Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares,
v. 10. n. 1, mai. 2013
Selma
Baptista (UFPR)
Este
texto pretende contribuir com o campo das discussões sobre as
relações entre culturas populares tradicionais e suas interfaces
com as manifestações de arte urbana, metropolitana, enfim, dentro
de uma cultura popular midiatizada, globalizada, internacionalizada. A partir
da ideia de um sistema de relações comunicativas que incluiria
rito, linguagem, mito, trabalho, reciprocidade e hierarquia, o texto investe no
esclarecimento dessas relações, esclarecendo alguns termos usados
nessas áreas, pontuando teorias e metodologias, e mostrando alguns
exemplos dessas práticas.
CULTURA POPULAR TRADICIONAL;
INTERFACES; FANDANGO PARANAENSE.
Selma
Baptista (UFPR)
This paper
aims to contribute to the field
of discussions of the relationship
between traditional popular
cultures and their interfaces with the manifestations of urban, metropolitan
manifestations of art, in other words,
into a popular culture which is mediated, globalized, internationalized. From the standpoint
of a broad system of communicative relationships including rite, language, myth, work, reciprocity and hierarchy, the text invests
in clarifying these relationships and some terms used in these
areas, in the light of new theories
and methodologies, and showing some examples of these
practices.
POPULAR CULTURE;
MIDIATIZATION; FANDANGO.
Introdução:
definindo campos
Historicamente, e por um longo
tempo, arte e artesanato constituíram atividade única,
único fazer (chaui, 2006). Ars,
para os romanos, ou téchné, para
os gregos, era um saber prático que envolvia habilidade e agilidade para
vencer dificuldade ou obstáculo colocado pela natureza e pela sociedade.
Dessa maneira, o artesão e o artista não se definiam por oposição,
mas, ao contrário, tinham o mesmo objetivo: produzir artefatos, vencer
desafios, articulando sozinhos, cada um com seu talento e especialidade,
várias tarefas mediadas por regras e um conjunto amplo e dinâmico
de conhecimentos adquiridos pela experiência e pela
tradição.
Nessas atividades, tanto o
sensível quanto o lógico/racional, em termos de ajuste entre
meios e fins, o próprio ato de conhecer as diferenças e
semelhanças entre recursos naturais, materiais e procedimentos, também
se constituíam num todo, assim definido pela prática, pela
experiência e pela tradição passada de
geração a geração.
Platão, por
exemplo, não reconhecia qualquer diferença entre arte e
ciência, e no seu tempo falava-se em arte médica, arte da
navegação, arte política, arte militar, arte
retórica, arte poética, arte dialética, todas elas
atividades humanas pensadas como um todo uniforme porque eram todas igualmente
regradas e ordenadas (chaui, 2006, p. 275).
Aristóteles, por
sua vez, delineou a primeira distinção entre a ciência e o
saber prático: a primeira estaria referida ao
que seria necessário, ou seja, um saber teórico determinado por
sua própria maneira de ser, uma forma de pensamento que se desenvolveria
a partir de suas próprias leis e não dependeria de nenhuma outra
ação fora dela mesma, além, é claro, de um
pensador, por intermédio do qual esses pensamentos seriam pensados. Por
sua vez o saber prático estaria referido ao contingente ou
possível, uma vez que seria decorrente da ação e decisão humanas, frente aos
desafios colocados pela vida prática.
A seguir apareceu uma segunda
distinção, referida à própria dimensão da
prática: a diferença entre ação e
fabricação: no primeiro caso (práxis), entre o ato
realizado e a finalidade buscada não haveria distinção.
Não se poderia separar o agente, do ato e da finalidade de uma
ação. Por exemplo: um homem agiria eticamente através de
atos éticos em função dos seus objetivos éticos.
Já a fabricação (poiesis),
era considerada ação na qual o artista ou o artesão
realizariam atividades cujos objetivos e procedimentos não coincidiriam
necessariamente com a obra: o pintor, as tintas e o quadro, por exemplo,
não possuem a mesma natureza. Não pertencendo todos ao mesmo
domínio de existência, posto que o pintor é
um ser humano, as tintas, materiais, e o quadro, um objeto, o resultado dessas
dimensões acionadas em conjunto, ou seja, objetivos e procedimentos,
estaria sujeito ao imprevisível, e seu resultado seria ocasional. Nesse
sentido essas ações, regradas por conhecimentos, técnicas
e habilidades adquiridos pela tradição e experiência,
seriam variáveis de pessoa para pessoa, de comunidade para comunidade,
enfim, de cultura para cultura. Além disso, seriam decisões
tomadas em função do material com que se vai trabalhar, e haveria
que levar em conta os objetivos e desafios colocados pela natureza, pela vida,
pelas demandas do social, do cultural, do econômico e assim por diante.
Assim se estabeleceu a
diferenciação entre as técnicas ou artes destinadas a
auxiliar a natureza (medicina, agricultura, pintura, arquitetura...) e aquelas
destinadas a fabricar objetos com os materiais fornecidos pela natureza:
muito semelhante ao que nós ainda pensamos como artesanato (chaui, 2006, p. 275).
De certa maneira isso faz
sentido até hoje: a ciência tem seus princípios, seus
dogmas, seu conhecimento acumulado pelas pesquisas que seguem suas
próprias determinações.
Pode-se contestar o (des)conhecido, mas sempre em
função de um conjunto de princípios já
estabelecidos, como a matemática, por exemplo. Por outro lado, o
artesanato e a arte decorrem da própria ação, e seus
resultados são mais improváveis.
Além disso, como
argumenta Marilena Chaui (2006, p. 275), “a
classificação das artes ou técnicas seguiu um
padrão que foi determinado pela estrutura da sociedade antiga e,
portanto, pela organização social fundada na
escravidão”.
Ora, seguindo essa
divisão social entre homens livres e escravos, a estes couberam todos os
trabalhos manuais e àqueles os não
manuais. Daí seguiu-se uma cultura que passou a menosprezar todas as
atividades manuais, logo, artesanais, porque ligadas à
escravidão. Sem dúvida, podemos perceber o quanto herdamos essa
tradição duplamente negativa: por um lado, agimos como se os
trabalhos manuais fossem menores, sem valor. Por outro, não consideramos
trabalho os afazeres da mente, do intelecto, da sensibilidade.1
No entanto, é importante
ampliar essas considerações lembrando que estamos nos referindo
à constituição de um campo de reflexão no qual o
fazer (arte, fabricação) esteve ligado, desde os mais antigos
tempos e, até hoje de maneira mais nítida nas sociedades
tradicionais, à linguagem e à magia, através dos
rituais. Todas estas ocorrências formam um amplo sistema de
comunicação e instituem a sociedade humana: o trabalho, a linguagem,
o parentesco e os rituais. Assim, o que aconteceu na
Grécia antiga esteve presente nas sociedades do mundo todo, e muitas
dessas características foram preservadas até os dias de hoje nas
comunidades rurais e/ou tradicionais e nas sociedades indígenas, principalmente.
Mas isso não quer dizer que a sociedade contemporânea,
globalizada, não tenha, da mesma maneira, suas linguagens, sua
concepção de “trabalho”, artístico ou
não, e seus rituais...
Traçando paralelos
O campo de conhecimento da
antropologia é vasto nesse sentido, desde seus tempos inaugurais, em
meados do século XIX. Um texto clássico revela o funcionamento de
um sistema como o mencionado; trata-se de Os Argonautas
do Pacífico Ocidental, de Bronislau Malinowski (1984), sobre os trobriandeses.2
O autor descreveu o Kula, um sistema de trocas intertribais entre os
moradores de um complexo de ilhas na Melanésia, o arquipélago trobriandês.
Mobilizavam essas trocas colares muito longos
feitos de conchas e pulseiras de pequenos discos de espôndilo, trocados
de maneira formal e cerimonial: esses navegadores percorriam as ilhas em
determinada época, realizando essa complexa troca com parceiros
escolhidos, que, por sua vez, trocavam com outros, e assim por diante. Ao longo
dessa rota de trocas de colares e pulseiras, outros itens de subsistência
eram comercializados, de forma comum, sem qualquer cerimônia ou ritual.
Ora, esse amplo circuito caracterizava-se, portanto, como um sistema de trocas
cerimoniais que estabelecia parcerias e, ao mesmo tempo, realizava o
comércio intertribal de porcos, inhames e outros tantos produtos.
Interessa-nos aqui, entretanto,
o processo de construção desse grande circuito cerimonial e
comercial. Segundo Malinowski (1984), o Kula era um fazer enraizado em mitos, sustentado pelas
leis da tradição e envolvido por rituais mágicos. Vejamos,
portanto, como o autor narra a
construção das canoas, tarefa fundamental, uma vez que sem elas
seria impossível realizar esse percurso de trocas.
Todo esse fazer, segundo o
autor, adquiria importância crucial dentro da organização
social desse grupo humano. Essa importância merecia todos os cuidados
técnicos, é claro, a habilidade de artesãos e artistas no
sentido prático mencionado, mas também envolvia encantamentos
para o sucesso de sua fabricação, um dizer intermediado
por especialistas em rituais e magia.
Dessa maneira, fica muito clara
a relação entre as atividades práticas, a linguagem, os
rituais e todo o sistema de hierarquia social, ou seja, aquele que indica quem
faz o que, como, por que e quando. Por exemplo, o papel da linguagem na
construção das canoas só se torna compreensível
levando em consideração sua relação com a
reciprocidade, ou seja, a necessidade da troca dentro e fora das aldeias, a hierarquia social, ou seja, a questão da
distribuição do poder nas aldeias, e a magia, que para o
autor coordenava todo o sistema produtivo e tinha uma função
organizatória na medida em que controlava todo o sistema de
crença, base inequívoca de todo o sistema social e
cultural.
As fórmulas dos
encantamentos das canoas eram provenientes de uma genealogia mítica
local e não de divindades sobrenaturais anônimas e gerais. A
magia, portanto, era um poder inerentemente humano, que residia nas palavras em
si e não no poder dos espíritos. Elas, portanto, é que
possuíam um poder inerente que os humanos podiam usar quase como
objetos, adquiridos por transmissão matrilinear ou pela compra. Assim,
segundo Malinowski, a magia entre os trobriandeses estabelecia uma ponte entre o mundo
sobrenatural, o mito (narrativa das tradições) e os
acontecimentos rotineiros do presente. Não se poderia, portanto,
compreender a magia em si ou os encantamentos em si, ou a
fabricação das canoas em si: havia uma racionalidade do sistema
como um todo através da qual tudo teria que ser levado em conta
até mesmo o aspecto econômico da atividade do feiticeiro, a
hierarquia que o poder disseminado entre alguns e não entre todos
estabelecia naquela sociedade.
No caso do Kula,
uma porção considerável das palavras empregadas na magia
não pertencia à fala corrente, pois eram arcaísmos, nomes
míticos e compostos estranhos formados de acordo com regras
linguísticas incomuns. Além disso, cada encantamento era constantemente
remodelado enquanto passava de um feiticeiro a outro, cada um deles imprimindo
sua marca pessoal.
A magia, e nela a linguagem,
não era construída em estilo narrativo. Ela não servia
para comunicar ideias, não pretendia conter um significado consecutivo e
consistente.
Era um instrumento que
realizava propósitos especiais, destinados ao exercício de um
poder especial do homem sobre as coisas, e, indiretamente, sobre os homens em
geral, e seu significado só podia ser compreendido em
relação a esse contexto.
Em Coral Gardens
and their Magic (malinowski, 2002) (Os
jardins de coral e sua magia), por exemplo, magia e trabalho constituíam
duas séries profundamente inter-relacionadas. Da mesma maneira como
percebemos essa inter-relação na construção das
canoas, aqui a magia e os ritos estavam ligados ao ciclo agrícola,
também incapaz de bem existir sem as atividades dos feiticeiros, que
executavam seus encantamentos para que a colheita fosse próspera. E essa
atividade agrícola, por sua vez, também fazia parte do
intercâmbio realizado pelo Kula, quando
todo o sistema de trocas percorria o arquipélago das ilhas Trobriand. Podemos, portanto, compreender como a vida na
aldeia se encontrava organizada e controlada pela ação
mágica, pelo trabalho e pela linguagem.
Vamos agora pensar
relações semelhantes em um contexto bem próximo a
nós: o litoral paranaense. A antropóloga Zulmara
C.S. Posse (1996)organizou e
publicou coletânea reunindo vários textos de diferentes
épocas sobre o mesmo tema, resultado de pesquisas no litoral paranaense.3
Como explica a organizadora,
sob a temática das “artes populares”, a coletânea
reuniu trabalhos que mostram detalhadamente as “artes” ligadas ao
beneficiamento de alguns produtos agrícolas e à
fabricação dos utensílios usados no cotidiano dessa
população litorânea. Qual o sentido de tal paralelo?
Em primeiro lugar, vamos
acompanhar um breve relato sobre o lugar desses “fazeres” no
cotidiano dessa população do litoral do Paraná. Em
seguida, vamos ver de que maneira(s) esses atos pragmáticos, de subsistência,
ligam-se às práticas culturais de lazer e de ajuda
comunitária ou os “matirões”
ou “pexirões” (fernandes, 1996, p. 11).4 Vamos
então expor aspectos da prática artística ou tradicional
do fandango, tecida junto com toda essa cultura ribeirinha na qual a
religiosidade popular ocupa lugar importante.
E, finalmente, vamos ver como o
fandango “cruzou a ponte” e se tornou matéria-prima cultural
para manifestações artísticas fora de seu contexto
original, construindo, dessa maneira, o que entendemos como “interfaces”
entre a cultura popular tradicional e as manifestações de arte
urbana, metropolitana, enfim, dentro de uma cultura popular midiatizada,
globalizada, internacional.
Construindo diálogos
Em seu texto Indústrias
locais, Loureiro Fernandes (1996) descreve o processo de beneficiamento
doméstico do arroz, mandioca e açúcar, nos anos 40 do
século passado, época em que o autor fez extensas pesquisas no
litoral paranaense.5 Nos demais artigos
aparecem também descrições da fabricação de
utensílios e as práticas culturais, traçando o mencionado
paralelo acima proposto. Decorrente do beneficiamento da cana,
resultou a fabricação da cachaça, por exemplo, que
jamais deixou de ser artesanal e ainda hoje é elemento tradicional nas
festas do fandango e no consumo do barreado.6
A produção de
cana-de-açúcar teve início no século XVIII,
especialmente na região de Morretes, onde,
durante o período colonial, foi construído o Engenho Central de Morretes. Com o tempo, no entanto, essa atividade
foi diminuindo, e a cana-de-açúcar passou a ser usada muito mais
na fabricação da cachaça, pois, como esclarece Loureiro
Fernandes (1996), o açúcar de fabricação
doméstica já estava em pleno recesso na época de sua
pesquisa: a maioria da população usava o açúcar de
origem industrial e comprado nas vendas. Nos dias atuais, em estudo recente
revelou-se que a plantação de cana vem-se tornando insuficiente
para a demanda crescente dos alambiques da região, que estão em
outro patamar da cadeia produtiva, entrando no mercado de produtos
orgânicos (scientia agraria,
2008).
O arroz, na época
focalizada, era plantado sobretudo no interior, pois
na orla a pesca sempre dominou as práticas econômicas. Muitas
vezes os locais de plantio não correspondiam aos de moradia, acarretando
habitações provisórias e deslocamentos durante o
período de semeadura. Já no período da colheita, mais
longo, se o terreno do plantio fosse muito afastado, a família construía
um rancho provisório, e todos eram envolvidos no trabalho, até
crianças bem pequenas. O arroz colhido era então guardado nos
cantos da casa, em pilhas, à espera da “batição”.
Essa etapa da batição era, em geral, feita pelos membros
família responsável pelo plantio, mas também era comum
convidarem homens de outras famílias da região, que, como nota o
autor, era prática comum nos auxílios mútuos, de troca e
reciprocidade: os mutirões ou, como se dizia na época, os matirões e pexirões.
Para a batição
o arroz era espalhado no chão da sala, em terra ou assoalho, e os homens
descalços iam andando em círculos, pisando os maços para
soltar os grãos e começar o processo de beneficiamento artesanal
do arroz.
Se houvesse um músico no
grupo, os “batedores” acompanhavam o tocador cantando e batendo os
pés sobre os ramos de arroz. Essas atividades podiam ser pagas, com um
“troquinho”, e, se reunissem
número maior de batedores, terminavam com um “fandango”,
festividade que envolvia não apenas a música, mas também a
dança, a comida e, claro, a cachaça.7
Ainda segundo a narrativa de
Loureiro Fernandes (1996), eram significativas a
importância e a complexidade da fabricação da farinha de
mandioca de forma artesanal nessa época, e havia um grande número
de “oficinas” para o preparo da farinha: “uma
indústria doméstica, primitiva, que sofreu poucas
alterações no decorrer dos séculos” (p. 17),
considerando sua atividade no período colonial.
Na realidade, esse aprendizado
veio da aproximação com os indígenas, adaptado pelos
luso-brasileiros. Referindo Gabriel Soares de Souza e Hans Staden,
Loureiro Fernandes (1996, p. 19) afirma que as quatro fases desse preparo eram
iguais às adotadas pelos indígenas e às que ele registrou
durante sua pesquisa no litoral paranaense nos ano 40: o descascamento, a
fragmentação, a extração da mandicuera
(o veneno), o peneiramento e o secamento.
Por sua vez, o
maquinário, composto por três grandes peças fundamentais e
uma complementar − a cevadeira, a prensa, o forno e o cocho −,
ainda que rústico, demandava conhecimento específico muito
aprimorado de carpintaria, além da produção da
cerâmica, das gamelas e da cestaria.
Tratava-se, portanto, de um amplo complexo produtivo da farinha de mandioca, no
qual as relações sociais, os mutirões, a divisão de
tarefas, e as variadas formas de pagamento também faziam parte.
No entanto, chegando mais
próximo das relações sociais, Loureiro Fernandes descreve
o interior das casas, o mobiliário e os utensílios, dando-nos uma
visão mais abrangente da vida naquela região litorânea,
possibilitando-nos a percepção de como todas essas atividades,
relações e objetos amparavam o surgimento das práticas
culturais e festivas que são de nosso interesse destacar neste momento,
como o fandango, os mutirões, o barreado, enfim, a construção
das tradições litorâneas.
“O alimento exige para
sua preparação e consumo poucas modificações do
método ameríndio. Finalmente, as necessidades espirituais
encontraram a sua satisfação no oratório cheio de imagens
cristãs, cuja veneração se ressente de um fundo
pagão de superstição” (fernandes, 1996, p. 48).
No meio da cozinha ficava a
lareira, com o fogo sempre aceso.
Cada membro da família
possuía seu banquinho de madeira, os quais ficavam espalhados pelo
cômodo. Nestas casas de pescadores não podia faltar o
“fumeiro”, pendurado ao alto, sobre o fogo, para defumar os peixes.
Da mesma maneira, suspensa sobre o fogo ficava uma panela de ferro grande, para
cozinhar os alimentos.
A sala em geral se transformava
em quarto, e, como registrou Loureiro Fernandes (1996), eram poucas as
mobílias, constituindo-se na sua maioria de arcas, canastras e
baús, para guardar as roupas e outros bens menores.
O quarto era destinado ao
descanso noturno das mulheres e pessoas idosas, pois os homens sempre estavam
na “lida” do plantio, colheita ou pescaria. Ali estavam os catres,
ou armações de madeira sobre os quais se estendiam os estrados e
sobre eles as esteiras e travesseiros, normalmente cheios com macela-do-campo, ou, macelinha, planta com muitas
qualidades além do suave perfume, incluindo a sedativa, calmante e relaxante
muscular.
Menos comuns, mas também
utilizadas, eram as “tarimbas”, ou, “camas-de-vento”,
leitos provisórios, montados para usar em viagens ou nas zonas de
plantio: duas varas de taquaruçu apoiadas
sobre quatro forquilhas enterradas no chão sobre as quais eram dispostas
algumas tábuas em que se podia deitar para dormir. As crianças, informa o autor, dormiam em pequenos berços de
madeira ou em pequenas redes. As redes de cipó-imbé,
através do seu “tissume” ou
urdidura, terminavam em argolas pelas quais passava um cipó duplo
formando as alças. Nelas dormiam também os adultos doentes.
Sob as camas os espaços
eram ocupados por utensílios usados, mas aproveitáveis:
vassouras, balaios, redes, cuias e cestos estragados (fernandes, 1996, p. 52)
Falar sobre os
utensílios parece interessante posto que sua produção envolve técnica, tradição e
criatividade. Podem não ser considerados objetos de “arte”,
e sim “artesanato” entre nós, mas certamente possuem seu
lugar nas interfaces com as artes populares, como o tamanco, por exemplo, no
bailado do fandango, como veremos.
Utensílios da vida
cotidiana, os objetos constituem em sua simples existência um sistema
comunicativo, falando sobre a vida tal como vivida no dia a dia: o fumeiro, o
“catuto”, feito do “porungo”, planta da roça secada e cortada para
formar uma vasilha, contendo o sal, também pendurada num cipó
sobre o fogão. Sobre uma das varas do jirau, ou andaime suspenso,
ficavam o tenaz, que consistia numa lasca de taquara recurvada para
funcionar como pinça, a colher de pau e o macete de feijão.
Um olhar mais detido nos leva
à reflexão de Jean Baudrillard (1973, p. 22) acerca do
“sistema” significativo que os objetos constroem em sua
existência e disposição no espaço, em
relação uns com os outros e com o todo: “os móveis
se contemplam, se oprimem, se enredam em uma unidade que é menos
espacial que de ordem moral”. Imaginando essa casa tão simples, de
pescadores, percebemos que nada ali remete a nossas experiências urbanas,
metropolitanas, modernas. A descrição desse ambiente, tão
despojado, revela o acordo “natural” entre os movimentos da cultura
e a presença das coisas... Nada está demais, nada existe em
excesso. Apenas objetos, movimentos e disposição da vida em sua
funcionalidade cotidiana. Diferentemente de nossas casas e de nossos ambientes,
repletos de objetos decorrentes da necessidade contínua do consumo de
bens, demarcados pela diferença entre a natureza e o planejado,
construído, aquelas casas descritas por Loureiro Fernandes (1996)
revelam exatamente a continuidade entre o fora e o dentro: objetos e
utensílios que são a presença da natureza dentro das
casas, na sua materialidade de fibras, barro e madeira. O fogo interno, o peixe
no defumador, as cabaças e os trançados, o aipim cozinhando na
panela de barro. Dentro desse sistema “moral”, que produz
significados como qualquer outro, os objetos, como observa Jean Baudrillard
(1973, p. 22), são “antropomórficos (...) deuses
domésticos que se fazem, encarnando no espaço os laços
afetivos da permanência do grupo”.
Nesse sistema comunicativo, os
oratórios eram também uma forte presença: objetos simples,
naquele tempo em que eram escassas as igrejas e capelas, constituíam-se
no centro das práticas religiosas. Como descreve Loureiro Fernandes
(1996), eram de uma simplicidade “chocante”, caixas em madeira de
lei escura, muito antigas, quase sem qualquer estilo. Forradas de papel de
seda, em várias cores, continham muitas imagens de santos, em especial
do padroeiro, são Sebastião. Ficavam no canto da sala e, em dias
santos ou de festas, eram abertos, e as imagens eram, então, espalhadas
sobre a mesa forrada com toalha especial, adornada com flores naturais e
artificiais.
Tudo isso, segundo percebemos,
eram práticas ligadas à permanência grupal que se
desbordava em experiências culturais de lazer, misturadas com o trabalho,
com os rituais, com as crenças, preenchendo os espaços da
convivência e da reciprocidade.
O amplo espaço das
trocas, enfim.
Escrevendo sobre a
prática do mutirão ou pexirão,
no que se relaciona com o fandango no litoral paranaense, Maria de Lourdes da
Silva Brito e José Augusto Gemba Rando (brito, rando, 2003) ajudam
a completar nossa argumentação mostrando de que maneiras este sistema
comunicativo, tão simples, envolve as práticas de lazer.8
Como descrevem os autores dessa
coletânea, o fandango é, por tradição, um baile que
encerrava um ciclo de tarefas agrícolas, um mutirão ou pexirão, ou “puxirão”, ou “pixurum”, ou “mutiró”,
para o qual eram chamados os vizinhos e parentes, numa espécie de
trabalho solidário e cooperativo: “(...) era uma maneira
alternativa de se realizar as tarefas agrícolas sem precisar fazer
grandes investimentos e, assim, obter alimentos e outros produtos para consumo
próprio ou para troca, como também torná-los mais baratos
para venda” (brito, rando,
2003, p. 21).
O objetivo de um mutirão
era o trabalho coletivo, mas tudo girava em torno da festa de encerramento:
“a notícia se espalhava rapidamente, em especial se a festa fosse na casa de um bom fandangueiro” (brito, rando, 2003, p. 22).
Como narram os organizadores da
coletânea, marcada a data e feitos os convites, os homens saíam
para caçar, e as mulheres começavam a pilar o arroz, a preparar o
milho e outros quitutes.9 Geralmente o
mutirão começava no meio da semana, para que o grande baile
pudesse acontecer no final dos trabalhos, na noite de sábado. Mas todos
os dias dançavam à noite, sem ir até muito tarde, apenas
“para se animar”...
A religiosidade se fazia
presente para garantir o tempo bom: “(...) rezavam um terço antes
de ‘fazer a paga’ e o casal anfitrião dançava com um
ramo de flores, colocado depois no altar improvisado na sala em louvor a
São Gonçalo” (brito, rando, 2003,
p. 22).10
Os bailes eram realizados na
sala, e, quando eram muitos os convidados, os anfitriões chegavam a
retirar as paredes dos quartos para ampliar o espaço. O assoalho dessas
casas era de madeira dura e grossa, suspenso em pilares, de modo que, ao
dançar e bater os pés calçados em tamancos, era forte a ressonância.
Dentro da
concepção de um sistema comunicativo no qual se entrelaçam
trabalho, religiosidade, parentesco e linguagem, é importante salientar
o lugar que a contação de causos
ocupava nesses encontros para trabalhar e festejar. E mais do que isso, digno
de nota é o fato de que muitos destes causos acabaram se transformando
em versos “na boca dos violeiros”. Desta maneira, a
tradição veio se renovando através da performance,
da experiência, unindo arte e tradição, técnica e
artesanato, festa e trabalho.
Trabalho e festa também
eram os dois lados de uma mesma moeda para os trobriandeses
que Malinowski estudou: a
construção da canoa marítima (masawa),
aquela que vai realizar o Kula, era iniciativa
de um chefe proprietário, mas um investimento de toda a aldeia. A
primeira etapa começava com a convocação dos especialistas
em construção de canoas e seus ajudantes, e, em seguida, as
tarefas complementares se distribuíam por toda a aldeia. Esse era o
momento também de invocar o mito da canoa voadora e seus rituais para
que ela pudesse ter perfeição e muita velocidade. Nessa primeira
fase, cada peça da canoa era cuidadosamente preparada e, em cada parte
do trabalho, eram recitados os encantamentos adequados.
Pronta a
canoa do Kula compareciam ao local todos os
convidados de outras aldeias navegando com suas canoas do dia a dia numa
espécie de regata cerimonial e festiva.
O lançamento oficial e
cerimonial era o ápice de uma “longa série
entrelaçada de trabalhos e cerimônias, de esforços
técnicos e rituais” (Malinowski, 1984,
p.119)
No entanto a festa trobriandesa consistia numa grande
distribuição de alimentos que o empreendedor fazia aos outros
chefes de aldeias, para recompensar os trabalhos e mostrar sua generosidade. Na
realidade, essa distribuição fazia parte de todo o circuito Kula posto que esses alimentos não eram para ser consumidos e, sim, para efetuar o
comércio intertribal que a grande canoa realizaria na sua jornada que
começaria após todo esse ciclo de trabalhos, rituais e festas.
Delineando interfaces
Que “viagens”
fazemos nós hoje, com nossas festas, trabalhos, linguagens e rituais?
Muitas; na verdade,
inumeráveis, mas com tantos e tão intricados caminhos, que seria
impossível dar conta deles neste curto espaço de um texto.
O que queremos fazer, no
entanto, é mostrar como tradições chamadas
folclóricas, tradicionais podem manter-se ou transformar-se, mas
vão, de forma inexorável e crescente, produzindo interfaces
artísticas, políticas e econômicas com os novos modos de
fazer cultura. Tomemos o exemplo do fandango apenas, uma vez que não
temos condições de saber o que aconteceu com o Kula dos trobriandeses.11
O aparecimento de grupos de
fandango fora de suas localidades de origem, e, mesmo em contextos urbanos,
metropolitanos, sugerem possíveis “releituras”
contemporâneas de processos tradicionais. Alguns estudos detalhados sobre
o fandango do litoral paranaense apontam características muito
interessantes: o do folclorista paranaense Inami
Custódio Pinto (2003), por exemplo, mostra como
o fandango também aparecia em outras ocasiões além dos
mutirões, como aniversários, casamentos e no entrudo (precursor
do carnaval), durante os quatro dias que antecediam a quaresma.
Na pesquisa de Patrícia
Martins (2006), Um divertimento trabalhado – prestígios
e rivalidades no fazer fandango da Ilha dos Valadares, vemos uma divisão do fandango em categorias
diferentes, como o “doméstico”, “de baile” ou
“profissional”. Além disso, a autora aponta a questão
da luta por autenticidade nos locais em que ele acontece, principalmente entre
grupos do município de Paranaguá e Ilha dos Valadares (distrito
ligado ao município por uma ponte). Rivalidades entre os do lado
“de lá” e os “de cá” da ponte. Segundo a
autora:
Seja no “fandango
doméstico”, no “fandango de baile” ou no
“fandango profissional”, estas alianças e disputas
estarão sempre operando. No “fandango doméstico”,
troca-se entre famílias e vizinhos, dentro do círculo de
parentesco e camaradagem. No “fandango de baile”, os trocadores se
ampliam, envolvendo diferentes “linhagens fandangueiras” e os
grupos de fandango. E ainda, no “fandango profissional”, as trocas
são estabelecidas em esferas globais, envolvendo políticas
públicas, órgãos de governo, produtores culturais,
público consumidor, etc. (martins,
2006, p. 116).
Esses aspectos sugerem
questões importantes na percepção das
relações entre tradição e mudança social,
tratadas por vários teóricos da cultura popular como, por
exemplo, Milton Singer (1980), que estudou as transformações da cultura
clássica indiana diante dos processos de modernização
daquele país.
No entanto, fora desse circuito
garantido pelas trocas iniciais e em seguida pelas disputas por verbas de
projetos de mecenato público e privado, financiamentos de maneira geral
e pelo próprio mercado local, poderíamos perceber as formas de
reprodução da cultura tradicional em geral e a do nosso
fandango local em particular?
Vejamos dois casos em que
grupos artísticos urbanos fazem uso do fandango em suas perfomances culturais: o grupo parafolclórico
Meu Paraná e o grupo musical Fato.
O grupo Meu Paraná,
fundado em 1987, é formado por jovens que nasceram e moram em Curitiba,
mas possuem um grande conhecimento sobre o fandango paranaense.12
O grupo não tem sede fixa, se reconhece como parafolclórico
e já se apresentou em várias cidades brasileiras e em mais cinco
cidades da Bélgica. Hoje está ligado à
Associação Casa do Fandango, fundada em 1993 e que se dedica ao
trabalho de apoio às escolas e universidades e à pesquisa da
cultura popular paranaense.
O grupo Fato, criado em 1994,
é formado por músicos profissionais e a partir de 1996
começou a utilizar elementos do fandango paranaense como diferencial em
suas criações artísticas e como marca registrada do grupo
que, segundo um dos integrantes, não tem a intenção de ser
um grupo de fandango tradicional. Em 2000 o grupo fez uma
apresentação que tinha como destaque a percussão com os
pés (tamancos de madeira do fandango paranaense) aliada à
percussão de instrumentos, além do cenário confeccionado
por artesãos paranaenses e do figurino, composto com elementos regionais
brasileiros e mundiais. Entre as criações do grupo está um
instrumento feito com tamancos: a “tamancalha”,
uma barra de ferro com vários tamancos atrelados, percutidos todos de
uma só vez.
Outra interface extremamente
interessante foi a experiência da orquestra Rabecônica, criada e literalmente construída
por um fandangueiro de Paranaguá, que, com a parceria de outros artistas
instrumentistas clássicos de Curitiba, acabou por construir rabecas de
todos os tamanhos e timbres para compor sua “orquestra” e executar
o fandango da forma mais tradicional, tanto musicalmente quanto nos textos,
enredos e encenação. Para isso, com um projeto da Lei de Incentivo,
criou uma luteria, e durante dois anos fabricou todos
os instrumentos que foram tocados por músicos clássicos e
populares de Curitiba. Com as partituras feitas, respeitando o canto dos
fandangueiros, criou-se um espetáculo reproduzindo cenas da vida caiçara,
que, com direção teatral, iluminação,
cenários e figurinos originais, percorreu vários palcos de
Curitiba e do Brasil.
No mundo contemporâneo,
feito de mediações, redes, conexões, passagens, torna-se
fundamental pensar e reconhecer as formas culturais resultantes desse relacionamento
entre culturas tradicionais e a(s) modernidade(s): o campo da
produção artística e aquelas práticas consideradas
folclóricas; o universo do consumo das formas artísticas e as
práticas chamadas tradicionais.
Como escreveu Nestor
García Canclini (1997, p. 19) acerca desse
assunto,
assim como não funciona a
oposição abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o
popular e o massivo não estão onde estamos habituados a
encontrá-los. É necessário demolir essa divisão em
três pavimentos, essa concepção em camadas do mundo da
cultura, e averiguar se sua hibridação pode ser lida com as
ferramentas das disciplinas que os estudam separadamente (...). Precisamos de
ciências sociais nômades, capazes de circular pelas escadas que ligam
esses pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses planos e comuniquem os
níveis horizontalmente.
No entanto, também
não se trata de negar a autoria popular, a tradicionalidade
dessas manifestações, mas de avaliar como essas releituras que
vão aparecendo podem auxiliar na compreensão da
divulgação e possíveis transformações das
tradições populares.
Nesse sentido, é
importante ter sempre em mente que a informação é de
grande importância, bem como a manutenção dos estudos sobre
as “artes populares”.
Muitos são os trabalhos
já produzidos sobre o fandango do Paraná
(etnográficos, históricos, fotográficos, etc.). Como
exemplos, além dos já citados, cabe mencionar Fandango do
Paraná, de Fernando Correa de Azevedo (1978); O Fandango que
acompanha o barreado, de Marly Garcia Correia (2002); Fandango
do Paraná: olhares, de Carlos Zanello de
Aguiar (2005), entre outros. A maioria deles, porém, tem como abordagem
principal a tradicionalidade, a autenticidade, a
compreensão de seu fazer e, às vezes, certa
“militância” em prol da manutenção dos saberes
e práticas tradicionais.
Ainda que essas questões
de militância sejam importantes para a compreensão dos caminhos
que as culturas populares percorrem nas sociedades contemporâneas,
urbanas e metropolitanas, quando falamos em “interfaces artísticas”
nos referimos mais especificamente às transformações,
releituras e formas híbridas das manifestações
artísticas tendo em vista novos modelos de produção,
divulgação e consumo dos bens culturais. Falamos da
relação entre arte e culturas populares, dentro de um sistema
comunicativo que, como procuramos mostrar com outros exemplos, se compõe
de linguagem, reciprocidade e rituais.
Ora, isso significa que as
passagens entre universos anteriormente separados por convenções
tornam-se cada vez mais usuais, especialmente se levarmos em
consideração as novas formas de produção de
espetáculos, suas formas de divulgação e consumo.
Essas interfaces ocorrem quando
práticas como o fandango, o frevo, o forró, a viola caipira, a
quadrilha, o artesanato em barro, as tecelagens e outras
manifestações são usadas na composição das
artes contemporâneas da música instrumental ou vocal, da
dança e das instalações das artes visuais. Dentro desses
modernos sistemas comunicativos formas tradicionais de arte ou, como se diz
modernamente, de performance, são
tratadas sob várias perspectivas que incluem objetos, expressões
sonoras, visuais e corpóreas de forma integrada. Se pensarmos nas
manifestações populares, ditas folclóricas, por exemplo,
veremos que sempre existiu a integração entre música,
dança, objetos e tudo o que poderíamos pensar como uma totalidade
“espetacular”.
E hoje, vemos essa totalidade
reaparecer nas linguagens artísticas contemporâneas.
São esses novos
“sistemas”, com suas linguagens que misturam arte e tecnologia, suas
formas ritualizadas e codificadas em gestos e comportamentos, bem como com suas
cadeias de troca em circuitos integrados, que nos chamam a atenção.13
Como registra José Jorge
de Carvalho (2004), todas as discussões sobre o patrimônio
imaterial precisam levar em conta as discriminações e
desigualdades que afetam aqueles que são depositários desses
conhecimentos, em termos de várias determinações, todas
ligadas atualmente aos fatores condicionados pela indústria do entretenimento.14
Levando em consideração
a questão da espetaculização das
artes populares, aspecto bem contemporâneo e completamente diferente das
artes populares vistas em seus lugares de origem, bem como de seus objetivos
expostos em itens anteriores, o autor mostra como é preciso
também considerar as políticas públicas e privadas de
exploração dessas formas artísticas tradicionais.
Assim, não seria
estranho pensar no grande investimento do carnaval, carioca, baiano ou
paulista, por exemplo, oriundo de folguedos de rua, de
manifestações bem tradicionais como os corsos, os bate-bolas do
subúrbio carioca, com características peculiares de performance e indumentária,
transformações dinâmicas do passado e que hoje são
formações identitárias
coletivas, catalisadoras de inúmeras influências da cultura de
massa.15 Há que lembrar, também, a festa do boi
de Parintins, assim como a festa de “peões de boiadeiro”,
provenientes de tradições muito peculiares, rurais, interioranas,
suburbanas, e que foram alçadas à condição de
festas espetaculares, de massa. Trata-se, portanto, de refletir acerca desse
campo de tensão entre tradição e modernidade, da entrada
no mundo do espetáculo, do aumento da visibilidade e das
relações complexas entre a produção dos shows
e o mercado de consumo cultural. Sobre o carnaval carioca, por exemplo,
torna-se extremamente interessante perceber os aspectos múltiplos
provenientes de várias linguagens articuladas: indumentária,
elementos “rituais”, inúmeras performances
mediações executadas pela porta-bandeira
e pelo mestre-sala, sua dança “cortesã” diante do
público e do júri, domínio sobre o anacronismo entre os
ritmos interiores, corporais, de sua performance e do samba-enredo como
condutor do desfile, entre outras determinações (cavalcanti, gonçalves,
2009) Enfim, torna-se fascinante perceber como uma célula da
tradição circula no interior desse complexo ritual, entre formas
narrativas e dramáticas, tornando-se canto e dança, permitindo
sua continuidade e mudança.
A festa do peão de
boiadeiro, por sua vez, foi uma “tradição inventada”
aqui no Brasil, trazida dos Estados Unidos, onde de fato é oriunda de
uma tradição popular, ligada ao trabalho dos cowboys em
seus rodeos, festas e mutirões no
antigo oeste norte-americano. No Brasil contemporâneo acontecem centenas
dessas festas, que começaram a aparecer na cidade paulista de Barretos
em 1955 e se espalharam pelo interior do Estado de São Paulo,
especialmente nas cidades de Jaguariúna e Americana. Não se pode
negar, entretanto, que peões de boiadeiro também existam no
Brasil e em várias regiões.
Além do campo das artes
populares propriamente ditas, os estudos de comunicação social
têm revelado que novos agentes comunicadores, sobretudo
aqueles que se encontram dentro/fora do sistema convencional da comunicação,
circulam e investem em formas folclóricas para realizar sua rede de
trocas, atuar no mercado de bens culturais.16
Luiz Beltrão de Andrade
Lima, precursor dos estudos de comunicação no Brasil (1918/1986),
percebeu que havia na região de Pernambuco uma estreita
relação entre o folclore e a comunicação popular:
seus estudos culminaram com o desenvolvimento do termo folkcomunicação
para um tipo específico de transmissão de notícias e
expressão do pensamento, bem como das reivindicações
coletivas, com base nas formas expressivas do folclore. Como ele definiu, o
termo significa o processo de intercâmbio de
informações e manifestações de opiniões,
ideias e atitudes de massa através de agentes e meios ligados direta ou
indiretamente ao folclore.
O cordel, por exemplo, pode ser
percebido nas modernas formas de folkmarketing, ou
seja, a construção de mensagens para a venda de produtos,
serviços e imagens locais, materializados nos discursos de poetas
populares, sobre as mais diversas temáticas, incluindo as festas
populares, os produtos rurais, as atrações turísticas,
aniversários, eventos, contos populares e outras.
Também podemos perceber
esse processo nos escritos dos para-choques dos caminhões − que,
com suas frases de sabedoria popular, nada mais fazem do que reproduzir formas
tradicionais de pensamento −, bem como os grafites nos muros das cidades,
as cruzes na beira das estradas − indicando, sem palavras, que ali morreu
alguém, vítima de acidente − e tantas outras
comunicações. De acordo com a teoria da folkcomunicação,
tudo isso constitui maneiras de comunicar e se situa na fronteira entre as
várias formas de cultura popular e a comunicação de massa.
Pensando dessa maneira, a
comunicação não se faz apenas pelos grandes
veículos, jornais, rádios, televisão, bem como não
é exclusiva dos eruditos e acadêmicos. Luiz Beltrão de
Andrade Lima (1967) afirma que a folkcomunicação
é a comunicação dos marginalizados, ou seja, daqueles que
estão à margem da grande mídia e precisam comunicar a seus pares alguma informação.
O que vemos ao redor do mundo
todo é um grande sistema de comunicação que inclui as
formas tradicionais e suas releituras, e também os novos sistemas de
inter-relações em que as manifestações folclóricas,
ou tradicionais, reaparecem na literatura, na música e em outros campos
das atividades consideradas eruditas; ver, por exemplo, o trabalho de Ariano Suassuna, no teatro nordestino, ou a música de
Heitor Villa-Lobos.
Finalizando, é
importante lembrar que esse campo de pesquisa e reflexão torna-se cada
vez mais instigante e pertinente, à medida que lidamos com crescente espetaculização do cotidiano de nossas
sociedades modernas e ocidentais.
Distinções entre
os campos das artes e das práticas populares são, nesse sentido,
decorrentes de especulações antigas e profundas, embora se
evidencie também o quanto, ao longo de tantos séculos, as
atividades separadas, codificadas e controladas de maneiras arbitrárias
vieram se aproximando, gerando formas híbridas e inter-relacionadas.
Mais do que perceber semelhanças,
diferenças, aproximações e afastamentos entre esses
“gêneros”, entretanto, parece importante observar como eles
se misturam naquilo que pode, sim, ser considerado um amplo sistema
comunicativo. As negociações, as travessias e as pontes
construídas a partir da experiência cultural popular como um todo.
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1 Costumamos pensar, por exemplo, que
artistas e intelectuais não trabalham, e há até bem pouco
tempo em nossa história social da música tocar violão era
considerado “coisa de vagabundo”, “de gente que não
tem o que fazer...”
2 A edição original
é de 1922, e a pesquisa foi realizada nessa década.
3 Ex-professora do Departamento de
Antropologia da UFPR. A coletânea reúne trabalhos de José
Loureiro Fernandes, Julio Alvar e Denise Hass.
4 Segundo Stradelli
(apud Fernandes, 1996), potyron, potyrun vem do nheengatú,
língua da família tupi-guarani, e quer dizer
“ajudado”.
5 Médico e antropólogo,
José Loureiro Fernandes foi o fundador do Departamento de Antropologia
da Universidade Federal do Paraná.
6 Prato típico do litoral do
Paraná: cozido de carnes, feito em panela de barro lacrada com massa de
farinha de mandioca.
7 Sem dúvida, a cachaça tem
longa história no litoral paranaense. No entanto, além da
presença de alambiques como substituição das usinas de
açúcar logo abandonadas, como bebida tradicional há que
considerar a cachaça de banana, também muito usada como
acompanhamento no barreado.
8 Essa coletânea contém
artigos de Maria de Lourdes Silva Brito, José Augusto Gemba Rando, Nazir
Bittar, Sandra Maria Leite de Andrade, Joceli de Fátima Tomio
Arantes e Inami Custódio.
9 Os quitutes incluíam:
paçoca de camarão, broinha de milho, cuscuz e docinhos de goma.
As comidas mais pesadas, para dar força aos trabalhadores, servidas no
almoço e no jantar durante o mutirão eram: carne de caça,
peixe assado ou cozido com banana e pirão d’água e o famoso
cuscuz de mandioca com coquinho de indaiá.
10 Sem esquecer que as
bandeiras e as procissões de devotos, depois de um dia de caminhada,
culminavam com a realização de um fandango.
11 Pesquisas na internet
dão conta de que o Kula continua a ser praticado na mesma região, hoje chamada ilhas Kiriwina, e a construção das canoas segue os
mesmo padrões. Mas não foi possível saber sobre as outras
práticas relacionadas ao complexo todo, da maneira etnográfica
com que Malinowski realizou seu trabalho nos anos 20
do século passado.
12 Grupo fundado por dona Mide
e seus filhos, tem longa tradição nas artes musicais e
folclóricas do Paraná. Assim como outros grupos, tem
vários registros no youtube.
13 Os exemplos são
variados e em grande número: espetáculos de dança a partir
da reencenação de mitos e contos tradicionais; lendas que se
tornam peças de teatro; tradições que viram filmes; folguedos
e rituais folclóricos que se tornam literatura;
manifestações religiosas populares que se tornam pinturas e assim
por diante.
14 O conceito de
patrimônio imaterial inclui todas as manifestações
culturais em contraste com os bens materiais que são os prédios,
edificações, logradouros públicos históricos e
tombados.
15 Sobre esses aspectos, ver
Cavalcanti e Gonçalves, 2009.
16 Nos anos 60, o recifense
Luiz Beltrão de Andrade Lima (1967) defendeu a tese Folkcomunicação:
um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de
fatos e expressões de idéias. Foi
criada, assim, a folkcomunicação como
teoria genuinamente brasileira.
Selma Baptista é professora doutora do
Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná.
Desenvolve pesquisas nas áreas de cultura popular, artes cênicas e
carnaval. Coordena, desde 2008, um grupo de pesquisa sobre o carnaval
curitibano.
Recebido em: 30/08/2012
Aceito em: 03/04/2013
BAPTISTA, Selma. Culturas
populares e globalização: as culturas do popular e suas
interfaces. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de
Janeiro, v.10, n.1, p. 221-241, mai. 2013.