Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares,
v. 10. n. 1, mai. 2013
Déborah Callender (Fundaj)
O
artigo analisa as transformações que permearam a ciranda em
Pernambuco no período de 1960 a 1970, momento em que a dança se
popularizou, originando debates entre os intelectuais em torno de suas
“pureza” e “tradição.” Nesta
análise, elencamos algumas possibilidades da não
produção historiográfica de uma dança que se tornou
“moda” para parte da sociedade pernambucana.
CULTURA POPULAR, CIRANDA,
HISTORIOGRAFIA.
Déborah Callender (Fundaj)
This article
analyzes the changes that have
permeated the
“ciranda” (a round or
rhymed song, common in Brazil) in Pernambuco between 1960 and 1970, when the dance became popular, raising debate among intellectuals regarding its “purity”
and “tradition.”
In this analysis, we list some possibilities
for the refusal of a historiographical production of the
dance that has become “fashionable”
to the society of Pernambuco.
POPULAR CULTURE; CIRANDA;
HISTORIOGRAPHY.
Alguns estudos sobre a
ciranda em Pernambuco
Muito pouco se estudou no
Brasil sobre a ciranda. Em Pernambuco a obra do padre e musicólogo Jaime
Diniz, Ciranda: roda de adultos no folclore pernambucano, publicada na Revista
do Departamento de Extensão Cultural e Artística, em 1960,
é considerada pioneira no estado. Diniz (1960) se refere à
manifestação cultural, composta simultaneamente por canto e dança, como dança de roda de adultos, embora
dela também possam participar crianças. Segundo o autor, a
ciranda seria de origem portuguesa, tendo chegado ao Brasil no século
XVIII, predominando no Estado de Pernambuco, na Mata Norte e no litoral.
A bibliografia sobre o tema
é escassa e, no que diz respeito a Pernambuco, até a
década de 1970 restringia-se a apenas dois autores, Jaime Diniz e
Evandro Rabello. De acordo com o periódico Diário de
Pernambuco (23.2.1980), Jaime Cavalcanti Diniz “foi considerado o
maior pesquisador pernambucano de música erudita, pesquisou ilustres
músicos pernambucanos, e é o descobridor da ciranda”.
Nascido no dia 1o de maio de 1924 em Água Preta, formou-se em filosofia pelo Seminário de Olinda
(PE), e em teologia no Seminário Central do Ipiranga, em São
Paulo, publicando diversos trabalhos sobre música.
Evandro Rabello nasceu em 7 de setembro de 1935, na vila de Macujê,
em Aliança (PE); dirigiu suas pesquisas não apenas à
prática cultural, mas a diversas manifestações do folclore
e da cultura popular. Licenciado em história pela Universidade
Católica de Pernambuco, realizou pesquisas principalmente sobre o
carnaval, analisando diversos jornais dos séculos XIX e XX, desde a
época do entrudo até os primeiros corsos. Em 1979, publicou Ciranda:
dança de roda, dança da moda, na qual assinalou o momento em
que a prática cultural estava inclusa na lógica do mercado da
indústria cultural. Em sua obra, o folclorista apontou as
mudanças operadas no folguedo, resultantes das ações
implementadas nos anos 70 pela Empetur e Emetur.1
A ciranda foi categorizada como
“uma expressão popular − genuína dança do
povo” praticada por trabalhadores rurais, pescadores de mangue e de mar,
operários de construção não
especializados e biscateiros (diniz, 1960, p. 15). Quando a ciranda começou a
aparecer na zona norte de Pernambuco, ali se cantava e dançava bastante
o coco,2 bem como, aliás, em outros
estados nordestinos. Em Pernambuco, de acordo com nossos estudos, o folguedo
era quase sempre dançado à noite, em geral nos fins de semana e
sem data específica ou ciclo festivo determinado para ocorrer, embora o
folclorista Roberto Benjamim (1992, p. 14) e o jornalista Leonardo Dantas Silva
(1992, p. 44) o tenham incluído no ciclo junino:3
Dança-se a ciranda
durante o ano inteiro, exceção (por motivos religiosos) da
quarta, quinta, sexta-feira santa, quarta-feira de cinzas, dia de finados.
Também não é comum ver-se nos dias de carnaval, mas o
padre Jaime Diniz registrou dias de folia em Nazaré da Mata, e
também a Ciranda Caeté, em Abreu e Lima (...). O pessoal brincava
fantasiado e no meio da rua dançava Ciranda (rabello, 1979, p. 49).
Na historiografia, o ambiente
em que se configurava a dança de roda em seus começos4
restringia-se aos locais populares como as beiras de praia e as pontas de rua.5 Nos anos 50, era frequente “desde o
litoral norte de Pernambuco nos municípios de Goiana, Igarassu e Paulista, até o fundo dos vales do Capibaribe-mirim e Tracunhaém,
aparecendo também em localidades como Nazaré da Mata e Timbaúba, já na Zona da Mata Seca (ou Mata
Norte)” (benjamim, 1989, p. 19). Em suas pesquisas, visitando diversas
cirandas no Estado de Pernambuco, o musicólogo descreveu, minuciosamente,
o espaço em que ocorriam e os elementos que as constituíam nos
anos 50 e 60. Afirmou então que apenas no município de Paudalho uma ciranda possuía “sede coberta de
palhas”; as demais
A não ser em caso de
chuva em que pode se realizar dentro de casa, o local de regra da ciranda
é o terreiro. É a “ponta de rua” exposta à
escuridão (...) dado a observar por onde andamos,
encimado num mastro um único candieiro (ou um
“carboreto”) (...) se planta no meio do
terreiro, se encarrega de iluminar o curioso local destinado às
danças dos cirandeiros (...) no centro da roda
está a figura principal “Mestre Cirandeiro”
ou simplesmente “Mestre” (...) junto à figura principal
encontram-se alguns apreciadores dos cantos e os músicos: tocadores de
Bombo (ou Zabumba), de Caixa (...) e de Minêro
(sic) ou Ganzá como é conhecido também (diniz, 1960, p. 21-23).
O poeta e
gravador José Costa Leite representou em uma xilogravura os elementos que
constituíam uma roda de ciranda, descrita pelos intelectuais nos anos 60
e 70. A imagem (Figura 1) nos permitiu historicizar
mudanças posteriores na manifestação cultural, dada a
multiplicidade imagética da xilogravura, estabelecendo diálogo
com outras fontes documentais.
Essa imagem representa uma
ciranda composta de homens e mulheres dançando com movimento em
perspectiva cadenciada das mãos. No centro da roda encontra-se o contra-mestre, tocador do bombo,
denominado também zabumba ou surdo e, a seu lado, o mestre cirandeiro puxando o ritmo, tirando as músicas e
improvisando os versos. O bombo, ou caixa, às vezes denominada tarol ou rufo, e o mineiro, conhecido também como
ganzá, maracá, maracaxá ou
caracaxá, são os instrumentos mais encontrados nas cirandas.6 Seu conjunto é chamado de
terno, ainda que o número de instrumentos venha a ser superior a
três, pois outros instrumentos podem compor o instrumental, de sopro,
como, por exemplo, saxofone, trombone e clarineta, e, até mesmo uma
sanfona foi registrada nas pesquisas de Jaime Diniz, em uma ciranda no
município de Limoeiro.
Como nos anos 60, de acordo com
as descrições dos estudiosos, as cirandas eram vivenciadas nas
beiras de praia e pontas de rua, geralmente durante a noite, sendo a
iluminação frequentemente feita com candeeiro, a
imagem representou descrição clássica de uma roda de
ciranda elaborada pelos estudiosos na historiografia naquela década. No
entanto, a descrição e percepção
da manifestação cultural não dará mais conta
de algumas rodas de adultos que se irão transformar pouco a pouco a
partir dos anos 70, quando outro grupo, denominado pelos periódicos
classe média, bem como a indústria cultural, passará a
interessar-se pela ciranda, por esta ter-se tornado, segundo o pesquisador,
“tão contagiante que faz inveja ao frevo” (diniz, 1987, p. 232).
A adesão e o interesse
desse novo grupo fizeram com que as cirandas saíssem das pontas de ruas
e migrassem, por sua vez, para outros espaços da cidade, passando a apresentar-se em locais turísticos do Recife, em
salões, clubes sociais, bares, restaurantes, clubes esportivos e
residências − ambientes que foram modificando sua
configuração enquanto canto e dança. É relevante
destacar que Jaime Diniz já apontava sua compreensão em
relação às mudanças e/ou variações
que percebia no folguedo, passando a denominá-las cirandas
“desvirtuadas” ou “descaracterizadas”, devido ao fato
de elas possuírem elementos que “destoavam”, segundo o
pesquisador, dos demais grupos considerados tradicionais.
Em Pernambuco, alguns
intelectuais defendiam que se deveriam buscar as “verdadeiras
raízes regionais” sob o conceito de uma suposta pernambucanidade, inventando uma tradição
às vezes agregada à imutabilidade da cultura, definindo
identidades e lugares sociais.7 É
relevante ressaltar que a invenção de uma tradição
pernambucana estava relacionada a um momento da história social e
urbanística da cidade do Recife, em período de
redefinições econômicas e políticas que o Nordeste e
a capital de Pernambuco passaram a assumir no país. 8 No final do século XIX e início do
século XX o Recife vivenciou uma gama de transformações
políticas, econômicas e sociais que configuraram, nas
décadas seguintes, outra cidade, introduzindo modificações
em suas formas materiais, nas maneiras de sentir, viver e retratar a capital
pernambucana. Diante da “nova ordem” alguns intelectuais, em prosa
e verso, nutriram a sensação de perda e exílio, buscando
refúgio no passado, negando o presente que então se apresentava.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2006, p. 76) destacou que o medo:
de não ter espaços numa nova
ordem político-econômica que se reordenava no Brasil, de perder a
memória individual e coletiva, de ver seu mundo se esvaziar, é
que leva à ênfase na tradição (...) essa
tradição procura ser baliza que oriente a atuação
dos homens numa sociedade em transformação e impeça o
máximo possível a descontinuidade histórica.
Em virtude dessas metamorfoses,
parte da sociedade pernambucana compartilhava o medo pelas mudanças
advindas do presente e a saudade do Recife de outrora. No livro A capital da
saudade, o historiador Raimundo Arrais (2006) analisou esse saudosismo
através de narrativas históricas, crônicas, poesias,
memórias, etc., de diversos intelectuais, como Manuel Bandeira, Joaquim
Cardozo, Antônio Austragésilo,
Mário Sette, Mário Melo, Gilberto
Freyre, citando ainda Ascenso Ferreira, Alfredo de Carvalho, Aníbal
Fernandes e Cícero Dias. Segundo o historiador,
A saudade, assim, não
era uma singularidade de temperamento de um ou outro recifense. Tampouco foi um
sentimento elaborado por Gilberto Freyre e irradiado dentro de seu
círculo de prestígio. Esse era um sentimento revelado por muitos
e em grande medida cultivado, tendo-se convertido em mote
literário que nutriu muitas páginas de poesia e prosa que tiveram
o Recife como tema (p. 15).
Nesse sentido, a
evocação da saudade de um passado como imutável pode ser
utilizada para refletir sobre a compreensão de alguns intelectuais nas
décadas de 60 e 70 em torno das transformações das
práticas culturais populares em Pernambuco. Assim, não é
aleatório o fato de que muitos estudiosos, sobretudo folcloristas,
tenham a concepção, às vezes com visão
estática, de que as tradições nordestinas deveriam ser
buscadas no passado, como elemento garantidor da “autenticidade e
essência da cultura popular”.
No entendimento de Jaime Diniz
(1960), com relação às metamorfoses da ciranda,
inovações nas coreografias, isto é, nas formas de
dançar realizada por alguns(mas) cirandeiros(as), seu deslocamento para
apresentações em espaços fechados, como bares e
restaurantes localizados nos centros urbanos, bem como os temas e as letras das
composições que fizessem alusões a músicas cantadas
nas rádios, eram considerados elementos que retiravam a
“autenticidade” da prática cultural, e desse modo tais
grupos deixavam de ser “tradicionais.” Essa concepção
estabelecia um modelo de ciranda “colada” a determinados
espaços e grupos, cuja mudança, na visão do intelectual,
faria a prática cultural se “desvirtuar”, perdendo suas
supostas “essência” e “tradição.”
A ampliação desse
novo público participante foi promovida, entre outros fatores, pela
maior visibilidade que as práticas culturais populares passaram a ter
nos anos 60 e 70, em virtude do ambiente de discussões, debates e
pesquisas, decorrente do Movimento de Cultura Popular (MCP) e do Movimento Armorial no Recife, que se propunham, entre outros
objetivos, a aproximar “o povo e sua cultura” da nomeada cultura erudita.9 Em 27 de outubro de 1971, a revista Veja
publicou matéria sobre as novas opções de lazer de pessoas
que antes frequentavam locais “mais elegantes e refinados”, mas que
agora preferiam as cirandas. Essa “dança de pescadores”,
segundo o periódico, a partir de então,
começa a perder a sua antiga simplicidade
folclórica e ganhar adeptos inesperados. A ciranda de Dona Duda é
uma ciranda tradicional, hoje a mais concorrida de Pernambuco (...) As pessoas estão trocando as boates de Boa
Viagem pela ciranda do Janga, com o repentino
prestígio social da ciranda (...) habituados aos pescadores de roupas
pobres e pouco dinheiro foram invadidas por longos e roupas da moda e por
engenheiros, economistas, etc. que antes frequentavam locais mais elegantes e refinados.
Para os diversos intelectuais,
sobretudo para os folcloristas, a ciranda era prática cultural
“pertencente aos populares”; como na década de 1970 outro segmento social passou a frequentá-la, o
sentido de pertencimento que a dança de roda supostamente mantinha com
um determinado grupo de pessoas, na concepção desses estudiosos,
foi “quebrado”. Esse discurso se baseava na concepção
de “povo” que o colocava como detentor de uma cultura entendida
como ‘original e pura’, representada no folclore e na nomeada
“cultura popular”.
A concepção de
que a manifestação eram uma forma de
divertimento “popular”, uma prática
“genuína” do cotidiano de pessoas simples,
“autêntica” e “espontânea” do
“povo”, provocou debate entre os estudiosos a partir do momento em
que as rodas de adultos passaram a circular em outros espaços e a
interagir com as mudanças que estavam sendo operadas na cidade,
transformando-se gradativamente em diversão de outras camadas sociais,
no momento em que “foram invadidas pelos veranistas e depois pelos
turistas de classes sociais mais altas”, tornando-se, então
“uma dança da moda” (benjamim, 1989, p. 122).
Descrita como dança
democrática, não havendo espaços para nenhum preconceito
ou caso de rejeição por idade, cor, sexo, condição
social ou econômica, contraditoriamente, a presença de outro grupo
social, denominado classe média, foi considerada, por alguns estudiosos,
negativa e perniciosa à ciranda (rabello,
1979, p. 43). Esse processo teria ocorrido, no entendimento de Evandro Rabello,
a partir do momento em que dançar ciranda se tornou interessante para a
classe média. Desse modo, a descrição de uma
manifestação ao ar livre, dançada nas pontas de ruas, de
participação ilimitada de pessoas, cujo mestre possuía
valor simbólico por sua inspiração de conduzir as rodas,
não mais se adequava às cirandas da década de 1970.
As mudanças que
incidiram sobre as diversas manifestações culturais populares em
Pernambuco nesse período, em especial a ciranda, no entendimento de
parte dos estudiosos, não faziam parte da dinâmica do processo
histórico-social que os grupos, em seu saber-fazer, vivenciavam. Essa
concepção se afinou com o ideal romântico na crença
de que as práticas culturais populares seriam “puras,
ingênuas, e boas”, e na ideia de que o popular e o
folclórico estariam distantes da influência das
transformações da sociedade moderna.10
Segundo alguns estudos, a cultura popular ia pouco a pouco perdendo seus
traços “característicos”, para usar a terminologia
dos intelectuais. Nesse sentido, era fato que não apenas a ciranda mas diversas práticas culturais tendiam ao
desaparecimento, diante das mudanças que o progresso, a
urbanização, a cultura de massa, a intervenção dos
órgãos de turismo, entre outros, acarretavam nas práticas
culturais em Pernambuco nos anos 70. Essas narrativas se configuraram como
suposto risco iminente e apocalíptico de desaparecimento das
manifestações populares, motivando ações
institucionais na missão de proteger a então considerada
ameaçada cultura popular, redimindo-a a uma dimensão de
permanência.
Os silêncios da rodas...
Quando nos referimos aos
silêncios sobre a manifestação, nos remetemos às
análises empreendidas pelos estudiosos Jaime Diniz
(1960) Evandro Rabello (1979), que afirmaram ter grande parte dos
dicionaristas e folcloristas omitido a palavra ciranda, bem como
relegado seu estudo.
Durante suas pesquisas, Diniz
(1960, p. 11) afirmou não haver qualquer estudo brasileiro – mesmo
genérico – sobre a dança, concluindo que “diante dos
primeiros dados recolhidos, a dúvida se erguia: seria a Ciranda uma
coisa “nova” para o nosso Folclore, um fenômeno
inédito, ou uma dança conhecida pelos estudiosos e rotulada
diversamente?”. Em sua obra, de publicação
posterior, o folclorista Evandro Rabello (1979) retomou a discussão em
torno da ausência do verbete ciranda nos dicionários, concluindo
que grande parte dos dicionaristas omitiram a palavra
de seus compêndios. Quando a referiam, era apenas como instrumento para
joeirar, origem do vocábulo, e um pequeno número incluiu como
dança de adultos ou infantil. A partir do
estudo do padre Jaime Diniz, Evandro Rabello (p. 30) afirmou ter pesquisado:
em dezoito dicionários da
língua portuguesa, tupi. Também dicionários de
vocábulos portugueses derivados das línguas orientais e
africanas, exceto árabe e sem esquecer uma consulta aos
dicionários de termos populares da língua portuguesa.
Dicionários elaborados e/ou editados em Portugal, Áustria,
Alemanha, França, Brasil, desde 1837 até praticamente os nossos
dias.
Segundo Diniz (1960), no Brasil
como em Portugal, os musicólogos limitaram-se a repetir, sem maior
interesse, que as rodas infantis – com o nome genérico de ciranda
– eram conhecidas no território brasileiro e português. De
acordo com o escritor e teatrólogo Altimar de
Alencar Pimentel (2005, p. 24), a ausência de registro da
manifestação “deve-se, naturalmente, ao fato de a
dança haver surgido em Pernambuco em torno da metade do Século
XX, ou seja, há pouco tempo”. Para alguns estudiosos, a
expressão “ciranda” teria origem na palavra espanhola zaranda, instrumento para peneirar farinha, ou no
vocábulo árabe çarand,
que significa encadear, enlaçar, tecer uma coisa. Leite de Vasconcelos
(apud diniz, 1987, p. 231)
“filiou a palavra ao fato de as mulheres trabalharem juntas em
serões, grafando, por esta razão, seranda,
e não ciranda”.
Intelectuais como Mário
de Andrade e Renato Almeida, segundo Jaime Diniz, acreditavam que a ciranda no
Brasil estava circunscrita à dança infantil, compreensão
que foi refutada através de seu estudo, publicado na cidade do Recife em
1960. Essa obra revelou que havia uma prática cultural também
denominada ciranda, sem se tratar de roda infantil. Era uma ciranda tocada,
cantada e bailada por adultos de ambos os sexos, prática cultural que ocorria
principalmente na região da Zona da Mata pernambucana. Durante suas
pesquisas, refletindo a respeito da ausência de estudos sobre essa
prática cultural, Diniz (1960, p. 11) afirmou que uma série de
estudiosos como “Mário de Andrade, Câmara Cascudo, Renato
Almeida, Oneyda Alvarenga, Théo
Brandão, Rodrigues de Carvalho, Rossini Tavares de Lima, etc. parecem
não ignorar a ciranda de adultos, mas o que nos dão –
quando o dão – não vai além de vagas referências,
verdadeiras alusões”.
De acordo com o depoimento dado
a Evandro Rabello, em 1979 por Orlando Parahym, na
época diretor do Departamento de Cultura do Estado de Pernambuco, o
folclorista Câmara Cascudo não teria conhecido a roda de adultos
em seus tempos de estudante, nem mesmo durante suas viagens a Pernambuco em
diversas épocas, quando registrou as mais distintas
manifestações. Segundo o relato, o referido folclorista potiguar
não teria tido contato com a ciranda nem durante o período em que
ela se popularizou em meio à classe média da sociedade, transmudada
em show na década de 1970 quando, de acordo com os
periódicos locais, a dança vivenciava um momento áureo.11
Sabemos que Câmara
Cascudo possuía conhecimento da prática cultural nomeada
ciranda em outros estados do território brasileiro na década de
1970, como apontou o Dicionário do folclore brasileiro na
edição de 1972. Nessa obra, no verbete ciranda, o folclorista faz
referência à manifestação em São Paulo e no
Rio de Janeiro, mas não à dança de roda em Pernambuco. E
assim a descreve: “Dança infantil, de roda, vulgaríssima
no Brasil e vinda de Portugal, onde é bailado de adultos. Samba rural no
Estado do Rio de Janeiro (Parati) e também dança paulista de
adultos, terminando o baile rural do fandango, em rodas concêntricas,
homens por dentro e mulheres por fora” (cascudo, 1972, p. 267).
Na edição de 2001
do Dicionário do folclore brasileiro de Câmara Cascudo,
há a menção da ciranda em Pernambuco acrescentada ao
verbete: “em Pernambuco, a Ciranda de roda é dança de
adultos. Um dos versos cantados mais conhecidos diz: Esta ciranda quem me deu
foi Lia que mora na Ilha de Itamaracá” (cascudo, 2001, p. 141). No
livro Cancioneiro pernambucano, o jornalista Leonardo Dantas Silva
(1978, p. 255) afirmou que “até 1960 a ciranda, como dança
de adultos, só era conhecida nas comunidades rurais e totalmente
desconhecida pelos pesquisadores. É deste ano o trabalho do padre Jaime
Cavalcanti Diniz, um dos mais brilhantes musicógrafos
brasileiros (...) veio chamar a atenção dos estudiosos para a
mais democrática de nossas danças”.
A dança de roda
também ficou excluída das obras de alguns poetas,
sociólogos, cronistas, teatrólogos e jornalistas pernambucanos em
diferentes épocas, a exemplo de Miguel do Sacramento Lopes Gama, o padre
Carapuceiro que criticou os costumes na primeira
metade do século XIX, referindo-se a diversos festejos como bumba meu
boi, mamulengo, fandango, pastoril, pandeiro, etc.,
sem mencionar a ciranda (diniz,
1960 e rabello, 1979). O poeta Manuel Bandeira, que
em seu poema “Evocação do Recife”, relatou coisas que
fizeram parte de sua infância, lembrando pregões, cavalhadas,
brincadeira de chicote queimado e a roda infantil, não se referiu
à roda de adultos.
Em seu Guia prático
histórico e sentimental da cidade do Recife, bem como no Guia
prático histórico da cidade de Olinda, o sociólogo
Gilberto Freyre abordou diversos folguedos pernambucanos, bumba meu boi,
maracatus, clubes de frevo, caboclinhos, entre outros, mas em nenhum momento
menciona a ciranda como dança existente nas duas cidades. O
teatrólogo Luiz Marinho, autor de diversas peças como Um
sábado em 30 e Viva o cordão encarnado, que retratou o
Brasil em suas peças, tendo como temas em seus trabalhos fandango,
sambas, congos, também não tratou do folguedo em nenhum de seus
trabalhos.
De acordo com Altimar Pimentel (2005), a expressão ciranda, surgiu
muito antes do aparecimento da dança em Pernambuco,12
que o pesquisador situou nos anos 40 e 50: “o termo já era
aplicado no litoral fluminense e no interior paulistano, e até folguedo,
no Amazonas” (p. 42). Em Danças dramáticas do Brasil,
Mário de Andrade (1982) classificou a ciranda que presenciou no
Amazonas, no lugarejo de Caiçaras em 1927, como dança
dramática. O folclorista relatou que “a dança
dramática que vi bailar, eles a chamavam de Ciranda, e de fato, como
cantiga de transladação do rancho pelas ruas, cantavam a
dança de roda” (p. 42).
Ao final da pesquisa, Jaime
Diniz não conseguiu responder a seus questionamentos iniciais em torno
das lacunas dos estudos sobre a ciranda de adultos em Pernambuco, não
indicando a razão da omissão ou do possível
desconhecimento de diversos intelectuais a respeito da prática cultural.
Apesar disso, o musicólogo pernambucano nos concedeu importante estudo sobre
prática cultural no Estado de Pernambuco, trabalho que é
considerado pioneiro, como afirmam vários intelectuais, entre eles,
Evandro Rabello, Mário Souto Maior, Leonardo Dantas, sendo citado como
referência nos estudos que se debruçam sobre o tema.
Coco ou Ciranda? Ciranda ou
Coco?
A ausência de estudos
sobre a ciranda em Pernambuco nos motivou a levantar questões sobre os
possíveis fatores dessa não produção: teria o fato
de a ciranda não ter indumentária própria, considerada
‘exótica’, não precisar de nenhum tipo de aprendizado
a priori, ou seja, qualquer um pode aprender na hora a dançar, e
não ser prática cultural cercada de ritos e instrumentos
considerados ‘pitorescos’, pode ter gerado
a falta de interesse em narrar a manifestação?
Teria a maioria dos
folcloristas a considerado ‘desinteressante’ por ser uma
prática cultural informal e pela falta de ‘exotismo’
tão procurado por alguns estudiosos na época? Afinal, os
folcloristas quase sempre preferiram estudar as manifestações
herméticas e ritualísticas, com indumentárias
específicas, objetos simbólicos, práticas cerimoniais e
‘exóticas’, com o objetivo de as desvendar.
Levantamos ainda a possibilidade de essa escassez estar relacionada ao fato de
alguns pesquisadores, possivelmente, a terem confundido com outra
prática cultural, o coco, manifestação que desconhece
fronteiras rígidas com relação à ciranda e que,
às vezes, é praticada conjuntamente por seus integrantes. Nesse
sentido, Roger Bastide (1959) na obra Sociologia
do folclore brasileiro, chama a atenção para a dificuldade de
no Brasil não haver terminologia uniforme, no que se refere à
denominação das práticas culturais populares.
Segundo esse autor, as
variações dos “léxicos folclóricos”
ocorrem quando se estabelecem denominações para determinadas
manifestações culturais que não correspondem às mesmas em outra região, ou mesmo, quando a expressão
designativa da prática cultural indica outro folguedo, distinto
da manifestação nomeada pela mesma expressão. Dessa forma,
nos questionamos: será que essa variação poderia ter
ocorrido no momento em que os pesquisadores e folcloristas escreviam sobre a
ciranda? ou seja, quando pesquisaram e escreveram
sobre a prática cultural “coco”, poderiam estar, na verdade,
diante da ciranda, ou mesmo, diante das duas manifestações, sem
perceber as diferenças das variações
terminológicas? A indagação é pertinente, pois
não existe no Brasil uma terminologia
uniforme; conforme as regiões, nós nos encontramos diante de
léxicos folclóricos diferentes, quer uma mesma dança, por
exemplo, tome nomes diversos, como batuque, jongo, samba rural, coco,
chegança dos marujos, Nau Catarineta, quer o
mesmo nome designe realidade muito diversa, o que quase sempre acontece com um
desses termos que acabamos de citar, o que é ainda mais grave (bastide, 1959, p. 9).
Em A literatura dos cocos,
estudo publicado na obra Os cocos, Mário de Andrade (1984)
também ressaltou a variação das terminologias
estabelecidas para as práticas culturais no Nordeste, principalmente no
que se refere às que se conferiram aos cocos. Segundo o autor, as
designações das manifestações culturais populares,
sobretudo, nos “cantos orquésticos”,
por ele definidos como formas culturais que reuniriam música, poesia e
dança, como a ciranda e o coco, por exemplo,
estariam a causar dúvidas e confusões. Nos anos 20 e 30, a
utilização da expressão coco, fez com que Mário de
Andrade ressaltasse a dificuldade de saber o que a terminologia designava na
época como coco, avaliando que
Antes de mais
nada convém
notar que como todas as nossas formas populares de conjunto das artes do tempo,
isto é cantos orquésticos em que a
música, a poesia e a dança vivem intimamente ligadas, coco
anda por aí dando nome pra muita coisa distinta. Pelo emprego popular da
palavra é meio difícil da gente saber o que é coco bem.
O mesmo se dá com “moda”,
“samba”, “maxixe”, “tango”,
“catira” ou “cateretê”, “martelo”,
embolada” e outras (p. 346, grifo nosso).
Sem mencionar a
expressão ciranda de adultos, Mário de Andrade, ao presenciar
diversos os cocos durante suas viagens ao Nordeste, supôs sua
aproximação com as “rodas coreográficas portuguesas
de adultos”. Seriam essas rodas coreográficas portuguesas,
cirandas de adultos? Não sabemos; mas, segundo Mário de Andrade,
as aproximações dos cocos com as danças e músicas
de adultos se tornariam complexas para se perceber as distinções
em ambos, pois:
O coco ora é dançado ora
não. Sob esse ponto de vista me parece que ele tem uma
ascendência aproximada das rodas coreográficas portuguesas pra
adultos. Não dou isto como certo, é apenas uma
impressão que tenho. Porém essa impressão tem razão
de ser. A ascendência portuga é bem constante na música do
norte brasileiro, Pernambuco pra cima. De lá pra baixo ela aparece
também mas sobretudo nas nossas rodas infantis
e nos acalantos. Já nas danças e cantigas pra adultos é
mais difícil da gente perceber e desaparece por
completo as mais das feitas (p. 347, grifo nosso).
A dúvida do escritor em
relação à mobilidade da nomenclatura referente aos cocos
também foi registrada durante uma de suas viagens ao Estado da Paraíba,
em 28 de janeiro de 1929. Ao avistar algumas pessoas cantando e dançando
coco em uma praia paraibana, provoca no poeta esta afirmação:
Logo de entrada pra me indicar a possibilidade de um bom trabalho musical por aqui, topei
com os sons dum coco. O que é, o que
não é: era uma crilada gasosa
dançando e cantando na praia. Gente predestinada pra dança e
cantar, isso não tem dúvida. Sem método, sem os ritos
coreográficos do coco, o pessoalzinho
dançava dos 5 anos aos 13, no mais! Um velhote
movia o torneio batendo no bumbo e tirando a solfa. Mas o ganzá era
batido por um piazote que não teria 6 anos, coisa admirável (andrade,
1993, p. 40, grifo nosso).
Alguns estudiosos, como Altimar Pimentel, Jaime Diniz, Evandro Rabello, Josemir Camilo, Maria Ignez Novais Ayala,
Marcos Ayala, entre outros, também comentaram
as aproximações existentes entre o coco
e a ciranda, que estariam imbricados na vivência dos grupos praticantes
dessas duas manifestações, seja nos temas das músicas
presentes em ambas, sendo apenas adaptados letras e/ou ritmos, seja nos passos,
isto é, na coreografia. No que se refere a alguns instrumentos, como o
bombo, o ganzá e o tarol, encontrados tanto no
coco como nas rodas de cirandas, bem como na configuração da
dança, ambos são danças de rodas e não possuem data, período e/ou ciclo festivo
específico para apresentar-se.
Dessa forma, “quando nos
referimos a essas duas manifestações de música, canto e
dança, é preciso lembrar que estamos diante de duas brincadeiras
que, em geral, são encontradas juntas, pois no decorrer do coco
também se dança a ciranda” (ayala;
novais, 2000, p. 10). Nos
estudos realizados sobre os cocos na Paraíba, Maria Ignez Novais e
Marcos Ayala perceberam que havia “uma
preferência pela ciranda em várias localidades visitadas.
São raros os grupos que só dançam cocos, sem
alterná-los com a ciranda, dança muito popular na Paraíba
e no Nordeste. Segundo alguns depoimentos, os cocos aparecem depois da
meia-noite. Antes, só ciranda” (p. 37).
O historiador Josemir Camilo de Melo (2010), ao pesquisar um grupo de
cirandas/cocos localizado na comunidade rural denominada Caiana dos Crioulos,
em Alagoa Grande (PB), demonstrou como essas duas práticas culturais
estão imbricadas e imiscuídas, de tal forma, que se torna complexa
a distinção do que no grupo seria uma, o
que seria outra − o que nos remete às observações de
Mário de Andrade nos anos 20 e 30. Melo (2010) referindo-se à
ciranda de Caiana dos Crioulos afirmou que “coco e ciranda estão
entrelaçados e a ciranda, ao que tudo indica, é uma modalidade de
dança originada do coco.13 Tanto que
em algumas apresentações, o grupo se exibe com coco e o
público brincante que entra na roda, sem perceber, dança
ciranda” (p. 7).
Em Caiana dos Crioulos, teria
ocorrido “uma cena de circularidade diferente em que os gêneros e
ritmos são alternados: dona Edite canta coco, a roda dança
ciranda e a nora Elza, uma das líderes do grupo, dança coco com
outra pessoa no meio da roda” (p. 10). Nesse entrecruzar de cirandas e
cocos, nos indagamos: não teria ocorrido esse amálgama em outros
períodos e em outros grupos de cirandas e não apenas na de Caiana
dos Crioulos, sobretudo nas rodas de adultos em Pernambuco?
Suposição
provável, dado sabermos que as manifestações culturais
são produtos de práticas sociais, cujos sujeitos circulam nas
mais distintas manifestações da cultura popular, ressignificando essas práticas no fazer e refazer de
sua cultura. Mestres cirandeiros são às
vezes também mestres de cocos, maracatus, reisados, pastoris, etc., como,
por exemplo, Antônio Baracho, mestre de ciranda
e também de maracatu; Salustiano, que era cirandeiro, mestre de maracatu e rabequeiro;
Geraldo de Almeida, mestre da Ciranda Imperial e de um coco
com o mesmo nome, também era brincante de um reisado; João da Guabiraba, mestre cirandeiro,
possuía também um pastoril.
Desse modo, encontramos em uma
manifestação cultural expressões e diálogos com
tantas outras práticas culturais distintas, mas que se relacionam,
através dos atores sociais, e se ressignificam.
Independentemente, porém, das semelhanças e diferenças que
o coco e a ciranda possam ter compartilhado ou mesmo
ainda venham dividir, a roda de adultos em Pernambuco, segundo o folclorista
Evandro Rabello (1979, p. 20), foi gradativamente ganhando espaço e retirando
a preferência do coco que
Foi dominado por outra
dança, chamada Ciranda, que lhe quebrou as forças. O coco foi aos poucos deixando de gozar da integral
preferência (...) aí pela década de quarenta. A Ciranda
já existia e dividia com ele esta glória. Cantava-se e
dançava-se cada vez mais Ciranda e, logicamente, menos coco.
Em consonância com a
afirmação de Evandro Rabello, para quem o coco
teria perdido a preferência para a ciranda, o escritor Altimar Pimentel (2005, p. 27) afirmou que, “a
substituição do coco de roda pela ciranda, como era de esperar,
deixou marcas do primeiro sobre a segunda, principalmente no que se refere ao
samba de ciranda, registrado pelo padre Jaime Diniz”. Esse samba de
ciranda a que Altimar Pimentel se referiu foi
registrado por Jaime Diniz (1960) em Ribeiro Grande (PE):
Uma curiosidade
coreográfica de Ciranda − absolutamente não generalizada −
é o “samba de ciranda”, bailado de mãos dadas (as
mãos, apenas) com muitos movimentos do corpo, sobretudo de um lado para
o outro. Em Ribeiro Grande, tivemos a oportunidade de ver essa modalidade de
dança, realizada − notem a curiosidade − por meninos e
rapazes, à alta hora da noite (p. 30).
Após a
observação do “samba de ciranda”, Jaime Diniz anotou
os versos cantados em Ribeiro Grande, cujo tema, segundo o pesquisador, era
encontrado em outras manifestações do folclore. Eis a letra
registrada pelo musicólogo: “Cajuêro
abalou,/Abalou, deixa abalá/A fulo
da jaquêra/A pena do meu
pavão;/Já chegou o qu’eu
queria/Descansei meu coração” (p. 30, grifo nosso).
Grafamos as duas primeiras
linhas da melodia acima, a qual foi nomeada como samba de ciranda pelo
musicólogo Jaime Diniz, por as termos encontrado como refrão de um coco, descrito por Mário de Andrade (1984). O que
nos faz questionar: samba de ciranda seria uma influência dos cocos nas
rodas de cirandas? seria uma variante das melodias das
cirandas também cantadas nos cocos de roda? ou,
ainda, seria esse grupo de rapazes dançando “à alta hora da
noite”, segundo Jaime Diniz, um samba de ciranda ou um coco de roda? ou os dois, como Josemir Camilo de
Melo observou na ciranda de Caiana dos Crioulos?
Voltando, porém,
à questão da letra, essas estrofes iniciais do samba de ciranda
citado por Jaime Diniz em 1960 eram iguais às nomeadas nos anos 20 e 30
como “o refrão dum coco” “Cajueiro abalou! Abalou,
deixa abalar!” (andrade,
1984, p. 347), por Mário de Andrade. Em 16 de setembro de 1960, em
Goiana (PE), Jaime Diniz (1960, p. 43) também registrou uma melodia a
qual era “um coco butado
im ciranda”. A referida ciranda, abaixo citada,
teria sido informada ao pesquisador pela esposa do mestre cirandeiro
Miguel Benevides, da cidade de Goiana, Mata Norte de Pernambuco: “Teu
cabelo é preto, é preto, / Teu sembrate
é matadô; / Na barra do teu vestido / Nem
fai frio, nem fai calô” (p. 43).
Em relação
à questão da estrutura musical de cocos e cirandas, segundo Jimmy
Vasconcelos de Azevêdo (2000, p. 80-81)
há:
versos de elevado teor lírico que
são um híbrido gerado por uma zona de indiferenciação
entre as formas do coco e da ciranda. A diferenciação ciranda ou
coco só pode ser dada pelo ritmo com que os versos são cantados,
e exige ouvidos bastante treinados, pois o ritmo da ciranda, em algumas
localidades, chega a ser extremamente parecido com o do coco. Isso torna
difícil o trabalho do pesquisador, ao mesmo tempo em que abre caminho
para futuros aprofundamentos acerca dessa interessante
interpenetração dos gêneros.
Essas são
questões que merecem estudos mais aprofundados. Contudo, diante do
exposto, acreditamos que não podemos condicionar o surgimento das
cirandas em Pernambuco a partir dos registros realizados por pesquisadores e
folcloristas, como fez, por exemplo, Altimar Pimentel
ao afirmar que a ausência de registro da prática cultural é
devido ao fato de ela haver surgido em Pernambuco em torno da metade do
século XX. Esse estudioso condicionou a existência da
manifestação a seus registros escritos formais, realizados por
pesquisadores, datando seu aparecimento nos anos 40 e 50. No entanto, sabemos
que já em 1907 Pereira da Costa (apud diniz, 1960, p. 19) assinalou a presença de
“outros gêneros de danças populares, com música e
letra (...) como a ciranda, a rolinha e as anquinhas, a caranguejo
e o candieiro.”
Os folcloristas que produziram
estudos sobre as mais diversas práticas culturais em Pernambuco nas
décadas de 1960 a 1980, período em que a ciranda se havia
“tornado moda”, contraditoriamente não se detiveram em
estudos detalhados sobre a manifestação, apenas citando-a em
verbetes ou fazendo tímidas referências, limitando-se a repetir os
estudos de Jaime Diniz e de Evandro Rabello. Não podemos condicionar a
“existência” ou a história da ciranda a partir de seu
registro em um documento, como se o mesmo fosse o testemunho da
“verdade”, pois a história é feita do cruzamento de
fontes, da produção de embates entre elas, de novas perguntas,
fugindo das armadilhas que levam às evidências e às
“certezas.” Tal perspectiva não impede a identificação
de mudanças na manifestação cultural, mas desloca o lugar
da investigação, assinalando experiências que são
vivenciadas de maneiras distintas nos usos e nas interações
inscritas nas práticas dos indivíduos em determinada sociedade.
São questões que
levam a(s) história(s) da ciranda a dimensões bem mais amplas do
que a atribuída pela historiografia que se tem hoje. De toda forma, sem
encerrar essas e outras questões neste trabalho, podemos concluir
dizendo que nessas rodas de cirandas há muitas possibilidades
históricas ainda não narradas.
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1 A Empresa de Turismo de Pernambuco (Empetur) foi criada, em 1967 no governo de Nilo Coelho, com
o objetivo de executar a política estadual de turismo afinada com a
Política Nacional de Turismo do governo federal. Um ano depois, em junho
de 1968, foi criada pela Lei n. 9.927 a Empresa Metropolitana de Turismo (Emetur), mantida pela prefeitura de Recife, trabalhando
lado a lado com a Empetur. Essas
instituições promoveram uma série de ações e
projetos visando “preservar” as manifestações
entendidas como populares em Pernambuco. Uma dessas ações foi a criação dos Festivais de Cirandas,
concursos ocorridos anualmente para a escolha da “melhor” ciranda
da cidade. As promoções e os projetos destinados às
práticas populares em Pernambuco por essas instituições
provocaram discussões e embates entre alguns estudiosos, sobretudo
folcloristas, que eram contrários às intervenções
realizadas por essas instituições na cultura popular.
2 “O coco é uma dança
de umbigada, cuja base instrumental é a percussão que emprega o
ganzá e o zabumba (...) o coco é uma dança de roda, com um
casal no centro que se reveza com os demais, um após o outro. Os
formadores do círculo de dançarinos, pisam forte no solo, batem
palmas, e vagarosamente circulam ao mesmo tempo em que giram o corpo de um lado
para outro” (d’amorim, 2003).
3 Em contrapartida, Maurício
(1978, p. 62) afirmou que, apesar de a ciranda e o coco de roda não
serem brincadeiras específicas do ciclo natalino, na Região
Metropolitana do Recife foram a ele incorporados.
4 A palavra começos aqui utilizada
se afina com perspectiva de Nietzsche que se opõe a pesquisa de origem
no sentido de buscar a essência exata do objeto, sua forma imóvel
que pudesse desvelar uma identidade primeira. Para discussão aprofundada
ver Nietzsche, a genealogia e a história in Foucault, 1979, p. 15.
5 As pontas de ruas foram definidas por
José Grabois (1999, p. 22) como bairros
residenciais ocupados principalmente por população
proletária, na maioria constituída por trabalhadores rurais
assalariados e sazonais.
6 Há minuciosa
descrição dos instrumentos utilizados nas cirandas em Rabello,
1979, p. 69-74.
7 O conceito de tradição,
como algo imutável, costume advindo de tempos imemoriais, sofreu um
deslocamento através da historiografia recente, que passou a apontar as
intenções e fabricações das tradições
como invenções. Para aprofundamento dessa discussão, ver Hobsbawn e Ranger, 1997.
8 No final do século XIX e
início do XX o Recife atravessou um torvelinho de mudanças. O
Nordeste perde, por parte dos produtores de açúcar e de
algodão, dos comerciantes e intelectuais a eles ligados, sua
influência para o Centro-Sul, no que se refere aos espaços
político e econômico no Brasil. É a partir dos anos 20 que
a cidade passar a ter outra configuração espacial, novas
construções despontam, o processo de
urbanização “apaga” ruas centenárias, novos
ordenamentos da cidade são instituídos. Para aprofundamento dessa
questão, ver Arrais, 2006 e Albuquerque Júnior, 2006.
9 O Movimento de Cultura Popular (MCP)
foi criado na década de 1960 na cidade do Recife por um grupo de
intelectuais que tinha por base a educação e o desenvolvimento da
cultura. Os intelectuais que faziam parte do MCP fundamentavam-se nas
“raízes” da cultura popular, estimulando o desenvolvimento
intelectual e crítico das camadas populares. (barbosa, 2009). Em 1970, também no Recife
é criado por Ariano Suassuna o Movimento Armorial o qual visava à realização de
uma arte erudita, partindo das “raízes” populares da cultura
brasileira, pressupondo que a expressão mais
“autêntica” da cultura brasileira estaria enraizada na
cultura popular. Para maior discussão ver Moraes, 2000. A
ressonância advinda dos debates intelectuais originados por esses dois
movimentos, MCP e Armorial, aliados às
ações dos órgãos públicos nos anos 1970,
proporcionou à ciranda uma maior visibilidade, atrelada às
ações dirigidas para o desenvolvimento do turismo que promoveram
os Festivais de Cirandas, ocorridos até meados de 1980.
10 Para aprofundamento dessa
discussão, ver Ortiz, 1985.
11 Essas
informações foram relatadas pelo escritor, médico e
professor Orlando Parahym ao folclorista Evandro
Rabello na obra citada, em 1979. De acordo com Orlando Parahym,
o encontro de Câmara Cascudo com a ciranda se teria dado em uma
apresentação de ciranda em sua homenagem promovida pelo
Departamento de Cultura do Estado de Pernambuco, cujo diretor na época
era Orlando Parahym. A folclorista Elza Loureiro,
funcionária do Departamento de Cultura do Estado e organizadora da
homenagem citada a Câmara Cascudo, em abril de 1979 teria relatado também
a Evandro Rabello que Câmara Cascudo desconhecia
a ciranda.
12 Ainda que o objetivo deste
trabalho seja analisar a ciranda vivenciada no Estado de Pernambuco, é
relevante destacar que, salvo as especificidades, há cirandas, ou
melhor, há danças de roda ou circulares em diversos
países, como França, Inglaterra, Escócia, Portugal, bem
como em diversos estados brasileiros, como São Paulo, Rio de Janeiro,
Paraíba, Amazonas. Em cada local a manifestação possui
diferentes conotações e sentidos.
13 Ressaltamos não ter
sido encontrado em nossa pesquisa documental nenhum indício de que a
ciranda se tenha originado do coco; queremos aqui apenas explicitar as
aproximações entre essas duas práticas culturais.
Déborah Callender é Gerente de Ensino da
Secretaria de Educação do município de Igarassu,
professora da rede pública do Estado de Pernambuco e integrante do grupo
Culturas Populares: Novos desafios, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).
Recebido em: 20/06/2012
Aceito em: 08/08/2012
CALLENDER, Déborah.
Histórias da ciranda : silêncios e
possibilidades. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de
Janeiro, v.10, n.1, p. 113-132, mai. 2013.
Figura 1: Xilogravura do
poeta e gravador popular nordestino José Costa Leite