Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 10. n. 1, mai. 2013

CULTURAS POPULARES E GLOBALIZAÇÃO: AS CULTURAS DO POPULAR E SUAS INTERFACES

Selma Baptista (UFPR)

Este texto pretende contribuir com o campo das discussões sobre as relações entre culturas populares tradicionais e suas interfaces com as manifestações de arte urbana, metropolitana, enfim, dentro de uma cultura popular midiatizada, globalizada, internacionalizada. A partir da ideia de um sistema de relações comunicativas que incluiria rito, linguagem, mito, trabalho, reciprocidade e hierarquia, o texto investe no esclarecimento dessas relações, esclarecendo alguns termos usados nessas áreas, pontuando teorias e metodologias, e mostrando alguns exemplos dessas práticas.

CULTURA POPULAR TRADICIONAL; INTERFACES; FANDANGO PARANAENSE.

 

POPULAR CULTURE AND GLOBALIZATION: THE CULTURES OF THE POPULAR AND THEIR INTERFACES

Selma Baptista (UFPR)

This paper aims to contribute to the field of discussions of the relationship between traditional popular cultures and their interfaces with the manifestations of urban, metropolitan manifestations of art, in other words, into a popular culture which is mediated, globalized, internationalized. From the standpoint of a broad system of communicative relationships including rite, language, myth, work, reciprocity and hierarchy, the text invests in clarifying these relationships and some terms used in these areas, in the light of new theories and methodologies, and showing some examples of these practices.

POPULAR CULTURE; MIDIATIZATION; FANDANGO.

 

Introdução: definindo campos

Historicamente, e por um longo tempo, arte e artesanato constituíram atividade única, único fazer (chaui, 2006). Ars, para os romanos, ou téchné, para os gregos, era um saber prático que envolvia habilidade e agilidade para vencer dificuldade ou obstáculo colocado pela natureza e pela sociedade. Dessa maneira, o artesão e o artista não se definiam por oposição, mas, ao contrário, tinham o mesmo objetivo: produzir artefatos, vencer desafios, articulando sozinhos, cada um com seu talento e especialidade, várias tarefas mediadas por regras e um conjunto amplo e dinâmico de conhecimentos adquiridos pela experiência e pela tradição.

Nessas atividades, tanto o sensível quanto o lógico/racional, em termos de ajuste entre meios e fins, o próprio ato de conhecer as diferenças e semelhanças entre recursos naturais, materiais e procedimentos, também se constituíam num todo, assim definido pela prática, pela experiência e pela tradição passada de geração a geração.

Platão, por exemplo, não reconhecia qualquer diferença entre arte e ciência, e no seu tempo falava-se em arte médica, arte da navegação, arte política, arte militar, arte retórica, arte poética, arte dialética, todas elas atividades humanas pensadas como um todo uniforme porque eram todas igualmente regradas e ordenadas (chaui, 2006, p. 275).

Aristóteles, por sua vez, delineou a primeira distinção entre a ciência e o saber prático: a primeira estaria referida ao que seria necessário, ou seja, um saber teórico determinado por sua própria maneira de ser, uma forma de pensamento que se desenvolveria a partir de suas próprias leis e não dependeria de nenhuma outra ação fora dela mesma, além, é claro, de um pensador, por intermédio do qual esses pensamentos seriam pensados. Por sua vez o saber prático estaria referido ao contingente ou possível, uma vez que seria decorrente da ação e decisão humanas, frente aos desafios colocados pela vida prática.

A seguir apareceu uma segunda distinção, referida à própria dimensão da prática: a diferença entre ação e fabricação: no primeiro caso (práxis), entre o ato realizado e a finalidade buscada não haveria distinção. Não se poderia separar o agente, do ato e da finalidade de uma ação. Por exemplo: um homem agiria eticamente através de atos éticos em função dos seus objetivos éticos. Já a fabricação (poiesis), era considerada ação na qual o artista ou o artesão realizariam atividades cujos objetivos e procedimentos não coincidiriam necessariamente com a obra: o pintor, as tintas e o quadro, por exemplo, não possuem a mesma natureza. Não pertencendo todos ao mesmo domínio de existência, posto que o pintor é um ser humano, as tintas, materiais, e o quadro, um objeto, o resultado dessas dimensões acionadas em conjunto, ou seja, objetivos e procedimentos, estaria sujeito ao imprevisível, e seu resultado seria ocasional. Nesse sentido essas ações, regradas por conhecimentos, técnicas e habilidades adquiridos pela tradição e experiência, seriam variáveis de pessoa para pessoa, de comunidade para comunidade, enfim, de cultura para cultura. Além disso, seriam decisões tomadas em função do material com que se vai trabalhar, e haveria que levar em conta os objetivos e desafios colocados pela natureza, pela vida, pelas demandas do social, do cultural, do econômico e assim por diante.

Assim se estabeleceu a diferenciação entre as técnicas ou artes destinadas a auxiliar a natureza (medicina, agricultura, pintura, arquitetura...) e aquelas destinadas a fabricar objetos com os materiais fornecidos pela natureza: muito semelhante ao que nós ainda pensamos como artesanato (chaui, 2006, p. 275).

De certa maneira isso faz sentido até hoje: a ciência tem seus princípios, seus dogmas, seu conhecimento acumulado pelas pesquisas que seguem suas próprias determinações.

Pode-se contestar o (des)conhecido, mas sempre em função de um conjunto de princípios já estabelecidos, como a matemática, por exemplo. Por outro lado, o artesanato e a arte decorrem da própria ação, e seus resultados são mais improváveis.

Além disso, como argumenta Marilena Chaui (2006, p. 275), “a classificação das artes ou técnicas seguiu um padrão que foi determinado pela estrutura da sociedade antiga e, portanto, pela organização social fundada na escravidão”.

Ora, seguindo essa divisão social entre homens livres e escravos, a estes couberam todos os trabalhos manuais e àqueles os não manuais. Daí seguiu-se uma cultura que passou a menosprezar todas as atividades manuais, logo, artesanais, porque ligadas à escravidão. Sem dúvida, podemos perceber o quanto herdamos essa tradição duplamente negativa: por um lado, agimos como se os trabalhos manuais fossem menores, sem valor. Por outro, não consideramos trabalho os afazeres da mente, do intelecto, da sensibilidade.1

No entanto, é importante ampliar essas considerações lembrando que estamos nos referindo à constituição de um campo de reflexão no qual o fazer (arte, fabricação) esteve ligado, desde os mais antigos tempos e, até hoje de maneira mais nítida nas sociedades tradicionais, à linguagem e à magia, através dos rituais. Todas estas ocorrências formam um amplo sistema de comunicação e instituem a sociedade humana: o trabalho, a linguagem, o parentesco e os rituais. Assim, o que aconteceu na Grécia antiga esteve presente nas sociedades do mundo todo, e muitas dessas características foram preservadas até os dias de hoje nas comunidades rurais e/ou tradicionais e nas sociedades indígenas, principalmente. Mas isso não quer dizer que a sociedade contemporânea, globalizada, não tenha, da mesma maneira, suas linguagens, sua concepção de “trabalho”, artístico ou não, e seus rituais...

Traçando paralelos

O campo de conhecimento da antropologia é vasto nesse sentido, desde seus tempos inaugurais, em meados do século XIX. Um texto clássico revela o funcionamento de um sistema como o mencionado; trata-se de Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislau Malinowski (1984), sobre os trobriandeses.2

O autor descreveu o Kula, um sistema de trocas intertribais entre os moradores de um complexo de ilhas na Melanésia, o arquipélago trobriandês.

Mobilizavam essas trocas colares muito longos feitos de conchas e pulseiras de pequenos discos de espôndilo, trocados de maneira formal e cerimonial: esses navegadores percorriam as ilhas em determinada época, realizando essa complexa troca com parceiros escolhidos, que, por sua vez, trocavam com outros, e assim por diante. Ao longo dessa rota de trocas de colares e pulseiras, outros itens de subsistência eram comercializados, de forma comum, sem qualquer cerimônia ou ritual. Ora, esse amplo circuito caracterizava-se, portanto, como um sistema de trocas cerimoniais que estabelecia parcerias e, ao mesmo tempo, realizava o comércio intertribal de porcos, inhames e outros tantos produtos.

Interessa-nos aqui, entretanto, o processo de construção desse grande circuito cerimonial e comercial. Segundo Malinowski (1984), o Kula era um fazer enraizado em mitos, sustentado pelas leis da tradição e envolvido por rituais mágicos. Vejamos, portanto, como o autor narra a construção das canoas, tarefa fundamental, uma vez que sem elas seria impossível realizar esse percurso de trocas.

Todo esse fazer, segundo o autor, adquiria importância crucial dentro da organização social desse grupo humano. Essa importância merecia todos os cuidados técnicos, é claro, a habilidade de artesãos e artistas no sentido prático mencionado, mas também envolvia encantamentos para o sucesso de sua fabricação, um dizer intermediado por especialistas em rituais e magia.

Dessa maneira, fica muito clara a relação entre as atividades práticas, a linguagem, os rituais e todo o sistema de hierarquia social, ou seja, aquele que indica quem faz o que, como, por que e quando. Por exemplo, o papel da linguagem na construção das canoas só se torna compreensível levando em consideração sua relação com a reciprocidade, ou seja, a necessidade da troca dentro e fora das aldeias, a hierarquia social, ou seja, a questão da distribuição do poder nas aldeias, e a magia, que para o autor coordenava todo o sistema produtivo e tinha uma função organizatória na medida em que controlava todo o sistema de crença, base inequívoca de todo o sistema social e cultural.

As fórmulas dos encantamentos das canoas eram provenientes de uma genealogia mítica local e não de divindades sobrenaturais anônimas e gerais. A magia, portanto, era um poder inerentemente humano, que residia nas palavras em si e não no poder dos espíritos. Elas, portanto, é que possuíam um poder inerente que os humanos podiam usar quase como objetos, adquiridos por transmissão matrilinear ou pela compra. Assim, segundo Malinowski, a magia entre os trobriandeses estabelecia uma ponte entre o mundo sobrenatural, o mito (narrativa das tradições) e os acontecimentos rotineiros do presente. Não se poderia, portanto, compreender a magia em si ou os encantamentos em si, ou a fabricação das canoas em si: havia uma racionalidade do sistema como um todo através da qual tudo teria que ser levado em conta até mesmo o aspecto econômico da atividade do feiticeiro, a hierarquia que o poder disseminado entre alguns e não entre todos estabelecia naquela sociedade.

No caso do Kula, uma porção considerável das palavras empregadas na magia não pertencia à fala corrente, pois eram arcaísmos, nomes míticos e compostos estranhos formados de acordo com regras linguísticas incomuns. Além disso, cada encantamento era constantemente remodelado enquanto passava de um feiticeiro a outro, cada um deles imprimindo sua marca pessoal.

A magia, e nela a linguagem, não era construída em estilo narrativo. Ela não servia para comunicar ideias, não pretendia conter um significado consecutivo e consistente.

Era um instrumento que realizava propósitos especiais, destinados ao exercício de um poder especial do homem sobre as coisas, e, indiretamente, sobre os homens em geral, e seu significado só podia ser compreendido em relação a esse contexto.

Em Coral Gardens and their Magic (malinowski, 2002) (Os jardins de coral e sua magia), por exemplo, magia e trabalho constituíam duas séries profundamente inter-relacionadas. Da mesma maneira como percebemos essa inter-relação na construção das canoas, aqui a magia e os ritos estavam ligados ao ciclo agrícola, também incapaz de bem existir sem as atividades dos feiticeiros, que executavam seus encantamentos para que a colheita fosse próspera. E essa atividade agrícola, por sua vez, também fazia parte do intercâmbio realizado pelo Kula, quando todo o sistema de trocas percorria o arquipélago das ilhas Trobriand. Podemos, portanto, compreender como a vida na aldeia se encontrava organizada e controlada pela ação mágica, pelo trabalho e pela linguagem.

Vamos agora pensar relações semelhantes em um contexto bem próximo a nós: o litoral paranaense. A antropóloga Zulmara C.S. Posse (1996)organizou e publicou coletânea reunindo vários textos de diferentes épocas sobre o mesmo tema, resultado de pesquisas no litoral paranaense.3

Como explica a organizadora, sob a temática das “artes populares”, a coletânea reuniu trabalhos que mostram detalhadamente as “artes” ligadas ao beneficiamento de alguns produtos agrícolas e à fabricação dos utensílios usados no cotidiano dessa população litorânea. Qual o sentido de tal paralelo?

Em primeiro lugar, vamos acompanhar um breve relato sobre o lugar desses “fazeres” no cotidiano dessa população do litoral do Paraná. Em seguida, vamos ver de que maneira(s) esses atos pragmáticos, de subsistência, ligam-se às práticas culturais de lazer e de ajuda comunitária ou os “matirões” ou “pexirões” (fernandes, 1996, p. 11).4 Vamos então expor aspectos da prática artística ou tradicional do fandango, tecida junto com toda essa cultura ribeirinha na qual a religiosidade popular ocupa lugar importante.

E, finalmente, vamos ver como o fandango “cruzou a ponte” e se tornou matéria-prima cultural para manifestações artísticas fora de seu contexto original, construindo, dessa maneira, o que entendemos como “interfaces” entre a cultura popular tradicional e as manifestações de arte urbana, metropolitana, enfim, dentro de uma cultura popular midiatizada, globalizada, internacional.

Construindo diálogos

Em seu texto Indústrias locais, Loureiro Fernandes (1996) descreve o processo de beneficiamento doméstico do arroz, mandioca e açúcar, nos anos 40 do século passado, época em que o autor fez extensas pesquisas no litoral paranaense.5 Nos demais artigos aparecem também descrições da fabricação de utensílios e as práticas culturais, traçando o mencionado paralelo acima proposto. Decorrente do beneficiamento da cana, resultou a fabricação da cachaça, por exemplo, que jamais deixou de ser artesanal e ainda hoje é elemento tradicional nas festas do fandango e no consumo do barreado.6

A produção de cana-de-açúcar teve início no século XVIII, especialmente na região de Morretes, onde, durante o período colonial, foi construído o Engenho Central de Morretes. Com o tempo, no entanto, essa atividade foi diminuindo, e a cana-de-açúcar passou a ser usada muito mais na fabricação da cachaça, pois, como esclarece Loureiro Fernandes (1996), o açúcar de fabricação doméstica já estava em pleno recesso na época de sua pesquisa: a maioria da população usava o açúcar de origem industrial e comprado nas vendas. Nos dias atuais, em estudo recente revelou-se que a plantação de cana vem-se tornando insuficiente para a demanda crescente dos alambiques da região, que estão em outro patamar da cadeia produtiva, entrando no mercado de produtos orgânicos (scientia agraria, 2008).

O arroz, na época focalizada, era plantado sobretudo no interior, pois na orla a pesca sempre dominou as práticas econômicas. Muitas vezes os locais de plantio não correspondiam aos de moradia, acarretando habitações provisórias e deslocamentos durante o período de semeadura. Já no período da colheita, mais longo, se o terreno do plantio fosse muito afastado, a família construía um rancho provisório, e todos eram envolvidos no trabalho, até crianças bem pequenas. O arroz colhido era então guardado nos cantos da casa, em pilhas, à espera da “batição”.

Essa etapa da batição era, em geral, feita pelos membros família responsável pelo plantio, mas também era comum convidarem homens de outras famílias da região, que, como nota o autor, era prática comum nos auxílios mútuos, de troca e reciprocidade: os mutirões ou, como se dizia na época, os matirões e pexirões.

Para a batição o arroz era espalhado no chão da sala, em terra ou assoalho, e os homens descalços iam andando em círculos, pisando os maços para soltar os grãos e começar o processo de beneficiamento artesanal do arroz.

Se houvesse um músico no grupo, os “batedores” acompanhavam o tocador cantando e batendo os pés sobre os ramos de arroz. Essas atividades podiam ser pagas, com um “troquinho”, e, se reunissem número maior de batedores, terminavam com um “fandango”, festividade que envolvia não apenas a música, mas também a dança, a comida e, claro, a cachaça.7

Ainda segundo a narrativa de Loureiro Fernandes (1996), eram significativas a importância e a complexidade da fabricação da farinha de mandioca de forma artesanal nessa época, e havia um grande número de “oficinas” para o preparo da farinha: “uma indústria doméstica, primitiva, que sofreu poucas alterações no decorrer dos séculos” (p. 17), considerando sua atividade no período colonial.

Na realidade, esse aprendizado veio da aproximação com os indígenas, adaptado pelos luso-brasileiros. Referindo Gabriel Soares de Souza e Hans Staden, Loureiro Fernandes (1996, p. 19) afirma que as quatro fases desse preparo eram iguais às adotadas pelos indígenas e às que ele registrou durante sua pesquisa no litoral paranaense nos ano 40: o descascamento, a fragmentação, a extração da mandicuera (o veneno), o peneiramento e o secamento.

Por sua vez, o maquinário, composto por três grandes peças fundamentais e uma complementar − a cevadeira, a prensa, o forno e o cocho −, ainda que rústico, demandava conhecimento específico muito aprimorado de carpintaria, além da produção da cerâmica, das gamelas e da cestaria. Tratava-se, portanto, de um amplo complexo produtivo da farinha de mandioca, no qual as relações sociais, os mutirões, a divisão de tarefas, e as variadas formas de pagamento também faziam parte.

No entanto, chegando mais próximo das relações sociais, Loureiro Fernandes descreve o interior das casas, o mobiliário e os utensílios, dando-nos uma visão mais abrangente da vida naquela região litorânea, possibilitando-nos a percepção de como todas essas atividades, relações e objetos amparavam o surgimento das práticas culturais e festivas que são de nosso interesse destacar neste momento, como o fandango, os mutirões, o barreado, enfim, a construção das tradições litorâneas.

“O alimento exige para sua preparação e consumo poucas modificações do método ameríndio. Finalmente, as necessidades espirituais encontraram a sua satisfação no oratório cheio de imagens cristãs, cuja veneração se ressente de um fundo pagão de superstição” (fernandes, 1996, p. 48).

No meio da cozinha ficava a lareira, com o fogo sempre aceso.

Cada membro da família possuía seu banquinho de madeira, os quais ficavam espalhados pelo cômodo. Nestas casas de pescadores não podia faltar o “fumeiro”, pendurado ao alto, sobre o fogo, para defumar os peixes. Da mesma maneira, suspensa sobre o fogo ficava uma panela de ferro grande, para cozinhar os alimentos.

A sala em geral se transformava em quarto, e, como registrou Loureiro Fernandes (1996), eram poucas as mobílias, constituindo-se na sua maioria de arcas, canastras e baús, para guardar as roupas e outros bens menores.

O quarto era destinado ao descanso noturno das mulheres e pessoas idosas, pois os homens sempre estavam na “lida” do plantio, colheita ou pescaria. Ali estavam os catres, ou armações de madeira sobre os quais se estendiam os estrados e sobre eles as esteiras e travesseiros, normalmente cheios com macela-do-campo, ou, macelinha, planta com muitas qualidades além do suave perfume, incluindo a sedativa, calmante e relaxante muscular.

Menos comuns, mas também utilizadas, eram as “tarimbas”, ou, “camas-de-vento”, leitos provisórios, montados para usar em viagens ou nas zonas de plantio: duas varas de taquaruçu apoiadas sobre quatro forquilhas enterradas no chão sobre as quais eram dispostas algumas tábuas em que se podia deitar para dormir. As crianças, informa o autor, dormiam em pequenos berços de madeira ou em pequenas redes. As redes de cipó-imbé, através do seu “tissume” ou urdidura, terminavam em argolas pelas quais passava um cipó duplo formando as alças. Nelas dormiam também os adultos doentes.

Sob as camas os espaços eram ocupados por utensílios usados, mas aproveitáveis: vassouras, balaios, redes, cuias e cestos estragados (fernandes, 1996, p. 52)

Falar sobre os utensílios parece interessante posto que sua produção envolve técnica, tradição e criatividade. Podem não ser considerados objetos de “arte”, e sim “artesanato” entre nós, mas certamente possuem seu lugar nas interfaces com as artes populares, como o tamanco, por exemplo, no bailado do fandango, como veremos.

Utensílios da vida cotidiana, os objetos constituem em sua simples existência um sistema comunicativo, falando sobre a vida tal como vivida no dia a dia: o fumeiro, o “catuto, feito do “porungo”, planta da roça secada e cortada para formar uma vasilha, contendo o sal, também pendurada num cipó sobre o fogão. Sobre uma das varas do jirau, ou andaime suspenso, ficavam o tenaz, que consistia numa lasca de taquara recurvada para funcionar como pinça, a colher de pau e o macete de feijão.

Um olhar mais detido nos leva à reflexão de Jean Baudrillard (1973, p. 22) acerca do “sistema” significativo que os objetos constroem em sua existência e disposição no espaço, em relação uns com os outros e com o todo: “os móveis se contemplam, se oprimem, se enredam em uma unidade que é menos espacial que de ordem moral”. Imaginando essa casa tão simples, de pescadores, percebemos que nada ali remete a nossas experiências urbanas, metropolitanas, modernas. A descrição desse ambiente, tão despojado, revela o acordo “natural” entre os movimentos da cultura e a presença das coisas... Nada está demais, nada existe em excesso. Apenas objetos, movimentos e disposição da vida em sua funcionalidade cotidiana. Diferentemente de nossas casas e de nossos ambientes, repletos de objetos decorrentes da necessidade contínua do consumo de bens, demarcados pela diferença entre a natureza e o planejado, construído, aquelas casas descritas por Loureiro Fernandes (1996) revelam exatamente a continuidade entre o fora e o dentro: objetos e utensílios que são a presença da natureza dentro das casas, na sua materialidade de fibras, barro e madeira. O fogo interno, o peixe no defumador, as cabaças e os trançados, o aipim cozinhando na panela de barro. Dentro desse sistema “moral”, que produz significados como qualquer outro, os objetos, como observa Jean Baudrillard (1973, p. 22), são “antropomórficos (...) deuses domésticos que se fazem, encarnando no espaço os laços afetivos da permanência do grupo”.

Nesse sistema comunicativo, os oratórios eram também uma forte presença: objetos simples, naquele tempo em que eram escassas as igrejas e capelas, constituíam-se no centro das práticas religiosas. Como descreve Loureiro Fernandes (1996), eram de uma simplicidade “chocante”, caixas em madeira de lei escura, muito antigas, quase sem qualquer estilo. Forradas de papel de seda, em várias cores, continham muitas imagens de santos, em especial do padroeiro, são Sebastião. Ficavam no canto da sala e, em dias santos ou de festas, eram abertos, e as imagens eram, então, espalhadas sobre a mesa forrada com toalha especial, adornada com flores naturais e artificiais.

Tudo isso, segundo percebemos, eram práticas ligadas à permanência grupal que se desbordava em experiências culturais de lazer, misturadas com o trabalho, com os rituais, com as crenças, preenchendo os espaços da convivência e da reciprocidade.

O amplo espaço das trocas, enfim.

Escrevendo sobre a prática do mutirão ou pexirão, no que se relaciona com o fandango no litoral paranaense, Maria de Lourdes da Silva Brito e José Augusto Gemba Rando (brito, rando, 2003) ajudam a completar nossa argumentação mostrando de que maneiras este sistema comunicativo, tão simples, envolve as práticas de lazer.8

Como descrevem os autores dessa coletânea, o fandango é, por tradição, um baile que encerrava um ciclo de tarefas agrícolas, um mutirão ou pexirão, ou “puxirão”, ou “pixurum”, ou “mutiró”, para o qual eram chamados os vizinhos e parentes, numa espécie de trabalho solidário e cooperativo: “(...) era uma maneira alternativa de se realizar as tarefas agrícolas sem precisar fazer grandes investimentos e, assim, obter alimentos e outros produtos para consumo próprio ou para troca, como também torná-los mais baratos para venda” (brito, rando, 2003, p. 21).

O objetivo de um mutirão era o trabalho coletivo, mas tudo girava em torno da festa de encerramento: “a notícia se espalhava rapidamente, em especial se a festa fosse na casa de um bom fandangueiro” (brito, rando, 2003, p. 22).

Como narram os organizadores da coletânea, marcada a data e feitos os convites, os homens saíam para caçar, e as mulheres começavam a pilar o arroz, a preparar o milho e outros quitutes.9 Geralmente o mutirão começava no meio da semana, para que o grande baile pudesse acontecer no final dos trabalhos, na noite de sábado. Mas todos os dias dançavam à noite, sem ir até muito tarde, apenas “para se animar”...

A religiosidade se fazia presente para garantir o tempo bom: “(...) rezavam um terço antes de ‘fazer a paga’ e o casal anfitrião dançava com um ramo de flores, colocado depois no altar improvisado na sala em louvor a São Gonçalo” (brito, rando, 2003, p. 22).10

Os bailes eram realizados na sala, e, quando eram muitos os convidados, os anfitriões chegavam a retirar as paredes dos quartos para ampliar o espaço. O assoalho dessas casas era de madeira dura e grossa, suspenso em pilares, de modo que, ao dançar e bater os pés calçados em tamancos, era forte a ressonância.

Dentro da concepção de um sistema comunicativo no qual se entrelaçam trabalho, religiosidade, parentesco e linguagem, é importante salientar o lugar que a contação de causos ocupava nesses encontros para trabalhar e festejar. E mais do que isso, digno de nota é o fato de que muitos destes causos acabaram se transformando em versos “na boca dos violeiros”. Desta maneira, a tradição veio se renovando através da performance, da experiência, unindo arte e tradição, técnica e artesanato, festa e trabalho.

Trabalho e festa também eram os dois lados de uma mesma moeda para os trobriandeses que Malinowski estudou: a construção da canoa marítima (masawa), aquela que vai realizar o Kula, era iniciativa de um chefe proprietário, mas um investimento de toda a aldeia. A primeira etapa começava com a convocação dos especialistas em construção de canoas e seus ajudantes, e, em seguida, as tarefas complementares se distribuíam por toda a aldeia. Esse era o momento também de invocar o mito da canoa voadora e seus rituais para que ela pudesse ter perfeição e muita velocidade. Nessa primeira fase, cada peça da canoa era cuidadosamente preparada e, em cada parte do trabalho, eram recitados os encantamentos adequados.

Pronta a canoa do Kula compareciam ao local todos os convidados de outras aldeias navegando com suas canoas do dia a dia numa espécie de regata cerimonial e festiva.

O lançamento oficial e cerimonial era o ápice de uma “longa série entrelaçada de trabalhos e cerimônias, de esforços técnicos e rituais” (Malinowski, 1984, p.119)

No entanto a festa trobriandesa consistia numa grande distribuição de alimentos que o empreendedor fazia aos outros chefes de aldeias, para recompensar os trabalhos e mostrar sua generosidade. Na realidade, essa distribuição fazia parte de todo o circuito Kula posto que esses alimentos não eram para ser consumidos e, sim, para efetuar o comércio intertribal que a grande canoa realizaria na sua jornada que começaria após todo esse ciclo de trabalhos, rituais e festas.

Delineando interfaces

Que “viagens” fazemos nós hoje, com nossas festas, trabalhos, linguagens e rituais?

Muitas; na verdade, inumeráveis, mas com tantos e tão intricados caminhos, que seria impossível dar conta deles neste curto espaço de um texto.

O que queremos fazer, no entanto, é mostrar como tradições chamadas folclóricas, tradicionais podem manter-se ou transformar-se, mas vão, de forma inexorável e crescente, produzindo interfaces artísticas, políticas e econômicas com os novos modos de fazer cultura. Tomemos o exemplo do fandango apenas, uma vez que não temos condições de saber o que aconteceu com o Kula dos trobriandeses.11

O aparecimento de grupos de fandango fora de suas localidades de origem, e, mesmo em contextos urbanos, metropolitanos, sugerem possíveis “releituras” contemporâneas de processos tradicionais. Alguns estudos detalhados sobre o fandango do litoral paranaense apontam características muito interessantes: o do folclorista paranaense Inami Custódio Pinto (2003), por exemplo, mostra como o fandango também aparecia em outras ocasiões além dos mutirões, como aniversários, casamentos e no entrudo (precursor do carnaval), durante os quatro dias que antecediam a quaresma.

Na pesquisa de Patrícia Martins (2006), Um divertimento trabalhado – prestígios e rivalidades no fazer fandango da Ilha dos Valadares, vemos uma divisão do fandango em categorias diferentes, como o “doméstico”, “de baile” ou “profissional”. Além disso, a autora aponta a questão da luta por autenticidade nos locais em que ele acontece, principalmente entre grupos do município de Paranaguá e Ilha dos Valadares (distrito ligado ao município por uma ponte). Rivalidades entre os do lado “de lá” e os “de cá” da ponte. Segundo a autora:

Seja no “fandango doméstico”, no “fandango de baile” ou no “fandango profissional”, estas alianças e disputas estarão sempre operando. No “fandango doméstico”, troca-se entre famílias e vizinhos, dentro do círculo de parentesco e camaradagem. No “fandango de baile”, os trocadores se ampliam, envolvendo diferentes “linhagens fandangueiras” e os grupos de fandango. E ainda, no “fandango profissional”, as trocas são estabelecidas em esferas globais, envolvendo políticas públicas, órgãos de governo, produtores culturais, público consumidor, etc. (martins, 2006, p. 116).

Esses aspectos sugerem questões importantes na percepção das relações entre tradição e mudança social, tratadas por vários teóricos da cultura popular como, por exemplo, Milton Singer (1980), que estudou as transformações da cultura clássica indiana diante dos processos de modernização daquele país.

No entanto, fora desse circuito garantido pelas trocas iniciais e em seguida pelas disputas por verbas de projetos de mecenato público e privado, financiamentos de maneira geral e pelo próprio mercado local, poderíamos perceber as formas de reprodução da cultura tradicional em geral e a do nosso fandango local em particular?

Vejamos dois casos em que grupos artísticos urbanos fazem uso do fandango em suas perfomances culturais: o grupo parafolclórico Meu Paraná e o grupo musical Fato.

O grupo Meu Paraná, fundado em 1987, é formado por jovens que nasceram e moram em Curitiba, mas possuem um grande conhecimento sobre o fandango paranaense.12 O grupo não tem sede fixa, se reconhece como parafolclórico e já se apresentou em várias cidades brasileiras e em mais cinco cidades da Bélgica. Hoje está ligado à Associação Casa do Fandango, fundada em 1993 e que se dedica ao trabalho de apoio às escolas e universidades e à pesquisa da cultura popular paranaense.

O grupo Fato, criado em 1994, é formado por músicos profissionais e a partir de 1996 começou a utilizar elementos do fandango paranaense como diferencial em suas criações artísticas e como marca registrada do grupo que, segundo um dos integrantes, não tem a intenção de ser um grupo de fandango tradicional. Em 2000 o grupo fez uma apresentação que tinha como destaque a percussão com os pés (tamancos de madeira do fandango paranaense) aliada à percussão de instrumentos, além do cenário confeccionado por artesãos paranaenses e do figurino, composto com elementos regionais brasileiros e mundiais. Entre as criações do grupo está um instrumento feito com tamancos: a “tamancalha”, uma barra de ferro com vários tamancos atrelados, percutidos todos de uma só vez.

Outra interface extremamente interessante foi a experiência da orquestra Rabecônica, criada e literalmente construída por um fandangueiro de Paranaguá, que, com a parceria de outros artistas instrumentistas clássicos de Curitiba, acabou por construir rabecas de todos os tamanhos e timbres para compor sua “orquestra” e executar o fandango da forma mais tradicional, tanto musicalmente quanto nos textos, enredos e encenação. Para isso, com um projeto da Lei de Incentivo, criou uma luteria, e durante dois anos fabricou todos os instrumentos que foram tocados por músicos clássicos e populares de Curitiba. Com as partituras feitas, respeitando o canto dos fandangueiros, criou-se um espetáculo reproduzindo cenas da vida caiçara, que, com direção teatral, iluminação, cenários e figurinos originais, percorreu vários palcos de Curitiba e do Brasil.

No mundo contemporâneo, feito de mediações, redes, conexões, passagens, torna-se fundamental pensar e reconhecer as formas culturais resultantes desse relacionamento entre culturas tradicionais e a(s) modernidade(s): o campo da produção artística e aquelas práticas consideradas folclóricas; o universo do consumo das formas artísticas e as práticas chamadas tradicionais.

Como escreveu Nestor García Canclini (1997, p. 19) acerca desse assunto,

assim como não funciona a oposição abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo não estão onde estamos habituados a encontrá-los. É necessário demolir essa divisão em três pavimentos, essa concepção em camadas do mundo da cultura, e averiguar se sua hibridação pode ser lida com as ferramentas das disciplinas que os estudam separadamente (...). Precisamos de ciências sociais nômades, capazes de circular pelas escadas que ligam esses pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses planos e comuniquem os níveis horizontalmente.

No entanto, também não se trata de negar a autoria popular, a tradicionalidade dessas manifestações, mas de avaliar como essas releituras que vão aparecendo podem auxiliar na compreensão da divulgação e possíveis transformações das tradições populares.

Nesse sentido, é importante ter sempre em mente que a informação é de grande importância, bem como a manutenção dos estudos sobre as “artes populares”.

Muitos são os trabalhos já produzidos sobre o fandango do Paraná (etnográficos, históricos, fotográficos, etc.). Como exemplos, além dos já citados, cabe mencionar Fandango do Paraná, de Fernando Correa de Azevedo (1978); O Fandango que acompanha o barreado, de Marly Garcia Correia (2002); Fandango do Paraná: olhares, de Carlos Zanello de Aguiar (2005), entre outros. A maioria deles, porém, tem como abordagem principal a tradicionalidade, a autenticidade, a compreensão de seu fazer e, às vezes, certa “militância” em prol da manutenção dos saberes e práticas tradicionais.

Ainda que essas questões de militância sejam importantes para a compreensão dos caminhos que as culturas populares percorrem nas sociedades contemporâneas, urbanas e metropolitanas, quando falamos em “interfaces artísticas” nos referimos mais especificamente às transformações, releituras e formas híbridas das manifestações artísticas tendo em vista novos modelos de produção, divulgação e consumo dos bens culturais. Falamos da relação entre arte e culturas populares, dentro de um sistema comunicativo que, como procuramos mostrar com outros exemplos, se compõe de linguagem, reciprocidade e rituais.

Ora, isso significa que as passagens entre universos anteriormente separados por convenções tornam-se cada vez mais usuais, especialmente se levarmos em consideração as novas formas de produção de espetáculos, suas formas de divulgação e consumo.

Essas interfaces ocorrem quando práticas como o fandango, o frevo, o forró, a viola caipira, a quadrilha, o artesanato em barro, as tecelagens e outras manifestações são usadas na composição das artes contemporâneas da música instrumental ou vocal, da dança e das instalações das artes visuais. Dentro desses modernos sistemas comunicativos formas tradicionais de arte ou, como se diz modernamente, de performance, são tratadas sob várias perspectivas que incluem objetos, expressões sonoras, visuais e corpóreas de forma integrada. Se pensarmos nas manifestações populares, ditas folclóricas, por exemplo, veremos que sempre existiu a integração entre música, dança, objetos e tudo o que poderíamos pensar como uma totalidade “espetacular”.

E hoje, vemos essa totalidade reaparecer nas linguagens artísticas contemporâneas.

São esses novos “sistemas”, com suas linguagens que misturam arte e tecnologia, suas formas ritualizadas e codificadas em gestos e comportamentos, bem como com suas cadeias de troca em circuitos integrados, que nos chamam a atenção.13

Como registra José Jorge de Carvalho (2004), todas as discussões sobre o patrimônio imaterial precisam levar em conta as discriminações e desigualdades que afetam aqueles que são depositários desses conhecimentos, em termos de várias determinações, todas ligadas atualmente aos fatores condicionados pela indústria do entretenimento.14

Levando em consideração a questão da espetaculização das artes populares, aspecto bem contemporâneo e completamente diferente das artes populares vistas em seus lugares de origem, bem como de seus objetivos expostos em itens anteriores, o autor mostra como é preciso também considerar as políticas públicas e privadas de exploração dessas formas artísticas tradicionais.

Assim, não seria estranho pensar no grande investimento do carnaval, carioca, baiano ou paulista, por exemplo, oriundo de folguedos de rua, de manifestações bem tradicionais como os corsos, os bate-bolas do subúrbio carioca, com características peculiares de performance e indumentária, transformações dinâmicas do passado e que hoje são formações identitárias coletivas, catalisadoras de inúmeras influências da cultura de massa.15 Há que lembrar, também, a festa do boi de Parintins, assim como a festa de “peões de boiadeiro”, provenientes de tradições muito peculiares, rurais, interioranas, suburbanas, e que foram alçadas à condição de festas espetaculares, de massa. Trata-se, portanto, de refletir acerca desse campo de tensão entre tradição e modernidade, da entrada no mundo do espetáculo, do aumento da visibilidade e das relações complexas entre a produção dos shows e o mercado de consumo cultural. Sobre o carnaval carioca, por exemplo, torna-se extremamente interessante perceber os aspectos múltiplos provenientes de várias linguagens articuladas: indumentária, elementos “rituais”, inúmeras performances mediações executadas pela porta-bandeira e pelo mestre-sala, sua dança “cortesã” diante do público e do júri, domínio sobre o anacronismo entre os ritmos interiores, corporais, de sua performance e do samba-enredo como condutor do desfile, entre outras determinações (cavalcanti, gonçalves, 2009) Enfim, torna-se fascinante perceber como uma célula da tradição circula no interior desse complexo ritual, entre formas narrativas e dramáticas, tornando-se canto e dança, permitindo sua continuidade e mudança.

A festa do peão de boiadeiro, por sua vez, foi uma “tradição inventada” aqui no Brasil, trazida dos Estados Unidos, onde de fato é oriunda de uma tradição popular, ligada ao trabalho dos cowboys em seus rodeos, festas e mutirões no antigo oeste norte-americano. No Brasil contemporâneo acontecem centenas dessas festas, que começaram a aparecer na cidade paulista de Barretos em 1955 e se espalharam pelo interior do Estado de São Paulo, especialmente nas cidades de Jaguariúna e Americana. Não se pode negar, entretanto, que peões de boiadeiro também existam no Brasil e em várias regiões.

Além do campo das artes populares propriamente ditas, os estudos de comunicação social têm revelado que novos agentes comunicadores, sobretudo aqueles que se encontram dentro/fora do sistema convencional da comunicação, circulam e investem em formas folclóricas para realizar sua rede de trocas, atuar no mercado de bens culturais.16

Luiz Beltrão de Andrade Lima, precursor dos estudos de comunicação no Brasil (1918/1986), percebeu que havia na região de Pernambuco uma estreita relação entre o folclore e a comunicação popular: seus estudos culminaram com o desenvolvimento do termo folkcomunicação para um tipo específico de transmissão de notícias e expressão do pensamento, bem como das reivindicações coletivas, com base nas formas expressivas do folclore. Como ele definiu, o termo significa o processo de intercâmbio de informações e manifestações de opiniões, ideias e atitudes de massa através de agentes e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore.

O cordel, por exemplo, pode ser percebido nas modernas formas de folkmarketing, ou seja, a construção de mensagens para a venda de produtos, serviços e imagens locais, materializados nos discursos de poetas populares, sobre as mais diversas temáticas, incluindo as festas populares, os produtos rurais, as atrações turísticas, aniversários, eventos, contos populares e outras.

Também podemos perceber esse processo nos escritos dos para-choques dos caminhões − que, com suas frases de sabedoria popular, nada mais fazem do que reproduzir formas tradicionais de pensamento −, bem como os grafites nos muros das cidades, as cruzes na beira das estradas − indicando, sem palavras, que ali morreu alguém, vítima de acidente − e tantas outras comunicações. De acordo com a teoria da folkcomunicação, tudo isso constitui maneiras de comunicar e se situa na fronteira entre as várias formas de cultura popular e a comunicação de massa.

Pensando dessa maneira, a comunicação não se faz apenas pelos grandes veículos, jornais, rádios, televisão, bem como não é exclusiva dos eruditos e acadêmicos. Luiz Beltrão de Andrade Lima (1967) afirma que a folkcomunicação é a comunicação dos marginalizados, ou seja, daqueles que estão à margem da grande mídia e precisam comunicar a seus pares alguma informação.

O que vemos ao redor do mundo todo é um grande sistema de comunicação que inclui as formas tradicionais e suas releituras, e também os novos sistemas de inter-relações em que as manifestações folclóricas, ou tradicionais, reaparecem na literatura, na música e em outros campos das atividades consideradas eruditas; ver, por exemplo, o trabalho de Ariano Suassuna, no teatro nordestino, ou a música de Heitor Villa-Lobos.

Finalizando, é importante lembrar que esse campo de pesquisa e reflexão torna-se cada vez mais instigante e pertinente, à medida que lidamos com crescente espetaculização do cotidiano de nossas sociedades modernas e ocidentais.

Distinções entre os campos das artes e das práticas populares são, nesse sentido, decorrentes de especulações antigas e profundas, embora se evidencie também o quanto, ao longo de tantos séculos, as atividades separadas, codificadas e controladas de maneiras arbitrárias vieram se aproximando, gerando formas híbridas e inter-relacionadas.

Mais do que perceber semelhanças, diferenças, aproximações e afastamentos entre esses “gêneros”, entretanto, parece importante observar como eles se misturam naquilo que pode, sim, ser considerado um amplo sistema comunicativo. As negociações, as travessias e as pontes construídas a partir da experiência cultural popular como um todo.

Referências Bibliográficas

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BRITO, Maria de Lourdes Silva e RANDO, J. A. Gemba, Mutirão ou pexirão: relatos do fandango paranaense. In: __________ (orgs.). Fandango de mutirão. Curitiba: Gráfica Mileart, 2003: p. 21-29.

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SINGER, Milton When a great tradition modernizes. Chicago: The University of Chicago Press, 1980.

NOTAS

1 Costumamos pensar, por exemplo, que artistas e intelectuais não trabalham, e há até bem pouco tempo em nossa história social da música tocar violão era considerado “coisa de vagabundo”, “de gente que não tem o que fazer...”

2 A edição original é de 1922, e a pesquisa foi realizada nessa década.

3 Ex-professora do Departamento de Antropologia da UFPR. A coletânea reúne trabalhos de José Loureiro Fernandes, Julio Alvar e Denise Hass.

4 Segundo Stradelli (apud Fernandes, 1996), potyron, potyrun vem do nheengatú, língua da família tupi-guarani, e quer dizer “ajudado”.

5 Médico e antropólogo, José Loureiro Fernandes foi o fundador do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná.

6 Prato típico do litoral do Paraná: cozido de carnes, feito em panela de barro lacrada com massa de farinha de mandioca.

7 Sem dúvida, a cachaça tem longa história no litoral paranaense. No entanto, além da presença de alambiques como substituição das usinas de açúcar logo abandonadas, como bebida tradicional há que considerar a cachaça de banana, também muito usada como acompanhamento no barreado.

8 Essa coletânea contém artigos de Maria de Lourdes Silva Brito, José Augusto Gemba Rando, Nazir Bittar, Sandra Maria Leite de Andrade, Joceli de Fátima Tomio Arantes e Inami Custódio.

9 Os quitutes incluíam: paçoca de camarão, broinha de milho, cuscuz e docinhos de goma. As comidas mais pesadas, para dar força aos trabalhadores, servidas no almoço e no jantar durante o mutirão eram: carne de caça, peixe assado ou cozido com banana e pirão d’água e o famoso cuscuz de mandioca com coquinho de indaiá.

10 Sem esquecer que as bandeiras e as procissões de devotos, depois de um dia de caminhada, culminavam com a realização de um fandango.

11 Pesquisas na internet dão conta de que o Kula continua a ser praticado na mesma região, hoje chamada ilhas Kiriwina, e a construção das canoas segue os mesmo padrões. Mas não foi possível saber sobre as outras práticas relacionadas ao complexo todo, da maneira etnográfica com que Malinowski realizou seu trabalho nos anos 20 do século passado.

12 Grupo fundado por dona Mide e seus filhos, tem longa tradição nas artes musicais e folclóricas do Paraná. Assim como outros grupos, tem vários registros no youtube.

13 Os exemplos são variados e em grande número: espetáculos de dança a partir da reencenação de mitos e contos tradicionais; lendas que se tornam peças de teatro; tradições que viram filmes; folguedos e rituais folclóricos que se tornam literatura; manifestações religiosas populares que se tornam pinturas e assim por diante.

14 O conceito de patrimônio imaterial inclui todas as manifestações culturais em contraste com os bens materiais que são os prédios, edificações, logradouros públicos históricos e tombados.

15 Sobre esses aspectos, ver Cavalcanti e Gonçalves, 2009.

16 Nos anos 60, o recifense Luiz Beltrão de Andrade Lima (1967) defendeu a tese Folkcomunicação: um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressões de idéias. Foi criada, assim, a folkcomunicação como teoria genuinamente brasileira.

Selma Baptista é professora doutora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná. Desenvolve pesquisas nas áreas de cultura popular, artes cênicas e carnaval. Coordena, desde 2008, um grupo de pesquisa sobre o carnaval curitibano.

Recebido em: 30/08/2012

Aceito em: 03/04/2013

BAPTISTA, Selma. Culturas populares e globalização: as culturas do popular e suas interfaces. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.10, n.1, p. 221-241, mai. 2013.