Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares,
v. 10. n. 2, nov. 2013
Iracema
Barbosa (Université Rennes-2)
Este
artigo aborda alguns aspectos referentes à realização do
trabalho Bois de Carnaval, exposto quatro vezes, entre 2003 e 2009, em
centros culturais de prestígio na França. Bois de Carnaval envolveu três anos de
produção, integrando aspectos relativos à arte
contemporânea e também à cultura popular. Apresentamos aqui
três discursos distintos: o próprio, de artista, e os dos historiadores
da arte Patrícia Corrêa e João Masao
Kamita, que acompanharam tal produção e
escreveram os textos publicados nos catálogos de duas
exposições.
CARNAVAL;
INSTALAÇÃO; ARTE CONTEMPORÂNEA.
Iracema Barbosa (Université Rennes-2)
This article discusses some aspects regarding the work
Bois de Carnaval, displayed four times between 2003 and 2009 in prestigious cultural centers in France. Bois de Carnaval involved three years of production,
integrating aspects related to both
contemporary art and popular culture. We present here
three different discourses: the artist’s discourse, and art historians’
Patrícia Corrêa and João Masao Kamita, who accompanied such production and wrote the
texts published in the catalogs of
two of the
exhibitions.
CARNIVAL; INSTALLATION;
CONTEMPORARY ART.
Em português, bois
significa madeira. Madeira é associada à Matéria.
Madeira-matéria-matter. São palavras
que nos conduzem à presença do corpo e à origem das
coisas.
Esse trabalho nasceu aqui, no Bois de Vincennes. Comecei
colecionando galhos de árvores que estavam caídos no chão.
Galhos finos, lisos, ásperos, longos e tortos. Selecionei-os, recolhi e
organizei. Precisava reconstruir as coisas. Os fios coloridos me serviram para
criar uma nova estrutura para esses galhos, como uma espécie de escrita
que mistura memória e esperança. Sendo brilhantes, as fitas
parecem estar úmidas.
Essas fitas, enquanto as amarrava, me traziam recordações das festas
populares do Brasil, como a da Igreja do Bonfim, em que se oferecem fitas
coloridas como voto de esperança. Recordações
também das serpentinas lançadas durante o carnaval, cujas
trajetórias acompanhamos no ar, antes que caiam no chão. Tais
lembranças acompanharam os gestos repetitivos necessários para
amarrar os galhos e me lembraram outros gestos, que
conduziram a outras lembranças, dando a impressão de uma
ação ritual.
Acredito que as
relações entre esta exposição e o carnaval sejam
meramente lúdicas, estando ligadas ao desejo de reorganizar coisas, de
brincar, de dar um novo ritmo a um mundo tão acabado, tão
definido, de fazer dançar a ordem deste mundo! Ao mesmo tempo, e isto
já há 10 anos, meu trabalho permanece profundamente ligado a uma
geometria que pretende colocar em evidência a desmedida das coisas, dando
a elas precisamente um outro contexto.
(Texto escrito em Fontenay sous Bois,
França, em 2003, impresso no convite da primeira exposição
de Bois de Carnaval que realizei na La Galeru)
Bois de Carnaval é fruto de uma nova
situação de vida e de trabalho, em um outro
lugar. A travessia de um oceano, a mudança de um continente a outro,
assim como o contato cotidiano com os museus − a possibilidade de ver e
de rever uma mesma obra durante horas, e em diferentes ocasiões −
transformam totalmente o trabalho de um artista. Mesmo a melhor
reprodução de uma obra não substitui sua presença
material, suas imperfeições, nossa experiência
sensível com ela, e todas as surpresas que nos levam a viver. Esse
contato com as obras possibilita a atualização de certas
discussões solitárias de ateliê, a partir da análise
da problemática e das soluções encontradas pelos artistas.
É um diálogo que estimula o surgimento de novas experiências.1
Além disso, a tempestade
do inverno de 1999 deixou no bosque de Vincennes, em
Paris, uma grande quantidade de madeira caída no chão. Podiam-se
encontrar troncos imensos de carvalhos, bétulas, plátanos,
infelizmente impossíveis de transportar até o apartamento onde
morei e trabalhei, na região parisiense, entre 2000 e 2010. Havia
também milhares de galhos dessas árvores, mais fáceis de
recolher e de transportar. Assim, eu os escolhi e acumulei, passando, em
seguida, a organizá-los. Procurava um meio de ligá-los para criar
uma estrutura.
Primeiramente, cortei os galhos
com uma pequena serra, produzindo uma definição redonda às
pontas, dando a eles um comprimento que me permitisse reuni-los em
função de suas espessuras. A visão dessa
organização conduziu-me à utilização de fios
para atar os elementos. Utilizei, então, fios com espessuras, cores e
brilhos variados para a costura: fitas de cetim, fios de seda e lã e
linhas de costura. Tais procedimentos deram origem a estruturas longas, entre
160 e 240cm de comprimento, que reuniam galhos
cortados com 20 a 30cm cada um.
Durante três anos, entre
2000 e 2003, costurei sem saber aonde tal ação me levaria.
Continuava a construir com as cores mas, no lugar das
tintas, utilizei fitas e fios. O suporte de madeira já não se
escondia mais atrás da tela. A cor não se colocava mais sobre um
plano. Era a cor explicitamente presa à madeira que construía
vários planos.
Para tal processo de
confecção do trabalho, a demanda do corpo é intensa, pela
força necessária para a coleta e transporte dos galhos ao
ateliê (sobretudo no inverno), para serrar manualmente cada elemento em
suas extremidades2 e também pelo compromisso
de horas sentada numa cadeira, com o corpo dobrado, para a costura das
estruturas. É evidente que todo esse processo ritual de fazer se
tornou parte integrante da forma do trabalho Bois de Carnaval, que a
cada exposição se instala de um modo diferente, abrindo assim
problemáticas específicas a cada montagem.
E é simplesmente de tal
experiência que este texto trata. Pois a realização de um
trabalho flexível, em que a disposição final só
surge no lugar da exposição, enriquece certamente a
experiência artística e orienta decisões a tomar. Isto
é, a repetição de um trabalho cuja
apresentação (disposição, formato, luz) varia em
função dos diferentes locais de exposição introduz
questões diversas para o artista, e o conduz a ser mais preciso no que
diz respeito a suas proposições. Bois de Carnaval, desde
sua realização, foi mostrado quatro
vezes na França: a primeira na La Galeru,3 em 2003; a
segunda, na capela de Saint-Gildas,4 em 2005; a terceira, no
corredor do convento da Tourette,5 no Rhône,
em 2007-2008; e a quarta, na Cité internationale des arts, em Paris, em 2009.
La Galeru
é uma espécie de galeria-vitrina, que expõe propostas
artísticas diversas, num lugar de passagem de pedrestes,
funcionando como uma vitrina comercial. A curadoria desse lugar trabalha
fundamentalmente com projetos conceituais, que provoquem a
atenção dos passantes. Trata-se de um pequeno retângulo,
com 1,50m de profundidade por 7m de comprimento, que constitui a parte
envidraçada, situada a uma altura do chão que varia entre 1,20 e
1,60, começando no nível do peito do pedestre para cima.
Nessa primeira
exposição de Bois de Carnaval, as estruturas foram
suspensas de modo que o enquadramento da vitrina permitisse,
da rua, uma visão do conjunto do trabalho através do vidro. As
extremidades das estruturas foram colocadas fora do enquadramento da vitrina, o
que acentuou a visão de seu conjunto. Mais do que todas as outras, essa
montagem conduzia ao plano da pintura, devido à presença do vidro
retangular, no qual os elementos costurados e dispostos em diferentes planos e
posições formavam um só plano. A repetição
aleatória de poucas cores provoca uma leitura óptica do trabalho.
Foi assim, devido a essa aproximação com a pintura, que tomei a
decisão de pintar o exterior da Galeru, na
parte que emoldurava a vitrina.
Aconteceu, porém,
durante a exposição, outra questão relativa à
modulação da luz naquela vitrina, que se associava aos reflexos
da cidade e também à presença de sombras projetadas na
parede do fundo da galeria. Percebi que, de fato, a madeira funcionava como
suporte para a cor, e a luz, mais reduzida ao amanhecer e ao anoitecer,
extraía do trabalho uma vibração ainda mais intensa das
cores, presentes nas fitas de cetim e nos fios de seda e lã. Por outro
lado, nessa montagem, senti falta das sensações produzidas pela
proximidade dos diferentes materiais, estruturas e disposição
variadas dos elementos, experiência que só era possível no
interior da vitrina, ao qual as pessoas não
tinham acesso.
Foi pela necessidade de propor
um contato mais próximo e recolhido com o trabalho que pensei em
participar do projeto L’Art
dans les Chapelles,6
sendo essa a razão da escolha da capela de Saint-Gildas,
em Bieuzy-les-Eaux, para instalar Bois de Carnaval.
Situada à beira de um
rio, é preciso caminhar por um bosque para chegarmos à
capela-gruta de Saint Gildas, metade construída,
metade incrustada na pedra de um monte. Trata-se de um lugar que convida ao
recolhimento e à reflexão, pois, além da paisagem que a
circunda, ao entrar na capela, somos surpreendidos
pela delicada luminosidade de seu interior. Ela possui duas salas pequenas, a
da capela propriamente dita, e outra que se caracteriza mesmo como caverna. Era
esse o lugar onde, em outros tempos, ficavam os animais, e onde hoje se
instalam os trabalhos dos artistas, um recinto quase tão escuro quanto
uma sala de cinema.
Nessa segunda montagem de Bois
de Carnaval, não se via mais como os elementos estavam pendurados no
alto da capela. As estruturas foram suspensas criando uma forma
cilíndrica – de 6m de altura por 3m de diâmetro
aproximadamente –, presas e penduradas no centro da sala, quase tocando o
chão, transmitindo a sensação de suspensão dessa
bola no meio da capela.
Os trabalhos que se instalam
nesse lugar se revelam mágicos. A iluminação reduzida no
interior da sala demanda mais tempo para adaptação das pupilas.
Com Bois de Carnaval, as cores surgiam pouco a pouco, brilhantes,
fragmentadas, repetindo-se aqui e acolá. Ao mesmo tempo, surgiam
desenhos nas paredes de pedra e no chão de terra, e via-se, nas sombras
projetadas, a trama gráfica do trabalho. Como a obra foi montada nesse
formato, apenas tocando o chão, o visitante era convidado a dar a volta
em torno dele, como se faz tradicionalmente em torno de uma escultura, e o
chão irregular contribuía para guardar a atenção do
visitante em sua experiência com o trabalho.
Como nas demais
edições do projeto l’Art
ans les Chapelles,
em 2005 também foi realizado um catálogo incluindo as obras
expostas em todas as 17 capelas, e, acompanhando Bois de Carnaval, o
lindo texto de Patricia Corrêa, “Frutos
de Cor”, escrito em 2004, publicado em francês, no catálogo,
e que adiante pode ser lido no original, em português.
A terceira montagem de Bois
de Carnaval esteve intimamente associada à paisagem, particularmente
às árvores, e ao fato de que, ao caminhar, podíamos
atravessar o trabalho. Instalado num corredor de 23m de comprimento por 3m de
largura, uma sucessão de estruturas foi suspensa no teto, ao longo de
quatro metros, ao final da primeira reta do comprido corredor em forma de L,
que conduz à biblioteca do convento de La Tourette.
Assim, dispunha-se de um bom afastamento para apreendê-lo num primeiro
momento, ao fundo, como uma estranha floresta que deveria ser atravessada para
continuar o percurso até o outro lado. Via-se,
no exterior, através do recorte estreito da janela, ao longo de todo o
corredor, à altura dos olhos, os troncos das árvores enquadrados
pela arquitetura monumental de Le Corbusier. Esse percurso no interior do
trabalho dava a impressão de atravessarmos uma pintura. Pintura
constituída pelo conjunto de galhos costurados com fios coloridos,
criando a possibilidade de proximidade e de contato com os elementos, e, em
consequência, favorecendo a percepção das diferentes costuras
e cores que estruturavam tal floresta.
Na primeira visita ao convento,
realizada no inverno que precedeu o da exposição, fiquei
fascinada com sua arquitetura − as entradas de luz dos espaços
construídos em concreto áspero, sua estrutura sólida (como
a de uma fortaleza!) mergulhada naquela bela paisagem, do
campo de vales amplos e arredondados do Beaujolais.
Ao mesmo tempo, nosso caminhar dentro do convento se perde no labirinto, nas
passagens, cortes, ângulos, vértices, entre as salas,
oratórios, corredores, refeitório, cripta, etc. Le Corbusier
traçou as aberturas de tal modo que, no interior da parte religiosa do
convento, perdemos o senso de orientação. Assim, entre fascinada
e intimidada, comecei as experimentações com meu trabalho naquele
lugar,7 possibilitadas pelo fato de o
convento de La Tourette estar em fase de resturação. Uma das questões mais
complicadas que enfrentei, nesse contato de meu trabalho (frágil, leve,
colorido e tão flexível) com aquela arquitetura tão
imponente, foi instalá-lo sem que parecesse apenas um adereço e
que funcionasse sim, apesar de sua modesta presença, na
proposição de um diálogo estético com aquelas
questões dali − os recortes da paisagem, a textura das paredes, as
cores já presentes, e até as funções dos
espaços. E foi sorrindo que ouvi o comentário provocador de um
filósofo, em visita ao convento, depois de passar pelo corredor onde Bois de Carnaval estava instalado: “a gente se
pergunta que animal seria capaz de deixar tal rastro”.
Foi pensando em alguém
que tivesse as visões de arquiteto e de historiador da arte, estando ao
mesmo tempo mergulhado nas questões formais enfrentadas na modernidade
que João Masao Kamita
foi convidado a escrever o texto tão costurado que acompanha o
catálogo da exposição Démesurer,8
cujo recorte das partes relativas ao trabalho Bois de Carnaval
estão disponíveis adiante.
Os dois textos ao final deste
artigo, de Patricia Corrêa e de João Masao Kamita, revelaram para mim
relações estruturantes na pesquisa que venho realizando nos
últimos 20 anos no ateliêr. Me impressiona como os olhares externos, que na realidade
passam por dentro do trabalho, podem potencializar o fazer do artista,
tornando-o mais preciso. Como, por exemplo, os aspectos abordados por
Patrícia Corrêa, que associam tais estruturas rudimentares
à construção cinematográfica; ou, como formula
João Masao Kamita, a
confecção de um espaço flexível e sua
relação com uma ordem geométrica. Não se trata aqui
de comentar o comentário sobre o trabalho, mas de relevar o valor desse
diálogo (quando ele de fato existe!).
Bois de Carnaval é, no meu percurso, um trabalho
libertador, pois contribuiu para eliminar barreiras entre domínios
tradicionais e onde o fazer perde sua urgência: não há mais
forma a ser revelada. A ação constrói a forma sem a priori.
As coisas do mundo entram no trabalho sem que se perceba (nesse caso, a
tempestade disponibilizou a madeira, os fios da costura encontram-se nos
armarinhos, e os gestos de amarrar e costurar fazem
parte do cotidiano). Não importa mais se o trabalho tem duas ou
três dimensões no espaço. O que conta é fazer ao
longo do tempo, esticar a ação, o processo de
criação, de modo que a visão do conjunto do trabalho
não aconteça mais a priori.
As quatro montagens de Bois
de Carnaval seguem uma mesma direção: potencializar a
vibração da cor, provocando sua expansão no espaço.
O gesto repetido, cujo papel
é o de confeccionar estruturas similares, acontece recolhido sobre a
ação. Tal repetição obriga-me a estar presente na
ação em si. E esta associação, entre repetição
da ação e presença na ação, gera um estado
meditativo e liberto de outras intenções. Se, num primeiro
momento, uma motivação conduz à
transformação do material − cortar, dobrar ou esticar,
colocar em evidência certas qualidades plásticas e ópticas,
reorganizar elementos −, durante a ação, qualquer objetivo
de se atingir uma forma precisa se perde, propiciando um retorno à
ignorância, possibilitando, assim, algo que nos surpreenda e que, ao
mesmo tempo, nos conecte a tão antigas experiências...
1 Entre outras exposições
que me marcaram particularmente estão, em Paris: Picasso sculpteur, 2000, dialoguant
avec l’art primitif, au Centre
Georges-Pompidou; Mélancolie, génie et folie en Occident, 2005; e Brésil
indien, les arts des Amérindiens
du Brésil, 2005, no
Grand Palais; Yves Klein, Corps,
couleur, immatériel,
2006-2007; e Giacometti, L’Atelier
d’Alberto Giacometti, 2007-2008, no Centre Georges-Pompidou;
François Morellet, 2007; e Rodchenko, 2007, no
musée d’Art moderne de la Ville
de Paris; Anselm Kiefer, em 2007, e Richard Serra, em
2008, no Grand Palais (Monumenta).
Em Londres: Bridget Riley, na Tate Britain, em 2003; Joseph Beuys,
na Tate Modern, em 2005; Caravaggio,
na National Gallery, em
2005. Descobrir o Espace dde l’Art Concret em Mouans-Sartoux. E as muitas visitas aos museus de Berlim,
de Bilbao, de Bâle, de Veneza, de
Florença, de São Petesburgo, de
Barcelona e de Madri, entre 2000 et 2010
2 Foram realizadas em torno de 250
estruturas com oito a dez galhos cada, o que soma cerca de cinco mil cortes de
madeira.
3 A exposição que se chamou
Bois de Carnaval, foi realizada em 2003 com curadoria de Philippe Chat.
O local da exposição, La Galeru,
pertence à cidade de Fontenay-sous-Bois.
4 Chapelle
Saint-Gildas, em Bieuzy-les-Eaux,
no Morbihan, na Bretanha; trata-se de uma
gruta-capela. A exposição, com curadoria de Olivier Delavallade, foi realizada no contexto do projeto L’Art dans
les chapelles.
5 Exposição Démesurer, no contexto de um projeto de
residência, apoiado pelo projeto Odyssée
do Ministério da Cultura da França e da Association
des centres culturels de rencontre (ACCR) em 2007-2008,
organizada por Jean-Louis Villeval.
6 O projeto l’Art
dans les Chapelles foi criado e organizado por Olivier Delavallade.
7 O que certamente só foi possivel graças à generosidade de todos os
envolvidos com aquele espaço: os irmãos dominicanos e toda a
equipe do Centro cultural da Tourette, então
dirigido por Jean-Louis Villeval, que se envolveu com
todo o entusiasmo nesse projeto, tendo sido o responsável pela
edição do catálogo da exposição Démesurer, realizada entre dezembro de 2007 e abril
de 2008.
8 Démesurer
contou com seis instalações de minha autoria, sendo uma delas Bois
de Carnaval.
Iracema Barbosa é artista plástica,
doutora em artes plásticas e pesquisadora do Laboratoire
l’œuvre et l’image (EA 3208),
pela Université Rennes-2.
Recebido em: 25/02/2013
Aceito em: 16/04/2013
Patrícia
Corrêa
A
ideia do enlace lúdico entre galhos e fitas, que constitui a
intervenção de Iracema Barbosa na capela de Saint Gildas, surgiu há alguns anos, quando instalou seu
ateliê em Fontenay sous
Bois. A proximidade com o bosque, presença marcante na paisagem
vivenciada pela artista, fez de suas árvores foco de interesse e
material de trabalho. Era preciso perscrutar o novo ambiente, nele situar-se e
torná-lo campo de ação, fazê-lo de algum modo seu. A
observação das mudanças naturais de cor e forma, do
nascimento e da queda de frutos, folhas e galhos, levou-a então a
recolher restos desse processo, galhos secos que passou a cortar, organizar e,
em seguida, amarrar com fitas de cetim e fios de lã coloridos.
Assim,
deu a esses galhos nexo pessoal e afetivo – a lembrança de festas
populares no Brasil onde nasceu e a referência a práticas artesanais
ligadas ao seu círculo familiar. Mas também, e sem que isso
contrarie as associações anteriores, deu-lhes nexo
artístico, estético – criou estruturas de cor e luz,
estruturas que podem ser pensadas a partir de experiências provenientes
da pintura e do cinema, convertidas a uma interação produtiva com
o espaço da capela. Segundo as palavras da artista, as mais de cem
peças ali suspensas, singelamente iluminadas em meio à penumbra
habitual do lugar, devem produzir as sensações da “luz-cor
que se propaga no espaço escuro e das tramas que se projetam em sombras
nas paredes”.
Na
trajetória de Iracema Barbosa, o início do engajamento na pintura
foi praticamente coincidente com o engajamento no cinema. Começou a
pintar em meados da década de 1980, quando trabalhava como assistente de
direção em filmes. Algo que certamente as duas atividades lhe
ensinaram a perceber foi a importância da luz,
sua ação determinante na modulação da forma e da
cor, o poder de espacialização intrínseco aos seus
contrastes e variações, enfim, sua capacidade de dar coisas
à visão. Há algo dessas descobertas na
aparição cintilante de galhos e fitas, no modo como emergem
dentro da capela. Sua oscilação visual depende do fato de serem
estruturas que rebatem e ao mesmo tempo são transpassadas pela luz
– mas se o primeiro tipo de sensação é mais
próximo à pintura, o segundo tipo se aproxima principalmente do
cinema.
As
superfícies de cetim reluzem como “frutos úmidos”
nessa floresta íntima, propagando cores brilhantes. Retomam, assim, uma
característica da pintura – a tensão entre a tactilidade do suporte pintado e a opticalidade
do fenômeno cromático, pois as fitas dão corpo e
também ressonância às cores na capela, são materiais
opacos e também agentes ópticos. Por outro lado, quando vazados
pela luz tais elementos deflagram sombras sobrepostas, lançando
mão de uma plasticidade típica do cinema – a capacidade de
produzir densidade espacial a partir de um meio translúcido. As
silhuetas projetadas nas paredes estabelecem diferentes noções de
profundidade, apreendidas à medida que se caminha dentro da capela,
portanto em um fluxo temporal. Como no cinema, a luz desenha nessa sala escura
e, assim, articula um tempo próprio, distinto do tempo vivido fora dela.
Outro
aspecto relevante da relação do trabalho com a pintura e com o
cinema reside na questão do enquadramento, isto é, na
percepção da ação de limitar como dinâmica
produtiva do espaço. O interesse pelos galhos de Fontenay
sous Bois nasceu da visão impressionante de
sua nudez contra o céu ilimitado, da trama que copas de árvores
sem folhas traçam no céu, dividindo-o em segmentos luminosos. Ao
amarrar os galhos, a artista lida com a instabilidade e com a
impermanência desses limites, volta a demarcar segmentos em um campo
visual sob a evidência de sua precariedade. Tanto no cinema quanto na
pintura, a força plástica do plano depende de sua capacidade de
conjugar imanência e transcendência na articulação da
estrutura pictórica ou da estrutura fílmica. Ou, dito mais
simplesmente, nos dois casos estão em jogo, ainda é viável
supor, a produção de sentido a partir de uma sintaxe de planos,
onde os limites ou cortes distinguem elementos apenas para colocá-los em
contato e tensão com outros elementos, portanto separam juntando, fecham
abrindo, existem no próprio lance de sua superação.
Obviamente,
tal dinâmica não se dá somente na estrutura interna desses
meios, mas também no espaço vivencial em que o espectador os
recebe. A instalação na capela procura dimensionar essa
experiência ambígua do enquadramento, carregando sua geometria de
vibração incerta, submetendo-a à
dupla sensação da luz refletida e da luz vazada. A artista nos
fala de cortes que transbordam, de um fim que é começo –
como na matéria aparentemente morta dos galhos caídos que, no
entanto, volta a imantar-se de vitalidade. Eis, em parte, o fascínio da
ação artística: revelar o princípio de
construção inerente à perecibilidade
das coisas, tornar produtivos os nossos limites.
(Texto
original de Patricia Corrêa, escrito em 2004,
para o catálogo da exposição na capela de Saint-Gildas, projeto l’Art
dans les Chapelles organizado por Olivier Delavallade)
João
Masao Kamita
Tudo
começa com a coleta. Reunir, guardar, acumular coisas (...) Uma coleção implica seleção
e classificação, isto é, a busca de um certo
princípio de identidade. O fato de serem da mesma espécie
não assegura, porém, que exista entre elas uma conexão
intrínseca. Se poderia mesmo pensar o contrário, que o fato de
serem muitas, ou que um bom número seja do mesmo gênero, pudesse
eliminar seu caráter singular, reduzindo-as a serem
apenas um elemento de uma série.
Daí
a presença desta trama, feita de laços, de nós, de amarras
para ligar coisas. Fitas, linhas, cordas coloridas envolvem, amparam, seguram
as peças coletadas, mas deixam em aberto seu modo de
formalização. É no jogo tenso entre o elemento que se
repete e a ordem flexível que o enlace promove que nós percebemos
o paradoxo de uma disciplina geométrica em contato com uma pulsão
afetiva.
Há,
por certo, algo de primordial nesse ato de ligar, uma energia física
sempre presente, como se tal articulação fosse um autêntico
nó ontológico entre os seres. Esta “costura das
coisas” faz pensar no historiador da arte Gottfried
Semper que concebia a origem da obra de arte a partir
do conceito da tectônica, como uma estrutura articulada delimitando um
campo espacial (se trata de uma divergência evidente com a
tradição clássica que via, como origem das artes
plásticas, a latência da forma na matéria sólida;
este conceito construtivo da tectônica nega a pulsão
mimética que extrai a forma da matéria). A mesma coisa é
válida para a arte da tecelagem, para carpintaria e para a
construção da cabana primitiva de fibra vegetal e madeira.
São estruturas leves e articuladas que tendem à imaterialidade e
valorizam a junção dos elementos constituintes. No limite, se
trataria de uma forma que se amolda às condições
existentes, quer elas sejam físicas,
psicológicas, corpóreas, enfim, ao que temos no lugar.
Contudo,
o desafio da artista é intervir num espaço previamente carregado
de intenção artística. Não se trata de um cubo
branco convencional, mas da arquitetura de Le Corbusier, de um Le Corbusier que
tinha recém-descoberto o espaço do sagrado, no qual os homens
anseiam comunicar terra e céu. Nesse todo voltado para o interior, o
arquiteto arma uma verdadeira tensão visual que percorre todo o
edifício, forçando os limites dialéticos entre repetitivo
e singular, entre geometria cartesiana e emoção plástica,
matéria e luz, linha reta e curva, plano e profundidade. É
justamente aí que reside o ponto de contato entre as
instalações de Iracema Barbosa e a obra de Le Corbusier: na troca
incessante de ordens divergentes (...)
Bois
de Carnaval traz a floresta culturalizada para o
interior do prédio, mas de modo inverso, pois caem soltos do teto,
roçando as ásperas paredes do longo e estreito corredor. A luz em
movimento que entra das frestas rasgadas na áspera parede, acentua a vibração cromática e o jogo
de luz e sombra tornando o espaço ainda mais indecidível
(...)
As
instalações de Iracema Barbosa nos colocam na reflexão
sobre a condição dramática da presença na
contemporaneidade, que parece admitir somente arranjos precários,
conexões provisórias. Mas isso não significa, e é
isto que a artista demonstra, que arte deva se conformar a um modo de existir
sem substância, como se as formas de experiências corporais e de
vida não fossem mais possíveis.
(Fragmentos
do texto de João Masao Kamita,
escrito para o catálogo da exposição Démesurer,
realizada no Convento de La Tourette, projeto Odyssée-ACCR, 2007-2008)
BARBOSA, Iracema. Bois de
carnaval. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de
Janeiro, v.10, n.2, p. 201-217, nov. 2013.
Iracema Barbosa, Bois de Carnaval, 2000-2003, detalhe; foto: Benoît Pelletier
Iracema Barbosa, Bois de carnaval, 2003, La Galeru,
Fontenay-sous-Bois, foto:
Dominique Roy-le-Gac
Iracema Barbosa, Bois de Carnaval, 2003, galhos costurados c/fitas de cetim e
fios de seda e lã, 150 x 700 x 120cm, La Galeru, Fontenay-sous-Bois
Capela de
Saint-Gildas, Bieuzy-les-Eaux
Iracema Barbosa, Bois de Carnaval, 2009, Cité
internationale des Arts, Paris; a: 2,40m, Ø 3,50m