Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares,
v. 10. n. 1, mai. 2013
Ana Cretton (CNFCP) Lucila Silva Telles (CNFCP)
Reflexões
sobre investigações e práticas de interação
com o público que frequenta as exposições do Centro
Nacional de Folclore e Cultura Popular. Análise de experiências
que nos permitiram conhecer diferentes questões sobre religiosidade
popular, apontadas pelos visitantes, a partir de ações educativas
em espaços museais.
CULTURA E RELIGIOSIDADE
POPULAR; MUSEU E PÚBLICO; DIFUSÃO CULTURAL E AÇÕES
EDUCATIVAS.
Ana
Cretton (CNFCP) Lucila Silva Telles (CNFCP)
The article presents thoughts on the research and interaction practices with the public attending
the exhibitions of the Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular. It ana-lyses
experiences which have allowed us to understand different issues regarding popular religiosity as indicated by visitors, having
as starting point some educational
actions in museum spaces.
CULTURA AND POPULAR
RELIGIOSITY; MUSEUM AND VISITORS; CULTURAL DIFFUSION AND EDUCATIONAL ACTIONS.
Introdução
Entre as
manifestações da cultura brasileira, o tema da religiosidade
popular traz muitas questões abertas e instigantes para
investigação e reflexão. Com base nas entrevistas feitas
com os visitantes da exposição temporária As muitas faces
de Jorge, na Galeria Mestre Vitalino (entre abril e
agosto de 2011) e na leitura dos livros de opinião (entre dezembro de
1994 e março de 2011) da exposição de longa
duração do Museu de Folclore Edison Carneiro (MFEC), pretende-se
aqui contribuir para uma discussão sobre de que maneiras a
instituição cultural Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular (CNFCP), que abriga essa galeria e esse museu, pode, pelo viés
da pluralidade cultural brasileira, tratar as questões da religiosidade
com que convivemos hoje, considerando os conflitos, as tensões, as
confluências e os “arranjos” inseridos nesse contexto.
Entrevistas com
público visitante da exposição As
muitas faces de Jorge
Dentre as ações
da difusão cultural do CNFCP, destacamos aqui algumas práticas
que visam a maior interação com o público e que resultam
em conhecimento mais apurado das opiniões dos visitantes que frequentam
suas exposições, e outras em que a tentativa de potencializar a
reflexão por parte do público em torno de conteúdos
apresentados é a tônica. Com base na experiência realizada
em 2006, durante a exposição Mandioca: sabores e saberes da
terra, na Galeria Mestre Vitalino, quando foram
feitas diversas entrevistas com o público ao final da visita com o fim
de provocar-lhe a reflexão, o estabelecimento de relações
e a formulação de sínteses sobre a experiência que acabava
de viver, uma iniciativa semelhante foi posta em prática em 2011,
durante a temporada da exposição As
muitas faces de Jorge (figuras 1 e 2).
Ocorre que são Jorge
é cultuado por fiéis de diferentes crenças, e essa
característica resulta no atravessamento de fronteiras sociais e
religiosas. Vários pesquisadores “atribuem grande
importância à intensa conexão estabelecida entre são
Jorge e os orixás Ogum, no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e outros
estados, e Oxóssi, na Bahia, bem como em
algumas casas de candomblé e umbanda no Brasil” (porto; guidi, 2011, p. 22). E justamente pelo fato de cruzar
fronteiras, a devoção a são Jorge é caso
interessante que ajuda a investigar a religiosidade popular brasileira. A exposição foi pensada a
partir dessa diversidade cultural, e os depoimentos dos entrevistados
demonstram que a questão do desrespeito e intolerância à
diversidade religiosa, apesar de levantar muita polêmica, nem sempre
precisa ser assunto tabu.
Durante o processo de
confecção do roteiro e do preparo para a realização
das entrevistas com o público que visitou essa exposição,
na Galeria Mestre Vitalino, entre abril e agosto de
2011, a equipe de consultores1 vivenciou diferentes etapas: no
primeiro momento, foram lidas as entrevistas com os visitantes da
exposição da mandioca, de 2006, e, depois de algumas conversas a
respeito, foi elaborado um roteiro específico para a
exposição sobre são Jorge a partir dos objetivos
traçados com tais ações interativas. A ideia era formular
perguntas que provocassem reflexões assim como ouvir as questões
que esse público traz. No livro de presença da
exposição registraram-se 9.448 visitantes, número,
aliás, bastante significativo para uma temporada de quatro meses. As
gravações foram transcritas para que pudéssemos analisar
as entrevistas, selecionar trechos e sistematizar os dados recolhidos.
O conjunto dos dados das 47
pessoas entrevistadas indica a presença de praticantes de diferentes
crenças nessa exposição. Notamos também que
prevaleceu, entre os entrevistados, a defesa de uma abordagem
democrática, de liberdade religiosa e respeito à
diferença. A seguir, destacamos trecho significativo de entrevista que
exemplifica essa defesa e exalta o aspecto cultural das religiões:
O que você acha de ver a
religiosidade dentro de um espaço de exposição?
Eu acho interessante porque faz
parte da cultura, do povo. Isso é uma coisa inerente a todos os povos,
praticamente. Ainda mais que somos descendentes de europeus, então... separar umbanda, candomblé, essas coisas, não
tem como, porque é parte da nossa cultura que veio da África
também. Eu acho que tem tudo a ver (Entrevistado 32).
Em outro momento, esse
entrevistado defende esse tipo de mostra cultural argumentando que, apesar das
diferenças, o debate é importante, discordando do senso comum:
“dizem que religião, futebol, não se discute, mas se
discute sim. Não é brigar, é discutir, é ver coisas
diferentes, e a gente tem que estar aberto para ver coisas diferentes a todo momento, não adianta” (Entrevistado 32).
Portanto, além de exaltar os aspectos culturais da religiosidade popular
e reconhecer a importância de exposições desse tipo, o
entrevistado entende que tais ações podem contribuir para a
superação de preconceitos e limitações,
argumentando que é preciso se dispor a ver e discutir “coisas
diferentes”.
Conhecer detalhes da
história do santo foi comentário recorrente entre as respostas
registradas, o que reforça o fato de a exposição ter
cumprido uma das funções do museu como local de conhecimento e
informação: “uma exposição faz com que a
pessoa tenha interesse de ir, ler e... se informar” (Entrevistado 34).
Outros visitantes compartilham dessa opinião:
Acho interessante; assim como a
gente soube de coisas que não sabia, é uma maneira de conhecer...
nossa identidade.
Vocês acham que o museu
pode fazer esse papel?
Com certeza, até para
quem não é católico, ou não é
espírita, nem da umbanda, é sempre uma informação,
pra gente ter conhecimento. A gente não sabia (Entrevistado 35).
Enquanto uma parte do
público aprecia o fato de diferentes religiões estarem
contempladas na exposição – “Achei interessante essa
relação da umbanda com o catolicismo, tem o Oxóssi
para simbolizar o candomblé” (Entrevistado 32) –, alguns
comentários identificam as tensões que permeiam esse campo e os
preconceitos que saltam quando se fala em religiões afro-brasileiras,
como candomblé e umbanda.
Certos visitantes se mostram
apreensivos com relação à posição dos
evangélicos “mais fechados” ou “mais rigorosos”,
que não aceitam determinadas representações, como
mencionado em várias entrevistas:
O espaço aqui é
um ambiente para todos; vêm pessoas de outras religiões. Se
nós fôssemos evangélicos, não tínhamos nem te
dado essa entrevista. Aqui é um lugar que é público para
todas as religiões. A religião evangélica é sempre
mais fechada, mais rigorosa, essas coisas de adoração eles
não aceitam (Entrevistado 30).
Essa perspectiva fortalece a
defesa de mostras culturais desse tipo, já que amplia o campo da
religiosidade para além das “verdades”
inquestionáveis, entendendo-o enquanto espaço cultural
potencialmente propício para gerar conhecimento, debate
democrático, quebra de preconceito, aceitação (ou
não) da diferença e da liberdade religiosa. Podemos inferir que o
fato de a exposição propor a leitura dessas imagens e
crenças incluindo a perspectiva da religião católica, da
umbanda e do candomblé, conforme o próprio nome da mostra insinua, As muitas faces de Jorge, fez com que os visitantes
compartilhassem essa diversidade, respeitosamente, num mesmo espaço
público.
Precisamos, entretanto, levar
em conta que o público que entrou na galeria2 para visitar a
exposição sobre são Jorge conhecia de antemão o
conteúdo da mostra, já que o painel com fotos na fachada
informava qual era o assunto exposto − haja vista nossa
observação, escrita após uma das entrevistas:
“Quando desliguei o gravador, ela (Entrevistada 12) continuou sentada,
conversando, e comentou que aquele painel estava muito bonito. Contou que tinha
uma irmã evangélica e que, se ela passasse ali, era capaz de
desviar o caminho e ir pela alameda mais
distante.” É bem provável, portanto, que não
tenhamos recolhido relatos tão críticos como alguns depoimentos
encontrados nos livros de opinião da exposição do Museu de
Folclore, pelo fato de o visitante poder deliberadamente escolher entrar ou
não na galeria, com base em critérios pessoais, a partir do que
visualizava na fachada do prédio que a abriga (Figura 3).
Situação muito
diversa vive o visitante que entra na exposição de longa
duração do MFEC e que muitas vezes manifesta surpresa e
incômodo pela presença dos objetos expostos no módulo
Religião, embora as peças selecionadas para aquele
espaço representem o catolicismo popular, o candomblé e a
umbanda, sendo, portanto, equivalentes às expressões presentes na
exposição sobre são Jorge. Voltaremos ao assunto na
segunda parte deste texto, pois a comparação traz dados
importantes a respeito das reações do público frente
às duas exposições, sobretudo no que se refere à
força simbólica dos objetos museológicos.
Em sua presença
incontornável e difusa, usados privada ou publicamente, colecionados e
expostos em museus ou como patrimônios culturais no espaço das
cidades, os objetos influem secretamente na vida de cada um de nós. Perceber
e reconhecer esse fato pode trazer novas perspectivas sobre os processos pelos
quais definimos, estabilizamos ou questionamos nossas memórias e
identidades (gonçalves,
2007, p. 10).
Numa primeira
interpretação, alguns comentários críticos
encontrados nos livros de opinião da exposição de longa
duração do Museu podem ser rotulados como preconceituosos. E
são, realmente, já que manifestam intolerância religiosa em
relação aos cultos afro-brasileiros:
Esse andar é muito macumbado, vocês precisam de Jesus. O restante gostei (set. 1995-jan. 1996, p. 52 verso). Como
é que vocês conseguem trabalhar num lugar demoníaco e
satânico como esse? Se benzem antes, né? (jan.-jul. 2003, p. 12). Está tudo
repreendido no nome de Jesus! Este lugar tem que ser liberto desses demônios.3 Consagro este lugar a Jesus, eu
profetizo salvação e libertação neste lugar em nome
de Jesus! (set. 2001-jan. 2002, p. 37).
Se, entretanto, compararmos
tais comentários com os depoimentos dos devotos de são Jorge
quando associam o espaço expositivo ao espaço
ritualístico, estamos observando duas faces de um mesmo fenômeno.
Vejamos o caso de uma visitante que descreve, de modo peculiar, a
relação que manteve com o espaço expositivo:
Esse tipo de evento tem que
estar constante porque às vezes as igrejas estão fechadas. Tem determinados horários, até por
regulamento, não sei como é que funciona, tem horário. E
aqui não, aqui fica livre, as pessoas conseguem
chegar lá, orar, enfim, só visitar. Mas é um momento, um
momento que você volta a sua espiritualidade, ou não... mas você fica... realmente,
muito interessante (Entrevistada 25).
Ah, você já veio
várias vezes?
Eu venho sempre. Eu não
passo aqui sem entrar, de jeito nenhum. Ora pra pedir, ora pra agradecer,
enfim, assim é a vida, né... é isso. (…) Hoje, então, que eu estava
precisando fazer uma oraçãozinha, de repente... já estou até me sentindo melhor (Entrevistada
25).
Nesse caso específico,
fica claro que a visitante, devota de são Jorge, se relaciona com o
espaço expositivo como um local ritualístico, ao qual volta com
regularidade a fim de fazer suas orações, da mesma forma que
faria numa igreja. O exemplo evidencia a força das
representações ou, em outras palavras, o poder de
evocação dos objetos e das amplas possibilidades de leitura,
interpretação e ressignificações
que os museus podem proporcionar a seus usuários.
Seja no contexto de seus usos
sociais e econômicos cotidianos, seja em seus usos rituais, seja quando
reclassificados como itens de coleções, peças de acervos
museológicos ou patrimônios culturais, os objetos materiais
existem sempre, necessariamente, como partes integrantes de sistemas
classificatórios. Esta condição lhes assegura o poder
não só de tornar visíveis e estabilizar determinadas
categorias socioculturais, demarcando fronteiras entre estas, como também
o poder, não menos importante, de constituir sensivelmente formas
específicas de subjetividade individual e coletiva (gonçalves, 2007, p. 8).
É interessante notar
como os objetos, por conta de sua carga simbólica, provocam processos
subjetivos de identificação (ou negação) identitária e como essa experiência influencia
a avaliação que o visitante faz das exposições
(Figura 4).
Observamos, ainda, como o
processo das entrevistas pode produzir nos sujeitos entrevistados a
possibilidade de formulação de sínteses sobre a
experiência de visita à exposição. As perguntas
provocam elaborações sobre o que foi visto, lido, sentido e
apreciado pelo visitante. A formulação das respostas faz a
mediação entre a experiência da visita e a volta ao
espaço público da rua. O visitante é convidado a parar,
pensar e elaborar comentários, antes de retomar seu ritmo cotidiano.
Para os profissionais do CNFCP,
as entrevistas possibilitaram conhecer os comentários do público,
reunir um mínimo de informações a respeito do que pensam e
sentem os visitantes no contato com as exposições, constituindo
também uma forma de exercer outra função fundamental de
toda instituição cultural, que é a de
comunicação com o público. As respostas gravadas,
transcritas e analisadas podem configurar um termômetro que oriente,
segundo a perspectiva do público, a reflexão sobre melhorias
futuras, falhas apontadas, acertos e erros do trabalho realizado. Do mesmo
modo, a leitura e sistematização dos livros de opinião
compuseram ação significativa nesse sentido, como veremos a
seguir.
Análise dos livros de
opinião da exposição de longa duração do
Museu de Folclore Edison Carneiro
O Museu reúne objetos
representativos de diferentes modos de vida e formas de expressão de
vários grupos culturais da sociedade brasileira. O enredo dessa
exposição, apresentado em torno dos grandes temas Vida,
Técnica, Religião, Festa e Arte, não pretende esgotar a
pluralidade das manifestações culturais, trazendo apenas uma
amostra do que, lá fora, continua vivo e em permanente transformação
(CNFCP, 1996).
A fim de conhecer melhor os
comentários do público que visitou a exposição de
longa duração desde a inauguração de sua atual
montagem, em 1994, uma equipe de consultores4 sistematizou os dados
encontrados nos livros de opinião de dezembro de 1994 a março de
2011, a partir de certas categorias e subcategorias, dividindo-os em três
campos: elogios, críticas e comentários. Na análise
subsequente a equipe fez descobertas interessantes. Um dos importantes dados
verificados, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos, foi que a
área dedicada à religiosidade é o módulo
temático mais comentado. Embora tenha recebido 253 críticas, foi
o único módulo que obteve mais de 100 comentários
positivos (131), e esses relatos são
expressivamente mais significativos se compararmos com os demais
módulos, que tiveram números bem menores de elogios: Vida, 26;
Festa, 23; Arte, 20, e Técnica, 20. Percebe-se, portanto, que esse
trecho da exposição é o que mais provoca respostas do
público, sejam elas positivas ou negativas.
É preciso dizer que as
representações materiais expostas no módulo
Religião provêm do catolicismo popular, do candomblé
e da umbanda, três das muitas religiões que, em convívio
tolerante ou em conflito, representam significativamente as crenças dos
brasileiros (figuras 5 e 6).
A título de exemplo,
destacamos a seguir alguns dos elogios encontrados: “Não imaginava
o como é rico em cultura este museu. Completíssimo e apaixonante.
Sobre religião, nota 10!” (maio 2007-maio 2008, p. 30). “Eu
achei a exposição muito interessante. Vai me ajudar a estudar
este ano na 4a série um pouco sobre as
religiões” (maio 2007-maio 2008, p. 66, verso). “Pô é D+, principalmente a cultura do
Candomblé” (jan.-jun. 2004, p. 30,
verso). “Apreciei muito poder conhecer sobre: Umbanda, Candomblé e
outras religiões muito discriminadas pela sociedade” (jun.-nov. 2006, p. 82, verso). “Interesting.
Enjoyed combination of Christian and pagan ritual” (jun.-out. 2004,
p. 39, verso). “Adorei a parte religiosa. Principalmente a da Umbanda, só faltam mais imagens” (ago.
1996-jan. 1997, p. 12, verso).
Mais recentemente, sobretudo a
partir de 2000, as queixas foram mais recorrentes, e essa
constatação pode estar relacionada à expansão dos
cultos neo-protestantes5 no Brasil e
à questão complexa da intolerância à diversidade
religiosa. Mais do que o número de comentários, chama a
atenção o aumento da agressividade nas expressões, o que
indica a presença do preconceito aos cultos afro-brasileiros:
“É uma merda! Macumba, essas imagens de macumba e vários
objetos do demônio!” (jul.-dez. 2003, p.
43). “Eu gostei muito, só não gostei da macumba; eu sou
evangélica” (nov. 2008-jun. 2009, p. 92).
“Sugestão: tira esse candomblé” (maio 2007-maio 2008,
p. 24). “Pô, isso é macumba. Nada
a ver” (maio 2007-maio 2008, p. 56). Nestes últimos casos, as
coisas se confundem, e a opção religiosa impede os sujeitos de
pensar a religiosidade em sua dimensão cultural, e as
relações com o diferente são permeadas por tensões.
Alguns registros reivindicam a
representação de outros referenciais, sob o argumento de
contemplar de modo mais amplo a diversidade religiosa, sem no
entanto rejeitar o que está exposto. O discurso se apresenta com
ponderações, sem agressividade: “Bom, talvez
devêssemos complementar com as religiões evangélicas e
judaicas que compõe parte de nossa cultura” (jul.-nov. 2005, p. 36). “Podia ter mais coisas sobre
espiritismo” (jan.-nov. 2000, p. 66). “Na
parte destinada à religião não tem nenhum exemplar da
bíblia sagrada, será descuido ou
discriminação?” (out. 2004-jun. 2005, p.
47, verso). “Deveria ter coisas evangélicas!!!”
(out. 2004-jun. 2005, p. 73, verso).
Por outro lado, há
sugestões e demandas de aprofundamento ou detalhes de
informações sobre as religiões de matriz africana:
“Deveria dar mais atenção ao culto dos orixás no
Brasil. Um assunto tão extenso e importante, sendo mostrado em pequenas
proporções. Demais, ótimo...” (dez. 1994-abr. 1995, p. 113, verso). “Falta o resto dos
orixás, mas o resto é legal!” (out. 2000-set. 2001, p. 103). “Na religião poderiam colocar os
nomes dos orixás” (ago. 1996-jan. 1997, p.
21).
Há também
opiniões de fundo conceitual, permeadas por visões parciais, que
contrariam a perspectiva antropológica a partir da qual a narrativa da
exposição foi construída: “Achei que o terceiro
andar é muito escuro e tem muitas peças de macumba. Acho que o
folclore brasileiro não tem nada a ver com o que os negros africanos
trouxeram para o Brasil, principalmente os diabos aqui mostrados. Agora no que
se toca ao artesanato brasileiro, aí está o verdadeiro folclore e
está ótimo” (set. 1995-jan. 1996, p.
96, verso).
Os comentários,
portanto, variam desde a contemplação apreciativa até a
rejeição parcial ou total de alguns objetos expostos, passando
também pela reivindicação de mais
informações e de outras representações. Há
também registradas associações de caráter subjetivo
na leitura das coleções em exposição. Foi
interessante observar que na exposição sobre são Jorge
ocorreu pacífica convivência entre as diferentes
representações expostas, talvez pelo fato de o santo ser cultuado por diferentes segmentos sociais e por devotos
de crenças diversas:
Trata-se de um santo que
não é cultuado apenas por católicos, mas também por
umbandistas e candomblecistas; não apenas pelos soldados e policiais,
mas também por transgressores da lei; não apenas por uma classe
social, mas por muitas. Trata-se assim de um santo que dilui diferenças
sociológicas (...) sem esquecer completamente suas tensões
cotidianas, em respeito à devoção (porto, guidi, 2011, p. 45-46).
O público diante de
objetos de devoção em museus − outros casos
Os objetos religiosos tendem a
carregar o que, na antropologia, é chamado de mana (mauss,
2003), categoria de difícil definição, mas que está
presente em diferentes contextos etnográficos, ainda que receba nomes
variados. “É o axé dos negros iorubanos, o wakan e o orenda dos
índios norte-americanos, etc.” (barreto, 2012).
Grosso modo, e no que tange à magia, mana
nada mais é do que uma força mística e fluida que abarca
misteriosamente todas as coisas e os seres do universo. É, nas palavras
do próprio Mauss, “verbo, substantivo e
adjetivo”, “localizável e onipresente”,
“subjetiva e objetiva”, “maléfica e
benéfica” concomitantemente (barreto,
2012).
Portanto, mesmo deslocados dos
locais de culto, os objetos eleitos como religiosos ativam crenças e
práticas dos membros das instituições, e também
animosidades e polêmicas. Vejamos alguns exemplos de apropriação
que, em outros museus, o público faz diante de determinados objetos pela
simbologia que trazem, reagindo ao espaço expositivo como espaço
religioso.
Caso curioso, estudado por
Andréa Paiva, sobre o Museu do Negro, localizado no segundo andar da
Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos,
no Rio de Janeiro, pode nos ajudar a pensar sobre essa questão. A
pesquisadora reconhece forte ambiguidade no espaço do museu já
que muitos dos visitantes, sobretudo devotos, o veem como espaço
sagrado. Ainda que se tratando de acervo que registra
os maus-tratos da escravidão, como variados objetos de tortura, é
comum as pessoas rezarem diante dos objetos expostos. Próximo ao livro
de assinaturas há “santinhos” da escrava Anastácia,
figura reverenciada pelos devotos que visitam a instituição.
Interessa à pesquisadora investigar “os diversos empregos da
categoria patrimônio e os caminhos pelos quais percorrem a
devoção e a santidade do ponto de vista do público de
fiéis no espaço do museu que contemplam e se identificam com os
objetos contemplados” (paiva,
2008, p. 9).
Nesse caso, assim como ocorre
em exposições do CNFCP, as práticas de
devoção no espaço do museu demonstram como os visitantes
lhe atribuem a condição de
possível lócus sagrado enquanto espaço
ritualístico. O assunto levanta uma séria de questões
instigantes para investigação:
O que podemos nos perguntar
é de que forma a antropologia dá conta de analisar a
devoção nesse contexto. De que forma podemos falar sobre
devoção em museus? De que forma podemos falar sobre
patrimônio e devoção se levarmos em
consideração as diversas funções e usos da
categoria “patrimônio” (paiva,
2008, p. 9).
Outro caso interessante ocorreu
no Museu das Culturas Dom Bosco, na Amazônia, na ocasião de
transposição de ossos humanos e objetos sagrados pertencentes aos Bororo. Tal processo, realizado em 2006 e 2007, envolveu
desmontagem, transporte e colocação do acervo em novo
espaço expositivo. É preciso dizer que a riqueza e a complexidade
do acervo Bororo despertam o interesse de pesquisadores, e, na América
do Sul, essa é uma das etnias indígenas mais estudadas. A equipe
do museu convidou os Bororo para participar do
processo de transferência e manipulação dos objetos,
considerando ser esse o procedimento ético ideal. O aspecto mais
relevante para as reflexões que fazemos neste texto, porém,
é justamente o modo como se deu a participação de
representantes dessa etnia durante o processo de manuseio das peças,
momento em que se mesclaram técnicas museológicas e práticas
ritualísticas de grande importância para os Bororo.
Destacamos do artigo sobre esse processo este trecho:
O silêncio e os olhares
de compaixão diante dos ossos/almas formavam uma atmosfera de
emoção e respeito, como em seus funerais. Quando terminaram, os
objetos foram acondicionados em pequenas caixas individuais de etafoan e colocados em uma grande caixa de madeira, onde
permaneceram até o dia em que foram
transportados para as novas instalações do Museu das Culturas Dom
Bosco (carvalho, silva, 2012, p. 8).
O ritual descrito a seguir foi
realizado dentro do espaço do museu, como parte do processo de
transposição do acervo Bororo no Museu das Culturas Dom Bosco. Na
perspectiva dos Bororo, os chamados bapo, chocalhos grandes que acompanham os cantos em seus
rituais, são considerados sujeitos, e, em movimento, “impregnam de
vida os objetos, animais, seres humanos e espíritos” (carvalho, silva, 2012, p. 9), o que corrobora o conceito de mana, a
que nos referimos.
Cada qual com seus bapo-doge, chocalhos grandes, iniciaram o canto Cibae Etawadu com a participação
das mulheres e dançaram em círculo durante mais de uma hora.
Neste momento solene do ritual os instrumentos soam acompanhando o canto como
percussão. A emissão dos sons não se limita a representar
os mortos, é o próprio morto. O bapo
é uma espécie de ponte entre os mundos bororo, parte vital do aroe ekeroia: ao movimentar-se
faz pulsar vivos e mortos, ao rodar, impregna de vida os objetos, animais,
seres humanos, espíritos. Os bapo não
são objetos, são sujeitos (carvalho, silva, 2012, p. 9).
Nas reuniões
preparatórias do trabalho evidenciou-se que, “para os Bororo, os mortos ali representados pelos ossos e
crânios enfeitados transformaram-se em Aroe e
podem circular pelos três céus revisitando a aldeia, seus
parentes, tanto para apoiar ou premiar quanto para castigar”. Ao final do
processo houve reconhecimento, por parte dos Bororo,
do espaço do museu como espaço ritualístico,
possível de representar o “céu bororo”, conforme a
comparação feita. “Depois de fechada a vitrine, alguns
Bororo comentaram que o museu, ao tentar retratar o caminho das almas, linha
imaginária que corta a aldeia, dividindo-a em duas metades, acabou
retratando o céu bororo” (carvalho, silva, 2012, p. 7 e 9).
Podemos perceber que, embora os
contextos e as atribuições de significados entre as culturas
possam variar, como os casos aqui citados, é comum encontrarem-se a
reverência e a devoção evocadas por determinados objetos
considerados sagrados, ainda que estejam deslocados de seus locais de culto. O
curioso é que seu poder evocativo ultrapassa os limites do tempo e do
espaço, possibilitando que práticas devocionais ocorram em
instituições culturais cuja finalidade, em princípio,
é contemplativa. Pela própria amplitude da representação,
seria impossível controlar a apropriação que dela faz o
público.
o patrimônio é usado
não apenas para simbolizar, representar ou comunicar: ele é bom
para agir. Ele faz a mediação sensível entre seres humanos
e divindades, entre mortos e vivos, passado e presente, entre céu e a
terra, entre outras oposições. Não existe apenas para
representar ideias e valores abstratos e para ser contemplado (gonçalves, 2007, p. 114).
Muitas são as
contribuições de Reginaldo Gonçalves para a
reflexão sobre o campo de estudos do patrimônio, das
coleções e dos objetos. É indiscutível que no
domínio específico da religiosidade essa discussão ganhe
ainda maior complexidade.
Diversidade religiosa em
contextos educativos
Como vimos, o tema da
diversidade de religiões gerou, no contexto do espaço
museológico, oportunidade para problematizar questões que
envolvem a pluralidade cultural brasileira. Essa discussão não
parece estar circunscrita ao campo dos museus, conforme reflexão de
Lygia Segala (2005, p. 109) em sua análise
sobre o tema no contexto das escolas:
Por último, cabe levar
em conta, nos debates sobre as culturas populares e a escola, o crescimento
significativo de professores evangélicos no ensino fundamental. Esse
dado exige reflexão, atenção respeitosa, que considere os
diferentes sistemas de crenças do país. Fortemente marcada pelo
catolicismo ibérico e pelas tradições africanas, a
história cultural brasileira precisa ser conhecida em sala de aula. Mas,
talvez tenhamos que distinguir o compreender e o participar, o saber sobre a festa
do santo e a celebração obrigatória no calendário
escolar. As diferenças religiosas, por vezes apaixonadas, atravessam
hoje, com muita evidência, o aprendizado sobre o Brasil. Nessas
tensões entre ‘verdades’, que conformam as disciplinas
escolares, redesenham-se conhecimentos, memória e projetos.
É preciso levar em
conta, portanto, que tanto o museu quanto a escola necessitam amadurecer a
discussão sobre o tema, por mais polêmico que seja. Os
técnicos do programa educativo do CNFCP vivenciam essas
experiências e tensões no contato com professores. A
questão de como lidar com essa diversidade sob a perspectiva
histórica pode gerar diálogos férteis entre os
representantes das instituições culturais e escolares, já
que nesses contextos são muitas as situações de conflitos,
enfrentamentos, preconceitos e discriminações. Em vez do silenciamento, museólogos e educadores precisam
investigar ferramentas para problematizar tais questões, desenvolvendo
projetos que produzam reflexões profícuas. No entendimento de
Tomaz Tadeu da Silva (2000, p. 73), não basta “o apelo à
tolerância e ao respeito para com a diversidade e a
diferença”. Seria necessário buscar estratégias
pedagógicas e curriculares que possibilitem problematizar essas questões
e indicar como os processos de construção da identidade e da
diferença são “processos que envolvem
relações de poder” (p. 96).
Cabe destacar que esses temas são
amplamente contemplados no volume 10 dos Parâmetros Curriculares
Nacionais, documentos elaborados e distribuídos nas escolas pelo
Ministério da Educação como instrumentos de apoio para as
reflexões e práticas pedagógicas dos educadores. Conforme
consta, “o documento Pluralidade Cultural trata dessas
questões” (da diversidade e do respeito à diferença),
“enfatizando as diversas heranças culturais que convivem na
população brasileira, oferecendo informações que
contribuam para a formação de novas mentalidades, voltadas para a
superação de discriminação e exclusão”
(brasil, 1997, p. 15).
Passaram-se mais de dez anos desde a publicação desse documento.
Sua elaboração evidencia a complexidade dessas questões e
a necessidade de problematizá-las. Assim como os PCNs,
mais recentemente surgiu a lei 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do
ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na
educação básica. Resta-nos investigar que
ações educativas poderão realmente contribuir para que
tanto museu quanto escola possam caminhar nesse
sentido.
Referências
Bibliográficas
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Stefson Neiva. Mana: aspectos centrais a
partir das obras de Durkheim e Mauss.
http://www.artigonal.com/politica-artigos/mana-aspectos-centrais-a-partir-das-obras-de-durkheim-e-mauss-857067.html
(acesso em 20.9.2012).
BRASIL. Ministério da
Cultura. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
Curriculares Nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual.
Brasília: MEC/SEF, 1997.
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SILVA, Dulcilia L. Oliveira. Museu das Culturas Dom
Bosco: o caminho das almas. Arquivo documental.
http://www.mcdb.org.br/materias.php?subcategoriaId=12&id=96& (acesso em
25/09/2012).
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Folclore Edison Carneiro. Rio de Janeiro: CNFCP, 1996.
CONTINS, Marcia.
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cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, 2004.
GONÇALVES, José
Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e
patrimônios. Rio de Janeiro: Garamond,
2007.
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dádiva. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São
Paulo: Cosac & Naify,
2003.
PAIVA, Andréa. Os
devotos e as cidades. Trabalho apresentado na 26a
Reunião Brasileira de Antropologia, Porto Seguro, 2008.
PORTO, Maria Beatriz; GUIDI,
Rebecca. As muitas faces de Jorge. Rio de Janeiro: IPHAN/CNFCP, 2011.
SEGALA, Lygia. Uma
dinâmica de reinvenção das culturas populares. In: Seminário
de Políticas Públicas para as Culturas Populares. Anais...
São Paulo: Instituto Polis; Brasília: MinC, 2005.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção da
identidade e da diferença. In: ______ (Org.). Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis:
Vozes, 2000.
SILVA, Vagner Gonçalves da. Transes em trânsito −
continuidades e rupturas entre neopentecostalismo e religiões
afro-brasileiras. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Orgs.).
As religiões no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2006.
1 A equipe de consultores foi composta
por Ana Cretton, Débora Reina, Luiz Rufino e
Maíra Freire, profissionais oriundos de diferentes campos de estudo
(educação, letras, memória social, museologia),
com o apoio do estagiário de pedagogia, Vinícius
Monção (UFRJ), sob a supervisão de Lucila Telles.
2 A entrada da Galeria Mestre Vitalino é acessível pelo parque do Museu da
República, e grande parte dos entrevistados desconhecia o fato de que
essa é uma galeria do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.
3 Em artigo sobre a relação
dos pentecostais com as religiões afro-brasileiras, Marcia
Contins (2004, p. 41) comenta que, “ao
assumirem a ‘palavra de Deus’, assumem também o combate ao
demônio, que é representado pelas religiões afro-brasilerias. O ‘outro’ dos pentecostais
brasileiros é a umbanda, é o candomblé”.
4 A equipe de consultores e
técnicos mencionada na nota 1 foi acrescida de mais um membro, Carolina Pontim.
5 Sobre o assunto, ver artigo de Vagner
Gonçalves da Silva (2006).
Ana Cretton
é mestre em
memória social pela UNIRIO, com especialização em
Literatura Infanto juvenil, pela UFF e
em Leitura: teoria e prática, pela UniverCidade.
Trabalhou em programas de leitura como LerUerj
e Proler. Atuou como professora em escolas
particulares e foi professora substituta no Instituto de Artes da Uerj. Atualmente trabalha no
Programa Educativo do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Lucila
Silva Telles é graduada em letras pela UFRJ e coordenadora da
Difusão Cultural do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.
Recebido em: 22/06/12
Aceito em: 06/09/12
CRETTON, Ana, TELLES, Lucila
Silva. Religiosidade popular em foco: o que diz o público visitante de
exposições. Textos escolhidos de cultura e arte populares,
Rio de Janeiro, v.10, n.1, p. 201-219, mai. 2013.
Figura 1: Entrada da
exposição As muitas faces de Jorge,
Galeria Mestre Vitalino, Rio de Janeiro (RJ) Foto
Francisco Moreira da Costa
Figura 2: Interior da
exposição As muitas faces de Jorge,
Galeria Mestre Vitalino, Rio de Janeiro Foto
Francisco Moreira da Costa
Figura 3: Painéis na
parte externa da Galeria Mestre Vitalino com fotos da
exposição As muitas faces de Jorge, Rio
de Janeiro Foto Francisco Moreira da Costa
Figura 4: Interior da
exposição As muitas faces de Jorge,
Galeria Mestre Vitalino, Rio de Janeiro Foto
Francisco Moreira da Costa
Figura 5:
Ambiente do módulo Religião da
exposição de longa duração do Museu de Folclore
Edison Carneiro Foto Francisco Moreira da Costa
Figura 6: Oxumarê, 1996, barro, tabatinga, tauá;
peça exposta no módulo Religião
do MFEC Acervo CNFCP Foto Francisco Moreira da Costa