Editorial

Autores

  • Ana Paula Louzada
  • Maria Elizabeth Barros de Barros
  • Heliana de Barros Conde Rodrigues

DOI:

https://doi.org/10.12957/mnemosine.2021.61840

Resumo

Apresentação do Dossiê - Metodologias em ato no campo das ciências humanas
Este dossiê resulta de um trabalho coletivo de professores e alunos do Programa de Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo em torno de metodologias de pesquisa “em ato”, que se caracterizam por uma busca ativa de fazer comparecer em cena os bastidores, os ruídos, os modos de pesquisar “sujos”. Em ato e sujos não são apenas força de linguagem. Trata-se de um posicionamento no modo de colocar os problemas de pesquisa e acioná-los como atividade e atuação, seja nas práticas educativas, de saúde, de assistência, entre outras.
As ciências humanas, entre elas a psicologia, se constituíram em meio às assepsias de um mundo a se construir em torno dos mundos do trabalho, da linguagem, da vida, em suas diferentes modulações. Autonomizaram “O Humano” em uma tentativa de objetivá-lo, delinear seus traços, marcar variáveis, em tentativas de universalização de modos de vidas do velho (e tomado como único) mundo.
Os mundos coproduzidos pelas ciências humanas, a partir do século XVIII, habitados pelos humanos organizados pelos parâmetros desenvolvimentistas, objetiváveis e universalizantes, operaram um imaginário de laboratórios, métodos e rigores de uma imagética branca, limpa, uniformizada.
E fica a pergunta: onde estes mundos de fato existiram que não em imagens forjadas continuamente nos atos de sua produção? Os mundos “límpidos” das ciências produziram e produzem efeitos nos cotidianos das cidades, das casas, dos ínfimos das alimentações, dos modos de cuidar das assepsias do corpo, das higienes, dos exercícios, dos modos de cuidar da casa, de gerir o tempo e necessariamente de empreender-se no mundo. Os mundos das imagens “límpidas” e bem-formadas desinteressam-se pelo que há, pelas imagens mal-formadas, pelo turvo, pelo pouco nítido. Em busca de clareza e conformidades, as ciências intervieram na produção do bom, do belo, do justo.
Esses ‘mundos em conforme’ atormentam-se com os disformes e dificilmente se deslocam no sentido de se compreenderem como uma perspectiva entre outras. De arrogâncias em arrogâncias, os esquadros olham para si e para as imagens em conformidade que perseguem, como num jogo de espelhos, que produziram e produzem efeitos reais nos modos de existir e, principalmente, nas tentativas de apagamentos de mundos outros.
Entretanto, por baixo – entre, acima, por detrás –, outros conhecimentos se produziram e se produzem, com a efetivação de outras maneiras de fazer valer as existências para além e aquém das legitimações límpidas, tão almejadas por alguns, teoricamente em nome de todos.
Na Aula de 07 de janeiro de 1976, no curso Em Defesa da Sociedade, Foucault lança novamente uma questão com a qual se deparara em seus cursos anteriores: por mais que as ditas ciências do homem se configurassem em uma relação de legitimidade exclusivista, parece haver uma “insurreição dos “saberes sujeitados”.
Para o autor, “saber sujeitado” se caracterizaria por duas coisas: se constituir por conteúdos históricos que foram "sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais”, e se mostram como ”blocos de saberes históricos que estavam presentes e disfarçados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos, e que a crítica pôde fazer reaparecer pelos meios [...] da erudição”. Em segundo lugar, seriam, ainda, “uma série de saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos”. E foi justamente pelo reaparecimento desses saberes de baixo, desses saberes não qualificados, desses saberes desqualificados, pelo reaparecimento desses saberes como
o do psiquiatrizado, o do doente, o do enfermeiro, o do médico, mas paralelo e marginal em comparação ao saber médico, o saber do delinquente, etc. – esse saber que denominarei, se quiserem, saber das pessoas ( e que de modo algum um saber comum, um bom senso, mas, ao contrário, um saber particular, um saber local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas à contundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam) -, foi pelo reaparecimento desses saberes locais das pessoas, desses saberes desqualificados que foi feita a crítica (FOUCAULT, 1999: 11-12).
E é disto que, de algum modo, os textos que compõem esse dossiê tratam. Constituem-se como construção coletiva, como prática destoante: saberes subalternizados, que foram repetidamente sujeitados, esquecidos, retirados de cena; que, exatamente por isso, neste jogo de forças, submergiram, descolocaram-se, tornaram-se aqui e ali lampejos de existências turvas nos constantes movimentos de águas límpidas. Importa-nos colocar as perguntas: de que modo operam estes saberes locais, estes saberes diferenciais, estes impetuosos e inoportunos modos de produzir relações que vislumbram-se pertinentes, ainda que em movimentos de sujeição e subalternização? Não será esta a força da engenhosidade do pensamento crítico no presente? Não será esse um dos planos de ação dos fazeres e saberes da psicologia neste tempo que é nosso? O de propositivar, ativar metodologias com as quais trabalhamos a favor/ao lado dos turvos, dos “sujos”, em atos de produção de real?
Foi nessa direção ético-política que esse dossiê se organizou: buscando dar visibilidade ao que se colocou como “saberes sujeitados”, fazendo-os reaparecer, aqui, por meio de uma crítica impiedosa à subalternização das metodologias aos padrões. Seu título, Metodologias em ato no campo das ciências humanas, indica, assim, o que nele é princípio: pensar a emergência de estratégias, tempos outros, espaços, corpos, máquinas, subjetividades que se forjam na criação dos campos problemáticos de uma pesquisa. Os textos buscam construir uma via de análise que pensa com radicalidade a experiência da pesquisa, considerando-a como zona movediça entre caos e pensar. Modelo rizomático que não para de se forjar. Assim, por entre encontros os mais variados, coloridos por tantas diferenças e intensidades, foi se compondo o dossiê. Apostou-se todo o tempo na ousadia de criar mundos, investindo nas possibilidades de outros encontros-efeitos. Reunidos os artigos, foram se compondo, se construindo condições de produção de uma escrita inquieta.
Buscou-se tematizar a questão das metodologias no contemporâneo em sua complexidade, ao invés de reduzir o debate a ser favorável ou não a certas ‘práticas metodológicas’ no campo das ciências humanas, ficando-se na sombra de recusas e oposições. Trazer para a cena o modo como os humanos ‘sujam’ as tecnologias de humanidade. Deseja-se, então, dar passagem aos gestos marcados por estratégias de invenção. Como nos indicam Deleuze e Guattari (2010), tudo começa por um terrível combate e, para produzir um pensamento, é preciso fazer um deslocamento, que funciona por meio da divergência das faculdades mentais, repetição do movimento de diferenciação, chegando-se, assim, a outra dimensão do pensamento, que pensa fora das referências já estabelecidas, fora do sistema significante.
Ao operar por deslocamento, nas metodologias em ato que os artigos apresentam desencadeia-se a produção de um pensamento que pensa por dessemelhança e, longe de procurar a essência de algo, inquieta-se com o modo como algo emerge, funciona, desdobra-se, voltando-se para os acontecimentos e suas circunstâncias. Como escapar dos procedimentos cirurgicamente formulados, que tentam congelar o movimento do pensar e são insensíveis às forças intensivas do presente? Quais políticas de subjetivação são postas a funcionar e quais os seus efeitos quando tomamos essa relação pesquisador- metodologias de pesquisa na sua complexidade?
Esse foi o desafio proposto aos autores que compõem esse dossiê. Os textos fazem gaguejar as metodologias de pesquisa, fazendo-as deslizar na superfície de intercessão de regimes de signos, fazendo-as desviar das produções discursivas que tentam aprisionar/fixar práticas e são refratárias à vitalidade, impermeáveis às sensações experimentadas. Unidos por algumas afinidades conceituais e éticas e por inquietações advindas dos nossos mundos do trabalho, os autores apresentaram seus textos num exercício fecundo de construção coletiva, indagando-se quanto a práticas que, ao perseguirem a produção de rostidade, ficam insensíveis à vitalidade dos movimentos intensivos que constituem as paisagens de pesquisa, atentos à atmosfera, aos ruídos, tempestades, anoitecer, entardecer, amanhecer, e sensíveis aos fenômenos e sensações que nos tomam. O dossiê foi se forjando, então, a partir de textos que emergem de acontecimentos, de saberes nomadizados. Procurou-se fazer passar muitas questões na tentativa de forjar inquietações que possam produzir interferências no que está estabilizado no âmbito das metodologias de pesquisa em ciências humanas. Trata-se de um dossiê que se constitui nesse encontro que se coloca de passagem, em conexão com fragmentos, para que outros saberes possam se expressar. Um dossiê para ser dissecado, decomposto, destruído, transformado, deformado...
                                                                                      Ana Paula Louzada; Maria Elizabeth Barros de Barros


Referências:
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
DELEUZE, G., & GUATTARI, F. O Anti-Édipo. São Paulo, SP: Ed. 34, 2010.
                                                                             ***
Um dossiê sobre metodologias no campo das ciências humanas não poderia deixar de ser extenso; paradoxalmente talvez, a crer em Roland Barthes, porque nossa obsessão com métodos é correlata à sua (desejável) ausência em tal campo – por sinal, associada à ausência...de objeto. Decerto em aliança com Barthes, xs autorxs dos artigos da Parte Especial fizeram questão de trazer seus procedimentos de pesquisa em deslocamento, em nomadismo; melhor dizendo, procurando dar visibilidade aos “saberes sujeitados”, fazendo-os aparecer mediante uma crítica impiedosa, como afirmam as editoras associadas, à subalternização dos atos a supostos padrões.
Mediante a mesma inspiração, a Parte Geral do número desafia os “metodólogos” de todo tipo, indagando sobre temas diversos: sobre a função e efeitos de equipamentos sociais, sobre modos de consciência, sobre diagnósticos, sobre intercâmbios acadêmico-políticos.... Emergem assim artigos, resenha e, em particular, um ensaio biográfico que nos provoca nesses tempos de grande velocidade na atualização tecnológica, mas, a despeito disso (e eventualmente até mesmo por isso..), pandêmicos e microfascistas. Tal ensaio nos inquieta, perguntando: por que, nesse momento de exceção, se decide apostar em novas vidas? Seguimos, ao editar Mnemosine, apostando. E também indagando por quê, sem esperar resposta. Pois, como diz Donna Haraway, que nos aconselha a sempre permanecer com o problema, “nenhuma resposta poderá fazer com que qualquer pessoa se sinta à vontade por muito tempo”.
Obrigada pela colaboração e amizade.
Até breve, boa leitura, saúde.

                                                                                                      Heliana de Barros Conde Rodrigues

Downloads

Publicado

2021-08-27

Como Citar

Louzada, A. P., Barros, M. E. B. de, & Rodrigues, H. de B. C. (2021). Editorial. Mnemosine, 17(1). https://doi.org/10.12957/mnemosine.2021.61840

Edição

Seção

Editorial