Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares,
v. 10. n. 1, mai. 2013
Valéria
Aquino (Uerj)
Com
o objetivo de refletir sobre o processo de ensino e aprendizagem da arte figurativa
em Taubaté (SP), este artigo aborda três diferentes formas de
aprendizagem, a partir das diferentes categorias classificatórias
nativas: figureiros de família, figureiros tradicionais e novos figureiros.
Dessas categorias, apesar de distintas, emerge a própria
concepção do que é ser figureiro
em Taubaté.
ARTE FIGURATIVA;
TAUBATÉ; FIGUREIROS; ARTE POPULAR.
Valéria Aquino (Uerj)
Aiming at the reflection on the teaching
and learning of figurative art
in Taubaté (SP), this article
discusses three different forms of learning, from
the different native classification categories: family figure makers, traditional figure makers and new
figure makers. From these categories, however distinct, emerges the conception of what being
a figure maker in Taubaté means.
FIGURATIVE ART; TAUBATÉ; FIGURE
MAKERS; FOLK ART.
Um pouco da história
da produção figurativa
Localizada no Vale do
Paraíba, a 301 quilômetros do Rio de Janeiro e 134 de São
Paulo, e às margens da Rodovia Presidente Dutra (BR-116), a cidade de
Taubaté, assim como outras da região (Tremembé, São
José dos Campos, Pindamonhangaba), possui representativa
produção artesanal.
Tendo o barro como principal
matéria-prima, as peças produzidas pelos denominados figureiros de Taubaté apresentam cores vivas, em
especial o azul-ultramar. Os figureiros se veem e
são vistos como os únicos no Brasil a utilizar essa tonalidade de
azul, que pode mesmo ser considerada um símbolo
diacrítico dessa produção no contexto do artesanato
brasileiro.
A produção
figurativa de Taubaté vem, desde meados do século XX, sendo
associada ao bairro Imaculada Conceição e principalmente à
rua de mesmo nome, que é ainda hoje um dos principais pontos de referência
dessa produção. Tal associação se deve ao fato de a
maioria dos figureiros ter ali habitado por muito
tempo, e muitos ainda morarem nessa rua, a principal do bairro. Atualmente, a
maior parte dos cerca de 50 figureiros, com idades
que variam de 10 a 81 anos, está organizada na Associação
Maria da Conceição Frutuoso Barbosa, também conhecida como
Casa do Figureiro e localizada no próprio
bairro.
Seus relatos apontam para uma
tradição de mais de 150 anos de arte figurativa no bairro e
destacam sua origem associada à prática de armar presépios
natalinos, que seria um hábito secular na cidade.
A bibliografia existente a
respeito da produção artesanal de Taubaté parece
corroborar essa visão. Para Abreu (1980, p. 27), seria a partir da
prática cristã de armar presépios que a cerâmica
figurativa, desenvolvida principalmente por pessoas das camadas populares, se
instaura em Taubaté. “Muitas famílias, com menos posse ou
mais habilidade manual e gosto artístico, faziam suas figurinhas
de madeira ou barro, fato que também se foi tornando
tradição na cidade” (grifo da autora).
O nome da
Associação – Maria da Conceição Frutuoso
Barbosa – faz referência à artesã que, de acordo com
relatos colhidos entre os figureiros e pesquisas
já realizadas (flores, 1987; machado, 2003; oliveira, 2007), deu
início ao trabalho com barro na região do que é hoje o bairro Imaculada.
A
história de Conceição Frutuoso Barbosa é, para muitos figureiros, uma espécie de mito de origem da
produção artesanal no bairro. Sempre que eu perguntava sobre os primeiros
figureiros do local ouvia como resposta
Conceição Frutuoso, homenageada com a atribuição de
seu nome à Casa do Figureiro.
Fazendo
“figurinhas”
Quando se pergunta hoje aos figureiros de onde vem essa denominação,
todos são muito enfáticos em dizer que esse nome se relaciona
à produção de figuras para presépios e que
“antes” alguns artesãos faziam apenas as
“figurinhas” do presépio. Esse tempo antigo a que se referem
os artesãos diz respeito ao início do século XX,
época em que se localiza a mais remota lembrança que emerge de
seus relatos.
Por figurinhas, eles designam
todas as peças que compõem o presépio com
exceção daquelas com traços humanos, como a sagrada
família, os reis magos e os anjos, consideradas peças sacras, ou seja, trata-se das representações
de animais, entendidas por eles como secundárias.
Em um primeiro momento, figureiro, enquanto categoria nativa de
classificação1 que designa os produtores de
peças zoomorfas para presépio, parece emergir
nas falas como algo que tem sua origem a partir de uma relação de
oposição e inferioridade com a categoria
santeiro, que designa, segundo seu entendimento, aqueles que produzem as
figuras humanas, especificamente as peças sacras.
Depois que se tornou “figureiros”. Porque antes a turma aqui da Imaculada
era chamada como santeiro, porque arrumava santo, fazia os santos, entendeu?!
Aí tinha aquelas pessoas que não conseguiam fazer o santinho,
tinha que fazer o rosto, o olho, o nariz, era mais difícil, o cabelo, a
mão. Achava mais difícil. Aí eles começaram a fazer
o burro, a vaca, o carneiro, aí que se tornou... Uns fazem as figuras de
gente, de santo, e fulano faz os bichinhos, faz as figurinhas, que são
as figurinhas do presépio. Aí veio, figurinha, figurinha, ficou os “figureiros de
Taubaté”.
Valéria: Mas figureiro também faz santo, não é?
Arlete: Faz também, mas
daí não chama mais de santeiro, chama de figureiro.
Agora é só figureiro (Arlete Sampaio,
2009).
É possível
perceber nas falas nativas − como nessa de Arlete Sampaio, em entrevista
à autora − que buscam nas explicações sobre a origem
do termo figureiro, uma relação
hierárquica de onde emergiu a própria categoria. Ao que parece, a
diferenciação entre as duas categorias tinha como
referência a maior ou menor habilidade na confecção das
peças humanas. Na visão de alguns artesãos, os santeiros
eram aqueles que possuíam mais destreza e por isso estavam mais aptos a
produzir os santos, enquanto os figureiros eram todos
aqueles que, não conseguindo produzir as representações
humanas, acabaram por se especializar na produção das figuras zoomorfas, os animais entendidos como
“figurinhas” do presépio.
Essa visão, no entanto,
se refere a um tempo passado, e é utilizada apenas para explicar a
origem do termo figureiro. Atualmente todos devem
necessariamente saber fazer tanto as figuras de animais quanto as humanas.
Apesar disso, há que ressaltar o que podemos considerar
resquícios de uma hierarquia, visto que o processo de aprendizado
é dividido informalmente em duas etapas, que consistem em aprender a
modelar figuras de animais e só a partir do
domínio dessa técnica passar ao aprendizado da modelagem de
figuras humanas, pois é consenso entre eles que a
confecção destas últimas requer mais domínio das
técnicas de modelagem.
Pode-se dizer que a categoria figureiro possui dois níveis de significado: no que
se associa a explicações relativas à origem do termo, a
categoria denota menos habilidade, de maneira que aqueles considerados figureiros fossem percebidos como pouco capacitados na
confecção de figuras humanas. Nesse nível de
significação, a categoria emerge de uma relação
hierárquica, a partir da ideia de habilidade, talento, e ocupa lugar
inferior em relação à categoria santeiro.
Por outro lado, ao focalizarmos
seu uso e significado contemporâneos, a categoria figureiro
emerge como englobadora da categoria santeiro. Como
relatou Arlete Sampaio, atualmente os artesãos também fazem
santos, não sendo, entretanto, mais denominados santeiros, mas apenas figureiros.
Nesse nível de
significação, enquanto o santeiro se manteve restrito à
produção de peças sacras, com base na habilidade para a
representação de figuras humanas, o figureiro,
além das figuras zoomorfas, passou a produzir
peças sacras e outras figuras humana,
tornando-se uma categoria englobadora da categoria
santeiro. Dessa forma, a categoria figureiro passou a
se referir às figuras em geral, aos animais, aos santos e a outras
representações de figuras humanas.
Enquanto no primeiro
nível de significação a categoria figureiro
se refere à habilidade na confecção de determinada
peça, no segundo nível ela reporta à
ampliação do repertório de peças modeladas, que
pode ser compreendido a partir do domínio das técnicas, ou
desenvolvimento da habilidade, que permitiu a confecção das
figuras humanas.
A “descoberta”
dos figureiros
Nas várias conversas
informais que tive com a figureira Luiza Santos, a
mais velha ainda em atividade, em que ela falava sobre a trajetória da
produção figurativa na Rua Imaculada, ficou bastante clara a
existência de acontecimentos, personagens e lugares que marcaram a
memória do grupo.
Em A memória coletiva
Maurice Halbwachs (1990) estabelece que os
indivíduos não recordam sozinhos; eles
precisam da memória de outras pessoas para configurar suas
próprias recordações. Para lembrar, os indivíduos
precisam da memória coletiva, ou seja, da memória que foi
construída a partir da interação com outros
indivíduos.
Myriam Lins de Barros (1989, p.
31), dialogando diretamente com as formulações de Halbwachs, destaca que a “memória individual
é um ponto de vista da memória coletiva, e esse ponto de vista
varia de acordo com o lugar social que é ocupado; este lugar, por sua
vez, muda em função das relações que se tem com
outros meios sociais”.
Levando em conta todas as
especificidades que devem ser consideradas ao abordar discursos que remetem a
uma memória individual ou coletiva, gostaria de evidenciar alguns
acontecimentos e personagens destacados por Luiza Santos. Por ser a figureira mais velha e por ter participado ativamente de
vários momentos tidos como significativos na produção
figurativa, pode-se dizer que Luiza se reconhece e é reconhecida como
guardiã da memória dos figureiros, como
alguém que realiza mediação entre gerações
quando transmite a história de um passado vivido e experimentado
(barros, 1989).
De acordo com Luiza, foi a
partir da década de 1940 que os figureiros
começaram a ganhar mais visibilidade por meio do contato com o
historiador e folclorista de São Paulo Rossini Tavares de Lima.
Rossini Tavares, que fazia
parte do Movimento Folclórico e foi secretário-geral da
Comissão Paulista de Folclore entre 1948 e 1976,2 desenvolvia
também pesquisas no campo do folclore pelo Centro de Pesquisas
Mário de Andrade, que era vinculado ao Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo, no qual Rossini era professor.
As atividades de pesquisas e os trabalhos de campo desenvolvidos pelo Centro
deram origem à reunião de objetos que posteriormente resultou na
criação do Museu de Artes e Técnicas Populares de
São Paulo, em 19613 (reis, 2010, p. 5).
Para Rossini Lima (1972), era
preciso entender os fatos folclóricos como dinâmicos, como
fenômenos que aconteciam em determinado momento, sendo assim
necessário contextualizá-los em seus aspectos sociais. Foi com
essa postura e no princípio da construção de um acervo que
desse conta de uma representação do
perfil nacional a partir do material folclórico – postura
condizente com os ideais do Movimento Folclórico – que Rossini,
por volta de 1940, se aproximou do trabalho artesanal desenvolvido pelos figureiros de Taubaté. Como relatou Luiza Santos,
“ele foi a primeira pessoa que deu uma mão” para os figureiros.
Foi por intermédio de
Rossini que os figureiros começaram a ganhar
visibilidade fora da cidade de Taubaté. O primeiro convite para
participar de exposições ocorreu em 1954, por ocasião das
comemorações do quarto centenário de São Paulo,
ainda que só a partir de 1964 eles começassemm
a participar efetivamente de exposições e feiras. Essa maior
visibilidade atraiu novos compradores para as peças, acarretando
também mudanças na produção artesanal. Pode-se
dizer que Rossini Tavares é, ainda, um dos principais personagens que
permeia a memória coletiva dos figureiros de
Taubaté relacionada à ascensão da arte figurativa no
bairro.
A ampliação do
repertório
Até a
“descoberta” dos artesãos de figuras de barro pelos
intelectuais ligados ao Movimento Folclórico e a consequente
divulgação do trabalho artesanal, a venda das figuras para
presépio se restringia ao Mercado Municipal de Taubaté e ocorria
durante o período natalino. Embora a produção das figuras
pudesse acontecer durante todo o ano, era apenas nos meses que antecediam ao
Natal que ela se intensificava. Com o surgimento de um novo público
interessado, esse arranjo temporal que orientava a produção
começou a tomar outra configuração.
A procura das peças dos figureiros passou a acontecer durante todo o ano, ou seja,
já não se concentrava no período das festas natalinas.
Essa nova configuração da demanda acarretou mudanças
significativas, tanto no que diz respeito ao período de
produção, que se estendeu pelo ano todo, quanto ao
repertório de peças produzidas, que começam gradativamente
a extrapolar o destino anterior, que priorizava a composição de
presépios.
Meireles (apud pereira, 1957,
p. 98) chama a atenção para a natureza plástica dos
presépios, destacando o grande número e variedade de figuras
neles encontradas.
Nas capelas dos
palácios, e nos inúmeros oratórios, a cena da Natividade
teria de encontrar um fervor certo, pela gentileza das figuras e pela
expressão do acontecimento. Em sua forma estética, ficará
reduzida a um pequeno número de elementos plásticos. Mas as
vastas romarias, com a participação do povo, as festas
religiosas, com música, dança, foguetório, comes e bebes,
ofereciam motivos copiosos para maior desenvolvimento do presépio. Por
imensos caminhos, até a manjedoura, houve uma larga
invenção profana: soldados, agricultores, pastores, lavadeiras,
músicos, mendigos, crianças, artesãos de toda a qualidade,
dirigiam-se por esses íngremes caminhos que iam dar à
mansão divinizada. Talvez porque a viagem fosse longa, nem todos ficaram
em atitude de marcha: alguns sentaram-se a comer,
outros a lavar roupa, outros a dar de beber aos cavalos, outros a dormitar
à sombra de algumas árvores. E os músicos desataram a
tocar sanfonas, rebecas ou violas, e formaram-se rodas de dança,
enquanto os bichinhos, naturalmente destinados à oferenda, também
se distraíam em redor, os patos pelos lagos, as galinhas, porcos, os
carneiros misturados pelos caminhos.
Destaca ainda que as figuras do
presépio podem ser retiradas, vindo a desempenhar um fim lúdico
ou decorativo, tendo também a possibilidade de atualização
e aumento das peças que compõem o presépio.
É Pereira (1957, p. 108)
quem chama a atenção para uma estreita relação
entre as figuras de presépios e a modelagem popular, que, de acordo com
o autor, “é originada num velho costume de se executar estes
trabalhos como atividade lúdica, mesmo visando um fim
específico”. Dessa forma, para o autor, os personagens do
presépio teriam dado origem às esculturas ou modelagens, agora
com fins decorativos ou lúdicos, destinadas a servir como brinquedos de
criança.
Ainda na década de 1950,
os presépios de Taubaté chamavam a atenção pela
variedade de temas representados. E é justamente essa variedade um dos
assuntos da reportagem de Luiz Ernesto, publicada no periódico
Tribuna da Imprensa, em 23 de janeiro de 1957, sob o
título Tem cobra, onça e raposa nos presépios de
Taubaté:
Antônia Maria dos Santos
vende cada figurinha a Cr$ 5,00 (média). As figurinhas têm de
tudo: boi, burro, os três Reis Magos (em pé ou a cavalo), cobra,
tartaruga, vaca, peru, galinhas e pintinhos e os santos – Nossa Senhora,
São José e o Menino Jesus. Nastácia Costa explica que o
presépio popular de Taubaté deve ter 31 figuras.
(...) E diz Gentil de Camargo,
a grande autoridade (história, tradição e folclore) do
Vale do Paraíba:
“A arte das figureiras não está caindo. O que há
talvez é uma renovação. Figuras dos
feitos de 32, 45 (FEB)4 e outros estão ‘entrando’
para os presepinhos. Vale! (...) E a paisagem se
anima – povoada de onças, camelos, soldados de 32, soldados da
guerra do Paraguai, ursos, macacos, cobras, galinhas, patos no lago de espelho,
os noivos, homens, mulheres, casinhas de papelão, bichos e gente, numa
irrealidade geográfica e histórica, onde a
imaginação se compraz”.
Como Meireles (apud pereira,
1957) destaca, eram inúmeros os temas da modelagem popular que compunham
o presépio. A utilização dessas figuras para outros fins
– decorativo ou lúdico – pode ser compreendida também
como estímulo para constantes renovações e
inspirações temáticas.
Associado à
ampliação do repertório de peças produzidas ocorreu
também o aperfeiçoamento do trabalho de alguns figureiros do bairro Imaculada. De acordo com Luiza Santos,
à medida que foram surgindo novos compradores, exposições
e feiras, a produção artesanal foi ficando pequena diante da
demanda, o que acabou, de certa forma, estimulando o
interesse de alguns figureiros em aperfeiçoar
suas técnicas. Aqueles que modelavam apenas figuras
de animais ampliaram seu repertório individual, passando a modelar
também figuras humanas.
Embora se inaugure um novo
período da produção artesanal a partir do contato com Rossini
Tavares de Lima, quando os figureiros foram ganhando
mais visibilidade, a cerâmica figurativa de Taubaté já
não se limitava à produção de presépios
simples – constituídos apenas pela sagrada família –
como evidencia a reportagem citada.
A variada gama de temas
presentes nos presépios, como os soldados da Revolução
Constitucionalista ou da Guerra do Paraguai, já mencionados, demonstra
que os personagens modelados nem sempre estavam ligados ao repertório
religioso, indicando a abertura das temáticas para o contexto secular.
Por outro lado, deve-se considerar também que a própria
inserção de temas não religiosos no contexto do
presépio confere, em alguma medida, sacralidade às peças,
sem contudo interferir em um possível uso
ordinário das figuras fora do período natalino. Com isso quero
apenas chamar a atenção para o fato de que a
produção artesanal, embora motivada inicialmente por uma
devoção religiosa, se expandiu para outras temáticas a
ponto de se tornar autônoma da demanda natalina ou da própria
finalidade religiosa.
“Uma casa para os figureiros”
Desde meados da década
de 1980, os figureiros da Rua Imaculada demandavam
junto à prefeitura a construção de um espaço de uso
coletivo para produção e comercialização das
figuras. A demanda era encabeçada por Luiza Santos que, por ser
conhecida de vários políticos da região, buscava usar suas
influências a favor do grupo. Embora os figureiros
desejassem possuir um espaço para produção e venda na
própria Rua Imaculada, visto que já era forte a
associação entre o trabalho artesanal de figuras de barro e a
rua, a prefeitura de Taubaté optou por construir o espaço na Rua
dos Girassóis, transversal à Imaculada, na qual, alegava,
não havia terreno disponível para a construção do
espaço adequado.
Construída em 1993, a Casa
do Figureiro ocupa ampla área, e sua estrutura
física é composta por duas grandes salas. Em uma delas funciona a
loja da Casa, onde são expostas as peças para venda. A outra sala
é utilizada para produção e armazenamento de peças
e matéria-prima.
Mesmo com a Casa finalizada os figureiros enfrentaram várias dificuldades, entre
elas a viabilização de seu funcionamento, o que incluía,
além do mobiliário necessário à
produção e venda das figuras, a organização dos
recursos humanos responsáveis pelo atendimento ao público e
realização de limpeza, por exemplo.
Um dos maiores problemas
enfrentado pelos figureiros consistia na
manutenção da Casa, aberta ao público, disponível a
visitações e com constante produção de figuras para
a venda. Vale lembrar que até esse momento eles produziam e vendiam em
suas próprias casas, tinham relativo controle sobre a quantidade de
peças vendidas por mês e possuíam, em sua maioria,
clientela fixa que geralmente fazia encomendas com antecedência.
Manter a Casa do Figureiro permanentemente aberta ao público, uma vez
que ela era também um ponto comercial, esbarrou em novos
obstáculos. O pequeno número de associados (15 em 1993)
dificultava a manutenção da Casa sempre aberta, pois para isso
era necessário a constante permanência de, no mínimo, dois figureiros trabalhando em horário comercial.
Associado a isso, há também o fato de o limitado número de
peças produzidas não atender às novas demandas vindas dos
clientes surgidos com a criação da Casa do Figureiro.
Houve, então, a necessidade
de estimular a entrada de outros figureiros para
viabilizar o funcionamento da Casa e garantir a produção
artesanal para a nova demanda. Com essa intenção foi criado um
curso para “novos figureiros”, a
“escolinha”, como muitas vezes eles referem. Entre 2008 e 2012,
período em que se deu meu contato com os figureiros,
a expressão novos figureiros era ainda
recorrente entre eles para designar aqueles que ingressaram na arte figurativa
após a criação da Casa do Figureiro
e distingui-los dos chamados figureiros de
família ou figureiros tradicionais, isto
é, aqueles que pertencem a grupos familiares envolvidos na
produção figurativa há, ao menos, duas
gerações e/ou que habitavam o bairro Imaculada
Conceição. A partir da escolinha surgem as categorias classificatórias
entre os figureiros, que toma como critério de
distinção a forma com que se deu o processo de ensino e
aprendizagem: enquanto para os novos esse processo se deu por meio do ensino
formal na escolinha, para os chamados de família e/ou tradicionais se
deu no âmbito familiar e informal.
De acordo com Josiane Sampaio, uma das instrutoras do curso, ele visava
ensinar os interessados a “fazer umas pecinhas”, o que não
implicava necessariamente seu ingresso na Associação. Após
um ano de curso realizava-se uma reunião com todos os associados e
decidia-se, a partir da análise das peças produzidas pelos
aprendizes, quem estava apto ou não a integrar a Casa do Figureiro, o que, no entanto, só se concretizava no
ano seguinte. Eram necessários, portanto, dois anos de
vinculação à Casa do Figureiro
para que o novo artesão se tornasse membro efetivo da
Associação.
Os cursos foram realizados
durante três anos, sem que se saiba precisar quantas pessoas deles
participaram. Décio de Carvalho, em entrevista à autora em 2009,
afirma que a participação foi pequena, de apenas sete pessoas.
Apesar dessa iniciativa de criar regras para a entrada de novos figureiros outros teriam entrado para a Casa sem participar
dos cursos.
Os outros, que são os
atuais novos figureiros não são frutos
diretos do curso. Foram amigos de figureiros que
faziam algum tipo de atividade de artesanato com barro, e passaram a assumir a
característica do trabalho do figureiro em
função desse colega ou no convívio na Casa do Figureiro. O caso da Marilisa,
por exemplo, ela é parente de um tio meu.
Então ela perguntou e eu apresentei à
Casa, mas ela já fazia com alguma técnica e alguma
característica que se mantém até hoje no trabalho dela.
(...) Então com outros figureiros o processo
foi um pouco semelhante. Vieram, no caso do Éden, por exemplo, ele
já era professor de arte, veio com alguma técnica, mudou, assumiu
alguma característica dos figureiros,
então houve uma mescla.
Contudo, embora não
tendo participado dos cursos, alguns candidatos a figureiros
foram aceitos pelos integrantes da Casa mediante a apresentação
de algumas peças modeladas.
Atualmente a entrada de novos
integrantes não é permitida pela Associação. Embora
nem todos os figureiros concordem com essa
restrição a maioria acatou a criação de uma
cláusula no estatuto da Associação que limita o
número de associados a 40 pessoas.
Entre os motivos apresentados
pelo grupo para a extinção dos cursos de formação e
a estipulação de um número máximo de associados,
está a limitação espacial da Casa do Figureiro.
Argumenta-se que não há espaço disponível para o
trabalho de mais de 40 pessoas considerando, entre outras coisas, a necessidade
de armazenamento de matéria-prima e espaço para a própria
confecção das peças.
Outro argumento se refere
à preocupação em manter equilíbrio entre oferta e
demanda de peças. Nesse caso, um número muito grande de figureiros poderia desencadear a
desvalorização das peças e, consequentemente, colocar em
risco a sobrevivência daqueles que vivem apenas da produção
figurativa.
É interessante destacar
nos discursos sobre a extinção dos cursos o fato de que o
argumento inicialmente utilizado para justificar sua própria
existência, ou seja, a possibilidade de aumentar a
produção, levando em conta o aumento da procura, passa, posteriormente,
a ser usado para justificar sua extinção. Nesses termos, a
extinção dos cursos se deu justamente quando os figureiros alcançaram equilíbrio entre a
oferta e a demanda das peças.
Dessa forma, mesmo a entrada de
um figureiro vindo de uma família classificada
como tradicional iria esbarrar na problemática da exiguidade de
espaço, já que o trabalho requer mesas, forno e armários
para armazenar peças e matéria-prima. Atualmente as falas mais
correntes afirmam que é vetada a entrada de qualquer figureiro,
caso não haja vacância de associados.
No entanto, na prática
essas “regras” parecem ser negociadas. Houve o caso, por exemplo,
de uma figureira que se desvinculou da
Associação por ter sido empregada em função que
não lhe permitia a conciliação com o trabalho da Casa do Figureiro, mas, após sair desse emprego, retornou
à Associação, apesar da suposta inexistência de
vagas. Essa exceção foi explicada tomando como justificativa o
fato de essa figureira ser, acima de tudo, membro de
uma família tradicionalmente conhecida no bairro como vinculada à
produção artesanal figurativa. Acrescenta-se ainda que a
preocupação principal da Associação é que não entre “qualquer pessoa”,
explicitando que qualquer pessoa se refere àqueles sem vínculo
familiar com a modelagem de barro.
Tais contradições
levam a crer que há uma tentativa, por parte de alguns, de manter
determinada hegemonia entre os figureiros já
associados. Essa hegemonia pode ser caracterizada em dois níveis,
dizendo respeito um às famílias tradicionais que fazem parte da
Casa do Figureiro e controlam
a entrada de novos integrantes a partir dos privilégios dados a seus
familiares, o outro ao posicionamento da própria
Associação enquanto grupo que, utilizando alegações
como a falta de espaço e ampliação da concorrência
interna, caso aceite novos membros, acaba, de alguma forma, construindo certa
hegemonia da produção figurativa.
Podemos, portanto, afirmar que
a Casa do Figureiro concentra a
produção figurativa de Taubaté e domina a
transmissão das técnicas artesanais, sendo o centro articulador
da legitimação dos artesãos como figureiros.
Três percursos do
tornar-se figureiro
As diferentes categorias
classificatórias, surgidas com a criação da Casa do Figureiro, explicitam também diferentes
trajetórias no processo de construção do artesão
enquanto figureiro. Passo agora a relatar brevemente
o percurso de três artesãos quanto à formação
e ao processo de legitimação como figureiro.
Arlete Sampaio – o
barro está no sangue
Arlete Sampaio faz parte da
terceira geração de figureiros da
família Sampaio, que é atualmente uma das maiores famílias
de figureiros de Taubaté − até
final de 2010, 11 membros trabalhavam ativamente na produção
artesanal.
Ao relatar o processo de
aprendizagem em sua família, Arlete explicita o caráter
lúdico da lida com o barro experimentado na infância. Em conversa
informal, contou-me que seus primeiros e principais brinquedos eram feitos de
barro, que aos sete anos já modelava algumas figuras, que sua
mãe, a figureira Anita Sampaio, muitas vezes
dava o barro para ela e suas irmãs “brincarem”, e que de
observar sua mãe fazendo figuras começou a imitá-la,
produzindo ela própria seus brinquedos.
Em entrevista à autora,
em 2009, Micheli Sampaio, filha de Arlete, pertence
à quarta geração de figureiros
da família, também conta que aprendeu no dia a dia, “eu via
todos os dias e por isso já estava no sangue aquilo”.
O que chama a
atenção tanto no relato de Micheli
quanto no de Arlete é a naturalização do processo de
aprendizagem, o que denota o caráter não consciente da
aquisição dos conhecimentos e habilidades, ou seja, das
competências relativas à modelagem figurativa.
Em todas as chamadas
famílias tradicionais é possível encontrar relatos muito
semelhantes a esses. O que parece caracterizar o processo de
ensino/aprendizagem dentro de uma família de figureiros
é o aspecto de convivência cotidiana com os processos de
produção artesanal, o que colabora para que o ensinar e o
aprender se deem de forma inconsciente.
Para muitos figureiros
tradicionais, principalmente para aqueles que começaram sua
produção artesanal antes da criação da Casa do Figureiro, os ensinamentos da lida com o barro não
se limitam à transmissão de técnicas de modelagem, mas
abrangem desde o processo de extração do barro ao acabamento das
peças. Nos relatos de alguns figureiros de
família evidencia-se o fato de que esses ensinamentos eram transmitidos
no dia a dia dos figureiros e de sua
vizinhança na Rua Imaculada.
Olha, o que eu lembro é
que minha mãe falava assim: “Amanhã a gente vai buscar
argila”. A gente ficava superfeliz. Por quê? Porque lá era
onde a gente enfrentava os matos, os espinhos, boi, vaca. Passava em lugar
difícil até chegar no rio. Só que
a gente, nessa época, reunia uma turminha que ia a mãe e os
filhos, e filho homem. Os moleques eram mais espertos para andar no meio do
mato, nos ajudavam, e a gente se divertia muito porque a gente tomava banho no
rio, entendeu?! E chegava lá cavucava, e
pegava um pedacinho de argila e levava lá no barranco para minha
mãe, no caso, para ver se a argila estava boa. Aí minha
mãe falava: “Ah, está com muita areia”. Daí, cavucava em outro lugar, “Ah, está com muito
fiapo de mato”. Tinha raiz e mato embaixo, estava muito ruim. Até
que achava um lugar que estava bom. Aí, ela tirava a argila, ia pegando
os pedaços, colocando dentro do saco de arroz, que é um saco mais
grosso, conservava mais. Aí a gente fazia
aquele monte de saco de arroz, enchia tudo de argila. Daí, ia subindo o barranco, aí subia o barranco e vinha
tudo sujo, vinha molhado. Só que quando estava vindo: “Ai
mãe, não aguento carregar”. Ela falava: “Ah, deixa um
pedaço aí”. A gente escondia os pedaços no meio do
mato, sabe. Uns pacotinhos verdes no meio do mato. E vinha embora. No outro dia
a gente ia buscar. Assim que a gente fazia. E quando chegava em
casa, tinha trabalho, porque a gente amassava a argila na mão, pedacinho
por pedacinho, procurando pedrinha. Pedrinha, mato mesmo, separando, deixando
no ponto para a gente trabalhar. Era bem mais difícil (Arlete Sampaio, 2009).
Neste trecho Arlete destaca o
processo de extração do barro que era realizado no Rio Itaim, nas
imadiações da Rua Imaculada, chamando a
atenção para o caráter lúdico dessa investida
experimentada em sua infância.
O caminho até o rio
já era por si só uma grande aventura, pois “era onde a
gente enfrentava os matos, os espinhos, boi, vaca. Passava em lugar
difícil”. Além de compartilhar a aventura com uma
“turminha” havia também a recompensa que era poder tomar
banho no rio. Toda essa diversão com caráter de aventura pode ser
compreendida como uma maneira de introduzir os ensinamentos da lida com o
barro, por exemplo, na descrição da escolha da argila adequada,
posto que as crianças mostram os vários
tipos de argila encontrados ao adulto presente, que então seleciona o
mais adequado ao trabalho, aprendendo, assim, os critérios que delimitam
a escolha do barro de qualidade: pouca areia, sem fiapos de raízes etc.
O processo de aprendizado de
Arlete Sampaio condensa características compartilhadas por todos os figureiros de família, podendo ser entendido como
caso representativo da maneira com que se dá o ensino e aprendizado
nessa categoria classificatória (Figura 1).
Décio de Carvalho
– um figureiro tradicional
Décio de Carvalho
Júnior nasceu em 1969, e seu primeiro contato com o barro foi aos seis
anos de idade. Décio não pertence a
família de figureiros, mas, morador do bairro
Imaculada desde a infância, perto da Rua Imaculada, sempre manteve
contato com figureiros.
Aos 11 anos ele iniciou seus
estudos na Escola de Artes Maestro Fêgo
Camargo, de Taubaté, onde frequentou durante dois anos o curso de arte
para público infantil. Depois disso, conheceu Marcos Nogueira −
neto da figureira Edwiges e amigo de seu irmão
−, que lhe sugeriu entrar em contato com as irmãs figureiras da família Santos (Luiza, Edith e
Cândida) para ser iniciado na arte dos figureiros,
o que de fato aconteceu.
Décio destaca, na
entrevista que deu à autora em 2009, que o aprendizado com as
irmãs figureiras e principalmente com Luiza
não era algo dirigido, dando-se mais pela convivência,
orientação, observação e comparação
que ele fazia entre sua produção e a delas.
Não era uma forma
tão didática, dirigida. O que acontecia: eu chegava com meu
produto lá e observava, lógico, o que
elas estavam fazendo, e mostrava, e elas orientavam. Então, eu me lembro uma vez de ter feito uma galinha, pintei de azul e
com pintinhas amarelas. E a galinha parecia um avião (risos). E era
engraçado. Ou seja, para mim, aquilo estava certo, mas depois eu
comparava com as delas e vi que ficava muito estranho, e eu tentava entender
por que minha galinha não ficava tão bonita quanto as que elas
faziam. Às vezes, elas me falavam: “Nossa, mas você
precisava fazer mais redonda ou...”. Mas elas não eram de falar
muito. Até porque eu acho que elas queriam incentivar. (...) E elas
não falavam muito, eram muito de observação, mas falavam o
suficiente. Agora, havia o hábito na época de... nós participávamos muito de excursão.
Muito, muito. Então, o convívio ali nas exposições
acabava ajudando também. Então, foi uma coisa muito
próxima, de muita proximidade. E elas tinham uma maneira muito sutil de
cobrar caso você não fizesse, por exemplo, não arcasse com
o compromisso. Por exemplo, ter marcado uma excursão e não ter
ido. Elas cobravam de uma maneira muito peculiar. Elas cobravam a
questão da responsabilidade. Então, havia além da
técnica, uma certa postura. Até em
relação à parte política, por exemplo, que é
muito interessante. Chegava na época da
eleição, a dona Luiza recebia – como recebe até hoje
– todos os candidatos. Todos. E ela sempre nos orientava sobre isso, de
que o artista tem que ter essa capacidade. Mas ele não pode ter assim,
ou pelo menos elas... Elas não assumiam uma atitude partidária.
É uma atitude até política, porque na verdade é uma
atitude política. Mas elas não tinham atitude partidária.
Elas tinham total razão nisso. Então agora eu sigo o caminho
delas até nisso. Então quando eu falo que ela nos orientou
é uma coisa que você só vai assimilar anos, anos depois,
tal a abrangência.
O aprendizado, portanto,
não se limitava às técnicas, abrangendo uma questão
de postura, de comportamento diante de todos os contextos que envolvem ou podem
envolver a produção artesanal.
O fato de Décio ter
iniciado seu aprendizado com os figureiros
após ter frequentado uma escola de arte já foi fonte de
conflitos. Sua produção, que de alguma maneira destoa da maioria
dos figureiros, pois possui características escultórias, já foi motivo para questionar
sua legitimidade enquanto figureiro, como ele
esclareceu quando lhe perguntei se sua produção diferenciada
já havia gerado conflito dentro do grupo:
Olha, já. Você diz
diferenciada entre tantas?! Já, já me chamaram... Uma vez, foi
muito engraçado, falaram que eu não era figureiro.
Eu falei: “Gente, mas peraí, se for a questão das patentes, eu aprendi com a
dona Luiza”. Foi muito engraçado que a minha bisavó foi
quem levou... A dona Edith falando que eu era bisneto da Maria das Dores que
levava barro.5 Eu acabei usando isso como
argumento, não é?! Se a questão é a ancestralidade
lá na ideia, eu comecei também a puxar as
informações ligadas à minha família. E realmente,
minha família é centenária no bairro também. Eu
também tenho uma história, não é?! E o fato de ter
feito Fêgo Camargo [escola de arte] realmente
talvez tenha gerado uma discussão. Mas eu vi que a minha base estava ali
com a dona Luiza. Meu norte ético era ali. Como ela nunca condenou...
Para mim, a visão dela era a visão da matriarca. Como ela não
condenou, eu não tinha dúvidas que os outros não teriam a
autoridade de questionar. Então, ela era sempre a referência, meio
que o limite. Se ela falasse alguma coisa, enfim... E como isso não
aconteceu, eu não tinha assim, dor na consciência de ter
continuado a fazer, como até hoje faço. Nenhum tipo de sentimento
de culpa em relação a isso.
O relato de Décio traz
à tona a questão da ancestralidade, tanto do parentesco como do
território, algo que muitas vezes é usado como forma de
legitimação dentro da produção figurativa. Por outro
lado, há também o fato de o processo de aprendizado, associado
à experiência do convívio com figureiros
reconhecidos como legítimos, ser capaz de conferir legitimidade. Por
último, há ainda o destaque dado ao papel de Luiza Santos que,
além de surgir como figureira legítima,
também é tomada em última instância como a principal
legitimadora de outros figureiros.
Devido à especificidade
da experiência de seu aprendizado no convívio direto e cotidiano
com os figureiros, apesar de não pertencer a
uma dessas famílias, morando no bairro Imaculada desde
a infância e mantendo relações de vizinhança
com todos os outros figureiros, Décio é
classificado como figureiro tradicional.
Trata-se de uma categoria
classificatória que considera em primeiro lugar não o parentesco
consanguíneo, mas o parentesco por afinidade e conviência.
Décio, desde a infância, pertence à coletividade do bairro
Imaculada e, assim como os figureiros de
família, aprendeu pelo convívio diário e de maneira
não dirigida. Sua legitimidade enquanto figureiro
passa pelo viés do próprio convívio e do compartilhamento
de valores, pelo fato de se reconhecer e ser reconhecido como pertencente a
essa coletividade (figuras 2 e 3).
Elizabeth Machado –
uma nova geração
A figureira
Elizabeth Machado, que pertence à Casa do Figureiro
há mais de dez anos, é classificada internamente na categoria dos
novos figureiros, pois seu contato
e aprendizado da arte figurativa se deu por meio dos cursos ministrados
pela Associação.
Ao falar sobre seu ingresso na
Casa do Figureiro, durante a entrevista que me
concedeu em 2010, Elizabeth explicita que sua entrada foi mediada pela busca de
qualificação profissional. Trabalhando como faxineira, estava em
busca de cursos oferecido pela prefeitura que lhe proporcionassem algum tipo de
qualificação. Conta que sua primeira visita à Casa do Figureiro aconteceu quase por acaso: ao ver a Casa pintada
de azul e branco, que são as cores-padrão
da prefeitura, entendeu que se tratava de um órgão municipal e
assim tomou a iniciativa de perguntar se havia cursos profissionalizantes.
Eu entrei aqui, estava
[passando por] perto; perguntei se tinha algum curso aqui. Eu nem via figura,
eu só enxerguei ela [a figureira que estava
atendendo]. Ela me tratou muito bem. Então, eu me senti assim à
vontade, bem acolhida por ela. E ela falou assim: “Tem curso aqui sim.
Vem aqui, só que está de férias, então você
vem aqui que eles estão dando aula”. Eu falei:
“Paga?”. Ela falou: ‘Não”.
Eu falei: “Mas aula do quê?”. Ela
falou: “De argila, mexer com barrinho”. Eu
fiquei feliz. Era assim... antes do Natal. Ela falou: “Quando passar o
Natal, em janeiro você vem”. Aí, eu vim e estou até
hoje aqui. (...) Hoje, graças a Deus, eu tenho um dinheiro assim, para
eu levar o que falta dentro de casa, fazer até compra [para]dentro de
casa. Então, graças a Deus eu consegui não sair, desistir.
Valéria: Seus dois
filhos chegaram a fazer o curso também?
Elizabeth: Fizeram. (...)
Às vezes, quando eles estavam estudando, eles pediam dinheiro
emprestado. Eu falava: “Te empresto, você me paga com
figura”. Foi sempre assim, sabe, para incentivar, para poder não
perder a geração. Nós não somos da
geração deles [dos figureiros de
família], mas [podemos]continuar na nossa
geração daqui para frente.
Ao mesmo tempo em que Elizabeth
deixa claro sua motivação ao ingressar na Casa do Figureiro, também chama a atenção para
a necessidade de dar continuidade à produção artesanal
dentro da família. Aponta que as motivações de
caráter econômico não excluem uma postura de
perpetuação da prática artesanal, já que os novos figureiros de hoje serão os figureiros
tradicionais de amanhã à medida que conseguirem repassar, dentro
dos seus círculos de parentesco, as técnicas de modelagem das
figuras.
Com o passar do tempo, essa
percepção, que vê na produção figurativa um
meio de profissionalização e inserção no mercado de
trabalho, é muitas vezes relativizada, e os discursos dos novos sobre o
lugar que eles ocupam na arte figurativa passam a focalizar também a
importância e necessidade de conservar e manter uma prática
artesanal secular como a dos figureiros de
Taubaté (figuras 4 e 5).
Últimas
considerações
O que parece explicitar-se no
processo de ensino e aprendizagem entre os figureiros
de Taubaté é que, com o passar do tempo, os ditos novos figureiros reelaboram o quadro de motivações
que os leva a permanecer na arte figurativa, e passam a hierarquizar tais
motivações da mesma maneira que os denominados figureiros tradicionais, sobrepondo-se a importância
da produção figurativa enquanto parte da história individual,
familiar e coletiva à sua importância comercial/econômica, o
que não significa dizer que este último aspecto da
produção artesanal não seja relevante para todos os figureiros.
A partir dessa ideia, podemos
ter compreensão mais ampla do próprio processo de aprendizado
entre os figureiros. Ao contrapormos o processo de
aprendizado dos figureiros de família e
tradicionais àquele dos novos, observamos algumas importantes
diferenças. Em primeiro lugar, há o tempo necessário para
que o aprendiz seja considerado um figureiro. Em
segundo, há a forma de transmissão das técnicas de
modelagem: para os tradicionais, a partir do convívio cotidiano no
âmbito familiar e/ou de vizinhança;6
para os novos, a partir de um figureiro experiente
que ensina durante dois anos. Há também as
motivações que impulsionam o início do aprendizado: para
os primeiros esse aprendizado se inicia de modo lúdico e, para os novos,
visa desde logo à profissionalização. Apesar dessas
diferenças, com o passar do tempo, os novos figureiros
reelaboram os motivos de sua permanência na arte figurativa, e a
motivação profissional, e mesmo econômica, passa a segundo plano; a continuidade de uma prática
artesanal tradicional surge como principal motivação. Nesse
aspecto, do ponto de vista da reconstrução e ressignificação
de suas narrativas, novos e tradicionais se aproximam.
Esse raciocínio destaca
os argumentos de que o processo de ensino/aprendizagem dos novos figureiros parece não se limitar ao período
de dois anos, mas abranger todo o período que vai do primeiro contato
com a arte figurativa até o momento em que o figureiro
reconfigura as motivações para sua permanência na arte
figurativa, aproximando-se ou se igualando àquelas expressas pelos
tradicionais.
O tornar-se figureiro
em Taubaté implica o compartilhamento de uma rede de significados e
práticas intimamente ligadas à construção de uma
imagem de totalidade local; trata-se do compartilhamento de um éthos e de uma visão de mundo
adquiridos na prática social que envolve a arte figurativa.
Referências
bibliográficas
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Florestan Fernandes e a marginalização do folclore. Estudos
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Editora Perspectiva, 2001.
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MACHADO, Alessandra. As figureiras da Rua Imaculada Conceição de
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OLIVEIRA, Marcelo P. de. O
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PEREIRA, Carlos José da
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REIS, Daniel. Visite o Brasil:
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Laura Vieiros de Castro; GONÇALVES, Renata S.
(Org.). Seminário Circuitos da Cultura Popular. Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS, 2010.
SOTO, Maria Cristina M. Pobreza
e conflito: Taubaté 1860-1935. São Paulo: Annablume,
2001.
1 Por categoria nativa de classificação
estou tomando os termos de origem social compartilhados pelo grupo para
ordenar, isto é, classificar seres, acontecimentos, lugares etc., a
partir de noções hierarquizadas entre as próprias
categorias e que tem como finalidade “fazer compreender, tornar
inteligíveis as relações existentes entre os seres”
(durkheim, mauss, 2001, p.
450-451).
2 Movimento Folclórico era a
expressão utilizada pelos próprios integrantes para designar o
conjunto de iniciativas que visavam a “salvaguarda, estudo e pesquisa do
folclore nacional” (III Semana Nacional do Folclore, 1950 apud cavalcanti, vilhena, 1990, p.
76).
3 O Museu de Artes e Técnicas
Populares de São Paulo, que também era conhecido como ‘o
museu do Rossini’, passa a receber oficialmente o nome de seu fundador a
partir de sua morte, em 1987 (reis, 2010, p. 3).
4 Os feitos de 32, a que se refere
Camargo, dizem respeito à denominada Revolução
Constitucionalista de 1932, para a qual Taubaté enviou
voluntários que formaram o “Batalhão Jaques Felix”,
ou se juntaram ao “Batalhão Mantiqueira”, ou ao
“Batalhão Arquidiocesano”, todos acantonados em
Taubaté (soto, 2001, p. 242). Já os feitos de 45 dizem respeito
ao envio de jovens taubateanos para integrar a
Força Expedicionária Brasileira (FEB), que esteve presente nos
campos de batalha da Itália, durante a Segunda Guerra Mundial
(1937-1945).
5 A figureira
Luiza, em entrevista, diz que a bisavó de Décio, Maria das Dores,
vendia barro para os artesãos da Rua Imaculada. Foi dela, aliás,
que Narciso, pai de Luiza, comprou a primeira lata de barro para que ela e sua
irmã, Edith, aprendessem a modelar figuras.
6 Vale destacar que todos os figureiros de família são também figureiros tradicionais, embora nem todos os figureiros tradicionais sejam figureiros
de família.
Valéria Aquino é graduada em ciências
sociais (UFG), mestre em sociologia, com concentração em
antropologia, doutora em antropologia cultural (IFCS/UFRJ), e professora do Iart/Uerj.
Recebido em: 19/06/2012
Aceito em: 19/01/2013
AQUINO, Valéria. Arte
figurativa de Taubaté (SP): três percursos do tornar-se figureiro. Textos escolhidos de cultura e arte populares,
Rio de Janeiro, v.10, n.1, p. 41-62, mai. 2013.
Figura 1: Divino
‘X’ Cruz de Arlete Sampaio
Foto da autora
Figura 2: Décio
fazendo presépio
Foto da autora
Figura 3:
Décio modelando pavão
Foto da
autora
Figura 4: Elizabeth Machado
modelando pavões
Foto da autora
Figura 5:
Presépio de Elizabeth Machado
Foto da
autora