Editorial

Autori

  • Alice De Marchi
  • Daniel Maribondo
  • Rosimeri Dias

DOI:

https://doi.org/10.12957/mnemosine.2023.85762

Abstract

Editorial

 

 

Dar concretude escrita a este editorial, a este número, é incapaz de contemplar o tanto de afetos e efeitos que perpassam os corpos que o compuseram. Sabemos que essa é uma característica inerente à escrita - alguns falarão maldição -, isto é, de ser incapaz de dar conta do vivido, das lutas, dos pensamentos, das forças que a possibilitaram. E talvez não tenha mesmo de dar conta - deixando, assim, arestas e frestas que lembram, tanto a quem escreve quanto a quem lê, de nossa incompletude e finitude.

No último dia 4 de março, a brilhante professora e querida amiga Heliana de Barros Conde Rodrigues faleceu, depois de um período de hospitalização que vinha desde setembro de 2023. Heliana, ou Heli, ou ainda Lili Conde, que, dentre tantas outras, possuía uma habilidade ímpar de fazer brotar a delicadeza e o cuidado por entre o concreto duro da universidade, quebrando-o, rachando-o, como uma planta que insiste com sua potência de vida às técnicas mais modernas de impermeabilização de construções (tais quais aquelas que rechaçam qualquer produção de conhecimento intumescida de afeto).

Ainda no processo de lida com o luto de nossa amada amiga, nos deparamos com seus rastros. Dentre as experiências com Heli, em um grupo das tantas orientações de iniciação científica que ela coordenou, calhou daqueles ali reunidos compartilharem de cabelos grandes, revoltos, um tanto desalinhados, como os da própria Heliana. Quem olhasse, poderia achar que os estudantes estavam seguindo o exemplo da mestra orientadora, como uma espécie de seita; mas tratava-se de mera coincidência esse encontro de cabelos. E chegou-se a brincar, certa vez, que se estava seguindo os rastros dos cabelos do diabo, fazendo um trocadilho com a tese de doutorado de Heliana, cujo título conversava com o livro de Lapassade.[1] Estudávamos História Oral, memória, Análise Institucional no Brasil e a genealogia da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial e, entre tantas leituras, conversas e afetos, chegamos a um texto de Edgard De Decca (1999) sobre a memória do movimento anarquista, do qual destacamos um trecho:

 

Eu tinha a sensação de que na memória liberada dos ressentimentos e dos traumas, o tempo cronológico não tem existência. Que as despedidas não são quebras ou interrupções traumáticas de experiências comuns, mas promessas de novos reencontros. Se partir é dividir-se, sentir-se partido, dilacerado entre o que vai e o que fica, a memória é uma dimensão capaz de reconciliar este eu dividido, pois ela, quando livre, aponta permanências, outros possíveis de uma esperança que não tem mais fim, não tem mais fim, não tem mais fim... A memória livra o momento da partida de sua dimensão de evento irreversível.

Para o que vai e para o que fica o elo da memória desfaz o trauma da partida, mas isto só pode ser compreendido por pessoas que têm em comum uma profunda afetividade. (DE DECCA, 1999, p. 115)[2]

 

O trecho se referia a pessoas que se separaram porque uma delas iria fazer uma longa viagem e, contudo, se despediam como se fossem se ver logo, dali a um ou dois dias. Entretanto, como pensar essas promessas de novos reencontros com alguém que se foi e não voltará?

Nessa esteira, encaramos os rastros de Lili Conde. Alguns deles, inevitavelmente, são tão intensos que são impossíveis de organizar, catalogar e registrar. Todavia, esses são facilmente encontrados nos rostos, nas lágrimas que correm, nos sorrisos, nos ensinamentos repassados, enfim, no corpo dos que tiveram a sorte e o privilégio de estar com Heli, e da diferença que fez em suas vidas.

Outros rastros são legados como sua biblioteca, seu acervo… e a Mnemosine. Mnemosine, esta revista tão querida e, ao mesmo tempo, “bem avaliada”. Aos poucos, nos deparamos com essa tarefa: na verdade, com esse reencontro com Heli. Nesse processo, compreendemos como ela reunia, em si, tantas intensidades da revista que não poderíamos dar conta sozinhos. Precisávamos, juntos, lidar com o luto da perda de nossa amiga e, tal qual, juntos, dar corpo e continuidade ao encontro com ela, através de Mnemosine. E cá estamos, com o número publicado.

Retomando o colocado no início: este número publicado não dá conta do que foi possibilitá-lo. O apoio e coragem de Ana Paula, esposa de Heliana que, em meio à sua própria dor e luto, abriu as portas para lidarmos, juntos, com esse legado e resgatar o material da revista. A insistência de Simone, que, fazendo-se mãe com Maria, trabalhou para dar organização tanto à revista quanto colocar nossos pés no chão sobre o que é possível. E ainda nós, enquanto comissão editorial, reunidos para nos constituirmos como coletivo. Inevitavelmente, permanecemos na lida com esse efeito Heliana, que parece sempre produzir um movimento que junta as pessoas.

O que faremos disso, Heli certamente diria: cabe a nós. Não há uma receita, nem algo ideal a seguir ou alcançar, apenas pistas, rastros, talvez algo que buscamos que permaneça desse efeito Heliana: delicadeza, cuidado e coletivo.

 

 

[1] A tese de Heliana se intitula “No rastro dos cavalos do diabo”, publicada em 2023 sob a forma de livro pela Editora Lamparina, fazia referência ao livro de Lapassade, “Les cheveux du diable” que consiste em um diário de campo de quando esteve professor visitante na Universidade Federal de Minas Gerais, em 1972. Em francês, a palavra chevaux (cavalo) possibilitava a troça com cheveux (cabelo). Restava a dúvida se eram seguidores dos os rastros dos cabelos do diabo ou, ainda, se eram os próprios cabelos do diabo.

[2] DE DECCA, E. Ensaio sobre a memória anarquista: a história como ficção coletiva. Em: História Oral, [S. l.], v. 2, 1999. DOI: 10.51880/ho.v2i0.12. Disponível em: https://revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/12. Acesso em: 28 jun. 2024.

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Pubblicato

2024-07-11

Come citare

DE MARCHI, Alice; MARIBONDO, Daniel; DIAS, Rosimeri. Editorial. Mnemosine, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, 2024. DOI: 10.12957/mnemosine.2023.85762. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/mnemosine/article/view/85762. Acesso em: 22 mag. 2025.

Fascicolo

Sezione

Editorial

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