sujas, isso traz também mal-estar a elas em função da vivência de preconceito, discriminação e humilhação social. Associado a isso, existe ainda a imagem estereotipada da indígena como pessoa alocada no passado colonial e que não tem validade de sua existência no presente, o que reforça ainda mais o racismo anti-indígena.
A respeito do silenciamento da língua indígena na trajetória de escolarização e na universidade, este não se configurou apenas como apagamento da cultura indígena e dominação colonial, mas em dificuldades de estabelecer laços sociais com outros(as) colegas em função do preconceito e discriminação decorrentes da taxação de que a língua, cânticos e pinturas indígenas eram coisas erradas. Isso gerou sentimentos de rebaixamento e vergonha típicos da humilhação social. E, além disso, tudo, ainda pudemos observar que a heteroidentificação da pessoa indígena enquanto negra, preta ou parda é também um ato de negação de sua existência.
Por fim, esta pesquisa teve limitação no número de participantes, o que abre questionamento quanto à generalização dos achados. Apesar disso, não obstante, se considere a universidade como local privilegiado na sociedade em função de seu status de conhecimento, as indígenas entrevistadas vivenciaram distintos episódios de racismo anti-indígena nos relacionamentos com outros(as) estudantes. Isso indica que o ambiente universitário ainda não é local plenamente acolhedor ou respeitador das diferenças, mas sim reprodutor dos padrões ocidentais etnocêntricos de estética, privilégios e de saberes. Às ciências psicossociais na Amazônia cabe desenvolver mais pesquisas visibilizando a manifestação do racismo anti-indígena e o sofrimento de quem é alvo deste, a fim de não apenas gerar mais conhecimentos, mas de dar bases para ações que possam ir no sentido se colaborar para a mitigação desse lamentável fenômeno na sociedade brasileira.
Referências
Almeida, S. L. (2020). Racismo Estrutural. Editora Jandaíra.
Baniwa, G. (2013). A lei das cotas e os povos indígenas: mais um desafio para a diversidade. Cadernos de Pensamento Crítico Latino-Americano, 34, 18-21. https://flacso.redelivre.org.br/files/2014/12/XXXVcadernopensamentocritico.pdf
Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Edições 70.
Bergamaschi, M. A., Doebber, M. B., & Brito, P. O. (2018). Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 99(251), 37-53. https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.99i251.3337
Bond, L. (2023). Matrículas de indígenas em universidades subiram 374% de 2011 a 2021. Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2023-04/matriculas-de-indigenas-em-universidades-subiram-374-de-2011-a-2021
Braga, A. B. (2023). História da beleza negra no Brasil: discursos, corpos e práticas. EduFSCAR.
Calegare, M., & Sales, T. N. (2023). Relatos da permanência de estudantes indígenas nos Programas de Pós-Graduação da Universidade Federal do Amazonas. Psicologia Escolar e Educacional, 27, e255799. https://doi.org/10.1590/2175-35392023-255799
Godoy, G. L. (2021). Colonização e descolonização: fundamentos da dominação Ocidental e perspectivas de transformação. Sociologias Plurais, 7(1), 387-410. http://dx.doi.org/10.5380/sclplr.v7i1.79179
Guimarães, A. S. A. (2003). Como trabalhar com "raça" em sociologia. Educação e Pesquisa, 29(1), 93-107. https://doi.org/10.1590/S1517-97022003000100008
Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.
Leite, S. S. V. M., & Gomes, G. C. (2020). "Essa luta também é pra defender nosso solo sagrado": narrativas sobre o processo de demarcação territorial da etnia Xukuru do Ororubá. In J. M. Nogueira Neto, & S. L. Fernandes (Eds.). Colonialidade, psicologia e povos tradicionais (pp. 149-176). Editora CRV.
Lima, E. F. (2019). Racismo no plural: um ensaio sobre o conceito de racismos. In E. F. Lima, F. F. Santos, H. A. Y. Nakashima, L. A. Tedeschi (Eds.), Ensaios sobre racismo: pensamento de fronteira (pp. 11-24). Balão Editorial. http://dx.doi.org/10.17613/98zj-0m64
Lima, M. E. O. (2020). Psicologia Social do preconceito e do racismo. Blucher Open Access.
Lima, M. E. O., Faro, A., & Santos, M. R. (2016). A desumanização presente nos estereótipos de índios e ciganos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 32(1), 219-228. http://dx.doi.org/10.1590/0102-37722016012053219228
Longhini, G. D. N. (2022). Nhande ayvu é da cor da terra: perspectivas indígenas guarani sobre etnogenocídio, raça, etnia e branquitude [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/241036
Longhini, G. D. N. (2023). Perspectivas indígenas antirracistas sobre o etnogenocídio: contribuições para o reflorestamento do imaginário. Psicologia & Sociedade, 35, e277101. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2023v35e277101
Maciel, M. E. (2001). Cultura e alimentação ou o que têm a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin? Horizontes antropológicos. 7(16), 145-156. https://doi.org/10.1590/S0104-71832001000200008
Martes, N. B. S., & Pereira, M. C. (2023). Entre a comunidade e a cidade: deslocamento e trajetórias de mulheres indígenas na cidade de Boa Vista (Roraima, Brasil). Espaço Ameríndio, 17(1), 326-340. https://seer.ufrgs.br/index.php/EspacoAmerindio/article/view/130881
Melo, C. V. G., & Santos, A. O. (2018). Racismo, reconhecimento social e os efeitos psicossociais. In M. Calegare, & R. Alburqueque (Eds.), Processos psicossociais na Amazônia: reflexões sobre raça, etnia, saúde mental e educação (pp. 49-66). Alexa Cultural, Edua.
Milanez, F., Sá, L., Krenak, A., Cruz, F. S. M., Ramos, E. U., & Jesus, G. S. (2019). Existência e diferença: o racismo contra os povos indígenas. Revista Direito e Práxis, 10(3), 2161-2181. https://doi.org/10.1590/2179-8966/2019/43886
Munduruku, D. (2009). O banquete dos Deuses: conversa sobre a origem da cultura brasileira (2. ed.). Global.
Paiva, F. K. (2019). Choque cultural e identidade dos filhos da diáspora: "an african city" e o modelo ocidental de sociedade. Conjuntura internacional, 16(2), 15-24. https://doi.org/10.5752/P.1809-6182.2019v16n2p15
Pereira, G. F. S. F., & Amaral, W. R. (2024). Perspectivas de acadêmicas indígenas no enfrentamento do racismo na universidade. Revista em pauta: teoria social e realidade contemporânea, 22(55), 133-147. https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaempauta/article/view/84194
Silva, K. K. R., Lima, M. E. O., & Silva, P. (2024). Racismo e povos indígenas no Brasil: uma revisão de escopo. Psicologia: Teoria e Prática, 26(1), ePTPSP15944. https://doi.org/10.5935/1980-6906/ePTPSP15944.pt
Smith, L. T. (2018). Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Editora UFPR.
Souza, A. C. G. (2019). Reflexões em torno da interculturalidade na universidade. Novos Olhares Sociais, 2(1), 135-149. https://periodicos.ufrb.edu.br/index.php/novos-olhares-sociais/article/view/4508
Takuá, C. (2019). Resistência indígena: uma luta contra a violação dos direitos humanos. In E. F. Lima, F. F. Santos, H. A. Y. Nakashima, L. A. Tedeschi (Eds.), Ensaios sobre racismo: pensamento de fronteira (pp. 79-82). Balão Editorial. http://dx.doi.org/10.17613/98zj-0m64
Terena, T. (2019). O direito de existir e ser quem somos. In E. F. Lima, F. F. Santos, H. A. Y. Nakashima, L. A. Tedeschi (Eds.), Ensaios sobre racismo: pensamento de fronteira (pp. 70-79). Balão Editorial. http://dx.doi.org/10.17613/98zj-0m64
Tonial, F. A. L., Maheirie, K., & Garcia Jr., C. A. V. (2017). A resistência à colonialidade: definições e fronteiras. Revista de Psicologia da UNESP, 16(1), 18-26. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-90442017000100002&lng=pt&tlng=pt
Endereço para correspondência
Marcelo Calegare - mcalegare@ufam.edu.br
Recebido em: 08/03/2024
Aceito em: 13/08/2024
Financiamento: A pesquisa contou com apoio da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e edital PROCAD-Amazônia (nº 21/2018).
Este artigo da revista Estudos e Pesquisas em Psicologia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 3.0 Não Adaptada.