Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares,
v. 10. n. 1, mai. 2013
Cíntia
Paula Lopez (UFBA)
As
danças tradicionais na Bahia têm significativa
reverberação quanto ao modo com que os olhares se voltam para
aquele local, implicando exotismos que não contemplam a
efervescência dos ambientes que as produzem. Este artigo sugere o
exercício de ampliação das perspectivas desse olhar para
as tradições e para o corpo em configurações
móveis que cumprem o papel de dinamizar e renovar esses
repertórios.
DANÇAS POPULARES;
ORALIDADE; TRADIÇÃO; CORPO.
Cíntia
Paula Lopez (UFBA)
Traditional dances in Bahia have significant reverberation as the way the
eyes are on that site, implying an exoticism that
does not include the effervescence of the environments in which they are produced. This article suggests broadening the perspectives that look at
the traditions and the body
in mobile configurations that fulfill the
role to stimulate and renew these repertoires.
FOLK DANCES; BODY;
ORALITY; TRADITION.
No Estado da Bahia é
recorrente o pensamento das “tradições”; o baiano
é educado, desde pequeno, a se pensar como pertencente a um
espaço que contém “a origem” das
tradições afro no Brasil. Nada de tão grave nisso,
não fosse a utilização desse lema como desculpa para a
discriminação por meio de mecanismos políticos e mercadológicos
de exploração dos bens culturais locais e a consequente
deformação nos processos de produção, replicando
antigos julgamentos que isolam produções “nobres” das
“baixas”.1
Para ser mais específica
aponto, em primeiro lugar, para a miopia que a afirmativa acima carrega ao
desconsiderar o caráter dinâmico da cultura, em constante
construção, e as múltiplas contribuições
culturais que alimentam essas dinâmicas.
Neste artigo proponho uma breve
reflexão a partir do olhar para a dança e para os complexos
culturais que a englobam nos fazeres da cultura popular baiana, como o samba de
roda, o carnaval, as serestas e os pagodes. Solicito, portanto, ao leitor o
desafio de desarmar os preconceitos que acompanham esses eventos (por mais
relevantes que sejam as razões para tal julgamento), no intuito de
demonstrar sua importância para a renovação e
memória de textos2 como o samba de roda.
É comum para a lida com
artefatos da cultura, por parte de braços políticos, sua
categorização em “prateleiras”, pressupondo hierarquização
entre eles. Mesmo que não explícita nos enunciados de editais,
podemos percebê-la claramente no reconhecimento do samba de roda como
Patrimônio Imaterial da Humanidade (sandroni,
2004) ou na verba destinada pelo governo para a realização de festas
de largo ou para o carnaval; em momento nenhum, porém, se cogita sequer
a coexistência desses eventos com dinâmicas espontâneas,
necessárias e sempre presentes, como os pagodes, o arrocha,
entre outros.
Longe de querer, com esta
pequena discussão, condenar ações de políticas
afirmativas em relação à cultura popular, proponho aqui apenas alguns questionamentos quanto à
maneira de olhar para esses eventos carregados do exotismo da
“legitimidade” e da “pureza étnica”, e por outro
lado contribuir para que esse olhar seja mais eficaz na
construção de políticas que contemplem
seu caráter dinâmico e multirrelacional entre
produções vizinhas e intercambiantes.
Ao participar de uma festa de
largo em Salvador, no Estado da Bahia, fica clara a variedade de combinações
com as quais o argumento de determinada celebração se mescla.
Podemos tomar como exemplo a festa de Nosso Senhor do Bonfim3 (como
poderia ser a de santa Bárbara ou a de Iemanjá); ainda que a
tradição da festa se mantenha, ou seja, o caráter essencialmente
religioso, católico em sua essência, não descarta de sua
programação a coexistência do profano e do sagrado (este
último, múltiplo, pois o candomblé não deixa de ser
festejado a partir do sincretismo) no mesmo espaço.
Jocélio Teles dos
Santos, citado por Döring (2002, p. 20),
através de vários documentos de legislação sobre a
perseguição e condenação dos batuques em meados do
século XIX, comenta as razões e os locais para esses
ajuntamentos:
No decorrer do século
(XIX) o termo batuque foi geralmente utilizado para estas reuniões em
lugares tradicionais dos africanos e seus descendentes que ali trabalhavam,
como também nas festas religiosas católicas que tradicionalmente
festejam a parte profana com a participação das músicas e
danças dos negros, que no olhar das autoridades feriam o bom senso da
civilização.
Ainda hoje, se nas
procissões e na comissão de frente o sagrado predomina conduzindo
o festejo, no entorno e logo nas partes que se seguem é possível
identificar diversos microuniversos de diferentes formas de
participação ambivalentes, e por que não multivalentes,
percebidas na venda e no consumo de bebidas alcoólicas, nas rodas de
samba ou de candomblé que se organizam ao longo do caminho, assim como
pequenas serestas que duram até muito depois de toda a
celebração oficial terminar. É para esse caminho
considerado “ruído” que proponho aqui uma
atenção especial.
As denúncias comuns
atribuídas aos pagodes ou serestas destacam a sensualidade ou
obscenidade neles contidas, como argumento para os rótulos de
“baixos”, “pobres” e, ainda, como se fossem novidade
seus modos de elaboração, apontando para um rumo decadente que a
cultura estaria tomando. Seriam realmente novas essas formas de
expressão? Seria seu caráter ousado uma das razões para a
acusação de “mácula” das
tradições baianas?
Encontramos numerosos registros
de relatos que demonstram, desde meados do século XIX, a presença
incontestável de elementos obscenos e lascivos tanto nas letras das
canções improvisadas como nos modos de dançar dos negros
em aglomerações em espaços públicos, tomando parte
em festas religiosas católicas ou nas proximidades de locais de
trabalho, como portos, mercados ou praças da cidade de Salvador. Por
muito tempo significaram justificativa para prisões e
proibições de batuques e sambas, mas dificilmente se registra na
memória o link de que pode ser justamente um dos traços
mais expressivos ainda presente em outros modos de arranjos sociais e de
entretenimento, e, ao mesmo tempo, elemento significativo para a coesão
entre grupos de escravos provenientes de nações originalmente
inimigas na África.
O círculo se fechava e o
tocador de viola sentava-se num dos cantos, e começava uma simples
toada, acompanhada por algumas canções favoritas, repetindo o
refrão, e frequentemente um dos versos era improvisado e continha
alusões obscenas. Um homem ia para o centro da roda e dançava
minutos, tomando atitudes lascivas, até que escolhia uma mulher que
avançava, repetindo os meneios não menos indeentes.
E esse divertimento durava às vezes até o amanhecer (rugendas apud döring, 2002,
p.15)
Como podemos observar nessa
narração, na voz do viajante Koster em
1813, em Recife e citada por Rugendas, já no
início do século XIX estavam presentes nas ruas e em
espaços públicos, traços de “obscenidade”,
“lascividade” e
“indecência”, tanto nas letras das músicas como nas
formas de dançá-las. Fato esse que evidencia que não
é exclusividade de configurações atuais, nem tampouco
novidade essa prática.
Sem tomar a
posição de julgar a “oficialidade” dessas
práticas, apenas penso ser impossível desconsiderar sua
coexistência e sua condição imprescindível para a
manutenção de outras produções vizinhas, como o
samba de roda, os carnavais, entre outras.
Na pesquisa sobre o samba de
roda na Ilha de Itaparica que realizei durante o mestrado me deparei com
algumas situações incômodas o suficiente para que
continuasse buscando direções a seguir. Ao iniciar a coleta de
dados em campo conheci o grupo de samba de roda intitulado Unidos do Samba da
Misericórdia, liderado por dona Amália Moreira4 e
formado por mulheres marisqueiras e agricultoras em
sua maioria. Incentivadas pela Secretaria de Turismo local através do
pagamento de cachês e patrocínios para confecção de
figurinos elas faziam apresentações em festas oficiais produzidas
pela Secretaria. A questão aqui foi, em primeiro lugar, a
imposição por parte da Secretaria dos modelos de figurinos que
deveriam ser elaborados e utilizados, ou seja, de “baiana” e as
formas pelas quais o grupo deveria se organizar juridicamente para ter acesso
às verbas de editais a eles destinados, burocratizando-se e obtendo o
cadastro nacional de pessoa jurídica (CNPJ).
Ao prosseguir a pesquisa,
conhecendo outros grupos “não oficiais”, tive a oportunidade
de ouvir relatos de sambadoras antigas e de constatar
o caráter informal e familiar das rodas de samba naquele local e a total
ausência de qualquer tipo de “figurino”. Dona Amália
Moreira, em uma das visitas registradas fez questão de me apresentar o
figurino preferido pelo grupo e só utilizado em
apresentações informais, confeccionado em lycra, com saias curtas
e blusas de alças, justificando que o local é muito quente para
as tradicionais roupas pesadas de baianas.
Solicito aqui
atenção para os processos da cultura em detrimento de sua aparente
forma. Em diversos aspectos é senso comum captar uma
configuração a partir de seu formato, ou seja, modelos como a
“baiana de candomblé”, são cristalizados e
referenciados em vez de se atentar para as lógicas que organizam esses
arranjos. As situações geram configurações a cada
espaço/tempo e estão relacionadas, e não submetidas a
fatores móveis. O grande temor de rompimento com o tradicional,
portanto, não procede quando consideramos seu caráter
instável e transitório, que busca permanência viva e com
diferentes arranjos.
Como um dos fatores relevantes
nesses processos, ainda é possível destacar a constante
construção de estratégias de sobrevivência na lida
com as tensões em regiões de fronteira, ou seja, são evocados
recursos da memória cultural de determinado grupo, combinados com novas
informações pinçadas aqui e ali, podendo citar desde o
acesso a verbas que viabilizem sua manutenção enquanto grupo
até a apreensão do uso de novas tecnologias. Em qualquer desses
casos o que está em jogo é a garantia das mencionadas
permanência e “estabilidade”. Quero dizer com isso, de acordo
com o que o semioticista Iuri
Lotman chama de elipticidade
semiótica,5 que cada texto da
cultura se conserva em constante renovação para que possa seguir
existindo e, ainda mais, essa renovação se dá a partir da
mediação entre o que já existia com o que chega de novo,
no intuito de estabilizar as tensões geradas a cada encontro (ou
choque). Nesse sentido, aquilo que muitas vezes é visto como
ruído ou sujeira para configurações tradicionais da
cultura pode constituir justamente fatores que sustentam e cumprem o papel de
alimentar e dinamizar a memória desses grupos.
Considerando a ideia do corpo
como agente fundamental nos processos de cognição e
apreensão do mundo, proponho que ele seja entendido aqui como atuante
das operações de transmissão e manutenção
dessas memórias culturais dos grupos. Como apontam Christine Greiner e Helena Katz em sua prototeoria Corpomídia, o corpo é visto como
responsável pelas seleções e sínteses dos processos
comunicacionais do ambiente ou, ainda, como matriz cognitiva, e a
“dança como uma especialização que trabalha
basicamente como movimento metafórico” (greiner,
2005). Segundo essa autora:
Para Hutchins,
cultura é sempre processo e tem lugar tanto dentro como fora das mentes
das pessoas. A sua proposta é, portanto, a de que o principal componente
da cultura seja mesmo o processo cognitivo. A cognição, por sua
vez, seria sempre um processo cultural. Portanto, aquilo que costumamos estudar
como as “coisas” da cultura, tornam-se os resíduos do
processo (p. 103)
Entre as decorrências
dessa visão poderíamos pensar em uma corpo-oralidade,
lida como possível poética do corpo que, em vez de cristalizar
esses eventos, tece a cada tempo novas narrativas, sem
excluir as antigas, contemplando seu caráter dinâmico de
renovação e atualização constantes. Cabe
aqui, portanto, pensar nesse corpo como operador das metáforas do
universo pessoal de cada indivíduo. Uma vez que consideramos esse corpo
pensante, podemos deslocar consideravelmente nosso olhar para os enredos de
suas narrativas.
Retomando a ideia inicial do
presente artigo, as margens ou todas aquelas produções circundantes
que comumente são vistas como ruídos em grandes festas populares
podem ser consideradas fundamentais para sua existência. A velocidade com
que elas se renovam e se modificam pode ser um dos fatores para seu poder de
comunicação e consequente repercussão no agrupamento de
pessoas em festas populares.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
DOMENICI, Eloisa. A
experiência corpórea como fundamento da comunicação.
Tese (Doutorado). Programa em Comunicação e Semiótica,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2004.
DÖRING, Katharina. O samba de roda do Sembagota:
tradição e contemporaneidade. Dissertação
(Mestrado). Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. Salvador,
2002.
GREINER, Christine. O corpo:
pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume,
2005.
LOTMAN, Iuri.
La semiótica de la
cultura y el concepto de texto. In La Semiosfera I: semiótica de la cultura y del texto.
Madrid: Editora Cátedra, 1996.
LOTMAN, Iuri.
La memoria a la
luz de la culturologia. In
La Semiosfera I: semiótica de la cultura y del
texto. Madrid: Editora Cátedra, 1996.
SANDRONI, Carlos. Dossiê
de Candidatura do Samba de Roda do Recôncavo Baiano: para a terceira
proclamação das obras primas do patrimônio oral e imaterial
da humanidade. Brasília: Unesco,
2004.
1 No segundo semestre de 2011 a deputada
estadual da Bahia Luíza Maia propôs o projeto de lei 19.237/2011
que veda a utilização de recursos públicos para a
contratação de artistas que, em suas composições
(músicas, danças ou coreografias) desvalorizem, incentivem a
violência ou exponham as mulheres a situação de
constrangimento. A questão aqui é quanto aos critérios
utilizados pelo Estado para tal julgamento e o poder por ele utilizado nessa
censura para produções culturais.
2 O conceito de texto aqui é
utilizado com o sentido proposto pelo semioticista Iuri Lotman: que um termo ao
carregar em si a capacidade semântica de desdobrar-se em mais de um
sentido simultaneamente pode ser considerado um texto da cultura.
3 Festa popular que acontece na segunda
quinta-feira de janeiro partindo da Igreja de Nossa Senhora da
Conceição da Praia e seguindo em procissão com a lavagem
ritual, por parte de baianas de candomblé, até a Igreja de Nosso
Senhor do Bonfim, ambas em Salvador (BA).
4 Amália Moreira Mota é agricultora
e coordenadora do grupo de samba Unidos do Samba da Misericórdia,
Itaparica (BA).
5 Elipticidade
semiótica, para Lotman (1996), é um
mecanismo atuante nos processos de produção e
manutenção de textos da cultura. Na transposição de
um texto para outro contexto, cria-se uma lacuna que é imediatamente
preenchida ao entrar em contato com outros textos, gerando outros sentidos.
Cíntia Paula Lopez é mestre em dança pela
UFBA (2009) e professora de dança em Salvador (BA).
Recebido em: 02/10/2012
Aceito em: 19/04/2013
LOPEZ, Cíntia Paula. Corpo-oralidades: texturas poéticas do corpo
obsceno, tradição e renovação nas danças
populares da Bahia. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio
de Janeiro, v.10, n.1, p. 133-140, mai. 2013.