Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares,
v. 10. n. 1, mai. 2013
Ricardo
Martins Porto Lussac (Uerj)
O
artigo investiga a história da cultura material da capoeira a fim de
compreender o processo de ensino/aprendizagem do jogo-luta no Rio de Janeiro no
primeiro quartel do século XIX, propiciando, indiretamente,
aprofundamento e maior conhecimento de sua prática hodierna como cultura
imaterial e patrimônio, e de seus respectivos processos
pedagógicos no decorrer da história. A pesquisa teve seu foco
objetivo na cultura material da capoeira a partir da análise da
litografia Jogar Capoëra ou danse de la guerre, de Rugendas.
Este trabalho ilumina preliminar e parcialmente a complexa
relação dos sujeitos que desenvolveram o modo de fazer capoeira
– cultura imaterial – com os objetos, materiais e ambientes que
compuseram a cultura material do jogo-luta e suas respectivas simbologias.
CULTURA MATERIAL,
ICONOGRAFIA, CAPOEIRA, HISTÓRIA.
Ricardo
Martins Port Lussac (Uerj)
The article investigates the history of material culture of capoeira in order to understand the process of
teaching / learning the game-fight in Rio de Janeiro
in the first quarter of the
nineteenth century, indirectly promoting a deeper and greater
understanding of its contemporary practice as intangible culture and heritage, and
its pedagogical processes throughout
history. The research focused on the
material culture of capoeira
based on the analysis of
the lithography Jogar capoera or danse de la guerre, by Rugendas. This work unveils preliminarily and partially the
complex relationship of subjects who developed the capoeira ways – immaterial culture – with the objects,
materials and environments that formed the material culture of the
game-fight, and their respective symbologies.
ICONOGRAPHY, CAPOEIRA,
MATERIAL CULTURE, HISTORY.
INTRODUÇÃO
No Brasil, durante a
última década, o Ministério da Cultura (MinC) dispensou
atenção especial à área da cultura imaterial do
país, desenvolvendo, nesse sentido, políticas públicas e o
respectivo registro e salvaguarda de determinadas práticas culturais.
Em 2008, a capoeira,
prática corporal de jogo-luta de origem brasileira, foi registrada pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão subordinado ao MinC, como Patrimônio
Cultural Imaterial do Brasil, através do registro das rodas de capoeira
no Livro das Formas de Expressão e do ofício dos mestres de
capoeira no Livro dos Saberes.
Esse fato fez com que antigas e
novas discussões no campo do jogo-luta emergissem em novo contexto. Ao
mesmo tempo, o recente campo de pesquisa sobre a capoeira como patrimônio
e como cultura imaterial começa a galgar suas primeiras abordagens e
pesquisas, como, por exemplo, os apontamentos de Vassalo (2008).
Nesse cenário,
consequentemente, um dos fatores que veio à baila foi a
busca de melhor compreensão da transmissão e dos respectivos
processos educativos dessas práticas, proporcionando vasto campo de
atuação para os pesquisadores de diferentes áreas, entre
elas, a educação.
Por outro lado, o campo da
história da educação tem cada vez mais debruçado
seu olhar sobre práticas não escolares da educação,
na transmissão de conhecimentos e cultura nos mais diversificados grupos
sociais. Isso ganha significância quando se compreende que a
educação é realizada dentro de um mosaico de atividades e
interações sociais.
Nesse sentido, por ser campo do
conhecimento que ainda necessita de mais investigações,
não é de estranhar que a literatura pertinente seja insuficiente
para a compreensão de tais fenômenos. Compreender as utilidades,
os significados e as influências dos aspectos materiais envolvidos na
transmissão de qualquer prática cultural é fator
fundamental e determinante para o conhecimento dos processos educativos
envolvidos em qualquer fenômeno sociocultural em que haja alguma
relação de ensino/aprendizagem. Desse modo, torna-se interessante
investigar a relação das culturas material e imaterial da
capoeira a fim de compreender o ensino/aprendizagem do jogo-luta ao longo da
história.
A presença da capoeira
na história é constatada inicialmente nos registros policiais e
processos judiciais após 1808, pois, com a chegada da corte portuguesa
ao Brasil, dom João VI criou a
Intendência-geral de Polícia da Corte do Estado do Brasil,
iniciando grandes modificações no sistema policial (soares,
2002). Não só esses documentos oficiais, entretanto, registraram
a capoeira. Os viajantes estrangeiros – que após a vinda da
família real visitaram terras brasileiras – tornaram-se
importantes fontes para a reconstituição dos costumes da
sociedade naquele período.
De acordo com Conduru (2008, p. 84), por meio de fontes
iconográficas desses viajantes “é possível refletir
sobre alguns aspectos da condição social dos africanos e
afrodescendentes que foram escravizados no Brasil, das práticas e meios
de representação, bem como da arte nessa conjuntura”.
Uma das formas de se investigar
a cultura material é por meio de fontes iconográficas. Ricas na
representação da matéria, esse tipo de fonte é
portador de relevantes elementos documentais e contribui com outra perspectiva
e leitura em pesquisas sobre cultura material, principalmente quando somado a
outros documentos durante a investigação.
Dos viajantes estrangeiros,
muitos eram artistas que produziram considerável iconografia
representando aspectos da presença de africanos e afrodescendentes no
Brasil, principalmente no século XIX. São nomes frequentemente
utilizados em pesquisas sobre a escravidão e os costumes dos negros e
seu cotidiano, como, por exemplo, Auguste François Biard,
Augustus Earle, Jean-Baptiste
Debret, Johann Moritz Rugendas, Paul Harro-Harring,
Thomas Ender, W. Read, entre outros. Cabe lembrar
artistas brasileiros, como Frederico Guilherme Briggs
(turazzi, 2002), também responsáveis
por grande parte desse rico repertório iconográfico.
Cabe ao artista germânico
Johann Moritz Rugendas
(1998), entre 1822 e 1825, durante sua primeira visita ao Brasil – quando
fez parte da Expedição Langsdorff,
1822-1829 – a primeira descrição detalhada da capoeira,
tanto de modo textual como através da litografia Jogar capoëra ou danse
de la guerre.
E por tal relevância para a história da capoeira, a referida
litografia será a fonte iconográfica selecionada para
investigação nesta pesquisa.
OBJETIVOS
Este trabalho tem como objetivo
geral investigar a cultura material da capoeira a fim de compreender o processo
de ensino/aprendizagem do jogo-luta no Rio de Janeiro no primeiro quartel do
século XIX, propiciando aprofundamento, indiretamente, e mais
conhecimento de sua prática hodierna como cultura imaterial e
patrimônio, e de seus respectivos processos pedagógicos no decorrer
da história. Como objetivo específico, este artigo foca sua
investigação sobre a cultura material da capoeira a partir da
análise da litografia Jogar capoëra
ou danse de la guerre, de Rugendas.
FONTES E METODOLOGIA
Como já afirmado, a
fonte principal deste trabalho é a litografia Jogar capoëra ou danse
de la guerre,
de Rugendas (1998). Essa fonte iconográfica
é complementada pelo texto do próprio Rugendas
sobre o que retratou em sua litografia. Neste artigo, porém, é
necessário compreender a outra perspectiva de utilização
dessa fonte: sua utilização como objeto de pesquisa, pois
será fonte minuciosamente analisada, e dessas análises
serão desenvolvidas as considerações no artigo.
Abordagem metodológica
importante que deve ser considerada em pesquisas com fontes
iconográficas é a autenticidade das imagens. No caso das gravuras
de Rugendas é conhecida a ação
do marchand falsário brasileiro Roberto Heymann,
que atuou em Paris na primeira metade do século XX. Uma das muitas obras
de Rugendas que ele falsificou foi Jogar capoëra. No caso da falsificação
dessa obra aparece um casal na varanda dos fundos de uma casa retratada, ao
contrário do original na qual a varanda está vazia. Desse modo,
é oportuno afirmar que este estudo analisou a imagem verdadeira da obra Jogar
capoëra, de Rugendas.
A fim de oferecer maior
embasamento à construção da pesquisa, ela se valeu de
fontes primárias do período estudado, como ofícios do
Acervo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e registros policiais encontrados no
Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro.
A pesquisa também se
apoiou em referências do Iphan (2011), por ser
esse o órgão responsável por políticas
públicas e pesquisas no campo da cultura material e imaterial, e da Unesco (2003), que também
tramita nesse campo.
Até o momento, o que se
pesquisou sobre os aspectos materiais na transmissão da capoeira no
século XIX no Rio de Janeiro, mesmo que indiretamente, pode ser verificado nos estudos de Soares (1999 e 2002) e de
Araújo (1997 e 2005), autores que, em razão de
contribuições relevantes para a historiografia, servem como base
desta investigação.
É possível
encontrar também dispersas referências nesse sentido em diferentes
obras sobre a capoeira, mas não tratando a temática de modo
específico, tampouco sob a perspectiva da cultura material pertencente a
uma cultura imaterial. Desse modo, justifica-se o estudo sobre a cultura
material da capoeira, para que se possa aprofundar seu conhecimento como
cultura imaterial e patrimônio.
Os referenciais teóricos
utilizados na pesquisa foram analisados por meio de
interpretações de diferentes abordagens e enfoques, buscando as
contribuições científicas que eles puderam somar. As
fontes tiveram tratamento qualitativo e interpretativo, e o cuidado de crítica
interna referente ao conteúdo e significado da fonte ou documento, com o
objetivo de verificar até que ponto apresentava coerência com as
informações sobre o mesmo fato ou fenômeno
colhidas em outras fontes, ao mesmo tempo em que se buscou entender o
diálogo construído entre fontes secundárias e
primárias. A construção e a exposição dos
argumentos foram desenvolvidas e apresentadas obedecendo a
sequência e encadeamento lógicos, relacionando os diferentes
elementos e acontecimentos presentes nas fontes utilizadas.
Destarte, ao adentrar esse
campo foi necessária delimitação conceitual sobre cultura
material − que neste artigo não é abordada sob a
perspectiva de patrimônio material diretamente como define o texto do
documento da Unesco (2003),
concepção também compartilhada pelo Iphan
(2011), e sim sob o entendimento de que a cultura material é o conjunto
de instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que são
associados às práticas, representações,
expressões, conhecimentos e técnicas pertencentes a um
determinado grupo que possui saber específico de um modo de fazer e de
forma de expressar uma cultura imaterial, que é transmitida a seus pares
por pedagogia própria.
Este trabalho, portanto,
entendendo a capoeira como cultura imaterial, não se deterá nessa
perspectiva e tecerá as relações da cultura imaterial e
material da capoeira.
DELIMITAÇÃO DA
INVESTIGAÇÃO
Este artigo está
temporalmente delimitado especificamente na segunda e na terceira
décadas do século XIX, pois se entende que 1811 é o ano em
que se pode constatar a primeira evidência da capoeira na história
(lussac, 2009) e que o intervalo de 1822 a 1825
constitui o período em que Rugendas esteve no
Brasil durante a Expedição Langsdorff
(1822-1829). Já a definição da cidade do Rio de Janeiro como
delimitação geossocial para a pesquisa
se deu em razão da quantidade e qualidade das fontes, por ser o local em
que ocorreram os primeiros fatos da história do jogo-luta da capoeira e
também local onde foi elaborada a litografia utilizada nesta pesquisa.
JOGAR CAPOËRA
Quando fez parte da
Expedição Langsdorff, 1822-1829,
durante sua primeira visita ao Brasil, entre 1822 e 1825, Rugendas
(1998) elaborou a primeira descrição mais detalhada da capoeira,
tanto de modo textual como através da litografia Jogar capoëra ou danse
de la guerre,
retratada em um dos capítulos acerca dos usos e costumes dos negros (Figura
1).
Estas duas fontes, textual e
iconográfica, deixadas por Rugendas somadas ao
restante de sua obra sobre o Brasil têm sido importantes documentos para
pesquisa de diferentes campos, além do que diz respeito à
capoeira.
No âmbito da
temática da capoeira, suas gravuras Jogar capoëra
ou danse de la guerre e San Salvador têm sido largamente
estudadas, apesar de até o momento não se poder inferir a certeza
de a litografia San Salvador retratar a
capoeira de algum modo (Figura 2).
Vieira e Assunção
(1998, p. 97) afirmam que as litografias San
Salvador e Jogar capoëra ou danse de la
guerre, de Rugendas,
foram várias vezes mal interpretadas e que devem ser vistas no contexto
de sua obra:
As gravuras, sempre associadas,
se situam de fato em partes diferentes da obra (...) “San
Salvador”, aparentemente pintada na península de Itapagipe. Representa no primeiro plano um grupo de negros,
dos quais quatro estão se movimentando, enquanto os outros cinco
estão olhando ou namorando. Dois se enfrentam diretamente, com passos
que efetivamente lembram a ginga. O terceiro, olhando para os dois, se abaixa
num movimento que também existe na capoeira atual. O quarto parece estar
dançando na ponta dos pés. Não está representado
nenhum instrumento musical. Rugendas em nenhum lugar
comenta esta gravura e, sobretudo não diz que se trata de capoeira.
Na interpretação
de imagens − sejam elas aquarelas, litografias, desenhos, pinturas,
caricaturas, fotografias, entre outras − sempre que possível
deve-se levar em conta na análise iconográfica a
obra do autor como um todo, por onde e em que época viajou e retratou,
como e de que modo ele pensava, em que meio, contexto, momento e
situação as obras foram elaboradas, para quem ou o que, a fim de
não se cair no erro de falsas ou tendenciosas
interpretações ou ainda subjugar suas respectivas
limitações.
Desse modo, “a
análise deve atentar aos elementos inusitados e detalhes excepcionais
que emergem aqui e ali nas obras, permitindo entrever olhares mais ou menos
individuais de seus autores” (conduru, 2008, p.
84).
Nesse sentido, é
necessário compreender as funções do autor Rugendas em suas obras, bem como o modo de seu
diálogo com elas, entendendo o seu sentido como forma de
expressão. Também é importante ter consciência de
que Rugendas, como autor, fez parte de um jogo com
regras próprias dos grupos e sociedades nos quais estava inserido,
sendo, portanto, peremptório entender a perspectiva de que a
função de um autor é característica regida pelo
modo de existência, de circulação e de funcionamento de
seus discursos no interior da sociedade a qual pertence ou pertenceu (foucault, 2001).
Outra circunstância que
não se pode descartar é a possibilidade da exclusão,
intencional ou não de Rugendas, de certos
detalhes, características ou representações em suas obras.
Michel Foucault (1996, p. 18 e
19) afirma existirem três grandes sistemas de exclusão presentes
na sociedade, os quais exercem pressão, poder de coerção,
que interfere na expressão humana, a forma iconográfica
incluída, sendo eles: a palavra proibida, a segregação da
loucura e a vontade da verdade. Certamente, esses sistemas de exclusão
interferiram de um modo ou de outro nas obras de Rugendas,
exercendo procedimentos de controle e de delimitação, de ordem
externa ou interna. Desse modo, é preciso contextualizar o
cenário de suas obras − o tema, o cenário, o momento, o
público-alvo, sua intenção são apenas alguns pontos
que devem ser pensados − para começar a entender as
dimensões e limitações das imagens do autor. Como afirmou
Foucault, “Ninguém entrará na ordem do discurso se
não satisfizer a certas exigências ou se não for, de
início, qualificado para fazê-lo” (1996, p. 37).
As obras já conhecidas
de Rugendas são grandes fontes de pesquisa
para a capoeira e para a história da escravidão, do negro e do
Brasil durante o período do Império. Sobre o artista, Vieira e
Assunção (1998, p. 97) fornecem alguns apontamentos elaborados
sobre Jogar capoëra ou danse
de la guerre:
Mostra uma cena urbana, com
dois negros se enfrentando ou jogando ao som de um tambor. Faz parte dos
capítulos sobre os “usos e costumes dos negros”. Nele, Rugendas descreve o que considera os “cantos e
danças” típicos dos negros, como o batuque
(“Batuca”), o lundu (“Zandu”,
em outra ilustração chamada “Landu”),
a capoeira e a eleição do Rei do Congo. Passa então a tecer comentários sobre os “feiticeiros”
(ou “mandingueiros”), os efeitos do álcool sobre os escravos
e as fugas dos mesmos. A inclusão da capoeira neste capítulo
é um argumento para a existência mais generalizada da capoeira no
Brasil Império, tanto quanto outras manifestações por ele
mencionadas. Esta (...) gravura, que explicitamente se refere à
capoeira, parece ser situada no Rio de Janeiro, devido à forma do morro
no fundo do quadro.
Por meio do texto deixado em
sua obra Rugendas aponta a capoeira que retratou como
um tipo de prática bárbara do início do século XIX
no Rio de Janeiro. Uma luta, um jogo, que se pode tornar violento. Ao retratar
a capoeira como dança da guerra dos negros, um folguedo
guerreiro, Rugendas a entendeu como dança pírrica. É necessário registrar que o
que parecia ser violento para um artista e viajante europeu ocidental do
início do século XIX podia não o ser para negros no Brasil
do mesmo período.
Os negros têm ainda um outro folguedo guerreiro, muito mais violento, a
“capoeira”: dois campeões se precipitam um contra o outro,
procurando dar com a cabeça no peito do adversário que desejam
derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente
hábeis; mas, lançando-se um contra o outro mais ou menos como
bodes, acontece-lhes chocarem fortemente cabeça contra cabeça, o
que faz com que a brincadeira não raro degenere em briga e que as facas
entrem em jogo, ensanguentando-a (rugendas, 1998, p.
158).
Nota-se que a
descrição da capoeira por Rugendas
é um pouco diferente – ela identificaria o jogo-luta de uma forma
menos evoluída – da que é encontrada em períodos
posteriores, como no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX,
quando os capoeiras assumem uma forma muito mais
complexa de ações, vindo a modificar diretamente a própria
práxis da capoeira.
Para se ter
uma ideia da mudança de concepção do que era a capoeira ao
longo do século XIX, ao final desse período, o escritor
Plácido de Abreu (1886) não entendia ser a capoeira um jogo-luta
essencialmente de cabeçadas, como a prática pode ser identificada
nas primeiras décadas do século XIX, portanto, de forma distinta
de Rugendas. Para Plácido, as sortes de
cabeça, que podemos entender como um tipo de jogo-luta de
cabeçadas, era uma prática africana,
apesar de não citar fontes ou pistas que possam substanciar tal
fundamento. Sob essa perspectiva, Plácido entendeu que as sortes de
cabeça constituíam prática não presente em terras
brasileiras. Nesse sentido, como exemplo dessa mudança de
concepção, é interessante transcrever a
descrição desse autor em um trecho de seu romance Os Capoeiras:
É um trabalho
difícil estudar a capoeiragem desde a sua raiz
pri-mitiva porque não é bem conhecida a
sua origem. Uns atribuem-na aos pretos africanos, o que julgo um erro, pelo
simples fato [de] que [n]a África não
é conhecida a nossa capoeiragem e sim algumas
sortes de cabeça (abreu, apud soares, 1999, p.
10).
Tanto Rugendas
como Plácido de Abreu não forneceram pistas que possam indicar ou
evidenciar algo quanto às características étnicas
específicas dos praticantes do jogo-luta, apesar de os elementos
materiais, como as indumentárias e suas respectivas cores e objetos
presentes na representação dos sujeitos na gravura de Rugendas, poderem sugerir delimitação nesse
sentido.
De toda forma, se ao final do
século XIX a capoeira já era praticada e entendida de forma
diferente do início do referido século, tanto mais se compararmos
o período de Rugendas ao de hoje. Certamente,
sem o conhecimento das devidas limitações de
interpretação, acabar-se-ia incorrendo em um anacronismo e
consequente erro metodológico-científico, não
identificando de modo correto as diferentes formas de expressão da
capoeira ao longo do tempo.
Outro fator considerado
é quando Rugendas salienta o aspecto
lúdico da capoeira e a possibilidade de a prática degenerar em
briga, demonstrando o tênue limite entre uma prática de jogo de
luta corporal e a luta corporal propriamente dita, ainda encontrado, mesmo que
de forma diferente, em tempos atuais na capoeira. Observa-se que vários
outros comportamentos motores típicos do jogo-luta, que podem ser
verificados ao final do século XIX, não foram descritos por Rugendas, sendo mais provável que ainda não
tivessem sido desenvolvidos em sua prática, conforme estudos já
realizados (lussac, 2009).
Tal afirmativa é
compartilhada por Passos Neto (1998, p. 37), também conhecido como
Nestor Capoeira. Nas litografias – Passos Neto se refere a Jogar capoëra ou danse de la guerre
e San Salvador – e na
descrição de Rugendas, alguns elementos
que se conhecem atualmente, ainda não tinham sido incorporados, conforme
entendeu mestre Nestor Capoeira:
Na descrição de Rugendas estão ausentes os pulos acrobáticos,
o “jogo de chão”, as pernadas e as rasteiras, que ainda
não haviam sido introduzidos no jogo. Além
disso o berimbau também não fazia parte da capoeira (...)
Com o tempo, a capoeira foi modificando, em parte pela própria
ação do tempo.
Apesar do não
embasamento metodológico-científico, só mediante a
descrição de Rugendas e a
análise de sua litografia, Passos Neto estava certo ao afirmar que
alguns elementos “ainda não haviam sido introduzidos no
jogo”. Sem mais subsídios, inicialmente pode-se afirmar que essa
pode ter sido a forma primitiva do jogo-luta da capoeira, como provado em
estudos anteriores (lussac, 2009).
De qualquer modo, é
necessário pensar que, se houvesse outros elementos do jogo-luta da
capoeira, eles deveriam estar presentes? A ausência de um elemento em uma
fonte não significa sua ausência na realidade.
Só com as
referências do artista não é possível afirmar isso.
Nesse sentido, pode-se concluir que Rugendas
descreveu a capoeira com repertório gestual-motor muito menor do que
pode ser verificado no final do século XIX, e que, provavelmente, estava
em determinada fase contextual em que travava diálogo com outras
diversas práticas, o que transformaria e potencializaria seu
desenvolvimento. Certo é que desde 5 de junho
de 1811, data até agora constatada como relativa à primeira
ocorrência da capoeira na história, como se pode verificar no
volume I do Códice 403, que repousa no Arquivo Nacional, esse tipo de
luta e jogo de cabeçadas denominado capoeira era largamente encontrado
na zona urbana do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX (lussac, 2009), deduzindo-se por isso que a gravura tenha
sido realizada ou inspirada no cotidiano da cidade do Rio de Janeiro.
O elemento dança,
presente na prática, conforme observado por Rugendas,
detinha a particularidade do aspecto bélico, guerreiro, pírrico. Provavelmente, esse aspecto da dança
devia ser utilizado para incrementar a mobilidade motora, aproveitando o
repertório cultural e étnico-motor preexistente dos sujeitos, e
para zombar do adversário, demonstrar agilidade ou confortabilidade
no jogo ou mesmo na luta e também para engraçar o ambiente,
tornando-o mais lúdico e prazeroso não só para o
praticante, mas para os demais. Dançar no jogo poderia demonstrar o
domínio sobre a situação, podendo ser utilizado ainda para
ludibriar o adversário, enganando-o com movimentos indecifráveis
ou que dispersassem sua atenção. Pensar, como certas hipóteses
já afirmaram, que a dança na capoeira era para enganar os agentes
repressores, é subestimar tais sujeitos ou mesmo desconsiderar a
documentação existente sobre a repressão à
prática, tanto como jogo quanto como luta − repressão que
confere à capoeira o status de prática perigosa.
A litografia Jogar capoëra ou danse
de la guerre
retrata 12 pessoas negras − todas representadas descalças, sendo,
portanto, muito possivelmente escravos −, nove homens e três
mulheres, estando dois desses homens jogando capoeira.
Não se pode
desconsiderar a possibilidade da existência de algum negro livre ou
liberto que, ao praticar o jogo da capoeira, preferisse estar com os pés
nus, a fim de diminuir certas dificuldades ou melhorar sua performance,
ou pelo próprio costume de se praticar o jogo da capoeira
descalço naquele período, ou, ainda, para se identificar com seus
pares, na maioria escravos. É possível que os que
possuíssem calçados, item valorizado na composição
de sua figura social, tivessem a intenção de preservá-los.
Um calçado sujo em demasia ou fora do comum poderia delatar uma
prática não condizente com as tarefas ou ofício do
sujeito, ou ainda indicar atividade ou comportamento não aceito no meio
social em geral. Também é possível inferir que os que
tivessem calçado os tirassem para se colocar em igualdade de
condições com o outro jogador. Pensar, entretanto, que os
calçados eram retirados para que não se machucassem contradiz a
descrição do jogo por Rugendas (1998,
p. 158), que afirmou: “Os negros têm ainda um
outro folguedo guerreiro, muito mais violento, a ‘capoeira’”.
Contudo, o que Rugendas retrata é a capoeira
como um costume dos escravos, e segundo uma determinada lógica, estes
deveriam estar descalços, justamente, por ser
escravos.
Na gravura Jogar capoëra o ambiente parece ser os fundos de uma
grande casa, ou de três casas, a julgar pelos muros e telhados que
perfazem o pano de fundo da imagem. Os fundos dessa casa ou casas parecem
terminar junto a mata ou vegetação
não muito densa, já roçada, também verificada nos
morros que compõem o restante do cenário, o que demonstra a
possibilidade de se tratar de área urbana devido ao desmatamento da
vegetação original. É importante notar os vasos da varanda
da construção mais próxima. Neles há plantas,
evidenciando a necessidade de regar devido ao sol e ao calor, sugerindo a
necessidade do cuidado por empregados ou escravos. Desse modo, pode-se pensar
ter o dono dessa casa razoável condição financeira.
Os três telhados,
indicando três prédios, também permitem pensar na
hipótese de ambiente urbano com prédios independentes muito
próximos um do outro – o que reforçaria o fato de o artista
ter representado um encontro de escravos de diferentes senhores nos fundos
dessas casas, longe da rua principal, da fachada desses prédios e,
portanto, em ambiente mais reservado e seguro para suas práticas. Nesse
caso, Rugendas teria retratado uma prática
marginal, realizada nas periferias da cidade, longe das ruas e ambientes
principais. Desse modo, não é descabido supor que essas
práticas poderiam ser toleradas desde que realizadas nesses ambientes
reservados.
Por outro lado, cabe outra
hipótese: as três construções poderiam fazer parte
de uma grande propriedade da qual os sujeitos representados possivelmente
seriam escravos. De qualquer modo, a construção maior no alto do
morro, que certamente representa uma igreja, pode descartar um ambiente
estritamente rural, afastado de outras propriedades, apesar de o pouco que
aparece na imagem além das construções aparentar
região só de vegetação. Isso reforça a
possibilidade de a representação de Rugendas
ser o encontro de escravos de diferentes senhores.
É possível
identificar outras quatro pequenas construções do lado esquerdo
da igreja, sugerindo a presença de mais moradores na região. O
artista pode ter tido a intenção proposital ao colocar uma igreja
no topo de um morro como pano de fundo da imagem. Sendo ou não mera
representação do real, confere a ideia da presença da
Igreja católica nessa sociedade de forma poderosa, no topo, de onde tudo
vê e controla, assim como também permite, aliás, a coisificação
dos seres no regime escravocrata.
Entretanto, não é
possível concordar com Vieira e Assunção (1998, p. 97), os
quais afirmam que a gravura “parece ser situada no Rio de Janeiro, devido
à forma do morro no fundo do quadro”, pois apenas pelas características
dos morros não é possível sequer especular sua
localização. Tal especulação seria mais bem fundamentada, como já escrito em linhas anteriores,
pelo tipo de prática em si e o período da obra do artista.
O ambiente é claro,
aberto, mas ao mesmo tempo abrigado, garantindo que se possa acender o fogo
para fazer a comida sem a possibilidade de o vento atrapalhar e, ao mesmo
tempo, permitindo a dispersão da fumaça, de modo que ela
não incomode os moradores dessas casas ou possíveis transeuntes.
Essa fumaça, aliás, impossibilita verificar se há
alguém mais por detrás e como seria, mais detalhadamente, o
espaço aos fundos das casas. Ao lado da brasa, no chão,
são vistas algumas poucas bananas, possivelmente assando.
Tal ambiente espaçoso
oferece a sensação de liberdade em um mundo escravista, mesmo que
momentânea, durante a prática em questão. Esse ambiente
aberto, encontrado também em obras de outros artistas, proporciona
questionamento sobre o modo de controle do sistema escravista. Na gravura de Rugendas observa-se razoável espaço livre e
com vegetação, levando ao questionamento de por que os negros
não escapavam se eram escravos. As práticas de vigilância,
controle e punição eram tão eficazes ou temidas? Ou a vida
de um cativo com certas liberdades em uma cidade com considerável vida
social era mais convidativa do que a vida em um quilombo ou em outro local como
fugitivo? Esses questionamentos rodeiam tal cenário, ilustrando a
complexidade e subjetividades presentes na sociedade escravocrata brasileira no
início do século XIX.
A capoeira é jogada em
chão de terra batida, e o mato ralo ao lado faz constatar ser esse
espaço bastante utilizado para a prática, como também,
possivelmente para trânsito. Se a sombra dos sujeitos colocada por Rugendas não for só para realçar a
perspectiva dimensional, pode-se dizer que a prática ocorre ou no
início da manhã, ou no final da tarde, o mais provável,
pelo “incômodo” som do tambor e das palmas, e por ser o
momento, após as tarefas, mais indicado para a realização
da prática, de forma que fosse tolerada ou não reprimida.
Analisando primeiro as mulheres
presentes na cena, observa-se na extrema direita uma escrava vendedora de
frutas da terra, que segura um cachimbo, que estaria fumando. Certamente,
devido a suas vestes, ela tem status diferenciado entre seus pares. Em Mercado
de escravos, também de Rugendas, há
uma vendedora de quitutes “provavelmente uma escrava ao ganho ou
já alforriada, e portanto ocupa uma
situação social diferenciada – evidenciando como a
estratificação social permitia certa mobilidade, que implicava
outros usos da cultura material”, conforme observou Conduru
(2008, p. 89), demonstrando a presença comum desse tipo no meio social
naquele período. Nesse sentido, é necessário assinalar que
os artistas viajantes, em geral, elaboravam suas obras com imagens de tipos que
encontravam tanto na cidade como no campo.
Ao centro da imagem
estão as outras duas mulheres. Uma claramente é a cozinheira,
pois mexe a panela ao fogo. Apesar de suas vestes não serem tão elaboradas
quanto às da vendedora de frutas, seu ofício também lhe
proporciona status diferenciado entre seus pares. Rugendas
representou a nudez exposta das mulheres escravas na figura dessa mulher. A
nudez e a sexualidade são fatores presentes em muitas imagens sobre os
negros escravos nesse período:
O fato de mulheres e homens
aparecerem ora cobertos, ora vestidos nas imagens de Rugendas
e Debret induz a acreditar que a
exposição dos corpos era facultativa e, portanto, uma atitude
voluntária, deliberada, de pessoas apresentadas como seres amorais que
viviam em condições quase animalescas. Contudo, ao apresentar
majoritariamente seminus os corpos negros, essas obras levam a pensar que a
exibição do corpo era obrigatória, fosse
no real, nos acontecimentos registrados, ou ao menos na
representação, nas cenas artisticamente compostas, de modo a
constituir e reforçar a imagem dos negros como seres degenerados. Tal
reflexão chama a atenção para a sexualidade que perpassa
muitas dessas cenas (conduru, 2008, p. 90).
A outra mulher parece mais
apática, assistindo ao jogo. Talvez fosse ajudante da cozinheira ou, ao
menos, sua amiga com a qual coloca o assunto em dia, trocando valiosas
informações que servem para resistência de ambas, e quiçá
do grupo, em um mundo escravista. Não é de estranhar que a
primeira evidência de um fato da capoeira, em que uma mulher aparece como
sujeito ativo, ocorra já na segunda década do século XIX,
no Rio de Janeiro, na Relação de presos feitos pela
polícia – volume II, 1817-1819, do Códice 403:
“Joaquina Angola de João dos Fatos, por estar com um estoque na
mão, jogando capoeira, e jogou fora quando foi presa. 300 açoites
se tanto puder levar.” (AN). Nessa referência uma mulher aparece,
aliás, portando arma branca e a descartando, o que evidencia certo
conhecimento sobre os processos e consequências da repressão;
sendo castigada do mesmo modo – se pudesse aguentar, como previu a pena
– como se castigavam os homens.
Talvez esse castigo impingido
à mulher fosse igual ao dos homens devido ao entendimento de que ela
estava praticando algo do mundo masculino e, portanto, deveria ser punida do
mesmo modo. O castigo também poderia ser demonstração de
poder para desestimular o aliciamento de mais novas adeptas à prática.
Em Jogar capoëra,
em pé, ao lado da cozinheira, está um homem cuja mão
esquerda segura um chapéu, sugerindo um gesto de saudação
ou agradecimento à cozinheira. Com a mão direita recebe da
cozinheira uma cumbuca com comida, ao mesmo tempo em que apoia no mesmo
braço um bastão ou cabo de madeira. Ainda que não seja
possível afirmar, é possível que esteja segurando o cabo
de uma ferramenta, uma enxada, por exemplo, não se separando de seu
instrumento de trabalho no momento de se alimentar. No chão, à
frente dos pés do homem de cartola é possível visualizar
dois cestos entre as pernas do jogador da esquerda. Talvez o bastão do
homem que se serve com a cozinheira fosse utilizado
para carregas tais cestos, um em cada extremidade para contrabalancear,
sugerindo ser aquele momento uma pausa do trabalho para a
alimentação. Curiosamente, tais cestos também podiam ser
chamados pelo nome capoeira, outro significado comportado pelo vocábulo.
O homem de cartola está
com os braços levantados vivenciando a ludicidade
do jogo e da música. Suas vestes propõem a possibilidade de ter
ofício menos braçal, mais caseiro ou urbano, próximo de
seus senhores, o que também lhe confere status diferenciado no
ambiente escravista. A própria cartola é sinônimo de
identificação e hierarquia entre seus pares. Em ocorrências
documentais da capoeira (soares, 1999 e 2002), chapéus sempre foram
encontrados com seus praticantes.
À frente de um coqueiro
ou palmeira estão três homens. Um deles, com postura mais
relaxada, aparenta estar encostado no tronco da árvore empunhando acima
da cabeça um pedaço de cana-de-açúcar ou de bambu.
Mais provável que seja a primeira opção devido ao contexto
de alimentação e a curta distância entre os gomos do caule
e sua espessura. Esse homem demonstra estar torcendo e oferecendo entusiasmo a
algum dos jogadores. Talvez para o mais próximo, pois no mundo das lutas
os grupos antagônicos geralmente ficam em lados opostos, o que poderia
ter sido representado por Rugendas, apesar de, na
prática, os jogadores sempre mudarem seu posicionamento. Considerando
sua vestimenta, porém, ela é mais parecida com a do jogador da
esquerda, pois ambos têm um pano amarrando a cintura, ao contrário
do outro jogador, que aparenta ter uma corda ou fita. Esse pano que amarra a
cintura do homem que segura o bambu parece ser do mesmo tecido da calça
do homem a seu lado, de gorro amarelo.
Quanto ao fato de os dois
jogadores utilizarem modos diferentes para amarrar a calça na cintura,
um com pano e outro com corda ou fita, diferença que se pode constatar nos demais homens presentes e espalhados na
cena, seria uma possível evidência de indumentária identitária de grupos diferentes? E, se isso puder
ser comprovado, Rugendas estaria ciente dessas
diferenças identitárias quando retratou
tais sujeitos? Mais pesquisas são necessárias para mais
considerações nesse sentido. De qualquer forma, se isso fosse
verdade, os membros dos diferentes grupos estariam distribuídos
aleatoriamente na cena retratada por Rugendas.
Os outros dois homens
estão com panos na cabeça, possivelmente gorros, parecendo
compartilhar de uma mesma identidade indumentária e de grupo, talvez de
etnia. Um desses dois, com a mão no queixo, demonstra estar tenso ou
analítico com o desenrolar do jogo. Isso nos faz pensar que seu colega,
que está mais à frente, ao levantar a camisa e colocar a
mão na cintura esteja se preparando para pegar uma arma, apesar de
não se poder identificar com clareza tal artefato que, por aparentar ser
um objeto pontiagudo, parece ser um estoque. Como Rugendas
(1998, p. 158) descreveu, é provável que “a brincadeira
não raro degenere em briga e que as facas entrem em jogo,
ensanguentando-a”.
De todo modo, ao
contrário do sujeito que pode estar portando um estoque, o qual aparenta
nitidamente escondê-lo intencionalmente, uma faca pode ser constatada
claramente na cintura do sujeito da extrema esquerda da imagem. Portar armas
brancas era considerado crime naquele período. O fato de esse escravo
possuir uma faca na cintura pode demostrar que ele
estava seguro, dentro da propriedade de seu senhor. Talvez até ajudando
no preparo do alimento na hora da refeição. Ou que pertencia a
algum senhor influente, o que lhe assegurava livre trânsito para seu
labor, ou, ainda, que era conhecido por seu ofício, que demandava o uso
de uma faca, sendo, portanto, aceito seu trânsito com sua ferramenta de
trabalho. Isso seria possível já que em outra gravura de Rugendas, Porteurs
d’eau, junto da fonte de água,
há um escravo carregando um barril na cabeça e portando uma faca
na cintura; há também um guarda que aparece separando uma briga
de negros, assim colocando ordem no local.
O sujeito que porta uma faca na
imagem Jogar capoëra também
poderia estar, justamente, mostrando a faca a todos, assinalando a
possibilidade de sua intervenção com tal arma branca, a fim de
amedrontar os presentes, inibir ou alertar sobre as consequências no caso
de algum tipo de confusão, ou mesmo demonstrar superioridade, comando,
ordenação ou transgressão. Esse sujeito aparenta estar
batendo palmas fazendo parte da construção musical, compartilhando
o momento lúdico com o outro de cartola, ao qual dirige seu olhar. Por
ser o único que visivelmente porta uma faca na cintura, não se
pode descartar que ele seja um capataz, mesmo se confraternizando com outros
escravos.
Não é
possível, contudo, inferir diretamente sobre algum tipo de
liderança por parte de algum dos sujeitos representados, e apenas sob a
perspectiva do comando musical do sujeito que toca o tambor, é
possível pontuar uma certa ascendência,
já que o ritmo musical dita o ritmo corporal dos jogadores e dos demais
presentes. É possível que esse comando musical se estendesse
à liderança do ritual e das atividades correlatas. A
própria posse do instrumento talvez indicasse que tal sujeito exercia um
poder com influência maior no âmbito da prática,
principalmente se houver relação de dependência do referido
instrumento para que a prática do jogo seja realizada de forma melhor do
que em sua ausência.
Aparentando estar sentado em
cima de um tambor está um homem que toca o instrumento. Um olhar minucioso,
porém, percebe que ele não senta no instrumento, mas em outro
objeto, uma pedra ou banco. Há a possibilidade de o tambor estar apoiado
em um calço, mas não é possível afirmar isso. Esse
homem possui escarificações nas
bochechas, significando identificação étnica, de
nação ou grupal. Rugendas retratou a
imagem de alguns negros conforme sua nação de origem, e, fazendo
sua analogia com a face do sujeito que toca o tambor, pela semelhança
entre as escarificações retratadas nas
imagens, é possível sugerir que esse fosse da nação
Mina. De todo modo, tais escarificações
também poderiam ser um sinal de distinção ou valentia.
O sujeito que toca o tambor
porta um elegante chapéu e se veste de forma mais elaborada do que a
maior parte dos demais, aproximando-se do homem que usa cartola. Sua
expressão facial demonstra uma atenção técnica ao
jogo, pois a prática aparenta estar em um momento tenso. Essa
expressão mais compenetrada também poderia demonstrar possível
falta de domínio do instrumento. Sabe-se que quando não se domina
um instrumento musical, é difícil para o instrumentista operar
outras ações, relaxar, cantar ou acompanhar paralelamente a
atividade, por não se poder desconcentrar da responsabilidade ao tocar
na roda.
O único instrumento
musical presente na imagem é o tambor. Instrumento igual foi tipificado
como tambor do congo por Charles Ribeyrolles, no
mesmo período em que Rugendas elaborou a
gravura Jogar capoëra. O francês
Charles Ribeyrolles (apud abreu, 2005, p. 37), que viveu de 1812 a 1860 e
esteve no Brasil possivelmente a partir de 1835, relatou:
No sábado, à
noite, finda a última tarefa da semana, e nos dias santificados, que
trazem folga e repouso, concedem-se aos escravos uma
ou duas horas para a dança. Reúnem-se no terreiro, chamam-se,
agrupam-se, incitam-se e a festa principia. Aqui é a capoeira,
espécie de dança pírrica, de
evoluções atrevidas e combativas, ao som do tambor do congo. Ali
é o batuque, com suas atitudes lascivas, que o urucungo acelera ou retarda.
Mais além é uma dança louca, com a
provocação dos seios e das ancas. Espécie de
convulsão inebriante a que chama de lundu.
Na obra de Rugendas,
nota-se que o tambor não é de grande porte, o que possibilita seu
deslocamento com certa mobilidade. Instrumentos musicais utilizados pelos
negros, entre eles o tambor, eram constantemente reprimidos e apreendidos
durante todo o século XIX (soares, 1999 e 2002). Nesse sentido, o
tamanho do instrumento era fator importante de resistência à
repressão, quando se podia retirar do local ou escondê-lo com
rapidez se necessário.
No mesmo período em que
Charles Ribeyrolles teceu suas
considerações e que Rugendas retrata um
tambor na litografia Jogar capoëra, o
então chefe de polícia Eusébio de Queirós, por meio
de ofício (AGCRJ, 1833), propõe à Câmara Municipal
que o Código de Postura da cidade proíba tambores nas
danças de ruas de escravos.
A presença desse
instrumento musical também não era deixada de lado em relatos de
ofícios policiais na segunda década do século XIX no Rio
de Janeiro, principalmente quando na presença do tipo social do capoeira, agravado por “ajuntamento”, como se
pode constatar mais uma vez na Relação de presos feitos
pela Polícia – volume II, 1817-1819, do Códice 403:
“Leão Angola, escravo de José Pedro de Sousa, por ser
encontrado em ajuntamentos de capoeiras, achando-se-lhe
um tambor pequeno” (AN). Esses fatos reforçam a presença
constante desse instrumento nas manifestações de expressão
musical oriunda dos escravos.
Assim como na litografia de Rugendas, o tambor pode representar o instrumento agregador
para se formar uma “roda”, um “ajuntamento”, para o
jogo da capoeira. O tambor pequeno pode sugerir a facilidade de levá-lo
a qualquer lugar, devido ao peso reduzido se comparado com os grandes tambores,
e de poder escondê-lo, a fim de se livrar da repressão.
Retomando a análise da
litografia de Rugendas, os dois homens que
estão em destaque jogando capoeira são os que o artista mais
enfatizou na expressão de movimentos. O da esquerda está em
postura bélica de guarda, com as duas mãos à frente, e o
tronco ligeiramente curvado. Já o da direita, analisando-o
cineticamente, aparenta estar voltando de movimento que acabou de realizar,
mais próximo ao oponente, devido à posição dos
braços e pernas, e também da sobra da corda ou fita que segura
suas calças.
Nota-se a expressão
facial de ambos os jogadores, evidentemente, com os semblantes sérios,
concentrados ou preocupados, seja pelos ânimos mais acirrados ou pela
competitividade inerente ao jogo. Mas o fato de ambos os jogadores estarem com
os punhos cerrados pode nos fazer inferir ser a primeira hipótese a mais
provável. Talvez, o jogo já estivesse passando da fase de
simulacro de luta para luta propriamente dita, assim como Rugendas
(1998, p. 158) descreveu em seu texto: “a brincadeira não raro
degenere em briga”.
Os punhos cerrados de ambos os
jogadores também podem ser entendidos pela possibilidade de ser postura
motora cultural comum do jogo, visto que, de acordo com a
descrição de Rugendas, as mãos
não perfaziam o repertório corporal para o ataque, só as
cabeças. Cerrar as mãos poderia ser ação motora em
preparo, intencional ou não, para o choque da cabeça no corpo do
outro jogador, protegendo, desse modo, as articulações mais
vulneráveis, como as dos dedos.
A imagem de “A
negro fight in South
America”, de 1874, mostra negros brigando utilizando a
cabeçada como recurso de ataque corporal. Nela é possível
notar de forma evidente os punhos cerrados. Constatam-se indícios de
práticas similares à capoeira no continente sul-americano em
1874, mais precisamente na Venezuela, na mesma época da obra de
Plácido de Abreu (1886):
Harper’s Weekly
– A Journal of Civilization foi revista da cidade de Nova York, EUA, publicada entre 1857 e
1916. Segundo Soares (2002, p. 162), a gravura citada consta na
edição de 15 de agosto de 1874. Essa revista caracterizava-se
pela publicação de matérias políticas e pelo uso de
muitas charges e caricaturas. Apesar de Soares (p. 143) afirmar, com base nessa
fonte, que esse seria um indício de luta marcial de origem africana
aparentada com a capoeira, não sendo possível obter a
informação na fonte primária, não se pode avaliar a
matéria que complementaria a gravura. Portanto, não é
possível tecer mais considerações em análises sobre
esta imagem. A gravura poderia ser desde uma tentativa de fiel
reprodução do cotidiano de negros na Venezuela até um
possível engodo para a revista ou, ainda, uma analogia sobre uma disputa
interna de classe ou grupo, no caso, os negros. Enfim, maior conhecimento sobre
a fonte primária poderá trazer luz sobre a fonte e suas
respectivas análises. Também não se pode afirmar que 1874
seria o ano da realização da gravura, mas sim, provavelmente, o
da publicação da revista. Pode-se, então, sugerir como
hipótese que a informação retratada na gravura seja
contemporânea do ano da publicação da revista.
Apesar de todas as
limitações interpretativas, contudo, é possível
analisar esta imagem sob a perspectiva da interpretação e
análise das condutas e comportamentos motores presentes na gravura:
evidencia-se a prática da cabeçada ou da sorte de cabeça,
ou de um possível jogo de cabeçadas, definida
como conduta motora em momentos de combate corporal por negros na Venezuela.
Nota-se claramente que, enquanto populares assistem, um dos oponentes
está com os pés fora do chão, projetado no ar, o que
sugere uma cabeçada arremessada, ou devido à curvatura da coluna
vertebral, uma manobra de desvio do ataque da cabeçada do oponente.
Concomitantemente a todas essas ações motoras, os punhos dos dois
contendores encontram-se cerrados, assim como os dois jogadores de capoeira da
litografia de Rugendas.
A gravura dos negros brigando
na Venezuela, apesar de se distanciar em aproximadamente 50 anos da de Rugendas, assemelha-se muito à descrição
textual do artista sobre a capoeira. Desse modo, é possível
até afirmar, ao imaginar o jogo-combate descrito por Rugendas,
que essa está mais próxima da referida descrição do
artista do que sua própria litografia.
De todo modo, tanto na gravura
de Rugendas como em textos daquele período
sobre a capoeira, não é possível eliminar o caráter
de ataque dos membros superiores, pois, segundo muitas fontes (lussac, 2009), eles eram utilizados junto às armas
brancas diversas. Nada impediria que as mãos livres também
atacassem. O que é possível discutir, sobretudo, refere-se
às possíveis técnicas motoras empregadas e suas
respectivas táticas.
Na litografia de Rugendas o jogador da esquerda, ao contrário do
outro, usa blusa e brinco de argola na orelha direita. É possível
pensar que, no meio social dos escravos e da população urbana
pobre da cidade do Rio de Janeiro daquele período, utilizar brinco de
argola de ouro, assim como outros adereços, poderia ser um fator
estético, identificador de um capoeira ou mesmo
de status. Essa indumentária mais elaborada do jogador da direita
pode apontar para uma diferença identitária
e de grupo, quiçá étnica, entre ambos, o que
reforça o caráter competitivo de seu jogo. O jogador da esquerda
aparenta ter tatuagens ou talvez escarificações
na face, principalmente na testa, diferentes das do homem que toca o tambor,
mas do mesmo modo, podendo significar distinção e valentia, e um
símbolo de pertencimento étnico, de nação ou
grupal. Pelo fato, entretanto, de a litografia não oferecer boa
resolução para melhor identificação, não se
pode descartar serem ferimentos cicatrizados, podendo ainda resultar de
torturas ou de marcas de identificação feitas pelo seu senhor ou
por outra ocorrência ocasional. Como já afirmado, porém, Rugendas retratou a imagem de alguns negros conforme sua
nação de origem e, novamente, fazendo sua analogia com a face do
jogador da esquerda da gravura Jogar capoëra,
pode-se sugerir que o mesmo talvez fosse da nação
Moçambique, que parecia ter o costume de fazer pinturas ou tatuagens em
seus rostos.
Fato é que os elementos
de cores na imagem não possibilitam afirmar haver
separação identitária entre os
sujeitos representados. Os demais elementos materiais, porém, como as
indumentárias e os artefatos podem sugerir tal identificação
de grupos, se houver. Também é possível constatar por meio
das indumentárias e dos objetos presentes na imagem que eles estavam
relacionados aos sujeitos escravos, configurando uma ordem de status
social, assim como entre os homens brancos também havia essa
distinção de função e posição social
por meio de vestes e objetos que detinham ou portavam.
Segundo Conduru
(2008, p. 90) analisando algumas imagens de artistas viajantes, os quais representaram, de certa forma, os costumes e
condições sociais dos africanos e afrodescendentes no Brasil do
século XIX, “a indumentária não é um elemento
menor. A maioria dos negros e negras aparecem seminus, em forte contraste com
as roupas e adereços dos brancos”, reforçando a ideia de
distinção entre negros e brancos. Essa análise, apesar de
não se poder tratar de uma observação geral em obras de
viajantes, pode ser aplicada à gravura de Rugendas
aqui analisada, ainda que sem a presença do homem branco.
Há que atentar
também para as estratégias de desumanização,
conforme afirma Conduru (2008, p. 91), através
das representações dos corpos negros, de seus traços,
poses e gestos, constatando-se evidente violência:
seja quando acomoda as especificidades
corpóreas dos sujeitos representados às proporções
e poses dos modelos acadêmicos, co-mo na obra
de Rugendas, seja ao caracterizar os negrosquase como animais. (...) essa
degradação revela-se menos um dado dos seres representados e mais
um vício dos códigos de representação dos artistas
e, portanto, da imagem que constituem do outro.
Isto faz refletir sobre a
análise dos semblantes dos dois sujeitos representados jogando capoeira
na litografia abordada. A simples manipulação do real pelo
artista nesse sentido já alteraria a perspectiva de parte da análise
realizada em linhas anteriores.
Ao representar os corpos dos
sujeitos negros e seus movimentos, como no caso da litografia Jogar capoëra, moldando-os conforme estéticas
acadêmicas artístico-ocidentais, deixa-se
o aspecto de denúncia e documental de lado para favorecer o
estético e comercial, ou seja, visual e comercialmente aceitável.
Nesse sentido, é necessário enxergar e pensar as
representações iconográficas também sob outra
perspectiva. Sob a perspectiva da arte no cativeiro, a arte cativa como Conduru (2008, p. 95) analisa,
Complexa é a
problemática da escravidão, do comércio de humanos por
humanos, e igualmente a da arte. Porque, em última instância,
essas imagens foram feitas para fim semelhante ao tema que retratam: serem
exibidas também para avaliação, compra, mostra,
juízo, aquisição – um processo sem fim –, dada
a condição da obra de arte como mercadoria no processo de mercantilização de tudo e todos em curso.
Portanto, não são apenas representações
artísticas do cativeiro o que essas obras apresentam, pois elas implicam
pensar também a arte como cativeiro e a arte cativa.
Desse modo, estando a representação pública da vida e do
cotidiano dos escravos dependendo de mão e olhos alheios, sob o controle
de artistas como Debret, Rugendas,
entre outros, que de certa forma também eram regidos por outras
forças, conforme afirma Conduru (2008) e como
já vistas e dialogadas com Foucault (1996 e 2001), a visão
documental torna-se alienígena e possivelmente adulterada para
inúmeros fins. Por outro lado, pelo fato de tais artistas não
pertencerem ao meio, ao fenômeno quando ele ocorre, considera-se que sua
simples presença o altera, modificando, consequentemente, o que
está a ser registrado.
Mas podemos pensar se Rugendas não pretendeu ir além do do-cumento,
da obrigação de retratar a situação imediatamente
visível, ultrapassando a realidade para representar, mais do que viu, o
que sentiu. (...) ele estaria nos dizendo: apesar da situação
abominável, de todas as limitações e dores, os africanos e
afrodescendentes escravizados souberam resistir e preservar sua cultura
artística – não só a criação, mas
também a fruição estética, suas práticas e
saberes, sua humanidade. Isso evidencia igualmente como, na arte, a imagem
transita entre realidade e ficção, entre a verdade, o
verossímil e até, quem sabe, a mentira (conduru,
2008, p. 94).
Destarte, a litografia Jogar
capoëra ou danse
de la guerre
humaniza os sujeitos representados, quando comparadas com outras obras do
artista que retratam a coisificação dos seres, como em Mercado
de negros. Jogar capoëra representa a
resistência, o momento da alimentação, da
convivência, da ludicidade entre esses seres,
caracterizando uma vida social, de experiências, de troca e aprendizagem,
de condição humana mesmo sob o manto da escravidão.
CONCLUSÃO E
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho investigaram-se
os sentidos da cultura material, pensando os processos múltiplos
educativos da capoeira também pelas coisas, pelo material, entendendo a
utilidade – dimensão prática – e os signos –
dimensão simbólica – dessa cultura material, de suas
representações, de suas simbologias e dos indícios das
ações e utilizações dessas coisas.
O corpo desse artigo seguiu
estratégia de abordagem pelas diferenças das nuanças da
cultura material da capoeira. Ao longo da análise iconográfica
foi possível verificar quatro aspectos no repertório da cultura
material contida na imagem: indumentárias, armas e objetos,
música e lugar.
Sob esse entendimento, por mais
que fosse investigada e analisada de modo separado a cultura material da
capoeira, essas análises não foram estanques, e sim enredadas
para maior compreensão do fenômeno, pois tais partes
compõem todo um arcabouço com o qual se pôde começar
a interpretar e entender o mosaico da dinâmica do sistema de
ensino-aprendizagem da capoeira.
Nesse sentido, apenas pela
imagem iconográfica não é possível obter mais
resultados, mas a análise dessa fonte propicia elementos fundamentais
que, cruzados com outras evidências documentais, permitem chegar a análises
que apenas um tipo de fonte não permitiria. Tais análises
viabilizam elaborar uma ideia de cenário e ambiente no qual habitava a
capoeira. Habitação que configura o ambiente e, ao mesmo tempo,
também é por ele configurada.
Portanto, é
possível entender que o conhecimento, pelos capoeiristas, dos lugares em
que atuavam era fundamental para a realização da prática,
uma vez que a dominação do referido território era fator
de identidade de grupo e de status social e estratégia de
sobrevivência e proteção. A cena retratada por Rugendas pode nos oferecer indícios para isso.
Afinal, todo o conhecimento
produzido e reproduzido pelos negros escravos, nesse caso mais especificamente
pelos praticantes do jogo-luta, se moldou e fortaleceu em estratégias de
defesa e ataque, e de contrapoder às ações de
coação e inibição do poder institucionalizado ao
longo do século XIX no Rio de Janeiro. O simples fato de se realizar o
jogo da capoeira nos fundos de uma casa, como na litografia Jogar capoëra, já demonstra essa perspectiva.
Na mesma medida, isso confere
à atividade do jogo simulacro pedagógico da luta, que certas
vezes foi identificada junto à música nas fontes no decorrer da
história. Caracterizando o elemento lúdico da prática,
apesar de não se poder afirmar um elemento musical próprio e
característico da capoeira, como visto nos dias atuais, era comum no
século XIX a apreensão de instrumentos musicais portados pelos capoeiras (araújo,
1997; soares, 2002), o que evidencia a existência do elemento
música na prática.
Destarte, não por acaso
se utilizavam estratégias para evitar tal apreensão, como o uso
de pequenos instrumentos, fáceis de transportar e esconder. A litografia
de Rugendas aponta diretamente para essa
possibilidade. Também é necessário considerar a
existência do som como parte da cultura material da capoeira naquele
período, mesmo que não se possa identificá-lo. Pistas
foram deixadas pela gravura de Rugendas: tambor,
palmas e canto, cenário muito parecido com o de outras práticas
contemporâneas, como o lundu e o batuque.
Outra percepção
sobre esse ponto é que a gravura, pela análise cinética
dos jogadores, aponta para ritmo musical não muito lento, sendo mais
provável ritmo moderado a rápido. De qualquer forma, isto
não descarta a possibilidade de o jogo da capoeira naquele
período ser praticado em ritmo lento.
Estratégias parecidas
foram verificadas a fim de evitar a prisão pelo porte de arma branca. As
armas, apesar de proibidas, poderiam ser encontradas com pessoas de certos
ofícios que as requeriam e, principalmente, com marinheiros. A capoeira
foi prática que sempre transitou no território dos homens do mar
e possivelmente vários conhecimentos foram trocados com pessoas de
diferentes partes do mundo. Nos documentos investigados é comum
encontrar prisões pelo porte e ataque com diferentes tipos de armas,
demonstrando o grande repertório material bélico que os capoeiras detinham (araújo,
1997 e 2005; soares, 2002).
Não por acaso, a faca,
encontrada na litografia e em texto de Rugendas
(1998), era artefato sempre presente nos registros policiais. Por ser
ferramenta de ampla utilização, era comum a diversos
ofícios, incluídos os da marinhagem. E
sendo esses ofícios prática que proporcionava adestramento com a
ferramenta em questão, é de esperar que esses sujeitos detivessem
habilidade superior em seu manejo, criando combinações de
movimentações e usos para a capoeiragem.
Determinados ofícios,
então, eram práticas que propiciavam a aprendizagem do manejo de
arma branca. Assim como no Oriente, muitos artistas marciais aprendiam e
treinavam com as ferramentas de seus ofícios, e isso parece ter ocorrido
também com a capoeira brasileira. Não por acaso, a maioria dos
detidos por capoeira eram escravos ou tinham ocupação, quando livres
ou alforriados, ou seja, a maioria dos capoeiristas pertencia à classe
trabalhadora, escrava ou não (soares, 1999 e 2002).
As indumentárias
descreviam o status social, a função, entre outras
características do povo. Mas só após a metade do
século XIX podem ser percebidas as diferenças entre as
apropriações indumentárias dos capoeiras,
quando eles as assumem em suas roupas, cintos, calçados e chapéus
(soares, 1999). Essas diferenças são características de
identidade de grupo que dialogam também com a prática do
jogo-luta, como é o caso das cores que identificam as maltas e a
possível diferença do corte das calças que facilitam os
movimentos dos golpes.
Na litografia de Rugendas, porém, as indumentárias dos
sujeitos representados não apresentam elementos tão distintivos,
os quais poderiam identificar grupos definidos ou mesmo maltas, conforme se
pode constatar nas décadas finais do século XIX no Rio de Janeiro
(soares, 1999). Isso reforça a teoria de que o período de
formação das maltas de capoeiras no Rio de Janeiro realmente se
deu a partir da metade do século XIX.
Considerando os dados
desenvolvidos no decorrer deste estudo, pode-se afirmar que ele ilumina
preliminar e parcialmente a complexa relação dos sujeitos que
desenvolveram o modo de fazer a capoeira – cultura imaterial – com
os objetos, materiais e ambientes que compuseram a cultura material do
jogo-luta no Rio de Janeiro no primeiro quartel do século XIX, e suas
simbologias, bem como seu modo de transmissão e aprendizagem.
Pôde-se constatar que este trabalho contribui de forma inicial a fim de
que a partir de tais análises, pautadas em elementos
iconográficos, possa-se começar a discutir tal temática.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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Capoeiras – Bahia, século XIX: imaginário
e documentação, v. 1. Salvador: Instituto Jair Moura,
2005.
ABREU, Plácido de. Os capoeiras. Rio de Janeiro: Tip. Seraphim Alves de Brito, 1886.
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Ricardo Martins Porto Lussac
é doutorando em educação no Proped
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e bolsista de doutorado do CNPQ.
Recebido em: 14/04/2013
Aceito em: 01/05/2013
LUSSAC, Ricardo Martins Porto.
A cultura material da capoeira no Rio de Janeiro no primeiro quartel do
século XIX: uma análise a partir da litografia Jogar
capoëra ou danse de la guerre, de Rugendas. Textos escolhidos de cultura e arte populares,
Rio de Janeiro, v.10, n.1, p. 141-167, mai. 2013.
Figura 1: Jogar capoëra ou danse de la guerre, 1822-1825 (Rugendas,
1998)
Figura 2: San Salvador, 1822-1825 (Rugendas, 1998)