Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares,
v. 10. n. 2, nov. 2013
Pedro
Ubirajara Rosa (UCS)
A
mensagem e o método de expressar a visualidade artística dependem
grandemente da compreensão, capacidade e habilidade de usar as
técnicas e os recursos sintáticos visuais. Este artigo reflete
sobre o caráter composicional das alegorias das escolas de samba do Rio
de Janeiro e propõe considerações sobre algumas
especificidades na elaboração desses objetos artísticos.
ESTÉTICA
CARNAVALESCA; ESTILO; TÉCNICAS VISUAIS; CARROS ALEGÓRICOS.
Pedro Ubirajara Rosa (UCS)
The message
and the method
of expressing visual arts depend on
a large scale on the understanding,
capacity and ability of using
syntactic-visual techniques
and resources. This article reflects
on the compositional
character of allegories of the
samba schools in Rio de Janeiro, and
proposes some considerations
on the specificities
of the elaboration
of these artistic objects.
CARNIVAL AESTHETIC; STYLE; VISUAL TECHNIQUES; FLOATS.
INTRODUÇÃO
O desfile de escolas de samba
é competição festiva em que se trata de “a um
só tempo associar-se e rivalizar” (cavalcanti, 1994, p. 21). As escolas de samba
constituem grupos sociais locais, geralmente formados pelas camadas populares,
“escola do morro” que, por exemplo no Rio
de Janeiro, desce o morro literalmente e alcança notoriedade e
expansão com outras camadas da sociedade/cidade (carneiro, 1987; moura,
1983; barbosa; santos, 1980; cavalcanti,
1994; costa, 1984; ferreira, 2004).
Este artigo aborda a
estética carnavalesca tendo como foco o caráter alegórico.
Para essa análise, elucidaremos a proposição visual dos
desfiles, cujo padrão narrativo é o enredo. Tomaremos, para breve
e introdutória explanação, a contribuição de
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (1994) e de Milton Cunha (2010);
ambos observam que enredo é a narrativa escrita que desemboca na
construção do desfile de uma escola de samba. Para a
análise da linguagem plástica e visual, tomaremos emprestadas as
definições de Dondis (1997) sobre
comunicação visual, estilo artístico e técnicas
visuais, na perspectiva de identificar características genéricas
no processo de confecção alegórica.
ENREDO: PROPOSITOR DA
VISUALIDADE
Os desfiles das escolas de
samba se dão através da encenação de enredos.
A narrativa escrita é
uma das obrigatoriedades prescritas pela Liga das Escolas de Samba, para
julgamento dos quesitos enredo, samba-enredo, alegoria e adereços,
fantasias e conjunto. Como ópera de rua (...), o desfile das escolas de
samba apresenta um libreto que elucida o seu tema para a comissão
julgadora e para a imprensa, em informações condensadas em um
único documento (cunha, 2010).
Antes de servir para o
julgamento desses quesitos,1 a
construção do enredo serve para associar todo o coletivo da
escola de samba. É a partir do enredo que se começa a construir o
processo carnavalesco; citemos três aspectos principais no tocante
à encenação na avenida:
- confecção do
samba-enredo: “a narrativa [do enredo] será cantada
na avenida repetidas vezes [pelo samba], sendo, portanto, significativa
a transmissão oral, tal qual acontece na tradição
africana” (cunha, 2010, p. 67);
- confecção dos
carros alegóricos: é a expressão visual daquilo que o
enredo pretende em sua origem; é sua narrativa plástica;
- elaboração das
fantasias: as fantasias, assim como os carros alegóricos, pretendem
expressar visualmente aquilo que o enredo propõe. “A fantasia
relaciona toda a escola, situa a posição relativa de cada um no
conjunto do desfile (...) envolve a todos, trazendo-os de forma mais ou menos
consciente para dentro do enredo” (cavalcanti,
1994).
O enredo é, portanto,
de um ponto de vista
teórico-conceitual, a proposição de realidade ficcional,
descritiva ou até mesmo dissertativa que constitui o fio condutor de
sentido de um desfile de escola de samba. É a concepção de
base que estrutura toda a realização semiológica do
espetáculo que corre por 80 minutos na Avenida (cunha, 2010, p. 65).
Sobre a
elaboração semiótica do espetáculo discorremos a
seguir.
CARROS ALEGÓRICOS
Carros alegóricos
são representações artísticas que, como qualquer
outro objeto artístico, emitem mensagens visuais, cabendo-lhes
“contar, expressar, explicar, dirigir, inspirar, afetar” (dondis, 1997 p.131). São
representações que têm como princípio a
comunicação visual.
É importante dizer que,
embora tenhamos optado aqui por analisar os padrões narrativos e visuais
separadamente, quando tratamos de inteligência visual aplicada,
conteúdo e forma nunca se dissociam; são inerentes um ao outro,
porque o resultado final da experiência visual está na
interação de mensagem e significado, que é o
conteúdo, com o design, meio e ordenação, que
é a forma.
Como qualquer elemento da
linguagem, a possibilidade de comunicação depende de habilidades
para se expressar aquilo que se intenciona dizer. Nesse sentido, quando um
artista propõe seu trabalho ele tende a fazer escolhas e apropriar-se de
recursos visuais específicos. No caso da comunicação
visual “a inspiração súbita e irracional não é
uma força aceitável no design. O planejamento cuidadoso, a
indagação intelectual e o conhecimento técnico são
necessários no design e no pré-planejamento
visual” (dondis, 1997, p.136).
Cabe lembrar que o desfile de
escola de samba sofre julgamento de pessoas qualificadas e que têm
domínio sobre seu quesito específico.2
Jurados da parte musical (bateria, samba-enredo) são geralmente
músicos de formação; jurados da parte visual (alegorias e
adereços, e fantasias) costumam ser artistas plásticos,
professores e intelectuais do meio artístico. Esses exemplos servem para
situar que deve haver necessariamente suficiente compreensão
estética e de comunicação visual na execução
de um desfile de escola de samba.
Interessante que, diferente de
artes ditas eruditas, que compõem renomados museus ao redor do mundo, as
alegorias carnavalescas (como, aliás, todo o projeto de desfile, seja
visual, musical, teatral ou escrito) se valem de uma linguagem popular sem, no
entanto, deixar de ser esteticamente sofisticada, o que
veremos adiante.
A mensagem e o método de
expressar a visualidade artística dependem grandemente da
compreensão, capacidade e habilidade de usar as técnicas visuais.
A síntese dessas técnicas visuais vai automaticamente formar e
personalizar estilos (dondis, 1997) − cada
estilo artístico, categoria ou classe de expressão
visual é modelado pela conjunção de determinadas
técnicas visuais. Para fins desta pesquisa, analisaremos o desfile de
escola de samba naquele caráter ou estilo que o identifica: o
ornamental.
ESTILO
Segundo Dondis
(1997), estilo é a síntese dos elementos visuais,
técnicas, sintaxe, inspiração, expressão e
finalidade básica. O arquiteto Sulivan (apud dondis, 1997, p. 162), sentia a estrutura imposta do
seguinte modo:
Você não pode se
expressar a menos que tenha um sistema de expressão; não pode ter
um sistema de expressão, a menos que tenha um sistema anterior de
pensamento e percepção, não pode ter um sistema de
pensamento e percepção a menos que tenha um sistema básico
de vida.
É claro que cada artista
desenvolve sua grafia pessoal, sua “marca registrada”. Se
nos é fácil conceber que os sistemas de vida são
culturalmente condicionados e que há a precedência de um
predomínio cultural, podemos, a partir daí, verificar um estilo individual.
Sim, porque existem, em determinado contexto, pistas visuais que em conjunto
compreendem a obra de vários artistas sem, no entanto, interferir na
individualidade de cada artista.
Sobre a questão da
individualidade no universo do carnaval cabe trazer os estudos de Nilton Santos
(2006; 2009). O trabalho de Santos, com base em entrevistas de carnavalescos,
apresenta a noção de estilo como fator de individualidade. Aqui,
o estilo envolve problemática muito discutida. De um lado, aqueles que
aderem às formas mais tradicionais de fazer desfile; de outro, aqueles
que buscam as soluções inovadoras que, de certa forma,
desconstroem uma espécie de estética genérica então
estabelecida. Essa discussão surgiu com Joãozinho Trinta, no
começo de sua carreira, nos anos 70, e hoje é enfrentada pelo
carnavalesco Paulo Barros.
Segundo Santos (2006),
há, por parte dos carnavalescos, uma compreensão de seu ambiente
artístico e das “convenções estéticas”
que o sustentam. A partir daí começa-se a construir uma forma
individual que favoreça sempre uma nova fórmula de
espetáculo e que, por conseguinte, sagrará o trabalho do
carnavalesco. Não pretendemos focalizar essa problemática, mas
é interessante perceber que, mesmo dentro de um sistema de arte com
convenções mais ou menos estabelecidas, há um modo pessoal
de aglutinar, compor e utilizar as técnicas que regem esse sistema.
É possível, a partir das variantes técnicas, identificar a
individualidade artística de um autor e, ao ampliar nossa visão,
identificar o estilo de toda uma escola ou período em que sua obra se
estabelece.
Transparece o dado de que tudo
se baseia nas preferências metodológicas – as
técnicas visuais manipulativas –, já que o estilo é
a síntese da junção de determinadas decisões, forças
e fatores compositivos.
ORNAMENTAL: O ESTILO
CARNAVALESCO
Na definição de Dondis (1997, p. 176 e 177), o estilo ornamental enfatiza
técnicas visuais discursivas de efeitos
cálidos e elegantes. Esse estilo não é só em si
mesmo, como também costuma ser associado à riqueza e ao poder. Os
efeitos grandiosos que podem produzir constituem um abandono da realidade em
favor da decoração teatral e do mundo da fantasia. Em outras
palavras, a natureza desse estilo é frequentemente florida e exagerada,
configurando um ambiente perfeito para um rei ou imperador (...). Nenhuma
escola é mais representativa das qualidade
desse estilo do que o barroco. É uma arte em que certamente não
há espaço para objetividade ou realidade, não importa a
que nível.
O ornamento é forma
subordinada a um todo maior, complementada e enriquecida. Rudolf Arnheim (2006) exemplifica isso ao identificar o cetro, a
peruca e a coroa como ornatos de um rei ou lembrando os móveis
criativamente decorados na tentativa de enriquecer sua aparência. E essa
é a ideia, enriquecer a aparência do objeto.
Embora o ornamental seja um
estilo que abarque outras escolas e períodos artísticos, segundo
a definição de Dondis, o termo barroco
é muito utilizado no ambiente carnavalesco e nos estudos que o
aprofundam. Tende a significar, assim, a estética à qual o
carnaval pertence. Cabe aqui fazer uma breve reflexão a esse respeito.
A escultura barroca, por
exemplo, permite múltipla apreciação. Todos os aspectos
que constituem o objeto barroco são inseparáveis, mas, ainda
assim, podem ser contemplados em grande diversidade de formas e ângulos.
Provoca, segundo Arnheim (2006, p. 205), “um
movimento espiralado de todo o corpo”. A obliquidade de um dos segmentos
que compõem o objeto é fator de equilíbrio dos demais. As
ideias de expansão, concavidade e convexidade, por sua vez, ajudam na
animação do objeto. A impressão de Cavalcanti (2006),
sobre as alegorias, ilustra essa abordagem barroca:
Com as alegorias, cujo recurso
visual primeiro é sempre a monumentalidade, ou seja, o grande aumento em
escala dos motivos principais representados (elas são sempre imensas, em
regra até 13m de altura, 10 de largura e 15 de comprimento), as coisas
representadas nos carros ganham uma vida ativa quase humana.
A ideia de monumentalidade,
necessária à espetaculização
da caixa cênica que é um sambódromo,3
está firmada. A disputa competitiva demanda “um ser melhor que o
outro”, “um ser mais rico que o outro”, “um
impressionar mais que o outro”. Não que o “gigantismo”
seja fator preponderante para um julgamento de carnaval. Parece-me, entretanto,
consensual a ideia de que, na disputa, uma escola grandiosa sempre acaba
impressionando consideravelmente, muitas vezes até ganhando o carnaval
como fruto desse tipo de recurso visual. O trabalho carnavalesco demanda muito
acabamento e alto nível de decoração. Quanto maior for o
carro tende a ser maior a decoração. Esse trabalho é
notavelmente percebido no desfile, o que acaba sempre impressionando.
Outra referência do
estilo ornamental é a utilização de gêmeos (arnheim, 2006). No caso dos desfiles das escolas de samba,
o palco do evento − o popular sambódromo − é ladeado
por arquibancadas. Por isso, todos os elementos visuais dispostos do lado
direito da alegoria são dispostos igualmente do lado esquerdo. Essa
duplicação dá ao público visão praticamente
completa do desfile, já que, apesar de ser impossível ver o outro
lado da alegoria, sabe-se a provável composição de seus
elementos. Esse jeito de conceber a alegoria não é regra, mas
notadamente é o recurso mais utilizado.4
TÉCNICAS VISUAIS
ORNAMENTAIS APLICADAS NO DESFILE DAS ESCOLAS DE SAMBA DO RIO DE JANEIRO
Já dissemos que, para a
construção de um planejamento visual, é necessária
enorme habilidade. O artista que produz uma imagem – imagem que pretende
ser significante – precisa dominar um conjunto de técnicas que o
auxiliem a expor a mensagem. O que o artista fará é uma
composição. Essa composição “é o meio
interpretativo de controlar a reinterpretação de uma mensagem
visual por parte de quem a recebe” (dondis,
1997). Interessante que, no caso dos desfiles de escola de samba, esses
recursos compositivos são analisados criteriosamente, pois o que
está em jogo é o título do carnaval, ou uma
colocação razoável entre as “grandes escolas de
samba”.
Para ilustrar esse
caráter avaliativo trarei alguns comentários de jurados colhidos
no site da Liga Independente das Escolas de Samba − Liesa (liesa.globo.com) referentes
ao Carnaval de 2010 no Rio de Janeiro, com relação à
avaliação do quesito Alegoria e Adereços para o G.R.E.S. União da Ilha do Governador.5
A escola trouxe o enredo
“Dom Quixote de La Mancha, o cavaleiro dos sonhos
impossíveis”, da consagrada carnavalesca Rosa Magalhães. O
jurado determinou a nota 9,6 justificando da seguinte maneira: “o projeto
de luminotécnica não deu o efeito que o
conjunto escultórico pedia, sem grandes emoções, alegrias;
(...) carros pequenos para o conjunto alegórico”. Outro jurado deu
para a escola a nota 9,8, justificando: “boa distribuição
de cores e com acabamento de alta qualidade; o conjunto alegórico
reproduziu de forma média o enredo. Podendo ser mais explorado nesse
requisito a disposição volumétrica poderia ser melhor trabalhada, bem como a luminotécnica”.
Outro jurado atribuiu a nota 9,7 assim justificando:
a concepção das alegorias
de maneira geral obedeceu a uma escala de proporções pequenas e
compactas contrapondo-se a grandiosidade do tema. Na alegoria 02 o revestimento
de pedras da casa de D. Quixote merecia melhor solução
plástica para representar a textura. Na alegoria nº 04 em
função de suas dimensões os elementos escultóricos
pareciam exprimidos dificultando a leitura do carro, onde o moinho de vento da
parte traseira estava sem uma das pás. No carro nº 07 os desenhos
de Portinari mereciam melhor destaque pelo foco dado a eles.
Podemos notar, com a amostragem
de julgamento, o grau de dificuldade que é exigido ao fazer um desfile
de escola de samba desde seu projeto original. O domínio das
técnicas deve ser absoluto, e sua aplicação precisa ser
muito competente. Segundo Dondis (1997, p. 139)
“essas opções constituem o controle do efeito, o que vai
resultar numa composição forte”, pois são as
técnicas visuais que “oferecem ao designer uma grande variedade de
meios para a expressão visual do conteúdo. Existem como
polaridades de um continuum, ou como abordagens
desiguais e antagônicas do significado”.
Abordaremos a seguir as
técnicas ornamentais estabelecidas por Dondis
A. Dondis traçando relações com
o perfil estético dos desfiles das escolas de samba. Chamamos a
atenção para o fato de que as técnicas a seguir fazem
parte do estilo ornamental, mas algumas podem ser encontradas em outros estilos
mencionados pela autora.
Complexidade – é constituída por
inúmeras unidades e forças elementares, resultando num complexo
processo de organização do significado de um determinado
padrão.
Em seu estudo de campo,
Cavalcanti (1994) revela sua impressão quanto à quantidade de
elementos que compunham os carros alegóricos da Mocidade Independente de
Padre Miguel em 1992, com o enredo “Sonhar não custa nada...ou quase nada” dos carnavalescos Renato Lage e
Lilian Rabello:
O carro “Mosquitada
desvairada” trazia também imensos mosquitos. O corpo do carro e a
cabeça dos mosquitos tinham sido moldados em fibra de vidro, e estavam
sendo posicionados, com o auxílio de roldanas e altas escadas, sobre as
finas e compridas patas de ferragem. Essa ferragem, mais tarde forrada de
espuma, seria ainda pintada em spray com listras verdes e abóbora
berrantes. Uma vez pintada, essa espuma seria espetada com milhares de
palitinhos banhados numa tinta de cor de ferrugem. Atrás dos mosquitos,
erguiam-se os recipientes de inseticida (com os dizeres “insetisono”), feitos de madeira decorados com
pequenos espelhos. Sua parte superior, em fibra de vidro era
toda forrada de dourado” (p. 157).
São “microcoisas” que se vão aglomerando na composição
complexa de um carro alegórico − no trecho “erguiam-se
recipientes de inseticida (com os dizeres ‘insetisono’),
feitos de madeira decorados com pequenos espelhos”
é possível verificar a quantidade de elementos expostos para
comunicar uma mensagem. Esses elementos, aparentemente desconexos, acabam
encontrando unidade, mas numa complexa elaboração visual.
“Brincam com a ambiguidade, intrigam, surpreendem” (p. 157).
Profusão – assim como a complexidade a
profusão é carregada de acréscimos discursivos, aqui
infinitamente detalhados, atenua e embeleza (o discurso, a ideia)
através da ornamentação. Está associada a poder e
riqueza.
Exagero – recorre a um relato profuso e
extravagante; a expressividade busca ir além da verdade; a ideia
é intensificar e ampliar.
Já citamos o fator
“monumentalidade” que o desfile de escola de samba determina. Essa
expansão quase que necessária está fortemente imbricada na
concepção alegórica de um desfile.
Rotundidade – seguindo o raciocínio de Arnheim
(2006), é possível afirmar que a rotundidade
recorre a um padrão visual simples, que é o do círculo e
da redondez. As formas curvas, silhuetas de
concavidade e convexidade, próprias do barroco, são
identificáveis.
Observamos aqui que há
uma tendência a significar como barroca a estética à qual o
carnaval pertence. Isso se deve muito a esse caráter de formas sinuosas
do carnaval, seja nas esculturas ricamente decoradas e detalhadas, seja nos
primorosos acabamentos, que fazem o olhar se perder numa infinidade de curvas e
silhuetas dedicadamente confeccionadas.
Ousadia – por sua própria natureza,
a ousadia é técnica óbvia, que se vale de audácia,
segurança e confiança tendo por objetivo obter a máxima
visibilidade.
No carnaval, a
função visual do desfile é didática, procura,
portanto, tornar o mais fácil possível a compreensão do
expectador. As alegorias são, portanto, criativas e ousadas,
multiplicando os recursos compositivos para surpreender e animar o
público. Não podemos esquecer que estamos tratando de um evento
popular, que tem seu grau de sofisticação, pois seus
artífices são pessoas qualificadas no processo carnavalesco, mas,
ainda assim, trata-se de festa popular.
Tomamos emprestado o relato da
experiência de Cavalcanti para analisar essa dimensão
alegórica. A autora aponta para a articulação das
alegorias com o processo social em torno do desfile e sugere que os carros
alegóricos de certa forma traduzem e expressam a vida dos habitantes da
cidade. Essa ideia de compartilhar o desfile das escolas de samba é que
demanda uma linguagem popular por parte das alegorias. Podemos até dizer
que ousadia e inovação estética com boa receptividade
sinalizam público já maduro para essa nova fase estética
– essa nova estética reflete a vida das pessoas. Do
contrário, poderá estar instaurada uma problemática, uma
negação das novas propostas.
Fragmentação – trata-se da
decomposição dos elementos e unidades. Essas partes separadas se
relacionam, mas conservam o caráter individual.
Os destaques e figuras centrais
de carros alegóricos representam o mesmo tema que os demais elementos,
mas conservam seu caráter individual. As pessoas que figuram como
destaque das alegorias geralmente são figuras conhecidas da sociedade
que, devido à indumentária, se separam visualmente do conjunto do
carro que as transporta. Segundo Oliveira (2010) as fantasias de destaque
são aquelas fantasias únicas:
extremamente rebordadas e elaboradas. Elas desfilam em cima das alegorias,
ocupando locais “de destaque”: central ou frontal. Algumas pessoas
ainda subdividem as fantasias de destaque em “semidestaque”,
mas, para o entendimento em nosso trabalho, essas três categorias
já são suficientes (p. 81).
Variação – oferece diversidade e
sortimento. As mutações são controladas por um tema
dominante.
Mais recentemente, o
carnavalesco Paulo Barros tem efetivado e escancarado esse processo que
não corresponde apenas às alegorias, mas às fantasias
também. Em 2009, na Unidos de Vila Isabel, que tinha como tema
“É minha Vila que anuncia: Theatro Muncipal − a centenária maravilha”, o
carnavalesco (em parceria com o carnavalesco Alex de Souza) projetou um carro
alegórico (figuras 1 e 2) representando o processo de
revitalização do Rio de Janeiro no governo de Pereira Passos: uma
casa cujas paredes se abriam, para mostrar figurantes que representavam
operários martelando, construindo, operando numa nova
construção.
No ano anterior a Portela tinha
como enredo “Reconstruindo a natureza, recriando a vida: o sonho vira
realidade”, do carnavalesco Cahê
Rodrigues. Um dos carros (figuras 3 e 4) apresentava num primeiro momento um
bebê desnutrido circundado por natureza inóspita,
destruída. No segundo momento o mesmo carro se transformava num
espetáculo de flores com um bebê saudável e sorridente. Era
a representação da preservação da natureza.
Esse recurso de
variação multiplica a apreciação alegórica e
a torna mais complexa.
Colorismo – determina a intensificação do significado
através das cores, com sua deliberada e embriagada
utilização.
Na história da arte
foram muitos os movimentos e escolas artísticas que souberam usar a
carga cromática como expressão vigorosa de sentimentos. Os
fauvistas bem o ilustram. Muito mais do que se valerem da cor para
“representar”6 um objeto,
usavam-na para intensificar a sentimentalidade comunicativa.
No desfile das escolas de samba
essa função não é só percebida
alegoricamente, mas também nas fantasias. É bonito ver uma escola
completa na avenida apresentando nas roupas de suas alas dualidades, respostas,
confrontos e contrastes de cores, formando um “rico tapete” pela
unidade do conjunto.
Atividade – através da
representação ou da sugestão, trata-se de postura
enérgica, estimulante, de movimento.
A ideia de colocar as pessoas
nos carros, proporcionando performances; a questão
tecnológica dos movimentos nos carros, tudo isso proporciona uma
atividade efetiva nos corsos. Cavalcanti (2006) se refere a Joãozinho
Trinta: “essa ‘decoração’ humana em seus
carros, onde corpos humanos misturam-se com o carro pelo uso da cor e do
movimento”.
Inovador no carnaval
contemporâneo, Paulo Barros vem-se valendo do recurso das
“alegorias vivas”, preenchidas por uma quantidade enorme de pessoas
que fazem determinadas performances, como o famoso carro
“Criação da Vida” (figuras 5 e 6), da Unidos da
Tijuca, em 2004, que representava o código de DNA. Era uma
pirâmide humana com 127 pessoas que, nuas da cintura para cima, pintadas
de azul, coreografavam com sutileza e exaustão, abstraindo-se no carro
dando uma ideia de moléculas, células, e de microelementos na
enormidade do suporte. Era surpreendente como aquela quantidade de pessoas
fazia um movimento não gratuito, narrando com propriedade a proposta do enredo. Paulo Barros consegue em seus carros,
segundo Cassia Roberta Nogueira dos Santos (2009, p. 35 e 36), dar a
“sensação de prolongamento, de continuidade. Carro e corpo
se fundem num único signo”.
Brilho – representa uma energia luminosa,
que aparentemente lhe é própria. O objeto apresenta claridade
superior à do resto do campo.
O brilho no desfile de escola
de samba é, talvez, uma das técnicas mais recorrentes. Como o
desfile é noturno, as luzes dos refletores ou recursos de
iluminação que proporcionem boa visibilidade da escola nela se
refletem, e ela “devolve” esse reflexo aos olhos do espectador
através da utilização de cores que “reagem”
à luz ou de elementos/materiais corriqueiros como acetatos,
paetês, tons metalizados, pedrarias, entre outros. Praticamente todos os
carros de escolas de samba têm recursos luminotécnicos
(canhões de luz, neon, para citar os mais básicos),
intensificando essa impressão de brilho. Em 2009, a
Acadêmicos do Salgueiro apresentou o enredo “Tambor”,
do carnavalesco Renato Lage. A primeira alegoria da escola (Figura 7)
apresentava cerca de 20 grandes tambores em movimento. Por baixo de alguns deles
subiam luzes estroboscópicas que davam uma
“impressão rítmica” convincente daquilo que a
alegoria queria comunicar. Esse exemplo, considero uma
excelente e certeira utilização da técnica brilho.
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(doutorado em ciências humanas) − Universidade Federal do Rio de
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NOTAS
1 E, diga-se de passagem, que o
julgamento do desfile é a culminância de um longo processo de
concepção e confecção de um projeto que parte
geralmente do carnavalesco e sua proposta de enredo.
2 Sobre a questão do julgamento
das escolas de samba, ver Cavalcanti, 1994.
3 Penso que a monumentalidade é o
recurso óbvio para a construção de um espetáculo
carnavalesco, por motivos já apresentados e que ainda serão
retomados. À medida que os desfiles de escolas de samba foram crescendo
social e visualmente essa verticalização e grande volumetria
alegórica foi demandando espaço cênico maior (em grande
parte das cidades em que existe carnaval esse espaço já
está estabelecido com considerável tamanho), e assim todas as
escolas tendem a projetar espetáculo compatível com esse
ambiente.
4 Dondis
não identifica a simetria, como técnica ornamental. No caso
específico do desfile de escolas de samba, porém, creio ser um
recurso visual preciso devido a essa necessidade que identificamos na linguagem
feita “para a avenida”.
5 Segundo o regulamento da Liesa, cada jurado concede uma nota de 8 a 10, podendo ser
fracionada em décimos. Há subentendida a possibilidade de uma
escola perder pontos durante o desfile, ou seja, ela começa com 10 pontos,
e à medida que o jurado identifica falhas em seu quesito ele tira ponto.
O regulamento exige que o jurado justifique a nota abaixo de 10, o que faz com
que uma escola que tire 10 em geral não receba comentário algum,
exceto um “parabéns” ou
“excelente”. Isso, entretanto, não significa que a
justificativa só apresente aspectos negativos. É possível
conhecer a percepção do jurado a respeito de pontos positivos e
negativos da escola, ambos apresentados na planilha de julgamento.
6 Ver, sobre “anatomia da mensagem
visual”, Dondis, 1997, p.85.
Pedro Ubirajara Rosa é graduando de licenciatura
plena em artes visuais pela Universidade de Caxias do Sul. Atualmente é
bolsista voluntário da Universidade de Caxias do Sul na área da
antropologia.
Recebido em: 27/05/2012
Aceito em: 04/07/2012
ROSA, Pedro Ubirajara. O
caráter composicional dos carros alegóricos das escolas de samba
do Rio de Janeiro. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de
Janeiro, v.10, n.2, p. 151-168, nov. 2013.
Figura 1: Alegoria da Vila
Isabel em 2009 Foto: Henrique Matos (Centro de
Memória da Liesa)
Figura 2: Alegoria da Vila Isabel em 2009 Foto:
Henrique Matos (Centro de Memória da Liesa)
Figura 3: Alegoria da Portela em 2008 Foto:
Henrique Matos (Centro de Memória da Liesa)
Figura 4: Alegoria da
Portela em 2008 Foto: Henrique Matos (Centro de
Memória da Liese)
Figuras 5 e 6: Alegoria
Criação da Vida
Fotos: Henrique Matos
(Centro de Memória da LIESA)
Figura 7: Alegoria do
Salgueiro em 2009 Foto: Henrique Matos (Centro de
Memória da Liesa)