Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares,
v. 10. n. 2, nov. 2013
Ronald
Clay dos Santos Ericeira (UFRRJ)
Identificando
nas composições de Lamartine Babo, de Braguinha e de Ari Barroso
visões sociais sobre as mulheres no Rio de Janeiro nas décadas de
1930 e 1940, o texto insere as letras das marchinhas carnavalescas como lugar
privilegiado para o entendimento de uma parcela do pensamento social brasileiro
no período getulista.
MARCHINHA; MULHERES;
COMPOSITORES; RIO DE JANEIRO.
Ronald Clay dos Santos Ericeira (UFRRJ)
By identifying
social views on women in Rio de Janeiro in the
1930s and 1940s in the
musical production of Lamartine
Babo, Braguinha and Ari Barroso, the
text establishes the lyrics of
carnival music as a privileged space for the understanding of a portion of
the Brazilian social thought during the Vargas years.
MARCHINHAS; WOMEN; COMPOSERS; RIO DE JANEIRO.
INTRODUÇÃO
Em uma perspectiva
sociológica, DaMatta
(1994) assevera que as músicas de carnaval ajudam a pensar o Brasil.
Tais canções se difundem em todas as camadas sociais, transpondo
fronteiras econômicas, etárias e sexuais, sendo, portanto,
instrumentos simbólicos pelos quais os compositores encontram meios para
dramatizar os valores sociais da sociedade brasileira e suas
relações de poder, bem como para aludir a questões
referentes ao relacionamento entre homens e mulheres no país.
A despeito dessa
relevância das músicas de carnaval para desvelar fundamentos
identitários de nosso país, seu estudo deixa a desejar, havendo
poucos trabalhos científicos publicados. Notadamente, o samba tem
despertado mais interesse dos acadêmicos brasileiros como indicam algumas
teses e dissertações já escritas sobre o assunto. Por
outro lado, as pesquisas sobre marchinhas são quase inexistentes. Assim,
pareceu-me desafiante desvelar uma parcela dos sentidos sociais encobertos
pelas marchinhas, particularmente as compostas entre 1930 e 1940.
A justificativa para esse
recorte temporal advém de diversos fatores. O primeiro calca-se no fato
de esse período de tempo ser apontado por pesquisadores como a fase
dourada das marchinhas no Brasil (tinhorão, 1997; alencar, 1979). Nas décadas subsequentes, o
samba coloniza o país, tornando-se a música brasileira por
excelência. Antes dessa colonização cultural exercida pelo
samba, as marchinhas eram um dos principais veículos transmissores de
mensagens sociais. Outra razão para a delimitação temporal
desse objeto de investigação é de ordem
metodológica. Levar a cabo uma pesquisa acadêmica tendo como
parâmetro de investigação o período de 1930 a 1940
foi mais exequível do que pretender abarcar quase 90 anos de
história das marchinhas no Brasil.
Nos primeiros levantamentos
desta pesquisa três dados me chamaram a atenção: primeiro,
a totalidade das canções era de autoria masculina; segundo, a
maioria dos compositores pertencia às camadas médias cariocas; o
terceiro aspecto, e talvez o mais relevante para os objetivos deste texto,
refere-se ao fato de essas músicas apresentarem amiúde temas
relacionados com as mulheres. Nessa abordagem inicial, os temas identificados
foram variados: a aparência física da mulher, assim como sua honra
e seu comportamento sexual são exemplos.
Nessa perspectiva, procurei
trazer à baila o modo pelo qual as mulheres foram representadas na obra
de três compositores de marchinhas: Lamartine Babo, Ari Barroso e
Braguinha. A delimitação da produção musical desses
autores deu-se por dois motivos específicos. Primeiramente, oriundos de
realidades socioeconômicas semelhantes, eles puderam ser classificados como
representantes dos segmentos médios cariocas das décadas de 1930
e 1940. Esse aspecto econômico comum aos três facilitou a
definição do lugar social do qual falavam a respeito do universo
feminino. Segundo, eles são considerados pelos historiadores da
música popular os mais prolíferos produtores de marchinhas do
país, sendo suas composições executadas até hoje
nos dias de Momo.
Neste texto, meu objetivo foi
refletir sobre os seguintes questionamentos: quais os sentidos
atribuídos às mulheres nas letras de marchinha no transcurso das
décadas de 1930 e 1940? Como essas canções reproduziam as
experiências de homens e mulheres no Rio de Janeiro naquele
período?
AS MARCHINHAS E O CARNAVAL
CARIOCA
Os historiadores do carnaval
carioca frisam que, até o final do século XIX, não havia
músicas específicas para o folguedo de Momo. Os grupos
carnavalescos saíam pelas ruas cantando e dançando livremente
maxixes, habaneras, modinhas, valsas e polcas. Em
1899, porém, é composta a marcha-rancho “Ó
abre-alas”. Essa foi a primeira música
composta conscientemente para ser cantada durante o tríduo momesco, feita pela maestrina Chiquinha Gonzaga para o
cordão carnavalesco Rosa de Ouro (diniz,
1999). Cabe observar que aquela canção foi composta
especificamente para aquele grupo carnavalesco e não para o deleite da
sociedade mais ampla. As músicas de carnaval só efetivamente
passaram a ser produzidas em larga escala, para serem cantadas pelo povo nas
ruas, entre 1910 e 1920 (moraes,
1959).
A biografia escrita por Jairo
Severiano (1991) sobre o compositor João de Barro – o Braguinha
– traz à baila a assertiva de que a marchinha seria um produto
cultural das camadas médias urbanas cariocas. Elas se teriam consolidado
como gênero musical na década de 1920. Nesse período,
Freire Junior, José Francisco de Freitas e Eduardo Souto, músicos
do teatro de revista da época, idealizaram um estilo de
canção baseado em um ritmo alegre, em melodias simples e em
letras curtas e jocosas (p.30).
Por sua vez, Alencar (1979)
afirma que as marchinhas carnavalescas seriam oriundas de uma mistura musical
entre a polca e duas danças norte-americanas – o one-step e o rag-time –difundidas
no Rio de Janeiro entre 1910 e 1920. Ressalto que a primeira marchinha a fazer
sucesso no carnaval carioca foi “Pé de anjo”, em 1920, de
Sinhô. Com efeito, essa composição estava inserida em
peça teatral homônima. Foi, aliás, o sucesso da peça
que disseminou a marchinha junto ao grande público. Convém acrescentar
que a popularização das marchinhas carnavalescas só foi
possível, entre outros fatores históricos, pelos concursos de
músicas populares que aconteciam na cidade do Rio de Janeiro desde 1919
(ericeira, 2010).
Depois de 1931, a prefeitura da
cidade passou a organizar regularmente tais concursos, cujas
canções participantes eram divulgadas nos meios de
comunicação. A oficialização dos concursos e os
incentivos financeiros oferecidos pela administração municipal
aos vencedores acarretaram ampla comercialização das
músicas de carnaval, emergindo, nesse transcurso, representativa parcela
de intérpretes e compositores dessa
canções, como Carmen Miranda, Mário Reis,
João de Barro, Lamartine Babo, entre outros (severiano,
1991). Várias marchinhas, que até hoje são cantadas
durante o reinado de Momo, surgiram nessa época. As mais conhecidas
seriam: “O teu cabelo não nega”, de Lamartine Babo;
“Pierrô apaixonado”, de Noel Rosa; “A mulata é a
tal”, de Braguinha.
Neste ponto, destaco ainda os
papéis exercidos pelo teatro de revista, pelo rádio e pelo cinema
na divulgação das marchinhas carnavalescas. Programas de
auditório, como Calouros em desfile, apresentado por Ari Barroso
na Rádio Tupi e os filmes com temática momesca,
como A voz do carnaval (1933); Alô, alô, carnaval
(1936) e Banana da terra (1939), foram importantes para que as
marchinhas, malgrado expressassem o pensamento dos segmentos médios
cariocas sobre os eventos cotidianos, passasem a
gozar de aceitação em todas as camadas sociais.
Comentando e satirizando os
comportamentos e os valores sociais, as marchinhas ajudaram a promover o
carnaval do Rio de Janeiro. É marchinha, aliás, a
canção considerada o hino da então capital federal –
“Cidade maravilhosa”, de André Filho. Apesar de perder
espaço social para os sambas-enredo a partir de 1950, as marchinhas
ajudaram a escrever um importante capítulo da música popular
brasileira.
BAKHTIN E A LINGUAGEM
CARNAVALESCA
Neste estudo, priorizei as
técnicas qualitativas e as teorias que concebem a
imbricação inconteste entre linguagem e contexto social. No
Brasil, os trabalhos acadêmicos voltados para a análise das
mensagens sociais contidas em letras de músicas foram empreendidos, em
sua maioria, por psicanalistas, antropólogos e historiadores. Cabe,
então, um questionamento: com examinar as letras das marchinhas em uma
perspectiva socioantropológica? Entre os
vários eixos teóricos possíveis, decidi empregar como
instrumental de pesquisa as reflexões de Mikhail Bakhtin (1986) sobre a
linguagem. Suas proposições teóricas ajudaram na
condução de certos aspectos teóricos e
metodológicos deste estudo. No que tange à dimensão
teórica, as conjecturas bakhtinianas
contribuíram na dissolução de possíveis
tensões relacionadas aos “talentos individuais dos compositores
das marchinhas” e o contexto social vigente na época. Acreditar
que a inspiração de suas obras se formou unicamente de seu
psiquismo seria negar o caráter dialógico do pensamento humano.
Para Bakhtin (1986), a
consciência individual é fenômeno essencialmente social,
pois, desde sua origem, está submetida às leis dos sistemas ideológicos
vigorantes. O centro organizador de todo pensamento e de toda linguagem
não é interno, mas externo à consciência. Ele
está situado nas teias sociais que envolvem o indivíduo,
resultando na explicação do funcionamento do psiquismo humano por
fatores exclusivamente sociais. As enunciações individuais,
aliás, seriam produtos dos conteúdos circulantes na vida social.
Os conteúdos ideológicos não se encontrariam na alma dos
indivíduos, mas exteriorizados, em suas palavras, seus gestos, suas
ações. Em outros termos, “todo conteúdo
ideológico pode ser compreendido e psiquicamente assimilado, isto
é, transmitido por intermédio de signos interiores” (p.
49).
Não diminuindo o talento
musical de Lamartine Babo, Ari Barroso e Braguinha, entendo suas
composições como uma das formas jocosas que a sociedade carioca
encontrou para comunicar suas percepções sobre as mulheres no Rio
de Janeiro das décadas de 1930-1940. Declarada a filiação
teórica, cabe agora aprofundar como as premissas teóricas bakhtinianas contribuíram para a
construção do objeto de estudo aqui apresentado.
Para Bakhtin (1986), o exame
dos diferentes tipos de linguagem deve ser colocado em prática por meio
de duas perspectivas analíticas. A primeira, do ponto de vista do
conteúdo, dos temas que se encontram circulando no tecido social. A
segunda, do ponto de vista das formas de discursos através dos quais
esses temas são pensados e comentados socialmente. O autor acrescenta
ainda que cada época tem seu repertório de tipos de discursos
usado em sua comunicação socioideológica.
A proposta bakhtiniana é analisar
concomitantemente o texto e o contexto (castro, 2005, p.18). Assim, a tarefa
intelectualmente desafiadora é desvelar não apenas as formas
linguísticas que entram em cena no ato da enunciação, mas
captar os significados sociais atribuídos a determinados temas frente
às condições de um dado momento histórico.
Adotando essa premissa,
realizei uma parcela dos procedimentos necessários para a
investigação aqui pretendida, qual seja: o tema da pesquisa diz
respeito aos significados sociais atribuídos às mulheres no Rio
de Janeiro durante as décadas de 1930 e 1940. A segunda tarefa implicou
a interpretação desses temas – os significados sociais
– a partir da perspectivas das marchinhas. Nessa
direção, considerei mister
entendê-las como uma forma de discurso que a sociedade da época
encontrou para comunicar seus valores e seus costumes. Na perspectiva bakhtiniana, a linguagem carnavalesca está associada
à cultura cômico-popular, que se opõe aos tons formais das
culturas religiosas e políticas oficiais. Tal linguagem seria dominada
pelas paródias, ironias e risos. Bakhtin (1996, p. 10) acrescenta que a
linguagem carnavalesca se constrói parodiando a vida ordinária.
Todavia, “é preciso assinalar que a paródia carnavalesca
está muito distante da paródia moderna puramente negativa e
formal; com efeito, mesmo negando, aquela ressuscita e renova ao mesmo tempo. A
negação pura é alheia à cultura popular”.
Baseando-me nos referenciais bakhtinianos, examinei as marchinhas como uma forma de
discurso cujas enunciações estão abertas ao riso e
às paródias festivas. Embora suas execuções e
produções circulem principalmente no período momesmo, seus temas podem variar dentro de um espectro de
diversos assuntos, entre eles, o universo feminino. Do mesmo modo, os
postulados de Bakhtin (1996) foram fundamentais também para organizar e
interpretar o material coletado, bem como permitiram classificar os conteúdos
das letras das marchinhas carnavalescas a partir de categorias
temáticas.
EXAMINANDO AS LETRAS DAS
MARCHINHAS CARNAVALESCAS
Não foi fácil
realizar o levantamento do repertório de marchinhas compostas por Ari
Barroso, Lamartine Babo e Braguinha cujos núcleos temáticos se
referiam às mulheres. Tratando-se de canções produzidas
nas décadas de 1930 e 1940, muitas estão fora de
circulação comercial desde que o gênero perdeu
espaço para o samba junto às gravadoras de disco do Rio de
Janeiro e de São Paulo. Recentemente apenas as marchinhas mais
conhecidas chegaram ao conhecimento do grande público, graças
à reedição feita por artistas que, por sua vez, não
estão ligados diretamente à divulgação de músicas
carnavalescas, como a cantora Beth Carvalho. No que tange ao processo de
análise das 43 músicas coletadas, identifiquei dois campos
semânticos, bem como elaborei algumas categorias temáticas para
nortear a interpretação qualitativa dos dados. Quanto aos campos
semânticos, observei que dois temas sobressaíam dos demais: a
definição da mulher por meio de algum aspecto físico ou
natural, e as percepções das diferentes formas de relacionamento
entre homens e mulheres.
No material coletado, é
significativo o número de versos que nomeiam as mulheres pela tonalidade
da pele ou pela etnia a que pertencem. A mulher era vista ou mencionada por um
aspecto biológico. Por exemplo, a categoria cabelo foi empregada como
uma espécie de metonímia das mulheres. Ademais, louras, morenas e
mulatas pareciam disputar a preferência estética de Lamartine
Babo, de Ari Barroso e de Braguinha. Eis dois trechos:
Amei a mulatinha, amei a
moreninha, em 32... em 33 A loura namorei um
mês. Agora eu fico com a melhor das três. Só porque o cabelo
não negava, toda a gente só falava na
mulata original... (“A melhor das três”, de Lamartine Babo).
O teu cabelo não nega
mulata, porque és mulata na cor, mas como a cor não pega mulata,
mulata, eu quero teu amor... (“O teu cabelo não nega”, de
Lamartine Babo).
Poderia citar outros trechos em
que a referência às mulheres acontece por meio da alusão
à raça ou à tonalidade da cútis feminina. No
entanto, creio que as menções acima são suficientes para
afirmar que tais canções não podem ser compreendidas fora
da conjuntura cultural da época, pois, na década de 1930, o pensamento
social brasileiro reformulava positivamente a visão sobre a
mestiçagem nacional (freyre,
1981). Outrora usada como explicação para o atraso intelectual e
econômico do Brasil, a miscigenação passou a ser valorizada
como elemento de alteridade da identidade brasileira. Nesse bojo, a mulata e o
mestiço foram alçados ao patamar de ícones nacionais.
Nesse contexto de
valorização da mestiçagem como elemento definidor da
identidade brasileira, os compositores aderiram a esse discurso social,
elegendo a morena como a cor que melhor define a mulher nacional. A loura,
apesar de sua beleza, era considerada representante de terras estrangeiras. No
entanto, ela poderia ficar com a cor nacional, caso viesse a habitar o
país. Uma canção é exemplar na transmissão dessa
mensagem:
Loura...que vens de outra terra..., quero te dar
o meu amor mais quente, do que o sol ardente deste meu país. Linda
Lourinha, tens o olhar tão claro, deste azul
tão raro, como um céu de anil, mas as tuas faces, vão
ficar morenas, como as pequenas deste meu Brasil (“Linda lourinha”,
de Braguinha).
Outro conjunto de letras
definindo as mulheres pela perspectiva biológica é concernente
aos dotes e à beleza feminina. Nesse espectro semântico,
são reiteradamente registrados os elogios a alguma parte do corpo das
mulheres. Vejamos alguns versos:
Quando Mimi! Linda Mimi! Dos
olhos que parecem pintadinhos de nanquim. Mimi!
Não sei se eu vi num quadro de Xangai ou num vaso de Pequim. E como seu
tipinho, no Brasil não há... (“Linda Mimi”, de
Braguinha).
Ela bole com seus quadris, eu
bato palmas e peço bis. Ai, mulata, cor de canela! Salve, salve, salve,
salve, salve, ela! (“A mulata é a tal”, de Braguinha).
Além de assimilar a
discussão em torno da mestiçagem em voga no país na
década de 1930, acredito que a profusão de citações
aos aspectos físicos da mulher presentes nas letras das marchinhas
reflete também o ponto de vista masculino que concebe a mulher enquanto
um ser biológico, e não como um ser social dotado de capacidade
intelectual ou de aptidão para o trabalho.
Seguindo também uma
perspectiva biologizante, em várias
composições a mulher é associada a objetos e a seres
naturais. Nas letras dessas marchinhas, são recorrentes os usos de
metáforas e de comparações entre a mulher e determinados
elementos da natureza. Não foi raro encontrar citações por
meio das quais a mulher-natureza é exaltada pela sua beleza
física. Eis um exemplo: “
Louras, cor de laranjas cem
mil. Salve! Salve! Meu carnaval, Brasil! Salve a lourinha dos olhos verdes, cor
das nossas matas. Salve a mulata! Cor de café, a nossa grande
produção! São! São! Quinhentas mil morenas. Louras,
cor de laranjas cem mil. Salve! (“Hino do carnaval brasileiro”, de
Lamartine Babo).
É oportuno esclarecer
que esta última música referida foi gravada em 1939, em plena
vigência do Estado Novo e da atuação do Departamento de
Imprensa e Propaganda sobre as produções artísticas e
culturais. Nesse período, além da divulgação
intensa dos feitos de Getúlio Vargas, os órgãos de
imprensa e as instituições governamentais pregavam o patriotismo,
exigindo a louvação de ícones nacionais, entre eles o
café e as florestas tropicais. Assim, não é surpreendente
que os músicos tenham empregado, em suas produções
artísticas, figuras retóricas para altear, ao mesmo tempo, a
beleza física das mulheres e aspectos da natureza brasileira.
Nessa
interpretação analítica do conteúdo dessas
marchinhas levei em consideração a dicotomia entre natureza e
cultura, que é tema caro às ciências sociais. Nas
reflexões de Lévi-Strauss (2004), por exemplo, o estado da
natureza está coligado ao instintivo, ao equipamento anatômico e
à transmissão hereditária do material essencial para a
sobrevivência do indivíduo e de sua espécie. Por outro
lado, o estado de cultura supõe as regras sociais e as
interdições, como o tabu do incesto que proíbe os
casamentos endogâmicos. No entanto, sua
referência principal para pensar as noções entre natureza e
cultura dá-se pelas categorias de cru e de cozido.
O elemento cru seria a
metáfora essencial da natureza, isto é, o alimento coletado em
seu estado natural, sem passar por nenhum processo social prévio. Por
seu turno, o cozido seria algo sociocultural por definição, posto
englobar as técnicas que cada grupo social desenvolveu para obter,
selecionar e preparar o alimento (ericeira, 2009).
Trazendo essa reflexão para as letras das marchinhas, pode-se inferir
uma visão da mulher associada à natureza e do homem à
cultura.
Das categorias temáticas
criadas para fins de analisar o discurso das marchinhas coletadas para este
trabalho, a mais frequente foi designada mulher-dominante. Essa categoria
abrange todas as letras que, de algum modo, subvertem a ordem social androcêntrica que prevalecia no Rio de Janeiro no
período histórico estudado. Em dez marchinhas examinadas,
é a mulher que detém o domínio na relação.
Contrariamente à dominação masculina que faz uso da
agressividade e da gerência dos bens materiais para subjugar a mulher,
esta recorre a seus atributos físicos e à economia afetiva para
exercer o controle sobre os sentimentos e comportamentos masculinos. Vale
esclarecer que entendo por economia afetiva a quantidade de investimento que
uma mulher deposita em uma relação amorosa a fim de que possa ter
os homens sob sua égide. As formas de dominação feminina presentes
nas marchinhas são polissêmicas. Examinemos, então, alguns
sentidos apreendidos no processo de interpretação de
canções classificadas dentro do registro da mulher-dominante.
Se eu fosse o teu coió,
me transformava em pó pra arranhar teu sapato devagar. O meu
prestígio já caiu no meu país natal. Não tenho
nenhum cargo eleitoral. Se eu fosse presidente, mandava pra você o
Tesouro Nacional... (“Dá cá o pé... loura”, de
Lamartine Babo).
Mulata, por teu encanto, muito
eu levei na cabeça. Porém, agora eu duvido que isso outra vez
aconteça. Do teu falado feitiço, eu pouco caso lhe faço.
Mandei fazer em São Paulo, mulata, um capacete de aço... Mulata,
quando eu te vi, logo pedi anistia... (“Trem blindado”, de
Braguinha).
No primeiro fragmento, o eu
(masculino) da marchinha emprega o termo coió, atualmente em desuso,
para imaginar uma situação hipotética em que, sendo um
namorado apaixonado, poderia cometer grandes tolices para
conquistar a mulher, incluída a aceitação da
subalterna condição de ser o pó do sapato dela. Nessa
mesma marchinha, é notório ainda que o homem estava
disposto a sacrificar-se economicamente para agradar a mulher desejada. Na
segunda canção, inversamente à primeira, o compositor
não aventa mais situações imaginárias, dedicando-se
a narrar eventos concretos do passado. Seguindo o fluxo discursivo proposto
pela marchinha, salta à observação a
descrição do sofrimento masculino por causa de uma mulata. Embora
encontrando mecanismos para se proteger contra os seus feitiços, o homem
sucumbe, pedindo anistia, perante o que denomina de olhar fuzilante da mulher.
Notamos, pois, que o homem consegue resguardar-se dos poderes mágicos da
mulata, mas se considera impotente ante a sedução do seu olhar.
Em outras
composições, é mais clara a assimetria entre os
gêneros, posto ser a mulher que exerce o controle da
relação, fazendo com que o homem solicite seu amor e sua
atenção. Alguns versos esclarecem o que quero dizer sobre esta
temática: “Linda morena, morena, que me faz penar. A lua cheia,
que tanto brilha, não brilha tanto quanto o teu olhar... Teu
coração é uma espécie de pensão, de
pensão familiar à beira-mar. Oh, moreninha, não alugues
tudo não, deixe ao menos o porão para eu morar”
(“Linda morena”, Lamartine Babo).
No fragmento acima é
evidente que é o ser feminino o dirigente da economia afetiva do
relacionamento, cabendo ao homem conformar-se com o que lhe for concedido pela
mulher. O compositor confessa ser seu coração cativo de uma
mulher. Nessa relação desigual entre senhora e escravo, é
este que deve implorar a Deus que sua senhora se apiede, concedendo-lhe um
beijo. Em outro conjunto de marchinhas, os compositores descrevem a amargura
masculina, em razão de a mulher ter abandonado o homem logo após
haver conquistado seu afeto. Vejamos algumas passagens:
A sorrir você me apareceu
e as flores que você me deu. Guardei no cofre da
recordação, porém depois você partiu pra muito longe
e não voltou. E a saudade ficou, não
quis abandonar meu coração. A minha vida se resume, oh, dama das
camélias, em duas flores sem perfume (“Dama das
camélias”, de Braguinha).
Segura esta mulher. Ela quer
fugir. Roubou meu coração. Não pode escapulir, oi. Eu
não sei o que vai ser! Meu amor, não sejas desmancha-prazer,
oi (“Segura esta mulher”, de Ari Barroso).
Na primeira marchinha, o
compositor empregou categorias psicológicas, como saudade,
recordação e coração, para transmitir a mensagem do
desgosto masculino causado por uma mulher que o abandonou. Nos versos da
segunda, revela-se uma espécie de desespero do homem ao perceber que
mulher amada pretendia abandoná-lo. Indicando a assimetria no
relacionamento, o homem alça a mulher à condição de
responsável pelo seu prazer ou desprazer. É oportuno salientar
ainda que, em outro espectro semântico englobado pela unidade temática
“mulher-dominante”, o homem se admite completamente consumido pelo
amor que nutre pela mulher. Uma marchinha é bastante assertiva nesse
sentido:
Ô balancê,
balancê, quero casar com você. Entra na roda, morena, pra ver.
Ô balancê, balancê. Quando por mim, você passa,
fingindo que não me vê, meu
coração quase se despedaça. No balancê,
balancê. Você foi minha cartilha, você foi meu ABC, e por
isso eu sou a maior maravilha. No balancê, balancê. Eu levo a vida
pensando, pensando só em você (“Balancê”, de
Braguinha).
Essa marchinha marca, logo nos
versos iniciais, a pretensão do homem de casar-se com a mulher. Ele
sente seus sentimentos dilacerados quando a amada finge desprezá-lo.
Sinalizando a inferioridade masculina, a canção enfatiza que a
mulher ensinou todas as coisas da vida ao homem, por isso este leva a vida
pensando nela. Em outra marchinha, a atribuição tradicional dos
qualificativos sexuais, representando o homem como o ser ativo e
insaciável para o sexo, ao passo que a mulher seria passiva e fria na
cama, é invertida. Na canção, é o homem que se
vê alarmado com a ardência sexual feminina. Transcrevo a seguir os
versos dessa marchinha: “Queimei-me todo outro dia. Eu não sei o
que seria: se o sol do mar ou o sol que trazes dentro do teu olhar. A tua
ardência me assombra. Tu tens quarenta graus à sombra. Desta
maneira, só mesmo te botando numa geladeira” (“Moreninha da
praia”, de Braguinha).
É pertinente sinalizar
ainda que tão somente em uma canção entre as analisadas
é o homem quem decide insubordinar-se às
designações femininas. Isso porque sua própria integridade
física estaria em perigo, caso aceitasse realizar o desejo da mulher.
Eis a forma como o compositor tratou carnavalescamente essa temática:
Eu fui às touradas em
Madri. E quase não volto mais aqui pra ver Peri beijar Ceci. Eu conheci
uma espanhola natural da Catalunha. Queria eu tocasse castanhola e pegasse
touro à unha. Caramba, caracoles, sou do samba, não me amoles.
Pro Brasil, eu vou fugir. Isso é conversa para boi dormir
(“Touradas em Madri”, de Braguinha).
Convém observar que os
fundamentos da recusa do homem em satisfazer o pedido feminino encontraram
esteio em elementos da então recém-construída identidade brasileira. Relembro que essa marchinha foi produzida em
plena vigência do Estado Novo, período em que as
manifestações populares foram valorizadas positivamente, sendo
alavancadas ao patamar de ícones nacionais. Na canção em
questão, os compositores acionaram o samba como índice de
pertencimento à cultura brasileira, logo, não poderiam
concretizar os pedidos da espanhola, pautados em costumes da Catalunha.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A análise do discurso
dessas marchinhas teve como fundo a cidade do Rio do Janeiro das décadas
de 1930 e 1940. A então capital federal vivia a
efervescência do cinema, do rádio e do teatro de revista. Por meio
dessas manifestações artísticas as marchinhas
popularizavam-se junto ao grande público, ávido de divertimento e
desejoso de conhecer seus artistas favoritos. Por outro lado, a vigência
da ditadura getulista tolhia a livre expressão do pensamento ao mesmo
tempo em que estimulava as demonstrações de patriotismo.
Nesse cenário, em que se
discutia a apropriação da cultura popular pelas instâncias
governamentais e se valorizavam as produções mestiças, as
relações entre os homens e mulheres eram também tema
recorrente no cotidiano da cidade. Embora as mulheres tivessem obtido
conquistas sociais, como o direito ao voto e à inserção em
algumas atividades profissionais, a maioria dos discursos da época era
conservadora, assegurando direito de fala e de circulação nos
espaços públicos preferencialmente aos homens. Historicamente,
sabe-se que quem é autorizado a falar é investido de um poder
advindo do lugar que ocupa na sociedade. Essa autorização
é legitimada em função da posição social, da
raça e do gênero daqueles que proferem os discursos
hegemônicos. No período getulista, o sujeito imbuído do
direito de falar era prioritariamente do segmento médio, branco e
pertencente ao gênero masculino.
Um dado relevante a ser
mencionado sobre as músicas de carnaval é que elas são
polissêmicas, isto é, cada marchinha traz em seu bojo vário
sentidos. Optei por delinear as visões que apareciam com mais frequência
nas letras examinadas. Assim, um primeiro aspecto destacável é a
negação da mulher como ser social, ou seja, reiteradamente, ela
foi representada por conteúdos biológicos ou naturais. Foi com
essa compreensão de ver o ser feminino por aspectos biológicos ou
naturais que diversas marchinhas foram compostas. Na acepção dos
compositores, a mulher ideal era apontada como bela, jovem, capaz de despertar
o interesse sexual masculino, mas que, ao mesmo tempo, fosse submissa e fiel ao
homem.
Nesse viés, as
marchinhas serviam como espécie de veículo de
comunicação por meio do qual os setores médios do Rio de
Janeiro podiam fazer apelo às normas e às repreensões
sociais para fins de manutenção da dominação
masculina na sociedade carioca da época. A mulher que saía
sozinha à noite desacompanhada ou que fizesse algo que desagradasse ao
marido poderia ter duas punições: a difamação ou a
agressão física.
Nem todas as visões
concernentes às mulheres nas letras das canções
investigadas apontam para uma assimetria em favor do masculino nas
relações de gênero. Na maioria das marchinhas, o fato de a
mulher exercer o controle da economia dos afetos na relação
obrigava o homem a permanecer sob sua égide. Nessas
canções era o ser feminino quem decidia pelo começo, pela
continuidade ou pelo fim do relacionamento. Em certa medida, a decisão
feminina era a responsável pela alegria ou pelo sofrimento
psicológico masculino. Notadamente, porém, essa visão da
mulher ocupando o papel dominante na relação pautava-se em
representações que atrelavam o universo feminino ao domínio
dos afetos; em oposição, portanto, ao mundo do intelecto e do
trabalho, que permaneceriam prerrogativas masculinas (bourdieu,
1999). Baseando-me no exposto, é possível afirmar que, sob o
ângulo dos compositores de marchinhas, não havia nem perfil
feminino único, nem modelo-padrão de relacionamentos entre homens
e mulheres. As relações de gênero podiam acontecer sob a
dominação masculina, quando o homem fazia uso de seu poder
econômico, de sua força física ou dos costumes da
época, que apregoavam a submissão feminina. Por outro lado, a
dominação feminina se consubstanciava quando a mulher recorria a
seus dotes físicos, a seu charme e a seu poder de despertar o desejo
sexual nos homens para tê-los, conforme a sua vontade.
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BIBLIOGRÁFICAS
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Ronald Clay dos Santos Ericeira é professor adjunto do Departamento de Psicologia da UFRRJ, psicólogo, mestre em ciências sociais
pela UFMA, doutor em ciências humanas
(antropologia cultural) pela UFRJ e doutor em psicologia social pela UERJ.
Recebido em: 20/03/2013
Aceito em: 16/04/2013
ERICEIRA, Ronald Clay dos Santos. As mulheres
nas letras das marchinhas carnavalescas (1930-1940). Textos escolhidos de
cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.10, n.2, p. 93-107, nov. 2013.