Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares,
v. 10. n. 2, nov. 2013
Gabriel
da Costa Turano (Uerj)
Felipe Ferreira (Uerj)
A
trajetória da escola de samba Vizinha Faladeira (1933-1940) é
exemplar para a compreensão dos primeiros anos de formação
desses grupos carnavalescos no Rio de Janeiro. A grandiosidade, o luxo e a originalidade
apresentados por essa agremiação em seus desfiles estabeleceram
uma espécie de modelo a ser criticado pelo conjunto dos grupos de samba
que negociavam o reconhecimento da sociedade a partir de valores ligados
à tradição, pureza e negritude. Propomos que a batalha
simbólica pelo significado desses grupos carnavalescos tenha sido
fundamental para a construção da relação entre as
escolas de samba e a tradicionalidade e para a
fixação desses grupos, no imaginário nacional, como
principais representantes do carnaval popular a partir da década de
1940. 1
ESCOLAS DE SAMBA; VIZINHA
FALADEIRA; PORTELA; ESTUDOS CULTURAIS; TRADIÇÃO.
Gabriel da Costa Turano (Uerj) Felipe Ferreira (Uerj)
The trajectory
of the samba school Vizinha
Faladeira (Talkative Neighbor) (1933-1940) is an example
for the understanding of the first
formative years of these carnival
groups in Rio de Janeiro. The grandeur,
luxury and originality displayed by this group
in its parades established
a form of template to be
criticized by all the samba groups
that negotiated their recognition in society based on
values linked
to tradition, purity and blackness.
We propose that the symbolic
battle over the significance of these carnival groups was instrumental in building the relationship
between the samba schools and traditionalism,
and the permanence
of these groups in the national
imagination as the main representatives of the popular carnival from the
1940s onwards.
SAMBA SCHOOLS; VIZINHA FALADEIRA; PORTELA;
CULTURAL STUDIES; TRADITION.
Um curioso e inusitado
acontecimento marcou a principal disputa entre as escolas de samba do Rio de
Janeiro no Carnaval de 1940. Naquela noite, a escola de samba Vizinha
Faladeira, campeã de 1937, tomaria um atitude surpreendente, inesperada
e nunca mais repetida por qualquer outra agremiação carnavalesca
carioca: após desfilar junto ao público que lotava a Praça
Onze, no momento em que deveria se dirigir ao tablado sobre o qual todas as
agremiações deviam apresentar-se para o corpo de jurados, a
escola de samba faria um desvio e passaria por trás do local de
julgamento ao mesmo tempo em que abria uma faixa onde se podiam ler os dizeres
“devido às marmeladas, adeus carnaval. um dia voltaremos”.
A escassa memória
carnavalesca sobre o tema2 explica esse fato como uma espécie
de protesto contra o resultado do concurso acontecido no ano anterior, 1939,
quando a escola teria apresentado “o maior carnaval da década de
30” (araújo,
1991, p. 300). O blog da escola refere-se ao fato como “o primeiro e mais
importante protesto em desfiles de escolas de samba até os dias de
hoje”, enfatizando sua riqueza, irreverência e caráter
revolucionário (ares vizinha faladeira).
Francisco Duarte, em material depositado no Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro
(caixa 10, envelope 13), relata o ocorrido destacando que
a escola estava baqueada e sem dinheiro,
mas não perdeu o prumo. Foi com seu enredo para a Praça Onze
quando chegou em cima do palanque da comissão
julgadora, saiu da pista, contornou o júri em sinal de protesto e foi em
frente cantando e sambando lampeira.
Entretanto, mais do que um
protesto pela possível injustiça com relação ao mau
resultado alcançado no ano anterior, a aparentemente desproporcional
reação da Vizinha Faladeira seria a culminância de uma
tensão gerada desde o começo dos anos 30, período de
organização das primeiras escolas de samba no Rio de Janeiro.3 Esse intervalo de quase dez anos seria
representado, basicamente, pelos movimentos iniciais que transformariam os
grupos de “samba de morro” da periferia carioca nas populares
escolas de samba. Participando dos desfiles já a partir de 1933 (o
globo, 1o de março de 1933), ou seja, apenas um ano
depois da primeira disputa oficial, a Vizinha Faladeira parecia propor uma
forma de apresentação aparentemente contrária aos
interesses do conjunto das escolas de samba naquele momento.
Para entender alguns dos
significados da surpreendente atitude da escola é necessário
investigar esse rico período, buscando compreender os principais
interesses envolvidos num contexto em que a própria ideia de
“escola de samba” se formava. Nossa hipótese é que as
“novidades” apresentadas pela Vizinha Faladeira naqueles anos
iniciais seriam vistas pelos outros grupos, e mesmo por parte da
intelectualidade da época, como
“descaracterizações” de uma essencialidade popular
que estava na raiz da formação das escolas de samba. A abordagem
das controvérsias entre as escolas permite destacar elementos
importantes das tensões que marcaram os primeiros anos dessas
agremiações carnavalescas. Tais controvérsias se expressam
basicamente a partir das disputas entre agremiações que buscam
superar umas às outras nos concursos promovidos, quase todos, pelos
jornais da época. Mais do que apenas apontar o grupo campeão a
cada ano, essas disputas, baseadas em regulamentações, quesitos e
proibições, eram um forte fator de formatação dos
grupos carnavalescos (ferreira, 20044). O
que estava em jogo, desse modo, em cada concurso, com destaque para o
certâmen “oficial” realizado na Praça Onze no domingo
de carnaval, não é apenas a premiação da
“melhor escola” por um corpo de jurados escolhido entre a nata da
intelectualidade carioca, mas, principalmente, o conceito que as
próprias escolas começavam a construir para si mesmas e a forma
pela qual elas desejavam ser vistas a partir de então.
O presente artigo trata dessa
questão a partir de três momentos. O primeiro deles abordando o
contexto de formação das escolas de samba, na virada para os anos
30, como grupos capazes de responder à busca de uma
manifestação carnavalesca “autêntica” e
“negra”. O segundo momento destacará as estratégias
de afirmação das escolas de samba através de disputas organizadas
em quesitos e regulamentações surgidos, ambos, concomitantemente
às próprias agremiações. Propomos que tais quesitos
e regras respondem aos interesses de uma elite cultural que buscava encontrar
nas manifestações populares a expressão de valores ligados
à tradicionalidade, negritude e pureza. O
terceiro momento tratará da trajetória da escola de samba Vizinha
Faladeira, destacando seus desfiles ousados, luxuosos e originais, tanto em
termos de concepção quando de apresentação, e a
reação das outras escolas, capitaneadas pela Portela,
espécie de líder e porta-voz dos conceitos de “carnaval
popular” incentivados pela elite intelectual da época. Buscaremos,
desse modo, traçar um breve perfil capaz de abrir caminho para uma
visão dinâmica da formação das escolas de samba,
destacando as negociações presentes na formação de
sua identidade inicial e descartando os enfoques evolucionistas que encaram
esses grupos carnavalescos como consequências “naturais” dos ranchos
e cordões.5
Anseios da intelectualidade
Nas duas primeiras
décadas do século XX, a festa carnavalesca carioca se organizava
em torno de dois diferentes espaços de significação. De um
lado a festa burguesa de grupos familiares fantasiados desfilando sobre carruagens
abertas enfeitadas com laços e flores, chamada inicialmente de batalha
de flores ou batalha de confetes e, mais trade, de corso.6
Conhecida como Grande Carnaval, essa festividade incluía também
os desfiles das grandes sociedades com seus imponentes carros alegóricos
nos quais esplendor visual e crítica social dividiam a
atenção do público que lotava o eixo viário
composto pelas avenidas Central e Beira-Mar. Do “outro lado”, sob a
denominação Pequeno Carnaval, a antiga “confusão
carnavalesca” que marcou o último quartel do século XIX7
tornava-se, paulatinamente, palatável para a sociedade carioca a partir
do enquadramento dos múltiplos grupos populares que ocupavam as ruas da
cidade em algumas categorias carnavalescas. Clubes, sociedades, blocos,
cordões e ranchos, até então termos genéricos e
intercambiáveis que designavam qualquer tipo de grupo popular,
tornavam-se, pouco a pouco, categorias estanques nomeando diferentes formatos
de grupos carnavalescos. Nos anos 20 já se percebiam as primeiras
diferenças capazes de discernir aos olhos da sociedade carioca
três dos principais “estilos” das brincadeiras populares: os
cordões, os blocos e os ranchos. Os primeiros, mais
“temíveis”, eram descritos pela imprensa sempre com certa
reserva e com a utilização de adjetivos mais fortes, mesmo nos textos
elogiosos como se pode ver a seguir (grifos nossos):
Numeroso bando onde
índios indomáveis e terríveis flechavam a
população ferindo-a no coração, com as notas
suaves e alegres que entoavam ao som dos pandeiros, adufos e toda esta série de entoamentos
macabros.
Grupo
Teimosos das Chammas com seus índios ferozes e
terríveis, dançando e cantando no meio de silvos estridentes,
gritos e imprecações (jornal do commercio,
15 de fevereiro de 1904).
Não é à
toa, desse modo, que, já nos anos 10, os jornais publicassem trechos de
instruções baixadas pelo comando da força policial, que determinavam
apreender a licença dos
“cordões” ou grupos carnavalescos que alterarem a ordem
pública, apresentando-a à autoridade com os promotores da
desordem [e] revistar, quando tiver recebido ordem, os indivíduos que
fizerem parte dos referidos “cordões” ou grupos, prendendo
aqueles que trouxerem armas consigo (jornal do commercio,
25 de fevereiro de 1911).
É a partir da
difusão dessas narrativas que, pouco a pouco, o termo “cordão”
vai-se associando mais fortemente aos grupos carnavalescos mais temidos, que,
com seus batuques e instrumentos “selvagens”, exerciam
fascínio e repulsa na população carioca que afluía
às ruas nos dias de carnaval.
Mas nem todos os grupos
populares se encaixavam nessa descrição
“assustadora”. Alguns deles desfilavam pelas ruas da cidade
cantando músicas mais melodiosas, movendo-se de forma mais suave, ao som
de violões e ao ritmo das músicas entoadas nas festas populares
como as que ocupavam as praças da cidade nas comemorações religiosas.8 Esses grupos mais
“civilizados” vão sendo reunidos sob o termo
“rancho” incorporando a face mais suave (e socialmente
aceitável) da festa popular. As descrições dos jornais
ressaltavam o lado delicado e doce de ranchos como o Amantes
de Aipim com seu “estandarte representando um amor-perfeito roxo, seguido
de 20 pastorinhas e alguns clarins” que “entoaram belas modinhas e
dançaram o fadinho” (jornal do commercio,
16 de fevereiro de 1904) ou o Flor do Abacate,
um rancho de rapazes e raparigas muito bem
organizado. À frente vinham um grande “cisne” e um “caçador” seguidos de um lindo estandarte.
O canto era com a música da “Canção do
Aventureiro” e foi muito apreciado (jornal do commercio,
2 de março de 1908),
ou ainda o
garboso rancho do Grupo Carnavalesco Ameno do Resedá. As fantasias eram de um luxo
inexcedível e o seu estandarte uma concepção
belíssima fora do comum. As canções que entoavam eram
muito maviosas e acompanhadas de um harmonioso sexteto (jornal do commercio, 2 de março de
1908).
Situados numa categoria
intermediária entre esses dois extremos, os blocos vão
começar a se destacar como grupos populares que se apresentavam ao som
do novo ritmo que começara a se difundir em meados da década de
1910: o samba maxixado ao estilo do famoso “Pelo Telefone”,
primeiro a ser gravado, em 1916. A associação desses grupos ao
ritmo que começava a se impor faria surgir os chamados blocos de samba
já no início da década de 1920.
Apesar dessa divisão
conceitual aparentemente equânime, era o Grande Carnaval que ocupava os
principais espaços da folia por quase todo o tempo da festa,9
representando a diversão que a burguesia oferecia ao povo. Protagonizado
pelas famílias ou grupos de amigos que se fantasiavam e se encarapitavam
sobre as carruagens enfeitadas para percorrer o novo eixo urbano carioca, o
corso dominava quase todo o tempo-espaço carnavalesco do Rio de Janeiro.
Exceção aberta aos desfiles das grandes sociedades,
representantes da intelectualidade liberal que se apresentavam em
impressionantes préstitos exibindo seu lado crítico, em carros
alegóricos de temas políticos, e sua vertente libertária,
através da exposição de mulheres em trajes
sumários, muitas vezes saídas da zona de
prostituição para os aplausos da multidão.
Outra exceção ao
domínio do corso sobre os espaços carnavalescos do Rio de Janeiro
eram as chamadas pequenas sociedades, grupos do Pequeno Carnaval que ocupavam,
mesmo que por algumas poucas horas, o eixo festivo nobre na Segunda-feira
Gorda, dia menos importante da festa à época. Nesse dia, os
cordões, blocos e ranchos mais organizados deixavam seus bairros de
origem e o espaço centralizador do carnaval popular, a Praça
Onze, para se apresentar na Rua do Ouvidor e, a partir do final dos anos 10, na
Avenida Central. Eram essas apresentações que atraíam os
olhares da população e reafirmavam a preferência popular
pelos ranchos que, por sua organização e
“civilidade”, se tornavam os maiores representantes do Pequeno Carnaval.10 Suas músicas melodiosas, a
origem social de seus componentes, na maioria negros e mestiços
provindos da baixa classe média, e a grande novidade representada pelos
temas, ou enredos, de sua apresentações, foram elementos
importantes para essa aceitação. Os ranchos se tornavam, assim, o
paradigma do carnaval cultural, papel reservado à festa popular, em
oposição ao divertimento “descompromissado” e
“espirituoso” do Grande Carnaval. Vistos como “verdadeiros
teatros ambulantes”, os ranchos eram saudados como a “grande
transformação que se tem verificado no Carnaval carioca”:
Dos ensurdecedores
“Zé Pereira” aos cordões, destes aos “blocos de
combinações”, assim foram
evoluindo os sentimentos foliescos dos carnavalescos
cariocas até atingirem a perfeição que hoje temos −
os ranchos − que apresentam o admirável conjunto de arte, luxo,
graça, música, poesia e dança. Parece que nada mais
poderia ser exigido além de tantas coisas belas, porém faltaria
ainda uma parte de primordial importância: a ideia − e esta
é justamente a maior glória dos “ranchos”, que foram
os criadores do atual system de se submeterem os clubes carnavalescos
à apreciação do Povo e da Crítica, apresentando a
representação fiel de um assunto previamente anunciado e descrito
(o imparcial, 21 de fevereiro de 1925).
Saudada como a maior
glória dos ranchos, a “ideia”, ou enredo, era a marca desses
grupos, caracterizados por sua “arte, luxo, graça, música,
poesia e dança”, ou seja, em tudo diferenciados da
“ferocidade”, “estridência” e sons
“macabros” dos cordões e, em menor medida, dos blocos.
Entretanto, com o desenrolar da década de 1920, essas mesmas
características louvadas como algo admirável vão-se
tornando excessivamente sofisticadas e aristocratizadas ao olhar da
intelectualidade e alvo de críticas que começam a aparecer na
imprensa. Em 1931, o “excesso de perfeição” dos
ranchos (e de suas cópias mais simplificadas, os blocos) torna-se
insustentável e já se pode ler que
atualmente o carnaval de blocos e ranchos,
tão perfeito se apresentam, torna-se um tanto difícil. São
custosos, são caros, são realçantes.
Mas, já vão saindo da alçada popular. Estão se
aristocratizando, se enobrecendo de modo tal, que o povo, o
“rancheiro” de hoje, já deve estar estudando, qual
será a organização do futuro, para que não saia o
rancho das camadas populares. Este é o problema carnavalesco do momento
(o jornal, 15 de fevereiro de 1931).
Palavras proféticas que
traduzem o sentimento, comum a boa parte da intelectualidade, de
“afastamento” dos ranchos de suas “raízes”
populares e de repúdio a esses grupos que “já trazem
comissão de frente montada, bandas e clarins, carros
alegóricos”. “Convenhamos que isto está
errado”, continua o texto, “não devemos tirar ao carnaval
pequeno, como o chamam, o seu característico. Deixemos as grandes
alegorias, os préstitos puxados a banda de música e de clarins
para os grandes clubes” (o jornal, 6 de fevereiro de 1929).
Paralelamente a esse
“desejo” de uma diversão popular menos sofisticada outros
objetivos se afirmavam, apontando para a necessidade de se organizar uma festa
carnavalesca no Rio de Janeiro capaz de atrair os viajantes estrangeiros que
começavam a se interessar pela cidade. Um artigo profético
publicado em 1929 destacava que os turistas vieram à cidade ver o
carnaval tipicamente brasileiro e
não os bailes e máscaras, ou o
corso, nem a máscaras que decoram a cidade, pois isto já existe
no exterior. Estes reflexos dos costumes europeus, embora refinados, não
bastam para corresponder à expectativa dos turistas (o jornal, 10 de
fevereiro de 1929).
Em apoio à
oficialização da festa, “tendo em vista o desenvolvimento
do turismo, segundo o plano do prefeito”, o texto sugere preparativos
“que estimulem a expansão dos motivos típicos do povo como
elementos primordiais da festa tradicional da cidade”. Esses “motivos
típicos”, capazes de atrair a atenção dos turistas
estrangeiros viriam através da “colaboração do povo
com seus cânticos e as suas danças, que são
manifestações de espirito próprio e não têm
similares em nenhum outro país do mundo”. Como grande expressão
desse espírito do povo o texto destaca o ritmo do samba,
“criação genuína da alma brasileira” que
“constitui a essência do carnaval carioca”, e prossegue:
Não seria exagero
afirmar-se que, sem o “samba” cantado e dançado na
praça pública, o carnaval do Rio perderia a sua razão de
ser, transformando-se numa festa insípida, desprovida de
significação e encanto. (...) Conviria, portanto, que o Prefeito,
aproveitando este carnaval, observasse pessoalmente como o povo se diverte nas
suas expansões de arte espontânea, cantando e dançando,
para então, assentar um plano de aproveitamento dos motivos
típicos do espírito brasileiro, plano que, futuramente,
transformaria a nossa festa popular num espetáculo único na
originalidade e capaz de satisfazer a todas as exigências dos turistas
mais viajados (o jornal, 10 de fevereiro de 1929).
O texto apontava para a nova
organização conceitual do carnaval que estava por acontecer a
partir daquele momento. A festa carnavalesca popular carioca perdia parte de
sua “espontaneidade”, mas ganhava, em troca, o posto de grande
representante da folia nacional.
Um “problema”,
entretanto, ainda persistia. Com a valorização em todo o mundo da
cultura negra (um movimento surgido na França e identificado como o nome
de negrofilia11), era natural que os grupos populares mais ligados
à raiz “negra” assumissem a preferência da
intelectualidade no gosto carnavalesco. Entretanto, os grupos existentes no
final da década de 1920 não se enquadravam facilmente no perfil
desejado. Os ranchos, ao sofisticar seus desfiles e enredos, haviam perdido a
“aura” de essencialmente populares, assim como suas versões
mais “simplificadas”, os blocos. Os cordões, por sua vez,
apesar de apresentar desfiles bastante ligados à influência negra
continuavam mantendo sua fama de violentos e pouco confiáveis.
Formava-se uma espécie de lacuna, um lugar vago aguardando algum tipo de
manifestação carnavalesca que fosse ao mesmo tempo popular,
singela, de influência negra e razoavelmente
“confiável”. Durante algum tempo esse espaço seria
“disputado” pelos variados grupos carnavalescos
existentes no Rio de Janeiro. Um tipo de manifestação,
entretanto, entraria nessa peleja com uma notável vantagem. Produto dos
mesmos foliões populares que organizavam os cordões, blocos e ranchos,
essa nova forma de organização atrairia a atenção
dos intelectuais pela origem de seus componentes – basicamente negros
–, pela localização de suas comunidades – as favelas
“paradisíacas” da periferia central do Rio de Janeiro12
–, pela singeleza de suas apresentações – sem a
grandiosidade e a “intelectualidade” dos ranchos –, pelo
caráter indiscutivelmente popular de seus participantes e, muito
importante, pelo novo e surpreendente ritmo que saía de seus tambores, o
samba “batucado”, em tudo diferente do samba “maxixado”
até então difundido. Denominados escolas de samba, esses grupos
se diferenciariam dos ranchos, cordões e blocos não somente pelo
novo ritmo (que, de todo modo, também já podia ser ouvido nos
blocos), mas principalmente pela “pureza” de seus desfiles
respondendo ao desejo de boa parte da intelectualidade carioca, que buscava uma
expressão carnavalesca capaz de representar o povo brasileiro em sua
“essência”, “tradicionalidade”
e “inocência”. Surgidas como uma espécie de resposta a
essas ansiedades, as escolas de samba, entretanto, precisariam pavimentar seu
caminho em direção ao reconhecimento “oficial” da
sociedade como principais representantes do carnaval popular brasileiro.
É sobre isso que falaremos a seguir.
As primeiras escolas:
construindo a identidade
Em entrevista dada ao
jornalista Sérgio Cabral em 1974, Ismael Silva narrava um fato
acontecido quase meio século antes e que se fixaria na historiografia
carnavalesca como verdadeiro mito de origem das escolas de samba. Segundo Ismael,
o termo “escola de samba”, usado para designar os novos grupos
carnavalescos, fora criado em reunião realizada antes do carnaval de
1929 para batizar a primeira escola de samba, a Deixa Falar. O nome teria sido
escolhido
por causa da escola normal que havia no
Estácio. A gente falava assim: “É daqui que saem os
professores.” Havia aquela disputa com Mangueira, Osvaldo Cruz,
Salgueiro, cada um querendo ser melhor. E o pessoal do Estácio dizia:
“Deixa falar, é daqui que saem os professores.” Daí
é que veio a ideia de dar o nome de escola de samba (cabral, 1996, p. 241).
Apesar de contestada por
documentos anteriores13 a narrativa se impôs como uma verdade
“definitiva”, fixando a ideia de um mito de origem e determinando
um “momento preciso” para o surgimento das escolas de samba. A data
e a forma de tal “nascimento”, entretanto, não seriam
tão fáceis de determinar, visto que, por alguns anos, esses novos
grupos carnavalescos populares se manteriam à
sombra dos ranchos e mesmo dos blocos.14 Louvadas por sua
autenticidade e singeleza, essas primeiras escolas de samba começariam a
ser reconhecidas a partir de 1932, ano do primeiro grande projeto de
organização e oficialização do carnaval carioca,
promovido pelo prefeito Pedro Ernesto que incluía um “concurso de
sambas” (ferreira, 2004). O apoio a
uma disputa inédita entre grupos de sambistas15 pode ser
creditado a um movimento em direção à
população das favelas e periferias, característico do
populismo da prefeitura carioca desejosa de “equilibrar” suas
ações carnavalescas que contemplavam, basicamente, a
organização do passeio do corso e de banhos de mar à
fantasia (apoiados pela hotelaria de Copacabana) e a criação do
um baile de gala no luxuoso Theatro Municipal. O
jornal O Globo (4 de fevereiro de 1932) noticiaria
a disputa entre grupos de samba destacando tratar-se de
um torneio que promete grande brilho, tal
o encanto da sua originalidade. Queremos aludir ao campeonato do samba que
“Mundo Esportivo” promoverá. O acontecimento é
inédito; até agora não se realizara, entre nós, uma
competição idêntica que reunisse tantos elementos para um
êxito sem igual. O campeonato tem como concorrentes, as melhores
“escolas” de melodia da metrópole. Os sambas que se candidatam
aos grandes prêmios são os mais lindos dos morros, das ladeiras,
dos lugares sonoros do Rio.
Apesar do pequeno espaço
dado ao tema pelos jornais em geral (que dedicavam páginas inteiras
às grandes sociedades, aos ranchos e corso), deve-se notar o relativo
interesse da imprensa nesses grupos carnavalescos recém-criados que, mal
ou bem, já conseguiam algum reconhecimento. O grande valor dessas
“escolas de melodia” era, como se pode depreender, sua
musicalidade, o ritmo dos seus tambores e a beleza de seu canto marcando as escolas
de samba como uma espécie de oposição aos ranchos e
às grandes sociedades com suas alegorias e fantasias luxuosas. Surgidas
como uma negociação entre os interesses da intelectualidade (que
buscava uma manifestação carnavalesca popular essencialmente
brasileira), dos políticos (desejosos de agradar às classes menos
favorecidas), do turismo (buscando atrair visitantes interessados numa festa
como nenhuma outra no mundo) e dos sambistas dos morros (que almejavam
ascensão e aceitação social), as escolas de samba
precisavam, nesses primeiros anos, reafirmar seu compromisso com a
tradição, as origens negras e a pureza essencial.
É essa necessidade
básica de afirmar sua tradicionalidade que
impulsionará esses grupos carnavalescos a uma
auto-organização marcada pela participação em
diferentes concursos e disputas entre as agremiações,16
como aquela que reuniu “num desafio formal” ocorrido no
estádio do Fluminense perante uma “comissão de
julgamento”, os grupos da Mangueira e a Unidos da Saúde, “escolas
de samba das melhores, das que mais destaques possuem”. O texto publicado
pelo Jornal do Brasil (18 de fevereiro de 1933) prossegue informando que
“tomarão parte nessa bela festa diversas escolas de samba,
abrilhantando-a com o comparecimento dos seus afinados conjuntos. Será
conferida artística taça ao que melhor se apresentar”.
Outro exemplo das disputas em
que as escolas se envolviam foi a “Noite das escolas de samba”
organizada pelo Centro de Cronistas Carnavalescos dentro do cronograma oficial
da Prefeitura. Com a chancela da municipalidade, o CCC
criou um regulamento para os desfiles estipulando os horários de
início e término, o uso de fantasias pelos componentes, a
não obrigatoriedade do enredo e a execução de dois sambas,
além de itens referentes a conjunto e harmonia (jornal do brasil, 23 de fevereiro de 1933).
Alguns dias depois o jornal O
Globo (25 de fevereiro de 1933) realizaria, na Praça Onze, aquele
que é considerado pela historiografia carnavalesca o segundo concurso de
escolas de samba, com regulamento no qual o julgamento era organizado em itens
como harmonia, poesia do samba, enredo, originalidade e conjunto, destacando-se
a proibição do uso de instrumentos de sopro e obrigatoriedade de
presença de baianas. Os itens que constam nos regulamento da disputa
citada podem nos dar uma boa pista da situação das escolas de
samba nos seus primeiros anos de existência. Note-se, inicialmente, que a
quase totalidade dos quesitos em julgamento se referiam a questões
ligadas à música,17 o que acentuava
a diferenciação entre as escolas e os ranchos. Mais do que isso,
porém, são as duas regulamentações referentes aos
instrumentos de sopro e à ala de baianas que mais chamam
atenção. Como explicar que as escolas de samba
recém-organizadas há apenas dois ou
três anos tivessem necessidade de regulamentações
tão restritivas? Que intenção se escondia por trás
de uma regra que buscava controlar grupos que ainda nem bem tinham
começado a existir? De que tipo de “má
influência” as escolas estavam sendo protegidas? A resposta estaria
no outro lado da moeda. O que acontecia era que as escolas de samba, embora
ainda não tivessem solidificado seu formato, precisavam fazê-lo
rapidamente sob pena de não ocupar o
espaço que a elas estava destinado. Provenientes dos diferentes grupos
que pululavam no carnaval carioca e que, do mesmo modo que elas, também
tinham no samba um de seus trunfos, as escolas precisavam reafirmar os valores
pelos quais tinham sido “invocadas”: tradicionalidade,
negritude, pureza e singeleza. Nesse sentido, a presença
obrigatória de um conjunto de “baianas” representava a
expressão de um compromisso desses novos grupos de samba com suas
“origens populares”, com a “essência da brasilidade”18
e com o “passado ancestral”19.
Incluir obrigatoriamente baianas em suas apresentações era, desse
modo, uma forma de as escolas mostrarem à intelectualidade, às
autoridades e ao povo que as saudava na Praça Onze seu compromisso e sua
“inegável” relação com a ancestralidade
festiva de raiz negra.
Outro sinal do diálogo
entre as escolas de samba e as instituições culturais da
época era a proibição de utilizarem, em seus desfiles,
instrumentos de sopro que, no entanto, já eram bastante comuns nos
grupos de samba e choro dos subúrbios cariocas. O famoso músico
Pixinguinha, por exemplo, considerado pelos críticos o maior compositor
popular brasileiro (vasconcelos,
s.d.) tocava sax alto, instrumento que lhe deu projeção
internacional. O grupo Choro dos Africanos de Vila Isabel era composto de
flauta e saxofone, além de violões, cavaquinho, banjo e pandeiro
(o globo, 5 de fevereiro de 1937). O compositor Jair
do Cavaquinho, por sua vez, em depoimento para o filme O mistério do
samba (1998, 31’), afirma que a escola de samba Portela em seus
primeiros anos não tinha bateria, mas sim trombone, clarinete, flauta,
violão, cavaquinho e violino. Em suma, não havia nenhuma
prevenção dos sambistas com relação à
utilização de qualquer tipo de instrumento para acompanhar as
apresentações de samba e chorinho. Os sopros, entretanto, estavam
bastante associados a um ritmo que começava a dominar o mundo a partir
dos Estados Unidos e que no Brasil muitas vezes se confundia com os sons dos
tambores do carnaval popular de origem negra.
Rangem trilam, ribombam,
silvam, chocalham, tinem, rezunem,
ganzás, apitos, zabumbas, gaitas, pandeiros, timbales, cornetas e
reco-recos. Rompe o samba destemperado, aqui, ali, num vortilhar
de luxúria em labareda. Batuque, jazz-band,
macumba (diário de notícias, 15 de fevereiro de 1931).
O trecho acima, retirado de
artigo intitulado “Carnavalada”, aponta
para a confusão reinante em termos de ritmos carnavalescos na
década de 1930. Jazz, macumba e batuque compartilhavam do mesmo
delírio. Tal liberdade rítmica, entretanto, não caberia
num grupo carnavalesco que buscava definir-se como essencialmente brasileiro e
tradicional. O samba, por sua vez, ritmo nacional por excelência,
começava a ser visto como algo mais forte, mais africano, mais profundo
e mesmo mais antigo que o jazz. “No carnaval carioca”,
afirmava a revista O Cruzeiro (21 de fevereiro de 1931),
colaborou a fascinação africana
pela pompa das cores, pela excitação da música e as
contorções da dança. Já muito antes do jazz, na
partitura do nosso carnaval intervinham os acordes bárbaros e
lúbricos do samba.
A organização dos
concursos entre as escolas (com seus quesitos de julgamento e suas
obrigações e proibições) assumia,
desse modo, um papel de grande importância na própria
definição dos significados desses grupos, tornando-se uma arena
de disputas capaz de mediar os vários interesses envolvidos na
definição que se negociava para as escolas de samba.
Expressão desses interesses seria a criação de um
órgão representativo reunindo esses novos grupos carnavalescos e
procurando reforçar a ideia de uma unidade entre eles, a União
das Escolas de Samba (UES), criada em 1934.
Em suma, poucos anos
após sua organização as escolas de samba parecem
acomodar-se sem dificuldades naquilo que os Estudos Culturais chamam de um
“compromisso negociado” (storey, 2009 e
2003), ou seja, ações de resistência e
incorporações capazes de fazer com que elas se adaptem aos
interesses da sociedade, assumindo e ressignificando
os valores desta última quase sempre em proveito próprio. A
velocidade com que esse processo ocorre dá a medida do pragmatismo e da
capacidade de negociação das escolas de samba, que percebem com
rapidez as enormes possibilidades que a elas se apresentavam caso assumissem o
nada desconfortável papel de manifestações puras e tradicionais.
Esse mundo perfeito tinha, porém, alguns problemas; o primeiro e menos
grave era a necessidade que as escolas tinham de superar suas rivais. Desejo
inerente aos grupos carnavalescos em geral, visto que as disputas, promovidas
por jornais, vinham sendo fator determinante para a formatação da
identidade desses grupos desde finais do século XIX. Acomodar o impulso
de superar as outras escolas com a necessidade de se manter puras e
tradicionais era uma equação não muito simples de
resolver, que passava pela aceitação de regras compartilhadas por
todas as agremiações. O grande problema, entretanto, era que nem
todas as escolas estavam dispostas a aceitar regras e imposições
que pudessem prejudicar sua ascensão. Algumas delas, aliás,
buscariam afirmar sua identidade exatamente nesse espaço de
inovação, luxo e ousadia. Esse foi o caso da Vizinha Faladeira,
sobre a qual falaremos a seguir.
Uma vizinha incômoda
Fundada em 1932, no bairro da
Saúde, zona central do Rio de Janeiro, a escola de samba Vizinha
Faladeira causou polêmica já em sua primeira
participação em concursos, em 1933. Nessa disputa, organizada
pelo jornal O Globo (1o de março de 1933) a
escola seria desclassificada por incluir automóveis em seu desfile.
Segundo o jornalista Francisco Duarte,20 a
agremiação apresentara
uma comissão de frente de
landolé – carros abertos de luxo, muito usados para casamento,
então, uns 10, ou menos, com os embaixadores de terno branco, gravata
preta borboleta e cravo preto na lapela (jornal do brasil, 25 de fevereiro de 1979).
A
desclassificação, entretanto, não esmoreceu os componentes
da escola, que preparariam um desfile imponente para o concurso na Praça
Onze do ano seguinte. Ainda segundo Duarte (apud turano,
2011, p. 90),
a Vizinha Faladeira desfilou com cavalos
na comissão de frente, atendendo ao pedido de não utilizar carros
em seu cortejo (...). Utilizou luzes e, na frente da bateria teve uma
comissão de garotos, além de contar com os cenógrafos
Irmãos Garrido na realização do desfile.
O resultado desse investimento
foi que a escola sagrar-se-ia campeã do concurso realizado na
Praça Onze. No mesmo ano de 1934, entretanto, ao menos dois outros
encontros com disputas entre escolas de samba foram realizados.21
O primeiro, em 20 de janeiro, teve como justificativa uma homenagem ao prefeito
Pedro Ernesto, em agradecimento por seu incentivo às escolas. Organizado
pelo Touring Clube, no Campo de Santana, o evento
contou com a presença de corsos, grandes sociedades, ranchos e blocos,
além das escolas de samba. A Estação Primeira de Mangueira
seria escolhida como a campeã e a Vai Como Pode (futura Portela)
receberia um reconhecimento especial “por se apresentar como uma
legítima escola de samba” (o paíz,
23 de janeiro de 1934).
A necessidade que os jurados
sentiram de destacar a “legitimidade” da Vai Como Pode chama a
atenção para uma tensão entre o resultado
“oficial”, baseado em quesitos “excessivamente
técnicos”, e o desejo pessoal dos julgadores de premiar valores
tradicionais e “legítimos” que, entretanto, ao que parece,
não podiam ser levados em conta em suas avaliações.
Isso talvez ajude a entender
algumas características do segundo concurso entre escolas de samba
realizado naquele ano, no dia 4 de fevereiro. Organizada pelo jornal A Hora,
a disputa, contando com a participação de 25 escolas de samba,
aconteceria no Estádio Brasil e seria vencida pela escola Recreio de
Ramos. Um dado importante é o fato de o julgamento ter sido realizado
por aclamação popular, ou seja, sem a participação
de jurados especializados, o que pode explicar a recusa da
Estação Primeira (de Mangueira) em participar da disputa.22 Matéria publicada pelo jornal O
Paíz (4 de fevereiro de 1934) destacava
que aquela seria “uma grande noite carnavalesca” na qual o
público teria “oportunidade de ouvir o samba espontâneo que
vive nos morros, sem mistificações, sem hipocrisias, sem falso
sentimento”. O texto prosseguia destacando que
a originalidade do julgamento consiste em
não haver júri, evitando deste modo, descontentamentos
posteriores, que contribuem, apenas, para animosidade das escolas. Assim, o
público que comparecer ao Estádio Brasil, terá livre
opinião e pela exibição que fizerem as escolas, certamente
a que melhor agradar, será a vencedora.
No final das contas, naquele
carnaval de 1934, quatro escolas seriam premiadas: duas (Vizinha Faladeira e
Estação Primeira de Mangueira) por critérios mais
“técnicos” e outras duas (Recreio de Ramos e Vai como Pode)
por valores ligados a legitimidade e espontaneidade. Buscar o equilíbrio
entre esses dois polos parecia ser o caminho que se apresentava para que uma
escola de samba obtivesse reconhecimento “de crítica e
público”.
Visto sob esse enfoque, o
campeonato ganho pela Vizinha Faladeira faria crescer não só sua
fama, mas também as críticas das outras agremiações
contra o luxo e as inovações da escola que, por essa
razão, começou a ser chamada de Vizinha Rica.23
Com o objetivo de
“oficializar” e unificar a disputa entre as escolas, a União
das Escolas de Samba e o jornal A Nação preparariam um
novo regulamento para o carnaval de 1935, restringindo o concurso aos grupos
filiados à UES. As novas regras impunham um
controle mais forte, obrigando cada escola a enviar antecipadamente as letras
dos sambas à redação do jornal, estabelecendo o tempo
máximo de 15 minutos para a exibição de cada grupo e
reiterando a proibição de instrumentos de sopro, entre outras
coisas. O quarto lugar conquistado pela Vizinha Faladeira desagradou à
escola, que se havia apresentado com gambiarras iluminando seu desfile,
fantasias de lamê e veludo, fogos de artifícios e comissão
de frente sobre um automóvel.24 A
utilização de elementos não permitidos pelo regulamento,
entretanto, parece não ter sido prerrogativa da Vizinha Faladeira.
Segundo declaração do presidente da Unidos do Tuiuti
(diário carioca, 10 de março de 1935),
o citado concurso fugiu de todas as
regras estabelecidas em 3 assembleias gerais, realizadas na sede da
União das Escolas de Samba. (...) Entre as bases assentadas nas (...)
assembleias, ficaram as escolas inscritas proibidas de conduzir pastas,
cartonagens, estandartes, carros e instrumentos de sopro,
proibição esta que não foi obedecida por algumas
concorrentes.
Para completar, um dos jurados,
o sambista Ismael Silva, discordou publicamente do resultado declarando ao
jornal Avante que a classificação justa seria Vizinha
Faladeira em primeiro lugar, seguida da Estação Primeira e da
Portela (cabral, 1996, p.
104). Ficava clara a tensão entre dois comportamentos praticamente
opostos. De um lado a disposição de superar suas concorrentes,
impondo ousadias e novidades às escolas. De outro a necessidade desses
grupos de corresponder aos anseios da intelectualidade reafirmando seu
caráter “popular” e “tradicional”. Manifestando
seu descontentamento, a Vizinha Faladeira resolve doar seu prêmio de 250
mil réis ao Instituto dos Cegos, em “homenagem” à
comissão julgadora (jornal do brasil, 25 de
fevereiro de 1979).
A escola tinha bons motivos de
se incomodar com o resultado desfavorável. Além do óbvio
orgulho em superar as outras agremiações, ser escolhida como a
campeã era uma forma de estreitar as relações de sua
comunidade com o resto da cidade num momento em que as escolas de samba mais
bem sucedidas começavam a ser requisitadas para participar de recepções
e festas, convidadas a visitar as redações dos jornais e mesmo
ver sua quadra servir de palco a eventos oficiais.25
Nesse ano de 1936 o carnaval
seguiu sendo organizado pela UES que divulgaria o
regulamento poucos dias antes do desfile, informando que as escolas seriam
classificadas pela maior quantidade de pontos na soma das
avaliações de harmonia, samba, bateria, bandeira e enredo e
ampliando a proibição de certos instrumentos, incluindo, agora,
aqueles de corda. Não havia, entretanto, nenhuma proibição
explícita à utilização de carros alegóricos,
ao luxo nas fantasias, a fogos de artifício ou a tema estrangeiro
(diário carioca, 23 de fevereiro de 1936). Esse controle cada vez mais
restritivo dos desfiles não impedia, entretanto, que parte da imprensa
continuasse a valorizar o luxo e o esplendor das apresentações,
como se vê no relato a seguir:
As escolas vieram precedidas de
cortejos, alguns luxuosos como a “Vizinha Faladeira”,
“Estação Primeira”, “Mangueira”,
“Salgueiro”, “Tuiuti”,
“Portela” e muitas outras. Nunca se viu tanto esplendor e luxo nas
escolas de samba. Pode-se dizer, sem exageros, que a exibição
desses conjuntos, que envolvem com as suas músicas sugestivas a alma do
povo, marcou um dos maiores acontecimentos do carnaval deste ano (a noite, 24 de fevereiro de 1936).
O resultado final deu o
campeonato à Unidos da Tijuca, com a Mangueira
na segunda colocação e a Portela em terceiro, ficando a Vizinha
Faladeira em sexto lugar. As críticas não tardaram, com
acusações contra a UES que
tomando para si a tarefa de efetuar o concurso
sempre feito por particulares (...) teimou em se mostrar inimiga
irreconhecível do bom senso, organizando um regulamento todo capcioso e
do qual só poderiam usufruir vantagens as Escolas cujos diretores eram
também os próprios diretores da União (o radical, 3 de
março de 1936).
Segundo o jornal, o povo e a
imprensa proclamaram a vitória da Portela, seguida pela Mangueira e pela
Vizinha Faladeira. Tal resultado, segue o texto,
reconhecido pela própria comissão julgadora, teria sido
“torcido e retorcido” ao “sabor das
conveniências” quando a UES decidiu dar o
primeiro prêmio para a “escola que fez mais pontos no quesito
harmonia”. “Bastará uma escola vencer em harmonia para ser
considerada campeã?”, questiona o jornal. “E o conjunto de
todos os quesitos, qual o valor que tem? Nenhum?”.
Toda essa querela é uma
demonstração da situação instável em que se
encontrava não somente o regulamento que balizava o julgamento, mas a
variedade de significados em disputa pela definição das escolas
de samba.
No ano seguinte, 1937, mais
jornais descrevem as apresentações das escolas de samba como
eventos espetaculares.
Eram, a princípio, as
autênticas “macumbas”, mas evoluíram ao contato do
meio urbano. Os morros, por sua vez, estão se civilizando. As Escolas de
Samba já se apresentam, algumas, com carros
alegóricos, outras com comissões de frente, a cavalo. Bem
empregados foram os 40 contos com que o Conselho de Turismo auxiliou as Escolas
de Samba. A este auxílio se deve em grande parte, o soberbo
espetáculo de anteontem, na Praça Onze (diário de
notícias, 9 de fevereiro de 1937).
Naquele ano, desfilando numa
Praça Onze ocupada por grande multidão, a Vizinha Faladeira teria
seu desfile aberto por um automóvel seguido de seis homens fantasiados e
montados a cavalo. À frente da bateria, um grupo de músicos,
quase uma orquestra completa, com instrumentos de sopro (cabral, 1996, p. 113). As fantasias eram luxuosas e
resistentes à chuva que caiu durante os desfiles (jornal do brasil, 25 de fevereiro de 1937), fato que acabou por fazer
com que o concurso fosse encerrado antecipadamente, após a
apresentação da 16a escola, do total de 32
agremiações, deixando de fora agremiações
importantes como a Unidos da Tijuca e a Mangueira. A comissão julgadora
consagrou a Vizinha Faladeira como campeã daquele ano, destacando,
porém, em relatório enviado à Diretoria de Turismo que a
Portela fora “a única que se apresentou conservando todas as
tradições de uma verdadeira escola de samba, enquanto as outras
se desviavam, consideravelmente, dessa finalidade” (o radical, 12 de
fevereiro de 1937). A Portela, prosseguia o
relatório, exibiu-se “rigorosamente dentro de suas
tradições”, não apresentando “carros
alegóricos, nem trabalhos de pastas, nem fantasias, sem os
característicos do samba”. Em contrapartida as outras escolas
“timbraram em se igualar aos blocos e ranchos sendo que até a
comissão montada a cavalo foi apresentada”. Em suma, obrigados a
julgar de acordo com um regulamento feito pelas próprias agremiações
concorrentes, mas que consideravam muito liberal, os
jurados reafirmavam os valores da elite cultural ligados à pureza e
autenticidade, procurando afastar as escolas de samba das
“descaracterizações” dos blocos e ranchos. A
ausência de carros alegóricos, de pastas (como eram chamadas as
esculturas feitas de pasta de papel ou papier-maché
geralmente usadas como adereços de mão) e de fantasias que
não aquelas “típicas do samba”26 eram
qualidade a ser louvadas e valorizadas (Figura 2). Em suma, o fato de que,
segundo os jurados, todas as escolas, com exceção de uma,
apresentassem desfiles espetaculares não arrefeceu a crítica do
jornal, que reafirmava, assim como os julgadores, seu apoio à
excepcionalidade. Nesse sentido os comentários do jornal A Gazeta
(apud cabral, 1996, p. 114)
são bastante esclarecedores ao destacar o caráter nacionalista
que se desejava para as escolas:
Embora concedendo maioria de
pontos à Vizinha Faladeira, a comissão não deixa de
reconhecer ter sido a Portela a que mais preencheu as finalidades das escolas
de samba. Entretanto, assim procedeu em virtude dos quesitos apresentados
não corresponderem ao julgamento a realizar. De futuro, já pelo
brilho desses cortejos, já pelo número dos mesmos, como pelo
extraordinário interesse despertado no público, os quesitos devem
ser mais completos e firmados com antecedência bastante para que as
escolas de samba por ele se possam reger. Pensa
também a comissão que a exibição de carros
alegóricos e de comissão de frente a cavalo ou de
automóveis foge à finalidade das escolas de samba, hoje, a parte
maior, mais interessante e mais nacionalista do carnaval carioca.
Em suma, seguindo os
regulamentos estabelecidos pela UES, a Vizinha
Faladeira ganharia não somente o título de campeã, mas
também o incômodo posto de líder da
“descaracterização” das escolas de samba que (e isso
é algo a se notar), embora engatinhando em seus primeiros anos de
existência, já afirmavam sua tradicionalidade.
O poder dos
“guardiões da tradição” se fará sentir
já no ano seguinte, 1938, com um novo regulamento da UES
que trazia logo no seu primeiro artigo a proibição das escolas
apresentarem “os seus enredos no carnaval, por ocasião dos
préstitos, com carros alegóricos, ou carretas, assim como
não são permitidas histórias internacionais em sonho ou
imaginação” (silva e santos, 1989, p. 110). Apesar dessa
limitação, as escolas buscaram realizar um carnaval grandioso,
como, por exemplo, a Portela apresentando a novidade de um abre-alas espelhado.
O julgamento avaliaria o samba, a harmonia, a bandeira, o enredo, a
indumentária, a comissão de frente, as fantasias do mestre-sala e
da porta-bandeira e a iluminação da
escola.
Um ano após sua
criticada vitória, a Vizinha Faladeira apresentaria o enredo “O
Brasil” com uma ala de damas portando guarda-chuvas (jornal do brasil, 25 de fevereiro de 1979). O uso de tal
adereço seria providencial visto que uma chuva descrita como
“torrencial” faria com que dois dos três membros da
comissão julgadora não comparecessem ao desfile o que acabou
acarretando a ausência de julgamento e, por consequência, de uma
escola campeã no primeiro carnaval do Estado Novo. A falta dos jurados
daria oportunidade ao jornal O Radical (4 de
março de 1938) de voltar a questionar a validade dessa
avaliação em detrimento de uma escolha popular:
Achamos que foi melhor assim,
pois pior podia ser. Quem sabe se uma comissão cujos votos muitas vezes
estão empenhados, não teria causado muitas dores de cabeça
nos componentes das Escolas de Samba. Quem sabe! O maior prêmio que esses
milhares de foliões conquistaram, e que nenhuma comissão
poderá alterar, foi a aclamação
unânime do povo que é o juiz supremo de todas as festas e
empreendimentos cívicos ou carnavalescos.
Para o carnaval do ano
seguinte, 1939, a Portela se empenharia em ganhar o campeonato, buscando
equiparar-se, e superar, as escolas mais importantes que haviam sido vitoriosas
nos anos anteriores: Estação Primeira de Mangueira, Unidos da
Tijuca e Vizinha Faladeira. Capitaneada por Paulo da Portela, a escola estava
segura de que aquele ano seria o de sua afirmação (silva e
santos, 1989, p. 112). Interessados em valorizar as escolas de samba, os
jornais destacavam seu caráter nacionalista descrevendo-as como
“núcleos de cultivadores da nossa música típica, no
que ela tem de mais histórico e básico da
civilização brasileira” ou como “simpáticas
manifestações do folclore nacional” (correio da
manhã, 19 de janeiro de 1939). Pouco antes do carnaval, após
atravessar uma crise, a UES se transformaria na
União Geral das Escolas de Samba (Uges)
buscando, com isso, reunir todas as escolas sob seu comando. Essas
modificações fariam com que o regulamento para o concurso de 1939
acabasse não sendo aprovado pela comissão da Uges.
Buscando resolver o impasse, a comissão decidiu reutilizar o regulamento
de 1938, acrescentando apenas os quesitos a serem julgados, os prêmios e
a obrigatoriedade de entregar os enredos com antecedência. Com isso,
não se reafirmariam as proibições de instrumentos de
sopro, carros alegóricos ou temas estrangeiros, itens que haviam sido
explicitamente proibidos no regulamento anterior (que acabara não sendo
utilizado por causa da chuva). Para completar, a divulgação das
regras do concurso foi feita apenas 17 dias antes do desfile, deixando menos de
um mês para as escolas se prepararem para a disputa. Tal falta de
organização faria com que algumas escolas decidissem ousar,
desfilando com carros alegóricos, fantasias luxuosas e outras
“novidades”.
Com uma alegoria apresentando o
que foi descrito como “um gigantesco quadro-negro” onde se via
escrito “prestigiar e amparar o samba, música típica e
original do brasil, e incentivar o povo
brasileiro” (silva e santos, 1989, p. 113) e beneficiando-se da
confusão do regulamento, a Portela ganharia o carnaval utilizando-se dos
até então criticados carros alegóricos para louvar o
país, o samba e sua tradição. Essa
negociação entre tradição e inovação
representada pela alegoria da Portela teria seu elogio e sua justificativa
apresentados nas palavras do cidadão samba de 1939:
Tudo evolui. O samba
também evoluiu, tomou feição artística,
agigantou-se, colocando-se paralelamente a qualquer das outras modalidades
carnavalescas do Brasil. Hoje não é como dantes, cercado com
indiferença. Pelo contrário, chegamos ao momento de recebermos do
querido povo carioca, as maiores consagrações, em recompensa, ao
valor da minha gente. A evolução do samba esta se operando com
rapidez para galgar as escadas do triunfo definitivo (diário carioca, 12
de fevereiro de 1939).
Nesse mesmo ano a Vizinha
Faladeira faria um desfile diferente de todas as suas
apresentações anteriores. Aproveitando-se do lançamento do
desenho animado de Walt Disney no ano anterior (e de seu relançamento em
versão original em 1939) (Figura 3) a escola apresentaria o enredo
“Branca de Neve e os Sete Anões” desfilando com 400
integrantes, comissão de frente trajando terno de flanela e polainas,
bateria fantasiada, carro alegórico com luzes e anões em volta da
Branca de Neve. Segundo Francisco Duarte27 a escola buscara um tema
do “folclore mundial”, apresentando como Branca de Neve “uma
menina branca, filha de italianos, que era linda de morrer”, os
anões sendo “meninos maquiados e vestidos como velhinhos, gnomos
da mata”.
Para a Vizinha Faladeira, a
expectativa pela vitória era grande, mas valendo-se das
proibições do regulamento do ano anterior a Portela fizera uma
solicitação junto à comissão de julgadores para que
a escola fosse desclassificada por utilizar um tema internacional em seu
enredo. A atitude revoltou a escola que se sentiu injustiçada e decidiu
preparar uma espécie de desagravo para o desfile do ano seguinte.
Em 1940, já em plena
Segunda Guerra Mundial (mas ainda sem a participação do Brasil),
a prefeitura do Rio de Janeiro investe no carnaval da cidade. Para a
Praça Onze é preparada uma alegoria “tipicamente
brasileira” em forma de uma grande baiana cobrindo o chafariz, circundada
de personagens carnavalescos, entre eles um malandro e uma porta-bandeira
(Figura 4).
Trinta escolas de samba
desfilaram, mas apenas as 23 filiadas à Uges
participaram do concurso. A Vizinha Faladeira prepararia uma
apresentação especial com o enredo “Carnaval para o
povo”. Como o título já anunciava, a escola se apresentaria
“para a população”, desprezando, em forma de
protesto, o corpo de jurados. A atitude inédita e ousada da escola de
passar por trás da comissão julgadora exibindo a faixa com os
dizeres “devido às marmeladas, adeus carnaval. um dia
voltaremos”, acabaria sendo mais do que um simples protesto. O fato de
uma das principais agremiações da primeira década de existência
das escolas abrir mão de lutar e encerrar suas atividades soava como uma
espécie de rendição a uma força mais poderosa
contra a qual não seria possível lutar naquele momento. Uma força
avassaladora que marcaria as escolas de samba por muitos anos: a
tradição.
Tradição
O conceito de
tradição, tão caro aos folcloristas da primeira metade do
século XX, seria determinante para a formatação da
organização e dos desfiles das escolas de samba em seus primeiros
anos. É a partir da reafirmação constante de suas
raízes “populares”, “negras” e
“puras” que as escolas conquistariam, pouco a pouco, um
espaço próprio no carnaval carioca e na própria cultura
brasileira. A necessidade de preservar valores considerados básicos
imporia a elaboração de discursos ligados à
negação das ousadias e das novidades associadas, naquela
época, aos ranchos, blocos e sociedades. Tais discursos, entretanto,
estavam mais afeitos à teoria do que à prática, visto que
as escolas não se furtavam às ousadias e a se inspirar nos
enredos, fantasias e alegorias das outras manifestações
carnavalescas. A utilização de elementos consagrados pelas outras
brincadeiras de carnaval, entretanto, dar-se-ia sempre acompanhada de discursos
de negociação. Afinal de contas “tudo evolui”, como
afirmava o cidadão samba, em 1939. Algumas
“evoluções”, entretanto, são mais aceitas que
outras, dependendo da capacidade de negociação de cada ator.
O grande “segredo”
que explica a forte ascensão das escolas de samba no Rio de Janeiro, que
em pouco menos que uma década (1932-1940) saem da total
inexistência para um considerável prestígio perante a
intelectualidade e as classes populares, pode ser explicado pela notável
capacidade de negociação de seus componentes. Vizinha Faladeira e
Portela servem, desse modo, como exemplos das
contingências dessas negociações. Ambas buscavam um
equilíbrio entre tradição e inovação,
ambas almejavam impor-se como agremiações
respeitáveis e reconhecidas, ambas buscaram afirmar sua forma de
entender os desfiles e, em última instância, de determinar os
significados do que seria uma escola de samba. Conchavos políticos,
interpretação de regulamentos a seu favor e
desqualificação das outras escolas foram as
armas utilizadas por elas e por todas as agremiações. Pairando
acima disso tudo, a ideia de negociação, tal como é
entendida pelos estudos culturais (storey, 2003,
2009), se estabelece como movimento básico para a formação
das escolas de samba. É a partir de resistências e
incorporações às proposições da cultura
institucionalizada que a cultura popular cria seus textos e práticas.
É esse processo que fará surgirem os primeiros grupos de
“samba de morro” no Rio de Janeiro, em resposta às lacunas
abertas pela intelectualidade num espaço popular que não mais
correspondia aos anseios de pureza e tradição da moderna elite
intelectual. São essas negociações que ocorrerão
nas diversas disputas entre as escolas de samba, ao mesmo tempo atores e
objetos desses eventos, que assumirão formas e práticas
inesperadas e, muitas vezes surpreendentes. São essas discussões,
nem sempre tensas, nem sempre consensuais, que acabariam fazendo com que
algumas escolas sobrevivessem e se tornassem verdadeiras glórias da
cultura brasileira enquanto outras sucumbissem à sua própria ousadia.
As histórias de ambas, entretanto, não são isoladas. O
fracasso da Vizinha Faladeira está intrinsecamente ligado ao sucesso da
Portela. Ao contrário da primeira, que se recusou a negociar suas
inovações e luxo, a segunda se projetaria no imaginário
carnavalesco a partir de sua capacidade de dialogar com diferentes interesses,
reinterpretando os valores tradicionais e ressignificando
suas ousadias como espaços de tradição. É
exatamente essa capacidade de reinventar constantemente suas
tradições adaptando-as aos interesses da intelectualidade sem
perder de vista seus próprios objetivos que irá dar o tom das
escolas de samba a partir de então. Punida por ousar demais a
Vizinha Faladeira tornava-se símbolo de um momento decisivo para as
escolas de samba que se afirmariam, a partir de então, como
expressões máximas da tradição popular carnavalesca
de raiz negra. Fortalecidas pelo reconhecimento da sociedade e pela
“rendição” da “poderosa” Vizinha
Faladeira, essas agremiações dariam os primeiros passos para ser
alçadas, no final da década de 1940, à
condição de maiores expressões da alma brasileira.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ARES
Vizinha Faladeira.
http://aresvizinha.blogspot.com.br/p/historia.html (acesso em 27 de julho de
2013).
ABREU, Marta. O
Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro
(1830-1900). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
ARAÚJO, Hiram. Memória
do carnaval. Rio de Janeiro: Riotur/Oficina do
Livro, 1991.
ARAÚJO, Vânia
Maria Mourão de; Felipe FERREIRA. Tradição e modernidade
no traje da baiana de escola de samba. Visualidades (UFG),
2012: 10-20.
ARCHER-STRAW,
Petrine. Negrophilia:
avant-garde Paris and black culture
in the 1920s. New York: Thames
and Hudson, 2000.
CABRAL, Sérgio. As
escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1996.
O mistério do samba. Direção: Lula Buarque de HOLLANDA e Carolina JABOR. Elenco: Jair do CAVAQUINHO.
1998.
FERREIRA, Felipe. Escritos
carnavalescos. Rio de Janeiro: Editora Aeroplano,
2012.
_________. Inventando
carnavais: o surgimento do carnaval carioca no século XIX e outras
questões carnavalescas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.
_________. O livro de ouro
do carnaval brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
GONÇALVES, Renata de
Sá. “Os ranchos carnavalescos e o prestígio das ruas:
territorialidades e sociabilidades no carnaval carioca da primeira metade do
século XX.” Textos Escolhidos de Cultura e Arte
Populares, 2006: 71-80.
_________. Os ranchos pedem
passagem. Rio de Janeiro, PPGSA/IFCS/UFRJ: Secretaria Municipal das Culturas, 2007.
SETTI, Ricardo. Histórias de
carnaval: “A morte da porta-estandarte” (Aníbal Machado).
7 de março de 2011.
http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tema-livre/historias-de-carnaval-a-morte-da-porta-estandarte-anibal-machado/
(acesso em 6 de agosto de 2013).
SILVA, Marília T.
Barboza; SANTOS, Lygia. Paulo da Portela: traço de união entre
duas culturas. Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional de
Música, Divisão de Música Popular, 1989.
STOREY, John. Cultural theory
and popular culture. Essex: Pearson Educational Limited, 2009.
_________. Inventing
popular culture. Oxford: Blackwell
Publishing, 2003.
TURANO, Gabriel da Costa. “A visualidade
das escolas de samba na década de 1930: inovação,
transformação e reconfiguração.” Textos
Escolhidos de Cultura e Arte Populares, 2011: 133-142.
_________. Devido às
marmeladas, adeus carnaval! Um dia voltaremos!: escolas de samba e cultura popular dos anos 30.
Dissertação − Mestrado. Programa de
Pós-Graduação em Artes/Uerj, Rio
de Janeiro, 2012.
VASCONCELOS, Ary. “Pixinguinha
(verbete).” Dicionário Cravo Albin da
Música Popular Brasileira.
http://www.dicionariompb.com.br/pixinguinha/critica (acesso em 7 de agosto de 2013).
NOTAS
1 A pesquisa para a
elaboração deste artigo contou com o apoio do CNPq através
de Bolsa de Iniciação Científica.
2 Livros bastante difundidos abordando a
história das escolas de samba em seus primeiros anos ignoram o
acontecimento de 1940 envolvendo a Vizinha Faladeira. Silva e Santos (1989,
p.116) dão destaque ao desfile da Portela e ao fato de não ter
ganhado aquele campeonato (Mangueira ficou em primeiro). Cabral (1996)
também nada menciona a respeito do fato, comentando apenas que a Vizinha
Faladeira foi desclassificada em 1939 por usar tema estrangeiro (p. 125).
3 Uma visão geral sobre as escolas
de samba nos anos 1930 pode ser encontrada em Turano,
2011.
4 Ver, principalmente, o capítulo
“O Brasil nacional”.
5 Sobre o tema, ver também o
artigo “O mistério das escolas de samba” (ferreira, 2012)
6 O nome “corso” é uma
referência aos antigos desfiles de carruagens abertas do carnaval romano
da primeira metade do século XIX. No Brasil, o termo surge em torno do
momento de incorporação dos automóveis às batalhas
de confete.
7 Sobre a questão da
“confusão carnavalesca” no carnaval do Rio de Janeiro na
virada para o século XX, ver Ferreira, 2004 (em especial o
capítulo “Forma de organização”) e Ferreira,
2005 (em especial o capítulo “Um carnaval popular”).
8 Sobre os grupos, principalmente os
ranchos de reis, que participavam das festas religiosas populares do Rio de
Janeiro já no século XVIII, ver Abreu, 2000.
9 Sobre os significados das
modificações dos espaços carnavalescos na festa carioca,
ver o artigo “O carnaval em seu lugar” (ferreira,
2012, p. 133-141).
10 Sobre os ranchos no carnaval
carioca, ver Gonçalves, 2006; 2007.
11 Sobre o tema ver Archer-Straw, 2000.
12 Sobre a
construção da visão romantizada das favelas cariocas no
início do século XX ver o artigo “Mangueira: o morro e a
escola” (ferreira, 2012, p. 147-150).
13 O termo já fora
utilizado, por exemplo, por Aníbal Machado no conto “A morte da
porta-estandarte”, publicado em 1925 na revista Estética (p.
167-184). O trecho que cita as escolas de samba é o seguinte: “No
fundo da Praça, uma correria e começo de pânico. Ouvem-se
apitos. As portas de aço descem com fragor. As canções das
escolas de samba prosseguem mais vivas, sinfonizando o espaço
poeirento” (setti, 2011, grifo nosso).
14 A primeira referência
à expressão “escola de samba” no jornal O Globo
(26 de outubro de 1931), por exemplo, só é detectada em 1931 em
uma nota sobre certa escola de samba Braço de Ferro que
“não deixava a vizinhança dormir, tal o barulho
ensurdecedor que fazia” com seus “pandeiros, reco-recos e outros
objetos próprios”, todos devidamente apreendidos pela
polícia.
15 Desde finais dos anos 20, os
sambistas já se organizavam em grupos como o bloco “Velha Guarda
do Morro da Mangueira” (o jornal, 8 de fevereiro
de 1929).
16 Sobre a importância
dos concursos para a organização e adequação dos
grupos carnavalescos aos ideais da sociedade, ver Ferreira, 2004, em especial o
capítulo “O Brasil nacional” (p. 248-279).
17 Os quesitos conjunto e
enredo, entretanto, apontam para questões plásticas. O primeiro
por incluir, além do canto e das “evoluções”,
a expressão visual da totalidade da agremiação; o segundo
por se confundir, muitas vezes, com a bandeira das escolas (item
obrigatório) que apresentava os temas de cada grupo bordados ou pintados
em suas faces. A presença de estandartes era opcional; estes,
entretanto, não seriam julgados (diário de notícias, 24 de
fevereiro de 1933).
18 Na década de 1930 o
personagem da baiana de carnaval se tornara o grande representante da
brasilidade carnavalesca, sendo explorado em anúncios,
ilustrações e decorações de rua e de salão
(Figura 1).
19 Sobre os diferentes
significados da baiana de escola de samba, ver Araújo e Ferreira, 2012.
20 Grande parte das informações
sobre a escola de samba Vizinha Faladeira foi obtida na coleção
de documentos e manuscritos de Francisco Duarte que se encontra no Arquivo
Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
21 É
importante destacar que nesses primeiros anos ainda não havia um
concurso único e “oficial” entre as escolas, mas o
certâmen que ocorria na Praça Onze no domingo de carnaval
já adquirira certa precedência sobre outras eventuais disputas. A
historiografia do carnaval carioca (silva, santos, 1989; cabral, 1996), entretanto, ignora a existência
do concurso realizado na Praça Onze em 1934, considerando a disputa
acontecida no Campo de Santana aquele “oficial”. Francisco Duarte,
por sua vez, em matéria publicada no Jornal do Brasil de 25 de
fevereiro de 1979, afirma que houve concurso na Praça Onze que consagrou
a Vizinha Faladeira campeã daquele ano (apud turano,
2012, p. 94).
22 A declaração
de Saturnino Gonçalves, presidente da escola, de que “um
júri capacitado para julgar a sua escola tricampeã deveria
possuir elementos que entendessem de literatura, poesia e música”
(silva e santos, 1989, p. 64) esclarece as razões de sua atitude de
recusa e destaca os interesses envolvidos nas diferentes formas de
avaliação.
23 Um dos componentes da escola explica como
era obtido o dinheiro para a apresentação da escola: “Era
Vizinha Rica porque nós tínhamos um luxo; onde chegava era todos
dizendo ‘Chegou a Vizinha Rica’ era lamê de 42 mil
réis o metro, era belbutina. O pessoal que saía na Vizinha tinha
diversos truques para arranjar dinheiro. Um deles era fazer o Mira, que era
banqueiro de bicho e integrante da escola, assinar no livro de ouro, depois
passar no comércio do local e depois sair pela cidade correndo tudo
quanto era banqueiro, dizendo ‘foi o seu Mira quem mandou’.
Assinavam tudo que era uma beleza” (Manuscrito da Coleção
Francisco Duarte – Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro – caixa
54 – envelope 31).
24 Informações
constantes de manuscrito da Coleção Francisco Duarte, Arquivo
Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Coleção Francisco Duarte,
caixa 10 e envelope 10.
25 Como a transmissão do
programa de rádio governamental “A hora do Brasil”
diretamente da quadra da Mangueira para a Alemanha, em 1936 (diário
carioca, 31 de janeiro de 1936).
26 Provavelmente os jurados se
referiam às fantasias de baianas e malandros em
oposição àquelas dos blocos e ranchos, mais ligadas aos
enredos mirabolantes e com grandes esplendores.
27 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
Coleção Francisco Duarte, caixa 10 e envelope 13.
Gabriel da Costa Turano
é mestre em artes pelo PPGARTES/Uerj e graduado em história pela UGF.
Felipe Ferreira é pós-doutor em letras pela Université Paris III
– Sorbonne Nouvelle, doutor em geografia cultural pelo PPGG/UFRJ, mestre em antropologia da arte pela PPGAV/UFRJ, graduado em artes pela EBA/UFRJ,
professor adjunto do Instituto de Artes/Uerj e
coordenador do Centro de Referência do Carnaval, Rio de Janeiro, Brasil.
Recebido em: 25/07/2013
Aceito em: 29/08/2013
TURANO, Gabriel da Costa; FERREIRA, Felipe.
Incômoda vizinhança: a Vizinha Faladeira e a
formação das escolas de samba no Rio de Janeiro dos anos 30. Textos
escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.10, n.2, p.
65-92, nov. 2013.
Figura 1: Croqui da
decoração criada por Gilberto Trompowski
para o baile do Theatro Municipal de 1932; note-se a
imagem de baiana, única personagem “brasileira” do grupo,
entre mexicanas, espanholas e nobres venezianos (o globo, 5
de fevereiro de 1932)
Figura 2: “Uma
autêntica escola de samba”. Escola de samba não identificada
posa para a foto do jornal; note-se a simplicidade das fantasias, principalmente
em comparação ao “luxo” dos ranchos (diário
carioca, 2 de fevereiro de 1937)
Figura 3: Anúncio do
lançamento no Rio de Janeiro da versão original em inglês
do desenho animado de Walt Disney, Branca de Neve e os sete anões
(diário carioca, 23 de fevereiro de 1939)
Figura 4: Chafariz da
Praça Onze de Junho ornamentado para o carnaval de 1940 (o globo, 2 de fevereiro de 1940)