EDITORIAL

"Cresça e apareça", "É de pequenino que se torce o pepino", "Filho de peixe, peixinho é", "Pouco siso, muito riso", são alguns dos ditos populares ainda representativos da compreensão da infância como etapa cronológica do desenvolvimento humano. Legado da ciência moderna, especialmente a biologia e a psicologia, identificada com uma visão de mundo fundamentada nas categorias historicistas de gênese e desenvolvimento e, consequentemente, comprometida com o projeto de construção do homem burguês produtivo, essa concepção beneficiou a infância permitindo que ela fosse olhada em sua especificidade, mas, por outro lado, impôs que o foco sobre a infância se detivesse naquilo que lhe faltava. A partir de então, a trajetória da criança passou a ser pautada por normas médicas, pedagógicas e, no caso da criança das classes populares, jurídicas, que deveriam preenchê-la para que ficasse mais parecida com o modelo adulto ideal. Walter Benjamin, crítico das falsas aparências da modernidade e das ilusões do discurso científico, nos ajuda, entre outros autores, a repensar essa concepção de infância quando, opondo-se ao historicismo, propõe que a apreensão do tempo histórico seja constituida por uma outra temporalidade regida pela intensidade e não cronologicamente. Essa abordagem benjaminiana da historiografia permite romper com a idéia de infância como tempo a ser ultrapassado, permitindo que seja entendida como tempo originário, tempo do acontecimento, como Manoel de Barros se refere ao menino dizendo que "seus cantos eram cheios de nascentes".

Essas são as questões de fundo que este número da Revista Teias focaliza no dossiê "Infância, territórios e temporalidades", na seção Artigos, esperando que a leitura dos mesmos possa levar à compreensão de que conceber a infância sob uma temporalidade aion, diversa da cronológica, seria fundamental à invenção de territorialidades infantis propícias a que as crianças vivam e compartilhem suas culturas numa perspectiva alteritária.

Sara Moitinho, Cláudio Rezende Ribeiro & Renata Flores, Aristóteles Berino e Scheila Beatriz Sehnem de Menezes & Maria Teresa Ceron Trevisol convidam o leitor a pensar na necessidade de contribuir para a revisão das estratégias que subalternizam as crianças na cidade de um modo geral e, particularmente, na escola, em função da menoridade atribuída à infância, agravada por uma conjunção de fatores relacionados ao lugar social que elas ocupam, à presença de discriminação racial, à contradição entre o currículo escolar e suas experiências culturais.

No artigo "A criança negra no cotidiano escolar", Sara Moitinho apresenta estudo cujo principal objetivo foi compreender como crianças negras, alunas de uma escola da rede municipal de Niterói/RJ, que vivem em um contexto fortemente marcado pela exclusão social e racial, se relacionam, se vêem e são percebidas pelas demais crianças, por professores e outros adultos no contexto escolar. Baseando-se em estudos sobre multiculturalismo e interculturalismo, assim como em pesquisas realizadas sobre relações étnico-raciais na escola, a pesquisa se vale teórico-metodologicamente das narrativas das crianças para chamar atenção para a urgência da construção de uma educação que possa contribuir ativamente para o enfrentamento da desigualdade e da discriminação racial, tendo como meta a igualdade étnico-racial no cotidiano escolar.

Scheila Beatriz Sehnem de Menezes & Maria Teresa Ceron Trevisol também em pesquisa realizada em escola da rede pública, no oeste catarinense, mostram como alunos das séries iniciais do ensino fundamental, e seus professores, compreendem as dificuldades de aprendizagem dos primeiros, expressas através de desenhos e de narrativas escritas. A análise do material permitiu verificar contradições entre as concepções de alunos e professores, indicativas de que as referidas dificuldades podem estar sendo geradas pelo contexto escolar.

Em "(In)definindo o espaço da infância", Cláudio Rezende Ribeiro e Renata L.B. Flores colocam em xeque a perspectiva científica moderna que, valendo-se da "descoberta" das especificidades da infância, separou espacialmente mundo infantil e mundo adulto. Desconfiando dessa perspectiva, que confere superioridade às práticas sociais urbanas dos adultos e relega as das crianças a um plano de menoridade, os autores aproximam os campos disciplinares da educação e do urbanismo, desenvolvendo uma importante reflexão, com base em autores como Bakhtin, Todorov e Levebvre, sobre a necessidade da construção de uma outra perspectiva de espacialização que, promovendo o encontro das diferenças entre crianças e adultos, favoreça a revisão de abordagens "discriminatórias" que têm gerado invisibilidade social para a criança.

Aristóteles Berino, no artigo "No meio da rua, da infância ao mundo: contato, redes e trocas", pensa os lugares sociais diferenciados que os processos de mundialização e globalização vêm reservando às crianças de estratos sócio-econômicos diversos. Amparado pelas teorias de Marx e de Milton Santos, o autor analisa o filme No meio da rua que conta a história da amizade entre Leonardo e Kiko, personagens que incorporam características de vida urbana típicas de crianças da classe média alta e das classes populares. Examinando as redes de experiências de ambos, Berino observa que a amizade dos meninos subverte a fixidez dos lugares determinados pela energia interessada na preservação da sociedade capitalista, promovendo a instituição de lugares abertos que produzem desarranjos nas práticas de localização identitária pretendidas pelo poder.

No artigo "Antropologia da Criança: uma revisão da literatura de um campo em construção", Márcia Buss-Simão apresenta revisão de literatura sobre a presença e a ausência das crianças nos estudos antropológicos. Mostra que, historicamente, a Antropologia incluiu a criança em poucos trabalhos e, raramente, como categoria central. Traz as contribuições e os limites das pesquisas fundamentadas na antropologia clássica, apontando que se por um lado conferiram visibilidade às experiências de crianças de culturas diversas da ocidental, por outro assumem a visão da criança como ser em desenvolvimento, incompleto em relação ao adulto. A autora mostra que, a partir da década de sessenta, as novas formulações sobre cultura e sociedade, incidindo sobre a concepção de indivíduo que passa a ser entendido como ator social, possibilitaram à antropologia estudar também a criança numa perspectiva inovadora. Inserem-se nessa tradição os estudos sobre a cognição, o raciocínio e a aquisição da linguagem, bem como os estudos da antopologia indígena e da corporalidade.

Flávia Cristina Silveira Lemos é autora do artigo "O UNICEF e as práticas de governamentalidade de crianças e adolescentes no espaço/tempo". Com o aporte de Michel Foucault, a autora realiza uma análise histórico-genealógica dos documentos dessa agência, publicados entre 1990 e 2003, que permitiu a constatação da relevância que o espaço e o tempo assumiram no governo do UNICEF sobre os corpos de crianças e adolescentes brasileiros, o que converteu sua agenda política em práticas disciplinares e biopolíticas em nome da segurança, da defesa da vida e da disciplina.

O último artigo do dossiê, de Rita Maria Ribes Pereira, tem por título "Uma história cultural dos brinquedos: apontamentos sobre infância, cultura e educação". Inspirando-se teoricamente na original atenção que Walter Benjamin, em sua obra, dedica às crianças e aos brinquedos, a autora nos convida, como adultos que somos, a olhar cuidadosamente a relação das crianças com os brinquedos industrializados, evitando a armadilha de entendê-los como melhores ou piores do que os brinquedos produzidos artesanalmente. Implica o leitor nessa tarefa, inclusive pela apresentação de imagens de brinquedos que circulam ou circularam no Brasil entre os anos 30 do século XX e a primeira década do século XXI, colecionadas por ela desde 1995, que colaboram para que ele se sinta visado pela história cultural dos brinquedos, mesmo diante da advertência da autora de que o foco de análise são os objetos e não os usos que as crianças fazem deles. Não cabendo aqui dar conta das instigantes reflexões presentes no artigo, cabe ressaltar a importância do último ítem relativamente ao objetivo do dossiê. Nele, valendo-se de Benjamin, a autora faz a crítica ao conceito de "brinquedo pedagógico", cuja lógica instrumental se assemelha à lógica da visão de mundo que acredita na superioridade da experiência do adulto sobre a da criança. Subjacente a esse conceito está a idéia de uma "pedagogia burguesa", cujo objetivo principal é a formação do homem burguês.

Se, sob essa pedagogia que perdura na casa, na rua, na escola, a infância é vista como tempo de incompletude e as crianças são subalternizadas, fica aqui o desafio que a leitura destes sete textos que compõem o dossiê "Infância, territórios e temporalidades" propõe: "escovar a história a contrapelo", buscando fundamento para a construção de outras pedagogias que, na casa, na rua, na escola, propiciem que a infância seja concebida como tempo de plenitude, possibilitando que as crianças transitem por esses espaços como atores sociais.

Rio de Janeiro, janeiro de 2010.
Maria Luiza Oswald