Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares,
v. 10. n. 2, nov. 2013
Eric
Brasil Nepomuceno (UFF)
Este
artigo busca entender os caminhos e escolhas da população de cor
para alcançar espaços de autonomia e participação
no carnaval e na sociedade, partindo dos carnavais cariocas da década de
1880; aborda também as construções de jornalistas e
autoridades públicas sobre o tema. Para tanto toma como objeto de estudo
uma fantasia carnavalesca que na última década de vigência
da escravidão no Brasil se destacou nas ruas da cidade do Rio de
Janeiro: a fantasia de diabinho. Os sujeitos que usavam essa fantasia contribuíram
para as discussões acerca dos limites da cidadania e da liberdade nas
ruas da cidade às vésperas da abolição da
escravidão.
RIO DE JANEIRO; CARNAVAL;
ABOLIÇÃO; DIABINHOS.
Eric Brasil Nepomuceno (UFF)
This article aims at understanding
the ways and choices made
by people of color to reach
spaces of autonomy and participation
in carnival and society, starting at the carnivals
of Rio in 1880s; the article also addresses
the construction by journalists and public authorities
on the subject.
For this, it takes as its object of study
a carnival costume that, in
the last decade of existence
of slavery in Brazil, stood out in the streets of
Rio de Janeiro: the little devil costume. The subjects who wore
this costume contributed to the discussions
on the boundaries
of citizenship and freedom in the streets of
the city on the eve
of the abolition
of slavery.
CARNIVAL; RIO DE JANEIRO; SLAVERY
ABOLITION; LITTLE DEVILS.
Introdução1
Calixto José da Silva
trabalhava como cocheiro. Circular pelas ruas das freguesias centrais do Rio
era uma obrigação de sua labuta diária. Havia algumas
semanas devia reparar na mudança significativa pela qual as principais
ruas estavam passando. A Rua da Quitanda já era enfeitada pelos
moradores e comerciantes. Na Rua do Ouvidor as casas “afrancesadas”
penduravam bisnagas e seringas em suas portas. A comissão de festejos da
Rua Gonçalves Dias levantava um coreto para banda de música. Na
Casa do Vaz, loja de número 14 da Rua da
Constituição, moleques compravam cera para que suas
patroas fizessem os famigerados limões de cheiro. Os preparativos
anunciavam a iminência do Carnaval de 1883.
Ao retornar a sua moradia, na
Rua da Princesa, freguesia de Santana, Calixto planejava os passos da
próxima semana. Sua fantasia já estava pronta: maillot encarnado, com guizos nas mangas e nas
bainhas da calça, cauda de algodão (comprida o suficiente para
ser enrolada à cintura), máscara de nariz e boca protuberantes e
chifres tão característicos. Naquele ano sairia de diabinho pelas
ruas do Rio.
A alguns quarteirões
dali, na Rua da Prainha, mais um diabinho se preparava. Domingos Ramos,
carpinteiro, de 19 anos, vestiu a roupa vermelha e reparou que ficou bastante
justa em seu corpo, consequência do seu metro e 71 centímetros de
altura.
Saíram e infernizaram as
ruas da freguesia de Santana, como era de esperar por sua indumentária.
Pularam, gritaram, caluniaram e ofenderam os demais foliões com suas
pilhérias: “Oh! Oh! Você me conhece?”
Segundo a Gazeta de
Notícias de 8 de fevereiro de 1883,
quinta-feira, Calixto José da Silva e Domingos Ramos foram presos por
“andarem fazendo distúrbios pelas ruas do 2o
distrito de Santana”, juntamente com mais sete diabinhos: João
Paulo Fernandes, Luiz Ezequiel Pinheiro, Francisco Alves de Souza, José
Pereira Garcia, Sancho, escravo de João José de Azevedo Costa,
Orlando, escravo do doutor Hermogeneo Pereira da
Silva e Alfredo de Tal.
O carnaval não acabou
bem para eles: na terça-feira gorda, 6 de
fevereiro de1883, Calixto e Domingos entraram na Casa de Detenção
da Corte juntamente com outros 91 sujeitos trajando “roupa à
fantasia”. A ficha de Calixto José da Silva nos revela que ele
tinha 24 anos, 1,68m, era solteiro; natural de Campo Grande,
trabalhava como cocheiro e morava na rua da Princesa. Sua cor era fula.2
A ficha de Domingos Ramos traz
as seguintes informações: tinha 19 anos e 1,71m; era fluminense e
carpinteiro, e morava na rua da Prainha. Sua cor era preta.
João Paulo Fernandes aparece no livro da Casa de Detenção
como fluminense de 17 anos, pedreiro. Sua cor era parda.3
O grupo apresentado pelo jornal
contava ainda com dois escravos, Sancho e Orlando. Também fantasiados de
diabinho, eles participavam da festa lado a lado com homens livres.
Neste artigo nos aproximaremos
destas figuras tão presentes nos relatos desses antigos carnavais: os diabinhos.
Qual a imagem que intelectuais, jornalistas e autoridades
policiais faziam desses foliões endiabrados? E por que, apesar de
existirem tantas outras fantasias e de brancos e morenos também se fantasiarem
de diabos e diabinhos, essa fantasia foi tão acionada pelos
foliões negros e mestiços? Quais as experiências dos
diabinhos nas ruas do Rio às vésperas da abolição?
Essas questões pautam as páginas que se seguem e nos ajudaram a
entender as escolhas dessa população durante os embates em torno
dos novos significados da liberdade e da cidadania na iminência da
abolição.
Classes Perigosas e
Diabólicas
Segundo os dicionários
coevos e os relatos de memorialistas e folcloristas, a imagem do diabinho festivo
no Brasil era do jovem homem esperto, vivo, sabido, travesso, caluniador, autor
de obras terríveis e maravilhosas.4
Sua figura contribuiu para os rumos do carnaval carioca, posto que foi
utilizada tanto por autoridades e jornalistas – como inimigo e alvo a
perseguir – quanto por negros livres e escravos – como instrumento
para fazer valerem seus projetos e aspirações de
participação no carnaval e na sociedade que se construía.
Nas últimas
décadas do século XIX, por meio das páginas dos jornais,
podemos notar a multiplicação de registros de crimes envolvendo
mascarados e, mais do que isso, a associação com crimes de
práticas antes comuns e toleradas. Tal fato ocorre especialmente com a
pilhéria, a sátira, que passa a ser tratada como crime do porte
das agressões físicas (cunha, 2001, p.30-31).
Isso não significa,
contudo como chama atenção Maria Clementina Pereira Cunha (2001),
que nesse período essas práticas e crimes tenham tido aumento
significativo em sua incidência, em relação às
décadas anteriores. Segundo a autora,
Na verdade, a imprensa carioca
passava nesse período por uma transformação muito intensa
em direção à massificação e à busca
de um público leitor mais amplo e indiferenciado. Por isso, o interesse
em noticiar ocorrências capazes de atrair a curiosidade de muita gente
pode ter gerado o aumento desses registros nas colunas de jornais, ampliando o
seu significado e alcance em busca do interesse dos leitores.
Isso, consequentemente, acabou
reforçando uma imagem de perigo em torno de certas práticas e
fantasias carnavalescas. Com isso, “os mascarados que frequentavam as
ruas desde séculos atrás, associados às ocasiões
festivas, apareciam então colados à noção de crime
e de violência” (p.31). São os diabinhos o principal foco desse olhar temeroso na década final do regime
escravista.
A construção
dessa imagem de perigo em torno dos diabinhos, contudo, não é
despretensiosa e ocasional. Os relatos dos jornais que ajudam a engendrar esses
estereótipos, se não refletem apenas um possível aumento
do número de troças e diabruras, também não
são apenas reflexos de uma estratégia mercadológica para
aumentar o público consumidor. Essa estratégia está
diretamente ligada à desestruturação da escravidão,
à redefinição das relações sociais e aos
limites da participação e cidadania que vinham sendo veiculados
com o avançar dos debates abolicionistas.
Como bem mostra Célia
Marinho Azevedo (1987), a onda negra que se espalhava pelo país
gerava temor crescente no imaginário das elites. E, ao passo que os
movimentos pela abolição e transformação das formas
tradicionais de controle social se tornavam bandeiras cada vez mais populares,
essas elites buscavam caminhos para manter a ordem, nela incluídos
alguns representantes de segmentos dos movimentos abolicionistas (machado,
1994).
Na capital do Império do
Brasil, na década de 1880, a insistência de indivíduos
negros, livres ou escravos, em sair no carnaval num anonimato diabólico
– na feliz expressão de Maria Clementina Cunha – está
diretamente relacionada a práticas históricas
da população de cor5 na cidade de tentar ocultar sua
condição civil. Pois, “era no corpo do escravo que se
gravava sua condição – e a cor da pele funcionava como um
claro critério de diferenciação social –, razão
pela qual as formas de controle social passavam pelo reconhecimento pessoal e
pela exibição de características raciais” (cunha,
2001, p. 39-40).
Apesar de inúmeras
outras fantasias propiciarem a dissimulação da
condição social e racial do folião, pretendo demonstrar
que a fantasia de diabinho foi eleita por muitos jovens negros e
mestiços como caminho de atuação criativa na festa
carnavalesca. Trazia consigo possibilidades de afirmação social
perante seus pares, expressão de valores e autorrepresentação
perante a sociedade como um todo.
Portanto, ocultando a
identidade e, consequentemente, ameaçando a hierarquia social, o
diabinho foi um dos principais representante das “classes
perigosas”6 no carnaval do Rio de
Janeiro, sob a perspectiva das autoridades e de jornalistas.
Na capa da Revista Ilustrada
de 31 de janeiro de 1880 (Figura 1), o pequeno repórter que simbolizava
o periódico de Angelo Agostini tentava impedir
que um fantasiado representando o Carnaval de 1880 saísse às
ruas. À espreita, numa esquina escura, observam dois diabinhos e um
possível guarda urbano.
O diálogo entre esses
dois personagens é revelador. O pequeno repórter, experimentado
nas ruas do Rio, alerta o “inocente” Carnaval dos perigos de sair
daquela porta para fora. O pequenino o alerta que, uma vez nas ruas, ele poderá
ser assassinado. A surpresa do Carnaval de 1880 se reflete em sua pergunta:
“Mas então não há polícia?”. E a
resposta é desconcertante: “É justamente porque há
polícia e muita demais até”.
Os assassinos em potencial do
Carnaval de 1880 são dois diabinhos de rosto indistinguível na
escuridão, aliados a um indivíduo que se assemelha a um guarda
urbano. A reclamação de Angelo Agostini
ataca a autoridade policial duas vezes: primeiro ao destacar sua
incompetência em garantir a segurança da festa “civilizada”,
o direito à liberdade de sair às ruas para brincar o carnaval.7 Por outro lado, faz clara
associação entre os diabinhos e a violência e entre estes e
a força policial da Corte.
Essa imagem de perigo e
ameaça colada aos diabinhos aparece nos jornais aliada a uma postura de
desdém e desprezo. É recorrente a afirmativa cheia de
insatisfação dos jornalistas de que já não
há mais carnaval ou máscaras avulsos, sobram apenas os diabinhos
encarnados, um ou outro dominó e raros velhos de cabeças
grandes.
Os diabinhos estarão
constantemente ligados a adjetivos como sensaborões, tolos,
desenxabidos, etc., quando não estão atrelados a
referências de violência e desordens. Não parece haver
dúvida para esses jornalistas de que eram os diabinhos os principais
representantes da festa atrasada e perigosa, que só tinham um destino
óbvio: o xadrez.
Contaram-se por centenas os conhecidos diabinhos.
Andaram eles por toda parte,
isolados ou em grupos, cheios de convicção sincera de que eram
muitíssimo divertidos, e bendizendo, como excelentemente empregados, os
2$500 com que adquiriram tão elegante vestuário, com
máscara e tudo.
Foram eles, os diabinhos, os
principais fregueses das diligencias que circularam a galope esta heroica
cidade de S. Sebastião(gazeta de
notícias, 8.3.1886).
A ironia empregada na
notícia é evidente. Para o jornalista não eram nem
engraçados nem elegantes. Os dois mil e quinhentos réis, valor da
fantasia completa de diabinho, não chegava nem próximo do valor
de dominós de cetim, mefistófeles,
reis da França e Chicards, que podiam custar
dez vezes mais (25$000!). O que para os diabinhos seria divertido e belo
correspondia ao perigo e ao crime para o jornalista, o que os tornava os
“fregueses” preferenciais das diligências policiais dos dias
de carnaval.
A suposta vitória em
quantidade dos dominós sobre os diabinhos no Carnaval de 1886 é
descrita com esperança e ceticismo nos jornais.
Uma infinidade de
máscaras a pé percorreram ontem as ruas. E há um fato que
precisa ser considerado: os dominós suplantaram os diabinhos. Querem
alguns que isto seja fenômeno progressista, tão progressista como
a derrota dos limões de cheiro pelas hostes compactas das bisnagas
(gazeta de notícias, 10.3.1886).
Derrotar os diabinhos
representava o progresso, já que tais fantasias eram atreladas ao crime
e a formas arcaicas de diversão, como os tão combatidos
limões de cheiro. A esperança na derrota dos diabinhos, logo
quando da radicalização do processo abolicionista, esbarra na
realidade. Os jornalistas fazem essa estimativa durante o dia, e muito
provavelmente do alto da sacada da redação do seu jornal, nesse
caso, na Rua do Ouvidor. Contudo, apesar de a Rua do Ouvidor ser o centro mais
atraente dessa festa, os arrabaldes também fervilhavam nos dias de Momo,
e a farra varava a noite, muitas vezes esquentando apenas depois de as
redações dos jornais fecharem suas portas.
Os princezes
e diabinhos não deixaram de comparecer, não só nas ruas da
cidade, como também nos arrabaldes atroando os ouvidos do burguês
pacato e sério com os seus oh! ohs!
em cabriolas endiabradas e o: - Você me conhece
desenxabido e costumeiro (gazeta de notícias, 8.3.1886).
Duas crônicas publicadas
no mesmo dia, 21 de fevereiro de 1887, uma na Gazeta de Notícias
e outra na Gazeta da Tarde, elegeram como personagem principal o
diabinho. Ambas, com grandes doses de ironia, versam sobre um dia de carnaval
na vida desse “demônio”. José
Telha, pseudônimo de Ferreira de Araújo (fundador da Gazeta de
Notícias), em sua coluna “Macaquinhos no
Sótão”, diz ter visto no domingo às seis horas da
manhã, passar pela sua janela um diabinho encarnado, “de sapatos
enfeitados de guizos, porta-voz, e a máscara deitada na cabeça a
olhar para quem está à janela, enquanto o mascarado olha para
quem lhe vai adiante.” Seu texto levanta pistas tanto da forma de
atuação desse fantasiado na festa quanto das
projeções do jornalista sobre seu destino. Prossegue José
Telha:
Deve ter acordado cedo, se
é que dormiu, se é que não andou
toda a noite a bailar pela cabeça a ideia do figurão, que ia fazer
no dia seguinte, e do muito que ia divertir-se, a palmilhar esta cidade
inteira, ao sol e à chuva – às chuvas de toda ordem
–, gritando, pulando, dançando, ora a rufar num tambor, ora a
empunhar um archote, a envolver-se aqui num rolo, a incorporar-se ali num
grupo, arriscando a encontrar uma alma caridosa, que o convide a matar o bicho,
ou algum capoeira que lhe ponha as tripas ao sol(...)
Alguns dormem nas
estações da polícia, outros vão dormir à
Misericórdia, e já um amanheceu na mesa de pedra do necrotério.
As opções
elencadas pelo colunista não são muito otimistas: tripas ao sol
por um capoeira; dormir na estação
policial; ir ao hospital da Misericórdia ferido; ou mesmo amanhecer no
necrotério da cidade. O destino do diabinho estaria inevitavelmente
atrelado à violência, a crimes e à morte. Mas também
podemos reconhecer no texto elementos da atuação desse mascarado.
“Palmilhava” a cidade inteira, movendo-se com desenvoltura entre
grupos variados (com archote, tambores, envolvidos em tumultos). Apresentava
dessa forma um caráter de liberdade de trânsito em diferentes
espaços e reforçava sua individualidade.
O texto da Gazeta da Tarde,
se não fala em amanhecer no necrotério, apresenta um diabinho
tolo e insípido, que também está envolvido em desordem e
violências. O diabinho seria o rei dos “princezes”,
e no carnaval sua liberdade seria incontestável, e estaria protegido
até pela polícia, incapaz de impedi-lo:“Nestes três dias a polícia
não me mandará arrancar o carão, ela é minha
amante, nós somos camaradas, o chefe que me serve terá
carícias para o meu esperneamento, sorrisos
para as minhas vergonhas.”
Ele é o
“tolo” que faz os demais rirem, anda alienado atrás de
qualquer turba, barulho, música que aparecer. Mas também é
aquele que vocifera até enrouquecer, explicitando que a fala era
tão importante quanto a dança e as
piruetas.
Eu sou assim, concentro-me numa
frialidade conveniente; isolo-me numa neutralidade
que faz bem à barriga; atiro-me para onde me chama a turba dos meus
iguais e ali, loucamente sem outra razão a não ser a tolice
característica dos diabinhos, vocifero e enrouqueço a alinhavar
nas coisas de que muitos riem-se, sem que as entenda,
e a que a maior parte despreza com o erguer de ombro dos honestos.
Mas dessa inocente futilidade,
o diabinho encerra sua “gazeta” alardeando sua força
assustadora: o anonimato e a navalha.
Não penseis,
porém, que tão cedo deixei de ser o patrão dos princezes. Correrei com eles por praças e becos,
navalhando com a mentira, acrobateando de um lado
para outro, já no meio de cadáveres políticos que eu
penso, vive já entre os secretas meus amigos,
ora com carão dos três dias de Momo, ora com a caraça que
me é própria, sempre todos me ignorando e rejeitando.
Tanto com o carão dos
dias de Momo quanto com a “caraça que lhe é
própria” nos dias restantes do ano, o diabinho é rejeitado
e ignorado, até o momento em que surge,
violento e “incivilizado”. O diabinho, segundo essa fonte, é
o desqualificado dessa sociedade não apenas no carnaval, mas
também nos dias restante do ano.
Essas duas crônicas abrem
a possibilidade de interpretação mais próxima da imagem
desses foliões para jornalistas representantes das folhas diárias
mais importantes do Rio de Janeiro: seriam fantasias capazes de mascarar a
violência desses sujeitos; representam o perigo para o
“burguês pacato” que pretende sair às ruas e apreciar
o carnaval.
Entretanto, ambos os textos
também favorecem nossa aproximação com as práticas
desses sujeitos sociais que escolhiam fantasiar-se de diabinho: em geral agiam
individualmente na festa, circulando por diversos espaços e grupos
carnavalescos, desfilando com archotes, tocando tambores, participando de
grupos mais organizados; o canto, a pilhéria, a dança e as
piruetas fazem parte de suas características, o que é reforçado
por suas máscaras com grandes línguas e por sua fama de
dançarino e capoeira (Figura 2).
Mas nem só de
brincadeiras pacíficas se constitui a prática dos diabinhos: a
violência e a virilidade estão recorrentemente presentes nas
fontes que os envolvem. São homens jovens, muitos
capoeiras, que têm como elemento formador de sua identidade a
capacidade e habilidades nos chutes, cabeçadas, navalhadas e no uso de
cacetes (tanto como arma quanto como adereço festivo).
A capoeiragem
aparece como importante elemento para entendermos mais profundamente a
ação desses foliões e mesmo sua imagem frente a
autoridades e jornalistas do período.
Diabos, capoeiras
fantasiados?
Quando o estadunidense C.
Andrews esteve no Brasil, ele assistiu a vários carnavais. Sua
percepção foi que na década de 1880 a festa perdia a
popularidade, pois as classes mais altas do Rio permaneciam em casa nos
três dias de Momo. Provavelmente seu círculo social no Rio lhe deu
essa impressão. Contudo, ele não deixou de notar um fato, que lhe
chamou a atenção.
Segundo Andrews (1887), o
evento que primeiro desperta as pessoas para a
proximidade do “festival” é o aparecimento de jovens
vestindo roupas vermelhas apertadas, chifres e longos rabos. São
chamados de diabos e frequentemente usam máscaras. Vindo de um
país em que as relações raciais acontecem de forma muito
diversa da brasileira, o americano não relega às entrelinhas a
cor desses indivíduos: esses jovens seriam especialmente negros e
mulatos (p. 41). Não estava acostumado com a política de
dissimulação racial brasileira...
A cor dos indivíduos nas
páginas dos jornais aparece apenas em ocasiões
específicas. Quando tratam genericamente dos préstitos das
grandes sociedades ou escrevem editais atacando o entrudo, as cores dos
indivíduos não aparecem com frequência. Nessa
situação as abordagens são muito mais abstratas e versam
sobre o Zé-Povinho “sem educação” que
“ameaça” as práticas civilizadas dos
préstitos, dos bons rapazes e famílias respeitáveis.
Quando, entretanto, passamos
às páginas de notícias policiais, o quadro é outro.
As poucas referências à cor dos
indivíduos aparece aí. Podemos notar que a regra é
o silenciamento da cor, o que não quer dizer
que nessa sociedade inexista o preconceito racial. O que importa ressaltar,
contudo, é quando a cor dos sujeitos é explicitada: nos momentos
de conflitos, crimes e atos de violência, o que é bastante
relevante para entendermos as relações sociais e raciais no
período.
Apesar da crescente racialização da escravidão no
século XIX, ela não serviu no Brasil para justificar a
condição de escravo abertamente. Segundo Hebe Mattos (2004), a
ideia de raça era por demais explosiva no Brasil para
servir a tal fim, principalmente em função do grande
número de negros livres e mestiços. Legalmente a
justificativa da escravidão se fez através do arcabouço
liberal, pelo direito à propriedade.
E a própria
população livre de cor reivindicava a igualdade com os demais
cidadãos livres, silenciando a própria cor em muitos momentos,
pois esta permanecia como marca de discriminação mesmo
após a conquista da liberdade. “Uma reivindicação de
silenciamento que se fazia, entretanto, de forma
politizada e muitas vezes ameaçadora” (mattos, 2004, p. 22).
O temor de racializar
a inferioridade ou a violência parece ter feito com que os jornalistas
evitassem ao máximo colorir suas notícias, fazendo apenas em
casos isolados. Mas nem por isso devemos deixar de perceber que os termos preto, pardo, negro, crioulo
e mulato aparecem em esmagadora maioria em relatos de violência e
crimes, sem que nenhuma vez apareça outras cores, como branca, por
exemplo.
A constância desses
termos e sua relação ou não com crimes e violência
nos jornais também deve ser analisada. No Jornal
do Commercio e na Gazeta de Notícias
encontrei 28 vezes a ocorrência da cor (sem contar anúncios de
escravos) em cada um. No Jornal do Commercio,
dos 28 registros, 23 eram pretos (seis escravos), dois pardos (um escravo), um
mulato e dois crioulos. Todos estavam envolvidos em algum tipo de
ação violenta.
Na Gazeta de
Notícias, nos 28 registros, há 13 pretos (dois escravos e um
liberto), seis pardos (dois escravos), sete crioulos (um escravo), uma mulata e
um negro. Além de muito maior equilíbrio na
utilização dos termos, dez deles tratavam de representações
de pessoas de cor em carros de ideias de Fenianos e Democráticos,
fantasias de escravos e artigos sobre formas de brincadeira carnavalescas (como
o artigo de Mello Moraes filho sobre os cucumbis).
O cenário apresentado
pela Gazeta da Tarde é bem diferente. Esse jornal,
órgão principal da imprensa ligada aos ideais abolicionistas,
só utilizou referências à cor em seis ocasiões, em
nenhuma delas mencionando escravos, em duas, pretos, em uma, pardo e em três,
negros. Apenas uma tratava de agressão física, outra era sobre um
preto que se dizia livre e que foi encontrado ferido, e as demais eram sobre
carros de ideias das grandes sociedades carnavalescas.
As diferenças entre os
três jornais é significativa. O Jornal do Commercio,
o mais conservador dos três, muito mais alinhado a posições
escravistas, possui muito menos nuanças ao usar os termos preto, pardo e
crioulo, e só os utiliza quando trata de crimes. A Gazeta de
Notícias, primeiro grande jornal da Corte a defender o
abolicionismo, mas sem posturas radicais, já apresenta mais sutileza e
variações na utilização desses termos.
Também os utiliza em situações diversificadas e não
apenas de violência, sobretudo quando se refere a ações
abolicionistas das sociedades carnavalescas. A posição da Gazeta
da Tarde é ainda mais interessante. Esse jornal, por sua
pública filiação abolicionista, evita ao máximo
utilizar expressões racializadas. Utiliza um
termo que não está presente no vocabulário dos demais
(aparecendo na Gazeta de Notícias apenas no texto de Mello
Moraes): negro. Usa a palavra negro para se
referir àqueles sujeitos de cor que participavam dos carros de ideias
das grandes sociedades carnavalescas, geralmente ganhando cartas de alforria.
O diabo é a fantasia
carnavalesca que mais aparece adjetivada com os termos pardo, crioulo, preto e
escravo nos jornais analisados. Nas notícias referentes a conflitos e
crimes, a única fantasia que encontrei explicitada foi a de diabinho, ou
então o termo genérico “mascarado”, ou a
ausência de fantasia. As principais acusações são de
capoeiragem, desordem, vagabundagem e ofensas
físicas.
Esses diabos, para tristeza dos
jornalistas, eram a manifestação carnavalesca mais popular nas
ruas cariocas, sobretudo entre os escravos, libertos e negros livres pobres.
Nas palavras lamuriosas da Gazeta de Notícias do domingo de
carnaval de 1883, “o Zé Povinho quase só tem uma
manifestação no carnaval: o diabinho encarnado”(gazeta
de notícias, 4.2.1883).
As “ocorrências da
rua” (seção da Gazeta de Notícias) publicadas
na Quarta-feira de Cinzas do Carnaval de 1883 oferecem boa dimensão da
imagem dos jornalistas sobre os diabinhos, mas também abrem
várias outras questões: “Os diabos, isto é os
capoeiras por essa forma fantasiados, continuaram
anteontem a praticar diabruras”. O jornalista lança
mão, já na abertura de seu texto, de uma frase que sintetiza a
imagem que pretende reforçar sobre os que se fantasiam de diabo durante
o carnaval carioca. Segundo ele, na festa os diabos são representados
majoritariamente por capoeiras. As diabruras cometidas por esses foliões
são entendidas como inerentes e naturalizadas, já que não
se espera de capoeiras outra atitude senão a violência.
Os diabos foram considerados a
expressão máxima da ação dos
capoeiras na festa. Por isso é importante entendermos um pouco
melhor quem eram esses capoeiras e quais suas
práticas e motivações em finais do Império do
Brasil.8
Segundo Carlos Eugênio
Líbano Soares (2002), as festas representaram um dos momentos de maior
atuação dos capoeiras no Rio de Janeiro.
Desde a primeira metade do século XIX, os dias festivos do
calendário religioso, as festas cívicas nacionais eram marcadas
por grande atividade das maltas de capoeiras, sobretudo, nas
celebrações realizadas nos meses que marcam a virada do ano:
dezembro, janeiro e fevereiro – como o Natal, o Dia de Reis e o carnaval.
Era um período – como ainda hoje o é – de temperatura
elevada, com dias mais longos, “que incentivava os moradores brancos e
portugueses a se refugiar em casa, em longas sestas” (p. 298-299), enquanto
a população de cor ocupava as ruas.
A capoeira teve papel
fundamental na atuação da população de cor na
cidade do Rio e consequentemente dos padrões de repressão e das
imagens incutidas e propaladas por autoridades, jornalistas, literatos,
cronistas ao longo do século XIX. Segundo Soares (1993), 91% dos
indivíduos presos por capoeira entre 1808 e 1850 eram escravos, e 71%
eram africanos (84% deles, da África central). A presença de
crioulos já nesse período, afirma Soares (p.71), reforça a
tese de que a capoeira é fruto da combinação de diversas
tradições africanas com invenções culturais
crioulas.
Mais do que um jogo de combate,
a prática da capoeira tornou-se elemento importante na
formação de identidades e no estreitamento de laços
étnicos da população escrava, principalmente na primeira
metade do século XIX. Também exerceu tal papel, com crescente
conotação política na segunda metade do século,
quando alargou sua composição social, atingindo um número
maior de negros livres, e também abrangendo indivíduos de outros
tons de pele e outras nacionalidades, diferentes de crioulos e africanos
(soares, 1993).
Entretanto, sustentar tal
afirmativa não deve nos fazer perder de vista a capoeira como importante
espaço de sociabilidade para pretos e pardos, fossem escravos ou livres,
malungos ou escravos de viajantes, como observa Soares. E essa
característica se acentuou na segunda metade do XIX (p. 47), quando as
maltas de capoeira atingiram sua força máxima no cenário
carioca, politizando-se de forma até então inédita.
Esse processo se dá ao
mesmo tempo em que o carnaval se torna a principal festa carioca, suplantando
mesmo as festas religiosas. Era momento propício para esconder-se sob diabos em meio à multidão e
“ocultar-se dos agentes da ordem, realizar com maior segurança as
vinganças pessoais (...) e exprimir rivalidades” (soares, 2002, p.
303).
Não é por acaso a
recorrência de notícias sobre a prisão de capoeiras no
carnaval: os números beiram a centena ano a ano. Quando os jornais
explicitam o tipo de fantasia, a que aparece associada aos
capoeiras é a de diabinho. “Punhalada – um grupo de
capoeiras disfarçados de diabinhos, agrediu anteontem no beco das Cancelas o preto Justino, escravo do Comendador
Luiz José da Silva Guimarães, o qual foi gravemente ferido por um
deles com uma punhalada no peito” (jornal do commercio,
7.2.1883).
Tal característica das
páginas dos jornais nos dias de carnaval reforça a tentativa de
associar a imagem dos capoeiras com o diabo e, mais do
que isso, atrelar a fantasia de diabinho à prática da capoeiragem, da violência, do crime e da desordem.
Liberdade Diabólica
A figura do diabo nas ruas da
Corte ameaçava não apenas o carnaval civilizado sonhado por
muitos jornalistas, mas também projetos de nação e
cidadania que estavam em disputa. A associação dos diabos com os capoeiras, violência, crimes e perigo, e com sua
aproximação com sujeitos reconhecidos como crioulos, pardos e
pretos traz consigo o temor das elites políticas e intelectuais em
relação ao rumo da nação após a
abolição que se aproximava: o diabinho representado no
folião destemido e abusado que, com humor e doses de violência,
expressava seu desejo de participar da nação ativamente,
influenciando em seus rumos não apenas como plateia do carnaval
civilizado e ordenado representado pelas grandes sociedades carnavalescas.
Considero, portanto, o diabo
personagem que – na prática e simbolicamente –
potencializava o temor dos senhores “de ver riscada da gramática
das relações sociais, junto com a palavra escravo, a
condição social dos homens brancos, construídas por
séculos com tanto esmero”, parafraseando Wlamyra
Albuquerque (2009).
Ela é a única
fantasia explicitamente nominada nos jornais quando relatam um crime. Grupos
inteiros agindo pelas ruas, desordens e confusões que na perspectiva dos
jornalistas ameaçavam seriamente a implementação
de uma festa civilizada, digna de uma nação civilizada.
Conforme avançam os
anos, como produto da constante associação de mascarados e
crimes, perigo e violência, mais medidas repressivas contra o entrudo e
as práticas do carnaval das ruas são exigidas e anunciadas pelos
jornais. Em 1887, a Gazeta de Notícias afirma que o número
de diabinhos no carnaval é menor do que nos anos anteriores. Atribui tal
fato à proibição de diabinhos maiores de 15 anos pelo
chefe de polícia e o recolhimento de mais de 400 pessoas ao xadrez,
“por conveniências de saúde” e para
“livrá-las de constipações”. “Pelo que a
polícia lavra mais um tanto”, conclui a Gazeta de
Notícias (22.2.1887).
Representantes das vertentes
abolicionistas presentes nos jornais e no parlamento não viam
contradição em defender o fim da escravidão e pregar o
combate às práticas culturais dessa mesma população
e de seus descendentes.
Como nos mostra Ângelo
Agostini (Figura 3) muitas vezes o negro nem precisava de máscara para
ser associado ao diabo nos dias do carnaval. À esquerda um velho
representando o antigo carnaval. Do lado direito, um jovem mascarado dá
vida ao Carnaval de 1886. Ambos seguram um arco com a data de abertura do
reinado de Momo, 7 de março (o mequetrefe, n.
401, ano 12, 1886).
Abruptamente, rompe o pano um
negro fantasiado que enverga chifres, não de uma máscara
vermelha, mas sim feitos com seus próprios cabelos carapinhados.
Simbolicamente, Agostini nos revela, primeiramente, a imagem que muitos
companheiros das letras e também autoridades faziam do carnaval das
ruas: um negro com chifres “naturais”, com olhar vidrado e
diabólico.
Segundo Lilia Schwarcz (1987), é com o clímax da
abolição da escravidão que o problema da raça ganha
espaço entre as discussões da elite brasileira. “Assim, com
o advento da igualdade formal, com a passagem do escravo a cidadão,
parecem surgir novas concepções e estereótipos” (p.
36-37). A autora afirma que o auge do pensamento racial no Brasil ocorreria
entre as décadas de 1890 e 1920, período em que a
noção de superioridade branca seria legitimada cientificamente.
A charge de 1886 reforça
imagens estereotipadas e preconceituosas que ganhavam força no contexto
da abolição da escravidão entre intelectuais e pensadores
brasileiros. Entretanto, não devemos afirmar que tais
concepções fossem hegemônicas ou que não houvesse
espaço para outras análises da ação da
população negra.
Podemos (e devemos)
também analisar a imagem por outro viés: o folião negro
participando ativamente da passagem do antigo para o novo carnaval (civilizado
e moderno). Percebemos que a festa era disputada por inúmeros
grupos sociais e que a população de cor ansiava por
espaços de autonomia e participação nesse evento que
anualmente era alardeado nos mais variados meios como o tempo da liberdade. Sua
atuação na festa lhes parecia elemento central na
experiência de liberdade que anualmente ganhava força não
apenas para os escravizados, mas também para a população
negra livre.
Ora, se o carnaval foi
alçado à condição de festa civilizatória por
membros das elites intelectuais e políticas do Brasil, também foi
eleito como espaço de dramatização de desejos de participação
na sociedade que se pretendia construir pela população negra. Foi
evento que, ao mesmo tempo em que servia para reforçar
tradições e práticas culturais da população
negra, servia como espaço de luta e transformação das
relações sociais.
Muitas práticas sociais
de matriz africana encontraram espaço de manutenção na
festa de Momo, pois até as autoridades consideravam esses dias mais
permissivos. A transposição de folias de reis, ranchos, cucumbis, e mesmo de diabos e outras fantasias para os dias
de carnaval não ocorreu sem conflitos e rupturas, muito pelo
contrário: para manter suas tradições culturais foi
preciso transformá-las de acordo com as novas tensões e
discussões presentes na década de 1880. Interpretaram com suas concepções
de liberdade o carnaval e através dele politizaram sua
experiência.
Ser um diabinho negro que sobe
em um carro de ideias a favor do abolicionismo e dança diante da
multidão, composta pelas mais ilustres famílias da Rua do
Ouvidor, pelos jornalistas dos periódicos mais importantes do Império,
pelas autoridades policiais, além de todos os seus pares do
“Zé-Povinho”, ganha novos sentidos − diretamente
relacionados ao caráter do processo abolicionista da Corte, com o
avanço da década de 1880.
Esses novos sentidos podem ser
medidos através de dois elementos. Primeiro, pela constante
perseguição aos máscaras,
sobretudo aos diabos e sua associação a uma imagem de crime e
perigo, presentes nos jornais e na crescente repressão policial aos
pretos, pardos e fulas. Em segundo lugar, temos a crescente ousadia desses
fantasiados, principalmente aqueles membros de maltas de capoeira que
atuarão no carnaval com grande afinco. Conforme mostrou Soares (1993),
confrontos entre “Nagôas e
Guaiamus” tornar-se-ão frequentes nos anos finais da
escravidão, assim como sua atuação, mais regular nos
conflitos entre abolicionistas e defensores do escravismo.
O crescimento do sentimento
abolicionista é sensível nos dias do carnaval, em que os carros
das grandes sociedades carnavalescas que representavam a Liberdade eram sempre os
mais aplaudidos dos préstitos; em que o povo delirava ao ver ex-escravos sendo alforriados. Os próprios ex-escravos tomam parte na propagação desse
movimento. No dia 18 de fevereiro de 1888, a Revista Ilustrada narra da
seguinte forma os préstitos carnavalescos das grandes sociedades:
Congresso dos Fenianos (...)
logo após vinha um carro simbolizando a questão abolicionista, e
que o público recebia com palmas e bravos, testemunhando, assim, a sua
simpatia pela grandiosa ideia ali exibida. Representava ele um grupo de
escravos, maltratados pelo senhor, que, julgando-se seguro, entregava-se a
todas as sanhas. Quando, porém, menos pensava surgia a figura de um
grande parlamentar abolicionista e aplicava-lhe um ruidoso pontapé, no
lugar em que as costas... mudam de nome.
O povo ria e aplaudia a mais
não poder!
Acompanhavam este carro 17
pretos montados em burricos e fazendo discursos às massas, sobre a
escravidão e almejada liberdade (...)
Fechava o grandioso
préstito dos Democráticos, uma apologia à
abolição, que há de trazer o progresso e a grandeza a este
país desorganizado. Os bravos e as palmas com que foi acolhida esta
belíssima apoteose, não tinham conta. Pode-se dizer que ela
atravessava a cidade, em meio de uma constante ovação (...)
Os projetos abolicionistas
paternalistas e reformistas das grandes sociedades entravam em contato com
outras formas de conceber a liberdade. Nas ruas a “pureza” das
ideias das elites políticas e intelectuais era perdida, pois escravos,
libertos e negros livres pobres tentavam fazer valer seu direito de festejar e
celebrar a liberdade de sua maneira. Esses confrontos geraram inúmeros
desconfortos para intelectuais e políticos favoráveis à
abolição, mas temerosos da nova condição de
liberdade desses sujeitos.
Um dos caminhos mais utilizados
pela população de cor da cidade do Rio de Janeiro para expressar
suas críticas e mostrar sua concepção de liberdade e
diversão foi o carnaval, centrada na autonomia para ocupar
espaços da festa não apenas como plateia de desfiles, mas como ator
principal nesse espetáculo. Ou seja, colocar em prática sua
cidadania. Podemos entender essa nova postura como expressão de uma
cultura política que se construiu e fortaleceu nos anos finais da
escravidão e tinha como elemento central a noção de liberdade.
Essa noção dialogou constantemente com as redes sociais mais
amplas de defesa da abolição, cada vez mais populares e
difundidas na segunda metade da década de 1880.
O carnaval representou evento
anual que permitia a essa população experimentar o avanço
das ideias abolicionistas e de suas aspirações individuais
à participação. Os diabinhos estão no centro desse
movimento, pois pautaram formas de agir e também justificaram caminhos
de repressão. Eles nos ajudam a entender, sobretudo, a dimensão
individual dessa possibilidade.
Quando diabinhos tomam de
assalto as ruas da capital imperial, através de
humor, dança, doses de violência e ousadia, associados a capoeiras
e muitas vezes caracterizados como jovens negros, pardos e crioulos, sua
ação ganha novos sentidos na década de 1880. Demonstram, a
partir de seus pontos de vista, que não vão abrir mão de
sua autonomia festiva e liberdade carnavalesca, apesar da constante
perseguição e repressão a suas práticas. Esse
exemplo de ampliação da ousadia individual da
população de cor esteve imbricado aos avanços
abolicionistas à medida que tal discussão ganhava as ruas.
Diabinhos, mesmo que de forma não explícita ou consciente,
experimentavam os limites da tão aventada liberdade, seja a liberdade
carnavalesca, defendida pelos jornalistas e préstitos das grandes
sociedades, ou a Liberdade (com letra maiúscula), único caminho
para a modernização do Brasil, como defendiam os principais
grupos abolicionistas.
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__________. “A
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capoeiras no Rio de Janeiro, 1850-1890. Dissertação de
mestrado – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Departamento de História. Campinas, 1993.
NOTAS
1 Este artigo é uma
adaptação do capítulo “Diabos Encarnados”,
parte de minha dissertação de mestrado desenvolvida no
âmbito do Programa de Pós-Graduação em
História Social da Universidade Federal Fluminense, com bolsa concedida
pelo CNPq, e defendida em 2011, cujo título é Carnavais da
abolição: diabos e cucumbis no Rio de
Janeiro (1879-1888). Estas conclusões foram apresentadas
anteriormente no I Seminário Caminhos da Abolição e do
pós-Abolição (PPGH/UFF), 2010.
2 A palavra fula nesse contexto aparece
nos jornais caracterizando também a população negra.
Encontramos a utilização da expressão “preto
fula”, “preta fula” nos jornais coevos. Essa palavra tem
origem na costa ocidental da África. Segundo Alberto da Costa e Silva,
os fula (ou fulani) eram um
povo da região do rio Senegal e da bacia do rio Gâmbia, atualmente
a região composta por países como Senegal, Gâmbia e
Guiné. Essa parte da costa ocidental da África foi uma das
primeiras a estabelecer comércio de ouro e escravos com os ávidos
portugueses, ainda no século XV. Não pretendo, obviamente, afirmar
que os sentidos da palavra fula se mantiveram os mesmos desde a chegada das
caravelas portuguesas na Senegâmbia até
as prisões de carnavalescos na década de 1880 no Rio de Janeiro.
Contudo, é muito importante ressaltarmos que as palavras também
têm história, logo, não é por acaso a
utilização do termo fula para designar indivíduos
não brancos três séculos depois dos primeiros escravizados
desembarcarem em terras brasileiras.
3 Não encontrei os registros de
Luiz Ezequiel Pinheiro, Francisco Alves de Souza, José Pereira Garcia e
Alfredo de Tal nos Livros de Matrícula da Casa de
Detenção.
4 Ver Silva, 1922; Andrade, 1989;
Cascudo, 1972; Coaracy, 1965; Edmundo, 1938; Moraes Filho, 1979.
5 A expressão
“população de cor” era usada no período
estudado para designar pretos, pardos e fulas, e muitas vezes englobava
também seus descendentes.
6 A noção de classes
perigosas ganha espaço entre autoridades e membros das elites cariocas
no último quartel do século XIX, respondendo às
necessidades de controle e manutenção da ordem em meio à
crise do sistema escravista. Segundo Chalhoub (1996,
p. 21-24), a associação das classes pobres com a
noção de classes perigosas e a consequente imagem de perigo e
violência dialogavam com os debates sobre a questão da cidadania,
do trabalho, da atuação do Estado e da polícia em
relação à população negra que emergia da
luta pela liberdade. O contexto histórico em que essas
formulações foram produzidas “fez com que, desde o
início, os negros se tornassem os suspeitos preferenciais” e
representantes dessas “classes perigosas” (chalhoub,
1996, p. 21-24).
7 Ângelo Agostini e sua revista
estavam diretamente alinhados ao modelo de carnaval e mesmo de abolicionismo
pregado pelas grandes sociedades.
8 Não pretendo discutir aqui as
possíveis origens da capoeira e a sua
“invenção” ainda no continente africano. Mas é
importante ressaltar que entendo a capoeira fazendo parte de um contexto
atlântico, não sendo nem apenas brasileira nem africana: ela
é um desenvolvimento crioulo, um produto do processo de crioulização das culturas
afro-americanas. Nas palavras de Matthias
Assunção (2005, p.31), “Crioulização
– no sentido amplo que estou usando aqui – implica tanto processos
de fusão quanto de segmentação, bem como a
realocação de determinadas práticas em novos contextos e
manifestações mais abrangentes. Essa discussão nos
ajudará a acessar as características crioulas da capoeira e
considerar o que manteve relações de complementariedade com
outras práticas culturais” (tradução minha).
Eric Brasil Nepomuceno é mestre e doutorando do PPGH/UFF. Sua
dissertação de mestrado, intitulada Carnavais da
abolição: diabos e cucumbis no Rio de
Janeiro (1879-1888), conquistou o primeiro lugar
no Concurso de Monografias Sílvio Romero 2011 promovido pelo Centro
Nacional de Folclore e Cultura Popular/Iphan.
Recebido em: 19/06/2012
Aceito em: 18/07/2012
NEPOMUCENO, Eric Brasil. Diabos
encarnados: carnaval e liberdade nas ruas do Rio de Janeiro (1879-1888). Textos
escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.10, n.2, p. 7-28,
nov. 2013.
Figura 1: À direita a capa da Revista Ilustrada.
À esquerda, em detalhe, os dois diabinhos e o possível guarda
urbano – Revista Ilustrada, 31.1.1880
Figura 2: Capa de O Malho – Diabinho. A
língua proeminente e seus cabelos crespos em formas pontiagudas
são tão importantes na fantasia quanto a
cor vermelha e o tridente. A legenda também é reveladora: “Ho...ho...ho...!
O rei da terra nestes dias, sou eu! Ho...ho...ho!” O Malho, 4.3.1905
Figura 3: Ângelo
Agostini. O Mequetrefe, n. 401, ano 12, 1886