Farida é uma das personagens do livro "Terra sonâmbula", de Mia Couto. Como uma citação-homenagem a outra personagem feminina célebre – Sherazade – ela é uma jovem cuja condição para continuar vivendo é contar sua história. No romance, Farida habita um barco.
A idéia de uma embarcação simbolizando uma certa condição de "desterritorialidade" não é nova. Outros autores já a utilizaram, tanto na teoria social, quanto na literatura ou até mesmo no cinema. Entretanto, aquilo que vai nos chamar mais atenção na personagem de Mia Couto, e que nos provoca a também a pensar em relação a este número 17 (vol. 9) da Revista Teias, no ano de 2008, são duas questões.
A primeira é essa urgência da personagem em narrar, em contar sua história; e a segunda o fato de que a imagem do barco evoca – além de uma certa desconstrução da idéia de território – a idéia de uma dinâmica bastante particular. Uma embarcação, pela sua própria condição, é um espaço-tempo de mobilidade, ondulações, não-fixidez. Não existe um barco que esteja imóvel. Mesmo ancorado e em tempos de calmaria, um barco está em movimento, seu destino é este.
Estão reunidos aqui neste número trabalhos autores que também "precisam"- e fizeram disso seu destino – narrar e que assim nos ensinam, nos orientam e nos provocam a pensar sobre a temática dessa edição – Afrodescendentes, redes educativas e identidades. São pesquisadoras e pesquisadores que têm como foco em seus estudos questões relativas às populações negras brasileiras e educação, a discussão sobre a cultura, sobre as práticas e os processos identitários.
O conjunto de textos reunidos aqui também traz gente de "erritórios" – disciplinares, ou geográficos e/ou culturais – distintos. É uma pluralidade assumida pelos editores, que para nós é não só muito bem-vinda como também desejada.
Passamos por diferentes lugares, entendendo sempre que os estudos sobre redes educativas, identidades, particularmente no que diz respeito às populações afro-descendentes, devem ter o cuidado de promover e respeitar a pluralidade de pensamento e contribuir para combater os processos de exclusão promovidos pelas relações raciais no Brasil.
Na seção Em Pauta trazemos dois textos, contendo discussões que são caras ao eixo temático do número. O primeiro artigo, de Ivan Costa Lima, da Universidade Federal do Ceará, intitulado Trajetória, história e identidade negra: elementos de constituição da pedagógia interétnica em Salvador tem, nas palavras do próprio autor, "a preocupação de identificar o alcance do debate travado durante a década de 70 e 80 do século XX, referente à organização de uma proposta pedagógica nos espaços educativos, a partir da emergência de novas formas coletivas da sociedade civil, em especial do Movimento Negro". Desta forma, descreve ao longo do texto, o processo de constituição de uma "Pedagogia Interétnica", desenvolvida pelo Núcleo Cultural Afro-Brasileiro em Salvador, na Bahia.
No segundo texto, Rafael dos Santos e Maria Alice Rezende fazem um estudo sobre as associações entre as relações raciais no Brasil e a feminização da pobreza, trazendo uma análise dos processos históricos e das formações discursivas no campo científico que vão engendrar tais aproximações.
A seção Artigos, por sua vez, nos brinda com quatro trabalhos de pesquisadores preocupados com questões relativas às práticas culturais, aos processos identitários de sujeitos afro-brasileiros e às políticas de ação afirmativa. Leila Drupet, no primeiro texto, Religião afro-brasileira, desenvolvimento humano e educação: pilares da construção subjetiva, apresenta resultados obtidos nos estudos desenvolvidos no Laboratório de Estudos Afro-brasileiro (LEAFRO), situado no Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/IM-UFRRJ, em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense. Ali ela nos ensina que não é possível pensar em identidades e subjetividades sem trazer as práticas religiosas para o debate. A autora defende que "é fundamental destacar a contribuição efetiva da cultura afro-brasileira para a educação, compreendendo como ela nos é constitutiva" e enfatiza a Umbanda no cenário religioso afro-brasileiro com um "campo profícuo de estudos". A partir dessa idéia constrói um texto muito interessante sobre a devoção aos santos gêmeos São Cosme e São Damião.
Em Reduções, confusões e más intenções: avançando na compreensão das políticas de ação afirmativa no ensino superior brasileiro, Sandra Regina Sales e Gustavo Enrique Fischman apresentam diferentes perspectivas em relação às chamadas Políticas de Ação Afirmativa, o que no ponto-de-vista dos autores permite uma "melhor mais completa compreensão" sobre essas políticas, no que tange particularmente à questão do acesso ao ensino superior no Brasil. Os pesquisadores identificam ainda como as divergentes opiniões em relação a essas políticas tendem a refletir as contradições e conflitos da sociedade brasileira sobre sua identidade racial.
É sobre a experiência de formação, em um curso de especialização lato-sensu ministrado por professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da Universidade Federal do Ceará, Universidade Federal da Bahia que escrevem Luiz Fernandes de Oliveira e Mônica Regina Ferreira Lins. Em Memórias e imagens desestabilizadoras para a (re) educação das relações étnico-raciais a dupla de autores apresenta o modo como foi pensado o curso, cujo objetivo principal era inserir, no contexto das discussões sobre relações raciais e educação, as reflexões necessárias sobre a aplicação da Lei 10.639/03 na Rede Municipal de Educação de Macaé.
Sonia Regina Santos, da Universidade Católica de Petrópolis, demonstra sua preocupação com a implementação da Lei 10639/03 e divide conosco um estudo seu sobre a obra do escritor angolano Agualusa. No artigo A reivenção da história, da memória e da identidade em "O vendedor de passados" de José Eduardo Agualusa a autora discute a memória, os processos de atualização identitária – questões que em seu ponto-de-vista irmanam Brasil e Angola, somadas à língua e a um certo destino comum.
Duas Entrevistas compõem este número. A primeira com o jornalista e escritor argelino Slimane Zeghidour, da TV5, que tem como título Uma herança comum: efeitos da colonização na África. Nesta entrevista, concedida a Renata Bastos Santos, ele fala da relação franco-argelina e o passado colonial, tema sobre o qual já publicou vários artigos.
Na segunda entrevista, Questões étnico-raciais no Brasil – uma visão histórica, o Professor Ahyas Siss, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e coordenador do Gt 21 – Afro-Brasileiros e Educação – da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPED – responde à Professora Nilda Alves sobre como as questões relativas aos afro-brasileiros têm sido tratadas no campo da Educação. Seu depoimento apresenta as formas pelas quais os processos deflagrados nos movimentos sociais organizados foram transformando-se em políticas públicas.
Em Elos aproveitamos o barco para atravessar o Atlântico e conhecer o que Clara Pereira Coutinho, professora Departamento de Currículo e Tecnologia Educativa do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho – e João Batista Bottentuit Junior, doutorando em Educação na mesma universidade – têm a nos contar sobre "Rádio e Tv Na Web: vantagens pedagógicas e dinâmicas na utilização em contexto educativo".
Em Ensaios, mais movimentos e mais histórias. Itapuã, portal da nossa ancestralidade, de Narcimária Correia do Patrocínio Luz, professora titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – é um poema dedicado "aos povos inaugurais de Itapuã e seus contínuos civilizatórios nas Américas", segundo palavras da própria autora – uma homenagem aos Tupinambás e um elogio à ancestralidade.
Na mesma seção, Luciana Franco de Oliveira Neiva constrói uma reflexão sobre as lâminas das bandejas de uma grande rede de fast-food e o currículo em Lâminas disciplinares: a educação através do consumo.
Na seção Resenha, três são as obras que estão sendo apresentadas: Devoção Negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial, de Anderson José Machado Oliveira, resenhada por Carlos Roberto de Carvalho; Media education – Alfabetizzazione, apprendimento e cultura contemporanea, de David Gardolo Buckingham, apresentada por Ilana Eleá Santiago Werneck; e por último, Rita de Cássia Souza Leal escreveu sobre o livro de José Luiz Braga A sociedade enfrenta sua mídia: dispositivos sociais de crítica midiática.
É assim o que vemos aqui como um pressuposto: que este número, que segue agora pelas chamadas infovias, siga como no curso de um rio. Mas não um rio que separa aquilo que está às suas margens. Este, antes, vem a reunir; vem a unir-nos aos desejos e às idéias de quem divide esta edição conosco. Como diz o mesmo Mia Couto: "Nenhum rio separa, mas antes costura o destino dos viventes". O nosso também é assim.
Mailsa Carla Passos