Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares,
v. 10. n. 1, mai. 2013
Jorge
Felipe Columá (Unisuam/Faetec) Simone Freitas Chaves (UFRJ)
A
capoeira possui na religiosidade um dos pilares de seu imaginário
social. O berimbau e o atabaque emprestam seus atributos sagrados e são
reverenciados na roda, seus cânticos narram causos e lendas de deuses e
orixás, que, junto ao catolicismo, compõem o sincretismo de uma
religiosidade peculiar às manifestações culturais dos
africanos e seus descendentes no Brasil. Assim, o objetivo que nos orienta
neste estudo, de cunho bibliográfico, é desvelar aspectos do
sagrado presentes no jogo da capoeira, esperando contribuir para o entendimento
de algumas tramas simbólicas que constituem esse elemento da cultura
corporal.
CAPOEIRA, SAGRADO,
IMAGINÁRIO SOCIAL.
Jorge
Felipe Columa (UNISUAM / Faetec) Simone Freitas
Chaves (UFRJ)
Capoeira
has religiosity as one of the
pillars of its social imaginary. The berimbau and atabaque lend their sacred attributes
and are revered in the circle, their
songs narrating stories and legends
of gods and
deities, which, together with Catholicism,
make up a religious syncretism peculiar to the cultural manifestations of Africans and
their descendants in Brazil. Thus, the
purpose that guides us in this study, which carries
a bibliographical aim, is
to unveil the sacred aspects in the game of capoeira, hoping to contribute to the understanding of some symbolic frame that constitute this element of
corporeal culture.
CAPOEIRA, SACRED, SOCIAL
IMAGINARY.
INTRODUÇÃO
A capoeira, como uma das
manifestações da cultura afro-brasileira, conta sua
história e de seus fazedores tendo a religiosidade1 como um
dos pilares constituintes de seu imaginário social. Instrumentos como o
berimbau e o atabaque, além de marcar o ritmo do jogo, possuem estreita
relação com aspectos religiosos afro-brasileiros. A música
e o canto são elementos simbólicos, narrando causos e
lendas de deuses, orixás e encantados, que junto ao catolicismo
dominante compõem o sincretismo fundador de uma religiosidade peculiar
às manifestações culturais oriundas dos africanos e seus
descendentes no Brasil.
Teves (1992) esclarece que investigar uma
realidade social é contar com um conjunto coordenado de
representações, uma estrutura de sentidos e significados que
circula entre membros de determinados grupos sociais, mediante diferentes formas
de linguagem, matriciando e alicerçando as
ações. Denominamos esse conjunto imaginário social, que se
expressa nas diversas produções humanas, fornecendo
indícios das relações sociais estabelecidas no interior
dos grupos. Dessa forma, ao traçar o objetivo deste estudo, que é
desvelar alguns aspectos do sagrado presentes no jogo da capoeira, esperamos
contribuir para o entendimento das tramas simbólicas que constituem o
imaginário desse elemento da cultura corporal presente no universo da
educação e fortemente marcado por aspectos míticos e
religiosos.
Roger Caillois
(1938) assevera que as narrativas míticas desempenham importante papel
exaltando e codificando a crença, e, por conseguinte, sugerindo os
princípios que irão garantir a eficácia do rito. Regrando
e orientando os membros do grupo, ainda mais, apontando caminhos a seguir
oferecendo um modelo exemplar que, entre outros aspectos, sacraliza o homem.
Pierre Ansart
(1978, p. 31), antropólogo estudioso dos imaginários sociais,
afirma que a religião vai substituir o mito nas
explicações sobre o mundo e sua ordem, justificando as
razões de ser da existência social. “A religião
aponta o desejável, ordena as ações individuais para a
realização dos justos desejos, exalta as formas supremas de
realização pessoal.” O autor assevera que enquanto o mito
estende sobre todo o grupo a onipresença de suas práticas e de
seus significados, a religião hierarquiza os fazeres, dando aos
escolhidos o poder de conservar os significados
comuns e de inculcá-los aos demais através dos dogmas, que
representam as verdades inquestionáveis no discurso religioso. Veremos
como a capoeira reflete em suas práticas aspectos sagrados e
ritualísticos presentes no universo da religiosidade.
A roda de capoeira
Reis (2000) caracteriza a roda
de capoeira em um círculo de 2,5 metros de raio, circundado por outro,
à distância de dez centímetros do primeiro. A roda descrita
pela autora nos remete às realizadas em recintos fechados ou academias,
pois nas que se formam em locais informais ou na rua, como manda a
tradição dos antigos mestres, dificilmente há
espaço para marcação tão precisa e parametrizada.
Na visão de Silva (2003, p. 90), porém, a roda de capoeira seria
um mundo simbólico, feito em “pequenos metros, por dois jogadores
ao som de uma orquestra de tocadores de percussão, sob a
animação de vários(as)
capoeiristas em forma de círculo, uma espécie de disputa
dançada, e no qual o espaço se parece ter intenção
de conquista e superação”.
A roda de capoeira
começa tradicionalmente após a reza ou ladainha, cantigas que
trazem em sua melodia algum enredo, que pode ser de amor, histórico, de
disputa, aviso ou louvação. Personagens consagrados e até
mesmo míticos nesse universo, como mestre Bimba, mestre Pastinha ou
Besouro Mangangá, revivem nas letras entoadas pelos capoeiristas,
sugerindo comportamentos e ações corporais que vão da
brincadeira ou jogo amistoso à mais cerrada
luta. Vejamos trechos de algumas dessas cantigas:
Devagar, devagarinho,
Pastinha mandou jogar bem miudinho (domínio público)
Bimba mandou matar, Bimba
mandou jogar, Bimba mandou lutar (domínio público)
Reza pra Besouro pra ele poder
viver, reza pra Besouro que ele vem te proteger (mestre charm)
Vem brincar mais eu, vem
brincar mais eu, vem brincar mais eu mano meu, vem brincar mais eu (domínio
público)
Compreendemos a roda de
capoeira como um importante rito, pois, na perspectiva de Eliade
(1996), o rito reatualiza o mito, dando sentido às práticas
sociais. A preparação religiosa que antecede algumas rodas, a
composição hierárquica dos capoeiristas, a
disposição dos instrumentos, a bênção ao
pé do berimbau antes do jogo, assim como a ordem das cantigas entoadas
na roda, são exemplos que possibilitam essa existência atemporal
dos personagens míticos da capoeira, que, além de louvados nas
cantigas, mantêm algumas de suas práticas vívidas nas rodas
atuais. As cantigas, os causos e as metáforas cumprem o papel de
revisitar mitos como Mestre Bimba, Mestre Pastinha e
Besouro Mangangá, revivendo as ações heroicas desses
mestres, assim como as expiações que os levaram a ocupar um lugar
sagrado no imaginário social da capoeira, provocando a adesão
emocional dos praticantes.
As danças em roda
são de origem milenar e estão presentes em todas as culturas (cascudo, 2001). Recorremos à simbologia descrita por
Chevalier e Gheerbrant (2003, p. 783) e encontramos
uma concepção de roda diferente daquela descrita como um
círculo perfeito. Para os autores, a roda contém uma parcela de
imperfeição, pois “se refere ao mundo do vir a ser, da criação
contínua, portanto da contingência e do perecível.
Simboliza os ciclos, reinícios e renovações”, ou
seja, os ritos e as manifestações culturais de um povo.
Na roda de capoeira “a
linguagem corporal (...) tem muita importância, pois é ela que
irá nos favorecer um pequeno resumo dos significados contidos na roda
dos capoeiristas” (silva, 2003, p. 91). Esses significados, segundo o
autor, se confundem com a vida social dos praticantes da modalidade em
questão. Mestre Moraes (1988, p. 41) corrobora essa passagem e completa
“o capoeirista deve ter a condição de fazer uma
correlação entre o que ele viveu dento do círculo menor, a
roda de capoeira, e o que vai acontecer fora”. Podemos entender essas
relações como experiências míticas fornecendo
sentidos que agregam valores comuns aos membros dos grupos.
A roda então passa a ser
palco metafórico da vida dos capoeiristas, uma espécie de escola
que quanto mais se frequenta mais se aprende, constituindo um saber pautado nas
diretrizes dos mestres, passadas ao longo dos tempos por mitos como Mestre
Bimba, Mestre Pastinha e Besouro Mangangá. Não obstante,
encontramos uma variedade de manifestações artísticas,
lúdicas e religiosas que acontecem dentro da roda, como o samba de roda,
os jogos tradicionais, a umbanda,2
cirandas, a dança dos orixás etc., que podem também
metaforizar a vida real, com seus embates, tensões, estética,
ginga, malícia e ludicidade.
O berimbau
meu berimbau instrumento genial/meu
berimbau você é fenomenal
Instrumento oriundo da
África, o berimbau foi incorporado à capoeira depois do tambor
(atabaque). Rugendas (1835) retrata em sua pintura
intitulada Jogar capoëra ou danse de la
guerre”, dois negros frente a frente, em
posições bastante semelhantes às gingas e negaças3
da capoeira, com negros escravos a sua volta apreciando a contenda, ao som de
um tambor tocado por outro negro. Não se sabe ao certo quando o berimbau
foi incorporado ao ritual da capoeira, mas registra-se sua
utilização pelos negros de ganho4 a fim de chamar a
atenção dos transeuntes para seus produtos (soares, 1994).
O berimbau possui várias
denominações. Em sua terra natal é conhecido como urucungo,
tendo para os negros escravos o poder de comunicação com os
espíritos dos mortos e antepassados, além de curar o banzo.5 Em Cuba é conhecido
como burumbumba sendo possuidor de poderes
mágicos utilizados em rituais religiosos (cascudo, 2001). No Brasil
é conhecido como berimbau de barriga, diferente do berimbau de boca6
atualmente em desuso. O berimbau possui ligação direta com o jogo
de capoeira, e, segundo Silva (2003, p. 92), “hoje é quase
impossível conceber uma roda de capoeira sem o uso ou toque dos
berimbaus, pois este se tornou um símbolo da capoeira”.
Talvez o berimbau seja o maior
símbolo de identificação da capoeira, utilizado
correntemente nas diversas formas de divulgação da modalidade, e
tornando-se quase seu sinônimo. É difícil ouvir seu som
singular e não imaginar um capoeirista em jogo.
Abib (2005, p. 10) relaciona o som do
berimbau à “sensação de que algo realmente sagrado
esta acontecendo” na roda. Silva (2003) reforça esse entendimento,
pois o considera sagrado e venerado por todos, das modalidades angola ou
regional, e que levado ao âmbito religioso protege e “ouve”
todos os capoeiristas que nele acreditam.
O instrumento é o
principal da roda e responsável pela marcação
rítmica do jogo, somando-se a ele atabaque, pandeiro, agogô e
outros (dependendo do estilo adotado); é também importante
elemento simbólico da capoeira, pois é quem chama, através
de um toque especifico, os jogadores para a roda e
é a partir dele que se começa e termina o ritual.
Existem três tipos de
berimbau − o primeiro, de som mais grave, conhecido como gunga ou berra-boi; o segundo, um pouco mais agudo,
conhecido como médio; e o terceiro, bem agudo, viola ou violinha −,
com funções específicas nessa orquestra: ao gunga cabe iniciar, assumir o controle na
marcação do ritmo com seu som mais grave e dar término
à roda, enquanto o médio toca as notas inversas (em alguns grupos
o médio fica na função intermediária entre marcação
e improviso), e o viola ou violinha improvisa o tempo todo,
fazendo, na orquestra, o papel de solista.
O berimbau gunga,
além de funcionar na roda como norteador do ritmo aplicado à
capoeira, assemelha-se, por analogia simbólica, a uma espécie de
cetro real, pois em posse dele o mestre comanda a roda escolhendo os
participantes e o ritmo para a contenda. Esse berimbau é tão
importante para o ritual da roda, que apenas mestres ou capoeiristas antigos
podem manuseá-lo. Segundo os praticantes, é nele que está
o segredo do axé na roda de capoeira, pois é uma espécie
de coração da orquestra e, se mal manuseado, pode desandar todo o
ritual através do ritmo ou da energia, justificando a necessidade de
algum mestre ou capoeirista mais experiente no comando do berimbau gunga.
Capoeira e algumas
interfaces com a religiosidade
Olha o jogo, a mandinga e
oração, capoeira é religião
Sabe-se que a capoeira
sobreviveu mantendo em sua composição aspectos característicos
do sincretismo religioso brasileiro, composto por valores indígenas,
africanos e portugueses. Alguns nomes dos seus golpes foram emprestados
do catolicismo, como benção e cruz, outros extraídos da
umbanda, xangô e encruzilhada. Alguns toques executados pelo
berimbau possuem o nome de santos católicos: são Bento grande, são Bento pequeno e santa Maria, e existem ainda
cantigas que louvam os orixás, santos e outros iluminados, imprimindo
aspectos da religiosidade ao jogo.
Para muitos, a capoeira tem
sentido religioso fazendo a ponte entre o orun7 e o aiê8
através do ritual da roda. Encontramos esse sentido fortemente
presente nas palavras de Mestre Touro (1989), em entrevista ao jornal O
Globo: “a capoeira é uma forma de entrar em comunhão
com Deus. Quando a gente está lutando é como se não
houvesse mais nada ao nosso redor, apenas o universo. Há uma
interação muito grande entre nós e a consciência
cósmica”. Para compreender essa interação,
recorreremos a Mircea Eliade
(1996) que afirma a existência humana só ser possível
graças à comunicação permanente com o céu.
Para o autor, não se pode viver no caos; o homem experimenta a
necessidade de existir num mundo organizado, um verdadeiro cosmo com pureza e
santidade, como no começo dos tempos.
Nossa experiência de
quase 30 anos como praticante e estudioso da modalidade nos indica que, para
alguns capoeiristas, o tempo da roda é um tempo sagrado e não o
tempo cronológico, da produção, ditado pela sociedade
ocidental. Voltaremos a Eliade (1996), que
caracteriza o tempo sagrado remetendo a uma circularidade, reversível e
recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem
reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos. Não é raro,
nas rodas de capoeira, imperar o tempo do axé que para a cultura
nagô significa a força invisível, a força
mágico-sagrada, de toda divindade, de todo ser animado, de todas as
coisas (rego, 1968). Para os capoeiristas, esse axé aparece como o
sentido de energia positiva que anima e contagia o jogo de capoeira (lima,
2005).
Segundo Reis (2000, p. 171) o
acesso a esse tempo sagrado exige um preço; é preciso ser
batizado na capoeira, e, para entrar na roda, “os capoeiristas pagam
simbolicamente, ou seja, eles compram o jogo”. A roda pode ter seu tempo
prolongado ou diminuído por conta da presença
ou falta desse axé. Alguns mestres consideram essa sensibilidade
de percepção da energia um dos principais fundamentos da
capoeira, atributo possuído por poucos. Diz-se que a energia provoca
sinais visíveis aos mestres, pois quando a roda está boa, com
bons jogos, canto animado, bom ritmo e mandinga9 ela possui
axé, mas quando o inverso ocorre, a roda fica sem esse axé
e seus reflexos podem ser notórios para os mais experientes.
Não é raro ouvir
no meio capoeirístico frases do tipo:
“se você der as costas para a capoeira, com certeza ela
também se voltará contra você”, ou “é a
capoeira quem te escolhe e não você a ela”. É
interessante observar que esse sentido de escolha também é
encontrado no candomblé.10 O
pesquisador José Beniste (2003, p. 46) afirma
que, ao escolher o espaço físico para a implementação
de um terreiro, “Não é a sua dirigente que escolhe o
espaço onde irá instalar suas dependências, mas sim o
espaço que a escolhe através do seu òrìsá”.
Os grupos de capoeira muitas
vezes levam o nome de santos católicos ou orixás da umbanda e candomblé,
como Irmãos Unidos de São Jorge,11
Capoarte de Obaluaê,12
São Bento Pequeno,13 Inaiê de
Iaoca,14 entre outros que figuram no
universo da capoeira. Em alguns grupos podemos encontrar no ritual, pontos e
códigos próprios de cultos religiosos afro-brasileiros. Brito
(2004) afirma que é impossível negar a ligação da
capoeira com a religião, pois as cantigas fazem essa ponte, mencionando
santos católicos e orixás da cultura nagô. Coelho
(2000, p. 80) corrobora esse pensamento, e observa que:
O que se destaca no caso das
religiões africanas é o processo, que se aproxima do ritmo da
capoeira: a maioria dos pontos, cantos em louvor aos orixás cantados nos
terreiros, pode ser cantada também em rodas de capoeira. Mas não
é só neste aspecto que existe uma proximidade entre a
religião e a capoeira: o meio social é o mesmo e seus praticantes
também. Porém ainda mais importante do que a similaridade do meio
e do agente é o processo iniciático que
está presente em ambas, processo que as torna coautoras de um
único drama.
A musicalidade afro-brasileira
retrata em seu imaginário seus mitos de criação, suas
lendas, crenças e, sobretudo, sua religiosidade; no caso da capoeira
alguns pontos15são cantados literalmente ou são
adaptados para utilização nas rodas. Os pontos geralmente narram
fatos acontecidos; segundo o universo mitológico afro-brasileiro, a cada
ponto louvado, suas lendas, suas crenças e seus mitos parecem
ganhar vida. “No tempo da escravidão, quando o senhor me batia, eu
rezava para Nossa Senhora, e como a pancada doía, chora meu cativeiro,
meu cativeiro meu cativerá, chora meu
cativeiro meu cativeiro meu cativerá”
(anônimo).
Ainda na perspectiva da
religiosidade das rodas de capoeira, Silva (2003, p. 93) admite a possibilidade
de elas serem consideradas religião para seus adeptos, pois segundo o
autor “poderíamos pensar que a capoeira é exclusivamente
ligada a um culto próprio, tornando-se assim uma religião ou
seita exclusiva dos capoeiristas”. Existem cantigas que reforçam a
ideia de religião, perpassando alguns de seus preceitos através
de suas letras, vejamos:
Meu mestre me disse um dia,
menino preste atenção vou lhe ensinar a
capoeira tenha muita devoção, a capoeira é uma arte que
aprende de coração, a capoeira se faz com o tempo, e esse tempo
vai demorar, vai crescendo bem treinado pro seu corpo aprimorar, minha vida
é capoeira, mas eu sou capoeira. Olha a manha, mandinga e
oração capoeira é religião (anônimo).
Parece que na cantiga um dos
sentidos atribuídos à capoeira é o de sacerdócio,
com ritos sagrados de passagem, tempo de provação,
preparação corporal e espiritual e acima de tudo religiosa; os
mestres parecem dar sentidos a sua prática, louvando seus santos, orixás
e a própria capoeira, fazendo, pois, o papel de verdadeiros
guardiões dessa arte que segundo a cantiga “se aprende de
coração”. Para o capoeirista, sua vida parece confundir-se
com a própria capoeira. Existem recorrências dessa passagem em
várias outras cantigas, reforçando no imaginário dos
praticantes a representação ou mesmo a opção por
essa modalidade como filosofia de vida.
Nestor Capoeira (1997, p.127)
atribui à capoeira uma “força mágica” capaz de
ligar praticantes do presente e do passado através de corrente temporal
energética que parece abrir-se durante o rito da roda, reatualizando
feitos heróicos de mestres e personagens do
passado numa espécie de atemporalidade ritual. Segundo o autor:
Poderíamos, até,
imaginar a capoeira como uma entidade que protege e abre caminho para aqueles
que se colocam a sua sombra – melhor dizendo: a sua luz! A capoeira
– na imaginação de muitos jogadores – seria uma
entidade feminina, semelhante à pomba-gira do candomblé e da
umbanda.
A entidade citada pelo autor
como pomba-gira pertence ao panteão mitológico afro-brasileiro,
sendo categorizada como o princípio feminino do “povo de rua ou
exu”. No imaginário não é raro encontrarmos
relações da capoeira e de capoeiristas com a figura mítica
de Exu16. Decânio (apud araújo, 1999) descreve
semelhanças entre a ginga da capoeira e as danças do orixá
Exu no candomblé.17 Existe também um tipo de exu no
universo religioso afro-brasileiro que encarna a figura mítica do
malandro. Trata-se de Zé Pelintra ou apenas seu Zé (como é
carinhosamente chamado pelos adeptos da umbanda). Sua
representação18 é de um homem mulato sempre
muito bem trajado, com seu terno de linho branco, sapatos bicolores, cravo
vermelho na lapela, chapéu Panamá e lenço de seda
encarnado no pescoço para proteger dos ataques de navalha. Ligiéro (2004, p. 64) observa que:
Zé Pelintra tornou-se
também patrono da capoeiragem, pois muitos dos
exus de seu grupo teriam pertencido às rodas de malandragem da antiga
Lapa, no Rio de Janeiro: Zé Malandro, Terno Branco, Camisa Preta,
Carioquinha, Zé Pretinho, Gargalhada e Zé das Mulheres formam o
mitológico “reino da malandragem”.
Durante o ritual da umbanda as
entidades se manifestam através da incorporação de
espíritos sagrados em seus respectivos médiuns, apresentando a
gestualidade, o vocabulário e as demais aspectos
que os caracterizam como pertencentes a determinadas linhas. Os exus citados
por Ligiéro (2004, p. 65) formam a falange19
comandada por Zé Pelintra, que segundo a mitologia afro-brasileira viveu
na antiga Lapa, no Estado do Rio de Janeiro, pertencendo a um grupo de
malandros da mais alta estirpe, pois
para pertencer a esse seleto grupo de
malandros da mais alta categoria, o indivíduo tinha que ser bom de
briga. Cair na roda de capoeira ou de batuqueiros para provar que entendia de
malícia e de esquiva, era um batizado obrigatório. Só
então, o malandro graduava-se para ser considerado um mestre, um verdadeiro bamba.
Zé Pelintra pode ser
considerado representante dessa tal “malandragem brasileira”, bamba
na capoeira, cafetão amado por várias
mulheres, sendo, aliás, sustentado por muitas delas, boêmio e bom
dançarino, jamais abrindo mão de sua navalha e seu patuá,
indispensáveis para burlar a ordem estabelecida pelos dominantes.
Durante o ritual religioso da umbanda, a figura de Zé Pelintra se
manifesta no terreiro com movimentos e gestos que nos remetem à
prática da capoeira, reforçando o imaginário de uma
entidade sagrada que a pratica e protege.
Encerrando a roda
Consideramos importante
ressaltar que o processo de instituição de uma religiosidade
afro-brasileira no universo da capoeira, foco da investigação do
presente artigo, não é a única dentro da modalidade, pois
existem grupos cujos mestres pertencem a outras religiões,
consequentemente não reforçando em sua prática
determinados aspectos ligados aos cultos descritos. À
guisa de exemplo, a partir da década de 1990, surge uma corrente que
fica conhecida como capoeira evangélica, que, em oposição
às raízes religiosas afro-brasileiras, sugere uma série de
mudanças que vão agir no simbolismo do ritual da capoeira. Entre
elas, a retirada do atabaque, que para alguns mestres evangélicos
têm forte ligação com a umbanda e o candomblé; os
toques de berimbau com nome de santos católicos são poucos ou
quase nunca utilizados por alguns desses mestres, pois, segundo seus preceitos
religiosos, os santos da Igreja católica não têm
representatividade sagrada, só havendo a possibilidade de um
único Deus para todos, diferente da
expressão “viva meu Deus camará”, cantada nas rodas
de capoeira e que, para alguns mestres, pode remeter à existência
de mais de um Deus, o que feriria o maior dogma dessa religião.
Outra diferença
emblemática acontece no batizado, rito criado por Mestre Bimba e que
inicia o capoeirista no “mundo da capoeira”. Tradicionalmente os
alunos candidatos jogam com mestres, contramestres ou alunos formados,
recebendo no final do jogo seu “apelido” que o acompanhará
durante sua trajetória na modalidade. Para alguns mestres da capoeira
evangélica, entretanto, o termo batizado remete a um ritual sagrado e
utilizar essa nomenclatura talvez profane algum preceito desse grupo, sendo
assim, tal como os apelidos, indigno para os praticantes da capoeira. O
professor de capoeira conhecido como Moreno (apud lima, 2005), observa que a
iniciação do capoeirista evangélico, por exemplo, é
chamada por alguns de estreia, no lugar de batismo,
vocábulo incorporado da liturgia católica. Mano Lima (2005)
também nos traz a ideia da utilização da capoeira como
instrumento capaz de evangelizar através das aulas e dos ritos adaptados
para esse fim, como músicas feitas para louvar a Deus e até mesmo
a criação, em Goiânia, da igreja dos capoeiristas, que
reúne pessoas de diversas congregações.
Podemos assim inferir que a
religiosidade está intimamente ligada à prática da
capoeira e aos capoeiristas, sendo expressa nas letras das cantigas e na
simbologia existente em seus ritos. Assim, a religião através de
seus traços simbólicos perpassa o universo dos capoeiristas e
através de seus códigos reforça e até mesmo passa a
constituir uma linguagem simbólica, porém eficaz no ponto de
vista ideológico, fortalecendo no grupo os laços de pertencimento
e o imaginário social. Sob esse prisma podemos entender a roda de
capoeira como espaço catalisador de energia, lócus de surgimento
de experiências rituais que nos remetem a um tempo mítico,
perpassado pelo sincretismo natural ao processo de aculturação
entre senhores e escravos. Brancos e negros que hoje coabitam o palco estrelado
pelo mestre, guardião de mandingas e segredos que só a seus
discípulos serão repassados.
Saída das ruas, hoje a
capoeira, por seu caráter pedagógico, cultural e esportivo,
compõe os conteúdos dos Parâmetros Curriculares Nacionais
de Educação Física, bem como o currículo de diversos
cursos de graduação na área. Diante dessa perspectiva, torna-se relevante para nós, educadores, escutar ecos
desse sagrado na capoeira a fim de não nos perdermos em caminhos
aparentemente alinhados, “racionais”, que não nos permitem
acessos aos códigos simbólicos presentes no interior dos grupos
que dão vida à modalidade. Na busca da compreensão dos
aspectos culturais e religiosos da capoeira vale respeitar alguns preceitos
descritos neste ensaio e pedir proteção a seu santo ou
orixá antes de se abaixar ao pé do berimbau para gingar nos
sinuosos caminhos do imaginário social da capoeira e dos capoeiristas.
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TEVES, Nilda. Imaginário
social e educação. Rio de Janeiro: Gryphus/Faculdade
de Educação da UFRJ, 1992.
TOURO, Mestre. Entrevista
concedida ao jornal O Globo, Rio de Janeiro, Caderno da Leopoldina,
junho de 1989.
1 A religiosidade é uma
característica exclusivamente humana que atribui uma busca ao sagrado,
não se referindo a nenhuma religião específica (manoel, 2008).
2 Religião brasileira que
incorpora valores das culturas africana e indígena (alves,
1993).
3 O ato de negar o corpo, bambolear pra
lá e pra cá, ameaçar o movimento e negá-lo; usada
para confundir o oponente. (REGO citado por LIMA, 2005)
4 Negros forros ou escravos, vendedores
de diversos artigos nas ruas do Rio de Janeiro na época do
Império.
5 Nostalgia mortal que acometia em negros
africanos escravizados no Brasil. (LOPES, 2003)
6 Antigo instrumento feito de ferro,
preso aos dentes e utilizando a boca como caixa de ressonância.
7 Espaço mítico onde os
Deuses da cultura nagô habitam, em muito se assemelha ao céu
paradisíaco de outros povos. (OGBEBARA, 1998)
8 Mundo dos mortais, como a terra para os
ocidentais. (OGBEBARA, 1998)
9 Poder sobrenatural que dissimula e
disfarça as ações dos capoeiristas, derivado dos mandingas
ou malinkes: povo africano famoso pelo seu poder de
feitiçaria.
10
Religião
anímica desenvolvida no Brasil por sacerdotes africanos, escravizados no
Brasil (BENISTE, 2003).
11 Grupo de capoeira criado pelo falecido Mestre
Caiçara, no estado da Bahia.
12 Grupo de capoeira criado por Mestre Mintirinha no estado do Rio de Janeiro.
13 Grupo de capoeira criado por Mestre Pinatti no estado de São Paulo.
14 Grupo de capoeira criado por Mestre Dé no estado do Rio de Janeiro.
15 Músicas cantadas em
cerimoniais religiosos da umbanda e candomblé.
16
Orixá
mensageiro de todos os orixás, de espírito moleque e zombeteiro
dotado de inteligência e astúcia superiores. Conhecido pelo seu
caráter ambíguo e atitudes incoerentes com o poder absurdo de
punir ou premiar sem o menor senso de justiça (OGBEBARA, 1998).
17
Tradição
religiosa de culto aos orixás jeje-nagôs
(LOPES, 2003).
18 Estatuas
e pinturas vendidas nas casas religiosas.
19 Grupo de entidades afins que se manifestam na
mesma sintonia.
Jorge Felipe Columá (Jorge Felipe Fonseca Moreira) é doutor em Educação
Física pela Universidade Gama Filho, Brasil. Atualmente, é
professor de capoeira da Fundação de Apoio à Escola
Técnica do Estado do Rio de Janeiro. Simone Freitas Chaves é doutora em
Educação Física pela Universidade Gama Filho. Atualmente
é professora adjunta da Escola de Educação Física e
Desportos da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Recebido em: 07/03/2013
Aceito em: 02/05/2013
COLUMÁ, Jorge Felipe,
CHAVES, Simone Freitas. O sagrado no jogo de capoeira. Textos escolhidos de
cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.10, n.1, p. 169-182, mai. 2013.