Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares,
v. 10. n. 1, mai. 2013
Fernanda
Ferreira de Abreu (UFRJ)
A
partir de experiência etnográfica em uma renomada academia de
dança de salão do Rio de Janeiro, este artigo apresenta algumas
possibilidades de análise da criação na dança de
salão, considerando o par como unidade criativa e as influências
do ensino e da técnica, e também indicando a
valorização da “natureza” e do “popular”
nesse processo de criação.
DANÇA DE
SALÃO, CRIAÇÃO, TÉCNICA.
Fernanda Ferreira de Abreu (UFRJ)
From ethnographic experience in a prestigious ballroom dance academy in Rio de
Janeiro, this article presents some possible analysis of creation
in ballroom dancing, considering
the pair as a creative unit and
the influences of teaching and
technique, at the same time that
it indicates the appreciation of “nature” and “the popular” in the process of creation.
BALLROOM DANCE, CREATION, TECHNIQUE.
Embora não haja
definição cristalizada de dança de salão, podem ser
indicadas algumas concepções. Por meio da
observação participante que realizei em 2010 e 2011, matriculada
como aluna da matriz da Escola de Dança Jaime Arôxa
– localizada em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro –, pude constatar que a expressão de sentimentos e o
improviso são especialmente incentivados, em contraposição
ao mecanicismo e aos “passos marcados”, que, no entanto, apareceram
nos relatos levantados por Virna Plastino (2006,
p.48) associados à “dança de academia”. Essa autora
deparou-se, em um baile de um “clube tradicional de dança de
salão” no Centro do Rio de Janeiro, com críticas feitas
pelos frequentadores “das antigas” à forma como
dançavam os que aprendiam em academias, cuja
dança era considerada “uma dança ‘enquadrada’,
‘formatada’, ‘repetitiva’, ‘competitiva’,
‘distanciada’, ‘cheia de malabarismos’ e ‘esvaziada
de sentimentos’”. Já os frequentadores “das
antigas” dançavam com emoção, de forma livre, e
improvisavam.
Cabe, assim, ressaltar, a
valorização que é dada ao improviso e à
criatividade nesse tipo de dança (alves,
2004, p. 37). Este artigo tem, portanto, como principal objetivo analisar o
processo criativo a partir de uma academia de dança de salão,
buscando refletir sobre as relações entre criação e
técnica. Devo esclarecer que quando falo em dança de salão
na academia de Arôxa, refiro-me, de forma
geral, às principais danças ensinadas nessa academia e praticadas
em seus bailes: bolero, samba de gafieira, soltinho, forró, tango, salsa
e zouk.
Em trabalho anterior (abreu, 2011), parti da perspectiva da mulher (dama), que, a
princípio, teria menor liberdade para criar, por ser conduzida nas
danças de salão pelo homem (cavalheiro). Constatei, no entanto,
que devia tratar como unidade criativa o par. Como sinalizou Jonathan Marion
(2008, p. 145), “enquanto para quem está de fora,
‘seguir’ pode parecer menos no contexto de ‘conduzir’ e
‘seguir’, o modelo dominante enfatiza a necessidade mútua,
responsabilidades e atitudes complementares”.1
Nas aulas de que participei, os professores falavam sobretudo em
“responder à condução”, e não em
“seguir”. Como ressaltou uma professora: “o cavalheiro conduz,
e a dama seduz e induz”. A sedução é uma forma de
comunicação corporal especialmente valorizada justamente por
favorecer a conexão do par. Dessa forma, as reflexões que seguem
consideram o par como unidade criativa.
APROPRIAÇÃO DA
“NATUREZA” PELA ACADEMIA
Talvez como uma forma de se
afastar do estigma de “dança mecânica” (plastino, 2006), Jaime Arôxa
considera-se um “decodificador da natureza humana” e procura
esclarecer esse ponto de vista que está no cerne de sua “filosofia
da dança”:
Isso não é minha
marca, é a marca da natureza. A natureza diz que o homem tem que ficar
em pé. Se ele estiver com o ombro todo largado, todo caído, ele
não está na natureza. Então quando o cara está na
natureza ele se parece comigo. Quantos estamos na natureza? Pouquíssimos!
Levamos uma vida completamente antinatural. Então quando eu coloco na
natureza, parece que é uma característica minha. Na verdade
é da natureza, sou apenas um operário, sou um decodificador, um
decodificador da natureza humana, só e nada mais (arôxa
apud ferreira, 2009, p. 93-94).
Essa valorização
da “natureza” transpareceu ao longo de toda a minha pesquisa de
campo em aulas e bailes realizados na academia de Arôxa
e se tornou ainda mais evidente em um evento denominado Semana da Mulher, que
oferece cursos de sensualidade – durante uma semana por ano – e
cujo objetivo é resgatar a sensualidade da mulher que seria inata,
estaria na “natureza” da mulher, mas teria sido reprimida pela
sociedade. O objetivo era que as mulheres aprendessem a ser mais sensuais
não apenas na dança, mas na vida de uma forma geral.
O método de ensino de
Jaime Arôxa, que se apoia no resgate de
movimentos “naturais” facilitadores da expressão de
sentimentos, obtém grande reconhecimento entre os praticantes –
alunos e professores – de dança de salão não apenas
no Rio de Janeiro, mas em diversas localidades de todo o Brasil. Como
mencionei, a pesquisa foi realizada na matriz da escola de dança de Arôxa, que contava, na
época, com aproximadamente mil alunos. Entretanto, essa escola possui
também diversas filiais e franquias espalhadas por todo o Brasil, cujos
professores costumam ir à academia de Botafogo para fazer cursos de
reciclagem, normalmente promovidos durante quatro semanas por ano, duas em
janeiro e duas em julho. Esses cursos também são frequentados por
professores de outras academias que não levam o nome de Jaime Arôxa.
Contudo, para ser efetivamente
formado em seu método de ensino, é preciso frequentar a academia
de Botafogo durante período maior. Inicialmente, como bolsista,2
e depois, se realmente desejar seguir a carreira de professor de dança
de salão, como assistente, monitor(a) e, finalmente, professor(a).
Não há tempo predefinido para se efetivar uma
promoção, em geral decidida pelo próprio Jaime Arôxa. Talvez se possa falar em média de um a
dois anos em cada nível hierárquico, mas há diversas
exceções. Grande parte não chega efetivamente a professor.
Como assistente, porém, já se começa a dar aulas particulares,
e como monitor, começa-se a ter algumas turmas. Muitos encaram todo esse
processo como uma faculdade de dança de salão.
Parte significativa das pessoas
– incluindo homens e mulheres – que se dispõem a fazer esse
processo de formação pertence às classes populares e veio
da Zona Norte ou do subúrbio do Rio de Janeiro, de outros
municípios do Estado do Rio e de vários estados do Brasil, com
destaque para os do Nordeste, sendo o próprio Arôxa
oriundo de Pernambuco. Durante o período de formação e
intensa dedicação ao aprendizado da dança de salão,
no qual frequentam a escola de dança de segunda a segunda, muitos moram
nas proximidades da academia – alguns em comunidades – e dividem a
moradia. Depois, é relativamente comum retornarem a suas cidades de
origem para trabalhar com dança de salão, alguns, aliás,
abrindo suas próprias academias de dança.
O conhecimento e
experiência de dança que esses jovens (grande parte tem entre 18 e
25 anos) aspirantes a professores de dança de salão trazem de
seus locais de origem, como, por exemplo, o domínio do frevo de Recife, é
valorizado por Arôxa, por mais que ele
não ensine esses tipos de dança. Isso provavelmente se relaciona
a sua busca do resgate dos movimentos “naturais”, que, por sua vez
se associa, tal como analisou Roberta Ceva (2001, p. 37) em relação
ao forró universitário, a uma problemática de identidade
nacional marcada pela busca, por parte de segmentos da classe média, das
“‘autênticas raízes nacionais’ e a
preocupação com o resgate dos valores creditados às
camadas populares, supostamente perdidos com o avanço da modernidade e a
mercantilização das relações sociais”. Dessa
forma, é enfatizado, por exemplo, no site da academia de Arôxa, que o método desenvolvido pela escola
preocupa-se em zelar por “toda essa natural espontaneidade do
forró”.3 Além disso, a
Companhia de Dança Jaime Arôxa, da qual
participam alguns de seus professores, tem em seu currículo o
espetáculo Viva Brasil – uma ópera popular,
“que conta, através da música, do teatro e da dança,
a História do Brasil desde o descobrimento até a
libertação dos escravos. Trata-se de uma homenagem às
culturas negra, indígena e europeia, trazendo (...) um painel das
danças brasileiras em todas as regiões”.4
Essa busca das
“raízes” e do “popular” também é
preocupação presente em outras academias de dança. Como
exemplo, Jimmy de Oliveira (apud souza,
2008, p. 99) – ex-aluno de Arôxa que
desenvolveu seu próprio método de ensino e abriu uma academia na
Zona Sul do Rio de Janeiro – diz buscar “inspiração
para criação de movimentos nos bailes do subúrbio (...)
pois lá as pessoas realmente sentem a música, o corpo é
livre para responder aos estímulos”.
Percebe-se, desse modo, uma
associação entre “natural”, “popular” e
“liberdade”, que, por sua vez, consistiria em um atrativo para os
alunos – pertencentes, em sua maioria, à classe média
– que frequentam a escola de Arôxa e
outras academias de dança de salão da Zona Sul da cidade. Essa
relação merece estudo mais aprofundado, que escapa ao escopo do
presente artigo, no qual me interessa apenas sinalizar que o resgate do
“natural” é utilizado para favorecer o processo criativo na
dança de salão, sendo, aliás, apropriado por um
método de ensino que incentiva a liberdade de criação por
parte dos alunos, mas, que, por outro lado, ressalta a importância da
incorporação das técnicas das diferentes modalidades de
dança de salão.
ENSINO DA
CRIAÇÃO
Antes de apresentar algumas
possibilidades de ensino da criação, cabe pontuar que, entre os
alunos, o perfil é diversificado no que se refere à faixa
etária (apesar de grande parte ter mais de 40 anos) e, especialmente, a
ocupações profissionais. Em cada turma, há em média
15 alunos, e, normalmente, um ou dois casais (namorados ou efetivamente
casados) e mais mulheres que do que homens. Para que essas mulheres tenham com
quem dançar, costuma haver mais bolsistas homens participando das aulas.
Conforme discurso dos
próprios professores no decorrer do trabalho de campo, a
criação na dança de salão é associada ao
improviso, ao imprevisível, ao surpreendente, à
“viagem”, a uma sensibilidade especial, particularmente com
relação à música. Como disse uma professora,
“cavalheiro criativo é aquele que inventa e surpreende a dama, que
deixa a música inspirá-lo. Não é aquele que faz um
monte de passos previsíveis”.
A criação da dama
também é incentivada em aulas regulares e, além disso, em
aulas específicas para mulheres. Como não pode interferir ou
atrapalhar a condução, observei que a
criação da dama ocorre, principalmente, em dois tipos de
situações: em momentos em que o cavalheiro solta a dama e deixa
de conduzi-la, ou seja, quando eles efetivamente se separam não havendo
contato físico entre seus corpos, o que ocorre com mais frequência
na salsa; ou simultaneamente à condução, isto é, a
dama responde à condução e faz algum movimento adicional
que não foi conduzido, chamado de enfeite ou adorno, que normalmente
é executado com os braços/mãos/dedos e/ou com as
pernas/pés.
“Fazer enfeites”
às vezes é considerado sinônimo de “fazer
charme”. Os professores até reconhecem que é possível
fazer enfeites sem charme. A própria expressão enfeite remete a
algo acessório e pode reduzir a ideia de criação.
Porém, na concepção dos professores, não faz
sentido as damas fazerem enfeites se eles não forem feitos com charme,
com sensualidade. Por outro lado, fazer charme não necessariamente
significa fazer um enfeite. O charme, a sensualidade e a sedução
não devem estar imbuídos apenas nos enfeites, mas na dança
como um todo, uma vez que favorecem a comunicação entre dama e
cavalheiro durante a dança.
Como já ressaltado, a
criação feminina e a masculina devem ser entendidas dentro da
lógica do par. Conforme Souza (2008, p. 100) bem observou, “quando
o cavalheiro se aproxima da dama, geralmente ele inicia a dança a partir
de uma percepção/sensação da corporeidade de sua
parceira e, nesse diálogo corporal, os dois constroem juntos
uma dança de par”. Nas aulas de que participei, os
professores costumam incentivar os alunos a criar esse diálogo corporal,
fornecendo dicas, tanto para o homem quanto para a mulher, como:
“Cavalheiro, ouça a música e convide a dama para viver uma
história. Com cada dama e em cada música você tem que
construir uma história”; “se liga no seu par”;
“se deixe inspirar pela música”; “só falta
colocar o seu tempero, surpreender a dama com uma puxada mais forte”;
“dama, neste momento, você pode fazer um carinho no
cavalheiro”.
Além disso, ensina-se
como utilizar a energia sexual – que seria “natural” ao ser
humano; mas reprimida pela sociedade, especialmente no caso das mulheres
– para um melhor desempenho nos bailes. Tal como percebeu Citro (2009, p.
250) em relação aos bailes noturnos dos tobas
na Argentina, também considero que os bailes por mim vivenciados
“não consistiriam tanto em uma canalização das
forças sexuais, mas essa mesma força ou pulsão subjacente
no movimento corporal seria a que opera como uma das impulsoras do processo
criativo”. A energia sexual pode conferir, assim, novas nuanças
aos movimentos dançantes, difíceis de descrever, mas sentidas por
quem faz e por quem vê. Trata-se de levar essa energia para todas as
partes do corpo de modo que a sedução se estabeleça entre
dama e cavalheiro pela atitude corporal, expressão facial, olhar etc.
É importante pontuar,
contudo, que o controle é considerado fundamental para que a energia
sexual possa ser acionada em adequação com a
situação social. É como se o autocontrole viabilizasse a
“soltura” (elias,
1994) para a criação nos bailes. Dessa forma, os professores
enfatizam que os bailes são para dançar; caso se queira fazer
algo além disso, é preciso sair do
baile. Constatei que as aulas e os bailes se complementam, uma vez que estes
são mencionados com frequência nas aulas, seja como
estímulo ao aprendizado – aprender para dançar bem no baile
– ou como uma forma de treinar o que foi ensinado, o que também
não deixa de ser um incentivo ao aprendizado, pois os alunos que
vão a bailes normalmente aprendem mais rápido.
RELAÇÕES ENTRE
CRIAÇÃO E TÉCNICA
Vimos algumas possibilidades de
ensino da criação. Todavia, é importante ressaltar que o
incentivo à criação ocorre, sobretudo, nas turmas mais
avançadas, com no mínimo um ano de aula. Do mesmo modo, apesar de
as aulas de sensualidade da já mencionada Semana da Mulher terem sido
feitas por alunas em diferentes níveis de aprendizado da dança de
salão, quando observei depois essas mulheres dançando nos bailes,
notei que as que tinham um maior domínio da técnica de
dança, eram mais sensuais dançando. Isso também depende –
e muito – do par, pois as damas dançam de forma distinta com
cavalheiros diferentes.
Foi surpreendente a primeira
vez que observei uma professora dançando com um aluno iniciante no
baile. Já a tinha visto dançando várias vezes com seu
namorado, que também era professor. Como ela parecia se deixar inspirar
pela música ao mesmo tempo que seduzia e
inspirava seu par; como fazia enfeites que se encaixavam naturalmente na
música. Contudo, dançando com um aluno iniciante, ela parecia no
máximo uma aluna de nível intermediário. Era como se
estivesse somente se concentrando para entender a condução e
executar os movimentos de forma que um não pisasse o pé do outro.
Percebe-se, assim, a influência da técnica no processo criativo,
tendo em vista que saber conduzir e saber ser conduzida são
pré-requisitos para que ocorra uma conexão entre cavalheiro e
dama na dança. A técnica seria, portanto, a implementação
de um modo de agir no corpo (mauss, 2003, p. 407).
Na dança de
salão, as técnicas são vinculadas aos
“ritmos”, entendidos como modalidades de dança. A
técnica do bolero é diferente da técnica do tango, e assim
por diante. Os professores enfatizam que em cada ritmo o corpo deve ser
utilizado de forma diferente. Uma professora contou que ela primeiro aprendeu a
dançar lambada, e quando anos depois aprendeu samba de gafieira dançava
esse ritmo “com o quadril da lambada”. Demorou quase um ano
dançando todos os dias samba de gafieira para “tirar o quadril da
lambada”. Ela disse isso para enfatizar que quem já dança
outros ritmos fica com a “marca no corpo”, com um condicionamento corporal,
e que, no aprendizado de novo ritmo, é preciso implementar
no corpo a técnica da modalidade que se está dançando.
A análise de Norbert
Elias (1995, p. 63) dos processos de criação, em seu estudo sobre
Mozart, pode nos ajudar a pensar as relações entre
criação e técnica na dança de salão. De
acordo com o autor, “o pináculo da criação
artística é alcançado quando a espontaneidade e a
inventividade do fluxo-fantasia se fundem de tal forma com o conhecimento das
regularidades do material e com o julgamento da consciência do artista,
que as fantasias inovadoras surgem por si mesmas”. De forma resumida, no
caso da dança de salão, tal como percebi em minha pesquisa, o
fluxo-fantasia parece relacionar-se com o jogo de sedução. As
regularidades do material seriam as técnicas, os passos, as
músicas etc. A consciência do artista é construída
pelo artista da dança a partir de sua inserção social, que
avalia sua produção diante de um conjunto de propostas
técnicas e valores estéticos com os quais estabelece contato em
aulas, cursos, bailes e apresentações de dança,
além do convívio com outros artistas.
As noções de
fluxo-fantasia, regularidades do material e consciência do artista devem
ser entendidas em conjunto. De acordo com Elias (1995), quem tem
consciência de artista muito segura potencializa o fluxo-fantasia e sua
fusão com as regularidades do material. Certa vez, enquanto
dançava bolero em um baile da escola de Arôxa
com um bolsista, após já ter feito aulas de dança de
salão por mais de um ano, parecia que meu par e eu estávamos em
transe, inspirados, e havia um jogo de sedução. Era como se
estivéssemos vivendo o fluxo-fantasia de que Elias trata. Enquanto
estávamos nesse estado, meu par comentou: “nem sei o que estamos
fazendo, mas estamos fazendo o que o Jaime Arôxa
diz para fazer”. Estávamos, portanto, criando dançando
– devido ao nosso domínio das regularidades do material do bolero
conforme método de Arôxa – e
simultaneamente avaliávamos o que estávamos criando.
A possibilidade de tornar a
fantasia comunicável é o que, segundo Elias (1995), diferencia a
fantasia do esquizofrênico da fantasia do artista. Dessa forma, ao
ensinar um passo de samba de gafieira, uma professora ressaltou ao corrigir os
alunos: “É assim, não tem jeito. Primeiro tem que aprender
a técnica, para depois poder brincar”. Em outra aula, disse um
professor: “Foi lindo. Vocês vão mais longe do que imaginam.
Mas não esqueçam que o improviso sem o código de cada
dança é superficial”. Por “código”
entendi que ele se referia justamente à técnica de cada
dança, que viabilizaria a comunicação entre dama e
cavalheiro, e também entre dançarinos e plateia, que, no caso dos
bailes, é formada pelos próprios dançarinos. Sem a técnica,
os movimentos criados não se configurariam como dança de
salão.
Então, um par em que
ambos têm grande domínio da técnica teria, a
princípio, mais possibilidades de criação. Por outro lado,
a incorporação da técnica do tango, por exemplo,
não é suficiente para criar dançando tango. Por isso, os
professores também incentivam os alunos a se deixar inspirar, a utilizar
a energia sexual levando-a para as demais partes do corpo, a “viajar na
música”, a resgatar o “natural” em seus movimentos
etc. Talvez essa “marca da natureza” possa ser relacionada ao que
Elias (1995, p. 56) chamou de processo de sublimação.
Diferentemente do que ocorre no caso da repressão, “há
processos de sublimação pelos quais as fantasias humanas,
convertidas em criações musicais [no caso de Mozart], podem ser
despojadas de sua animalidade sem necessariamente abandonar sua dinâmica
elementar, seu ímpeto e força”. Parece ser justamente essa
“dinâmica elementar” que Arôxa
busca ao se considerar um “decodificador da natureza humana”.
As três dimensões
propostas por Elias (1995) não abarcam, contudo, a interação
no momento da criação, o “aqui e agora” da arte, que
é particularmente importante no contexto de performance
dos bailes e que se aproximaria da noção de fluxo (flow), apresentada por Victor Turner (1982)5
para se referir à experiência de um momento único, em que a
ação está concentrada em um campo limitado de
estímulo. Essa noção de fluxo pode ser aproximada das
experiências de transe, relatadas por praticantes da dança de
salão, e que eu mesma vivenciei durante a pesquisa, como relatado.
É importante considerar, portanto, que a dança é arte
performática, sujeita a variações a cada vez em que
é desempenhada, o que faz com que seu contexto
de desempenho seja especialmente relevante para a dança produzida (seeger, 1977).
Apesar de os bailes realizados
pela academia pesquisada ocorrerem no mesmo espaço físico das
aulas, eles têm maior duração, contam com mais
participantes, sob iluminação mais fraca
e som mais alto. Podemos entender, então, a aula como o espaço
propriamente da técnica ou como o espaço para
formação do corpo em uma determinada técnica. Vimos que a
criação é estimulada nesse espaço, porém os
alunos vão para as aulas principalmente para aprender a técnica
da dança, e não propriamente para criar. Há
preocupação em executar os movimentos da forma como foram
ensinados. Assim, no baile haveria, em princípio, mais liberdade e
maiores possibilidades de criação. Como também notou
Mariana Massena (2006, p. 83), “nos bailes,
cada casal é responsável por sua própria
atuação diferente das aulas onde existe supervisão”.
É interessante observar como a própria entrada no baile, por mais
que seja no mesmo espaço físico das aulas, parece estimular e
até mesmo viabilizar o processo criativo. É nos bailes que a
mulher efetivamente vira dama, e o homem, cavalheiro; o par, de fato, torna-se
par, e as possibilidades de criação, aliadas ao jogo de
sedução, parecem ser intensificadas.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
De forma a resumir o que
é de fato fundamental para a criação na dança de
salão no contexto por mim analisado, destaco a combinação
entre técnica e sedução – imbuída da energia
sexual que estaria na “natureza” do ser humano –, elementos
considerados importantes para uma comunicação fluida entre dama e
cavalheiro, que se potencializa na situação do baile.
O objetivo foi indicar, a
partir de minha experiência etnográfica, possibilidades
para se pensar a criação na dança de salão,
enfatizando, principalmente, a influência da técnica e de um
método de ensino que se apropria da valorização da
“natureza” associada ao “popular”. Espero que esta
análise, ainda que sucinta, possa ter indicado as
contribuições que estudos da dança de salão no Rio
de Janeiro podem gerar para discussões mais amplas sobre a
criação no âmbito dos estudos sobre dança, visto que
se trata de tema ainda muito pouco explorado.
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1 Nesta e nas demais
citações em língua estrangeira a tradução
é da autora.
2 Os bolsistas – homens e mulheres
– realizam diversas aulas sem pagar; em troca, auxiliam os alunos nas
aulas e têm que cumprir carga horária mínima, acordada com
os professores. São selecionados através de audição,
não havendo pré-requisito específico, a não ser
disponibilidade de tempo para participar das aulas.
3 http://www.jaimearoxa.com.br/turmas.
Acesso em 16.05.2013.
4 http://www.jaimearoxa.com.br/produtora.
Acesso em 16.05.2013.
5 Turner (1982) se baseia em Csikszentmihalyi, 1974.
Fernanda Ferreira de Abreu é doutoranda em antropologia
social pelo Museu Nacional – UFRJ e mestre em ciência da arte pela
UFF (2011).
Recebido em: 06/02/2013
Aceito em: 17/04/2013
ABREU, Fernanda Ferreira de. O
par como unidade criativa: reflexões sobre criação e
técnica na dança de salão. Textos escolhidos de cultura
e arte populares, Rio de Janeiro, v.10, n.1, p. 101-112, mai. 2013.