ARTIGOS

 

O delírio como método: a poética desmedida das singularidades

 

The delirium as method: the immeasurable poetic of singularities

 

 

Tania Mara Galli Fonseca I,*; Luis Artur Costa II,**; Vilene Moehlecke II,***; José Mário Neves II,****

I Professora dos Programas de Pós-graduaçao em Psicologia Social e Institucional e de Informática Educativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil
II Doutorando no Programa de Pós-Graduaçao em Informática na Educaçao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil

Endereço para correspondencia

 

 


RESUMO

Esse artigo busca compor uma problematizaçao do método de produçao de conhecimento e intervençao em Psicologia, com intuito de construir formas de apreensao inventivas. Pensamos um modo cartográfico que se dobra entre o sensível e o inteligível, ao desdobrar sentidos e operar no plano das multiplicidades. Assim, podemos mapear o plano das singularidades, que flui em uma superfície de Acontecimentos cujo efeito pode produzir o contágio da lógica dos paradoxos e suas complexidades intensivas. Aqui, a cartografia pretende traçar as linhas de tais contaminaçoes. Desse modo, tentamos pensar o método em sua poésis, abrimos mao de um método previsível e feito por procedimentos universalizantes, para nos tornarmos efeitos de superfície e experimentarmos as complexidades da linguagem e de suas proliferaçoes.  Finalmente, lembramos a potencia do simulacro, que assegura a concepçao do mundo a partir da estética: a este mundo cabe investigar e intervir com operadores poéticos, questionando e criando retóricas existenciais, estilísticas do ser.

Palavras-Chave: Cartografia, Singularidades, Poética, Linguagem, Simulacro.


ABSTRACT

This article intends to compose a questioning of the knowledge´s production method and practice in Psychology, in order to construct ways of inventive understanding. For this, we think about a cartographic mode that folds between the sensitive and intelligible, when it spread senses and operate in the way of multiplicities. So we can map the plane of singularities, which flows in an area of Events which can produce the contagion effect of the logic of the paradoxes and complexities intensive. At this point, the mapping aims to trace the lines of such contamination. Thus, we think about the method in his poetic, and we open hand a predictable method done by universalizing procedures. We intend to become the purpose of surface and to experience the complexities of language and its proliferations. Finally, we affirm the power of simulacre, which ensures the conception of world through aesthetics: we may investigate this world and speak with operator poetic, in order to question and to create rhetorical style of being.  

Keywords: Cartography, Singularities, Poetic, Language, Simulacre.


 

 

1. Abrindo cartografias

A problematizaçao contemporânea dos princípios metodológicos estabelecidos pela filosofia iluminista e desenvolvidos no decorrer da modernidade é uma das operaçoes que permitiu a construçao de um novo campo epistemico. Ultrapassar a simplificaçao formalista, a reduçao, voltar o método para outros sentidos, além da previsao e controle, tornaram-se partes dos objetivos a serem alcançados pelos pesquisadores das ciencias humanas. O desafio, agora, nao seria mais a busca de uma natureza racional, mas a impregnaçao sensível de suas lógicas embrulhadas, bem como a conexao dos atributos relançados ao hibridismo da imanencia. Para tanto, somos convocados a construir novas tramas e a mapear as crises que geram uma estranha permanencia daquilo que passa e sofre alteraçoes diversas, a tecermos uma densa geografia dos afetos, como uma cartografia das dobras entre o sensível e o inteligível, plano múltiplo que reconecta a heterogeneidade das forças e formas.

Assim, no método cartográfico, construímos formas de compreensao delirantes que ultrapassam as divisoes entre o entendimento (razao), o sentimento (afetos) e a sensaçao (empírico). Ao construirmos formas de ser na pesquisa, relativas a construçao de nossa problemática, erigimos o que aqui denominaremos tecnologias do sensível: agenciamentos maquínicos que constituem ritornelos do pesquisar (FONSECA; COSTA; KIRST, 2008). Trata-se de pequenas máquinas de produçao de mundos que se constroem no campo do impessoal. Ou seja, pensamos uma produçao de modos pautada pela impureza do sensível e pelo desmedido da imaginaçao através de uma poética do desejo.

 

2. Um método de pensamento e abertura para psicólogos

Na tentativa de romper com o paradigma da simplicidade, que volta a atençao para o homogeneo, ou para a clareza das coisas, direcionamos o olhar para os interstícios, isto é, para um meio híbrido que promove uma nova discussao e um olhar sensível sobre a vida. Assim, ao invés de operar em uma lógica de síntese e análise, que divide o objeto para dele extrair suas idéias certeiras, apostamos nas complexas ligaçoes que investem sujeito e objeto e transformam a ambos, uma vez que sao traçadas outras conexoes entre afetos e imagens. A partir desse modo de construçao do olhar, a pesquisa também se volta para o intempestivo jogo dos sentidos e acontecimentos misturados, na tentativa de compor novas reflexoes e mergulhos sobre os mundos que nos afetam.    

Desse modo, a Psicologia nao pode se fechar a essas vibraçoes, pois, nesse caso, ela correria o risco de se tornar mera reproduçao de verdades já reveladas. Perguntamos, pois, como abrirmos o campo psi para novas emblemáticas e perfuraçoes de seus fazeres e dizeres? Como apostar em uma Psicologia que se torna sensível aos acontecimentos e aos encontros com um plano caótico e vivo, produtor de crises e novos enredos para o sujeito e a vida?

Talvez, uma pista seria a própria busca de intercessores em nossos modos de pensar e intervir na construçao de idéias e práticas mais conectadas com as transformaçoes que nos envolvem. Como afirma Deleuze (1992, p. 156): "O essencial sao os intercessores. A criaçao de intercessores. Sem eles nao há obra". Portanto, os intercessores podem ser produzidos entre a ciencia, a arte e a filosofia, pois se tratam de séries misturadas, ou de uma série de vários termos, tais quais potencias do falso que provocam rupturas. Podemos, entao, fabricar os próprios intercessores, como um corte que nos faz pensar, sejam eles "fictícios ou reais, animados ou inanimados".

Assim, buscamos intercessores entre a Psicologia e a Filosofia, a fim de provocar fissuras nos modos de pensar psi e abrirmos seu campo para novas sensibilidades e encontros. Quando operamos em suas linhas fronteiriças, estamos próximos de uma aventura inventiva, pois somos tomados por uma espécie de curiosidade e zelo para aquilo que altera as formas a priori.

Ora, se entendemos que os movimentos da subjetividade sao nômades e transitórios, em suas vibraçoes vamos pousar a nossa atençao, para que, desse encontro singular, seja possível a construçao de uma nova sistemática de sentido. Em meio a complexidade do pensar, abrimos o sensível e o inteligível ao corpo e as reconfiguraçoes singulares do ser, aos intercessores criados, para estarmos mais atentos aos movimentos do desejo que produz sujeitos e os transformam em novos modos de si.  

Desse modo, o método de produçao de conhecimento da Cartografia, que se apóia em bases conceituais da Filosofia da Diferença, pode nos auxiliar nessa aventura epistemológica, ao criar redes entre conceitos e acontecimentos, bem como experimentar um plano de alteridade que liga pensamento e afecçao. Nao se trata, pois, de um protocolo de açoes pré-definidas, mas de um mergulho na experiencia, que lança o pesquisador a novas tramas e o convida a transitar em um campo aberto e fugaz, que faz nascer as estratégias de açao e de pensar, ampliando os leques de intervençao do conhecer.

Entendemos, pois, que a Psicologia pode beber de tais fontes, visto que o desafio da produçao de conhecimento sobre a subjetivaçao nos impele a romper com o simples ou o complicado, para buscarmos um pensamento em sua complexidade e abertura, que nos impulsione a pensar sobre a produçao de diferença presente na subjetividade e no contemporâneo. Mexemos, assim, na concepçao de sujeito, como se fosse algo já definido, para acompanharmos os processos sutis e emblemáticos de uma estilística do ser que se constrói a partir de movimentos nômades e ligados a uma contextualizaçao específica e transitória.

A partir dessas questoes, podemos operar com os conceitos da Filosofia da Diferença, a fim de interferir nos modos de produçao de conhecimento da Psicologia, já que o complexo nos impele a novas construçoes de sentido. Além disso, ao ampliarmos o olhar sobre os movimentos da subjetivaçao, também nos lançamos ao desafio de alterar as nossas formas de intervir, uma vez que o tecnicismo em Psicologia nao dá conta das novas redes açao e existencia que cercam os movimentos contemporâneos.

No momento em que lançamos uma práxis psi nesse plano de problematizaçao e questionamento, temos a chance de compor uma espécie de método delirante, que nao busca as verdades prontas, mas se enreda nas perguntas que acionam um emaranhado de operadores conceituais e nos instrumentalizam para novas lógicas de açao. Nesse sentido, nao buscamos um caminho único, mas podemos nos tornar mais sensíveis a criaçao de estratégias e açoes, para ir ao encontro das novas demandas da subjetivaçao e de uma escuta ampliada. 

Propomos, pois, a construçao de tais elos, com o intuito de relançarmos o método de pesquisa e de intervençao ao encontro com novos modos de pensar e olhar o mundo, já que os psicólogos também buscam uma transformaçao em seus estilos de trabalhar as problemáticas do ser. Mais do que aplicaçao de um saber, apostamos na desenvoltura do olhar e das práticas, quando operamos com conceitos envoltos em complexidade e criaçao. Somos tomados por esses desafios, para investir na produçao de diferença da própria Psicologia, além de cartografar as transformaçoes do sujeito e da composiçao de novas possibilidades para a construçao de um intervir mais aberto aos movimentos do desejo. Abrimos, pois, o corpo da pesquisa e da práxis, a fim de mergulhar em novas problemáticas e operar redes de afeto entre conceitos e modos de açao.

 

3. Operando a escala da carta: a cosmogenese no plano das singularidades

A cartografia, que é definida por Kastrup (2007) como "um método formulado por G. Deleuze e F. Guattari (1995) que visa acompanhar um processo, e nao representar um objeto" caracteriza-se como um método inusitado nao tanto pelas "metodologias e procedimentos" que propoe - os quais já apresentam um surpreendente caráter inovador no campo psi - mas sim pela "escala" de observaçao, análise e operaçao proposta. Na definiçao de uma nova "escala" de operaçao do trabalho da pesquisa, encontramos a grande invençao metodológica de Deleuze e Guattari e é desta definiçao que decorrem as principais determinaçoes do método.

A cartografia define-se por uma "escala" paradoxal de operaçao - a escala das singularidades: ao invés de dimensionar-se a partir das generalidades populacionais e de espécie ou a partir do caso, do sujeito, e do indivíduo 1, a cartografia opera um plano paradoxal que se coloca para além destas medidas opostas, molares e homogeneas. Nesse sentido, como observa Deleuze (2006a, p.105-106), "Nao podemos aceitar a alternativa que compromete inteiramente ao mesmo tempo a psicologia, a cosmologia e a teologia: ou singularidades já tomadas em indivíduos e pessoas ou o abismo indiferenciado".

As singularidades constituem o plano do "acontecimento". Nesse plano, nao temos nem o caos do "abismo indiferenciado" onde seria impossível pensar qualquer determinaçao, nem individualidades já formadas; mas singularidades anônimas e nômades, impessoais, pré-individuais. Mesmo sem apresentar o grau de determinaçao do ser individuado, as singularidades nao se caracterizam pela indeterminaçao e indiferenciaçao. Nesse sentido, observa Schöpke (2004, p.38):

Para Deleuze, o campo das singularidades é algo que se interpoe entre o "fundo negro" e o mundo físico, entre o caos e os corpos. Lugar da superfície dos acontecimentos, lugar do verdadeiro transcendental da natureza.

Interposto entre o caos e o mundo empírico, este é o plano das dimensoes intensivas das multiplicidades - das afetaçoes moleculares, dos agenciamentos, dos contágios, das ressonâncias -, que a cartografia busca acessar, mapear e agitar.

Deleuze (1988, p. 438) define as singularidades como "o ponto de partida de uma série que se prolonga sobre todos os pontos ordinários do sistema até a vizinhança de uma outra singularidade; esta engendra uma outra série que ora converge, ora diverge em relaçao a primeira"- ponto de partida que se caracteriza como "ponto-dobra", "ponto de inflexao", que, segundo Deleuze (1991, p. 33),

[...] é o puro Acontecimento da linha e do ponto, o Virtual, a idealidade por excelencia. Efetuar-se-á segundo eixos de coordenadas, mas, por enquanto, nao está no mundo: ela é o próprio Mundo, ou melhor, seu começo, dizia Klee, "lugar da cosmogenese", "ponto nao-dimensional", ponto "entre as dimensoes".

As singularidades, estes "signos ambíguos", sao os operadores do contágio, na medida em que qualquer singularidade pode afetar e ser afetada por qualquer outra, já que nao estao submetidas aos limites e requisitos impostos pelos processos de convergencia das séries, que governa o plano das individualidades - e que implica uma dialética da negatividade e da exclusao do contraditório - produzindo uma condiçao de fechamento e definiçao de uma identidade. Por seu lado, as singularidades operam o contágio segundo uma lógica do paradoxo, cuja potencia de afetar e de ser afetado independe da semelhança e da convergencia, pois elas entram em ressonância e se comunicam por suas diferenças e distâncias.

Os bandos, humanos e animais, apontam Deleuze e Guattari (1997, p.23), "proliferam com os contágios, as epidemias, os campos de batalha e as catástrofes". A cartografia busca traçar as linhas dessas contaminaçoes, fazer um mapa desses campos de batalha, narrar as dramáticas dessas núpcias, talvez seja melhor dizer, desses devires que estao aquém e além da lógica do terceiro excluído. Contaminaçoes, batalhas e núpcias que acontecem ponto-a-ponto, mas que no seu acontecer colocam em ressonância, fazem vibrar uma nova música que reverbera em toda a série.

Nao se trata de uma geografia horizontal abrangendo grandes territórios, ou vertical aprofundando-se em intimidades locais. Trata-se de uma espacializaçao transversal, que atravessa de viés e opera um desvio das leituras instituídas no campo psi. Tal transformaçao do espaço busca acessar algo que é único sem pertencer a um único sujeito ou tipo, uma linha que atravessa irregularmente, de modo intermitente, um território que é de todos e de ninguém. Isto é, aquilo de mais geral e específico a um só tempo, sem nenhum destes ser: o impessoal.

Nessa nova geografia, as singularidades constituem os potenciais que determinam a metaestabilidade dos sistemas, conforme destaca Deleuze (2006a, p.106):

As singularidades-acontecimentos correspondem a séries heterogeneas que se organizam em um sistema nem estável nem instável, mas "metaestável", provido de uma energia potencial em que se distribuem as diferenças entre as séries.

Assim, tomar as singularidades como operadores da cartografia implica um ajuste "perceptivo-conceitual", que descole o "olhar-escuta" do plano das molaridades e consiga tocar o campo dos potenciais e tensoes impessoais e pré-individuais, o plano do sentiendum, que é o que há para sentir, sendo a fronteira insensível - plano que se encontra no ponto limite onde se processa o retorno dentro-fora, no qual o insensível torna-se sensível e vice-versa.

Desse modo, é no movimento em torno desse ponto limite, na sua permanente ultrapassagem, que se produz o infinito e que a dobradura do real se instaura plena de novidade. O real, entao, expande-se em novas realidades-mundos, cujas direçoes sao disparadas pelo pulsar de infinitas singularidades. Na cinesia dessa dobradura, no fluxo dessa ultrapassagem, a cartografia busca sintonizar, fazer-se sensível, deixar-se afetar.

Dessa maneira, a cartografia "substitui" a lógica das substâncias e dos atributos - tao conforme ao pensamento da representaçao - por uma lógica do acontecimento - que se instaura no limite do apreensível, como encontro de linhas e de fluxos de pontos dispersos em velocidade infinita. Decorrente desta "substituiçao" lógica, a cartografia dirige-se para as singularidades impessoais e pré-individuais, no lugar das conceitualidades e individualidades, e opera um deslocamento da "atençao" 2 do plano do atual para o do virtual. Neste sentido, Villani (2000, p.46) define como a "anomalia metafísica da filosofia deleuziana", o interesse que "vai objetivamente para as multiplicidades virtuais e intensas, para as singularidades, e nunca para as conceitualidades, nem para as individualidades".

A cartografia evidencia-se, assim, como um método que nao está voltado a apreender o que está dado, o Um, o Mesmo; mas sim, o que insiste, o que está as portas do presente forçando-o e pedindo passagem. Um método que nao busca tal apreensao como um ato de dominaçao - com a pretensao de recortar um segmento do mundo, congelado na definiçao de um "objeto científico" -, mas como um ato de "captaçao", como uma apreensao que se dá como luta e como núpcias, como um encontro no qual se trava uma batalha e/ou um enlace amoroso, um devir a-paralelo no qual cartógrafo e mundo disparam-se mutuamente para novas criaçoes e movimentos. Assim, o cartógrafo experimenta-se a si mesmo nos encontros que provoca e nos que lhe sao impostos pelo campo. Nao se trata, porém, de encontros de sujeitos e de objetos, e sim da experimentaçao de acoplamentos fractais de singularidades, que se define como uma experimentaçao permanente de mobilidade de fronteiras.

Nos marcos dos encontros, nao cabe falar de neutralidade, pois nao apenas a direçao da pesquisa está plenamente modulada pelo pesquisador cartógrafo, como também o próprio desenvolvimento do campo e suas efetuaçoes estao profundamente implicados pela pesquisa. O mero ato de atribuir estatuto de problema de pesquisa a um tema ou problema pode significar uma importante intervençao num campo determinado campo. Temos, portanto, também instaurado um perspectivismo radical, para o qual o pesquisador nao se coloca a tarefa de representar um suposto campo objetivo, como mais um ponto de vista sobre um campo que se supoe sempre o mesmo; pelo contrário, trata-se de um campo no qual a pesquisa infiltra-se produzindo divergencia e bifurcaçao, "como se uma paisagem absolutamente distinta correspondesse a cada ponto de vista", como observa Deleuze (2006a, p.266) a respeito da obra de arte moderna.

Se nao há mais uma verdade essencial, determinada pelo grau de semelhança com o modelo para definir o ser e, portanto, passível de ser descoberta ou revelada, conforme sentenciou Deleuze 3, resta-nos pensar o ser como expressividade existencial, como uma estilística, um "modo de ser". Uma nova forma de definir um ser que nao pode mais ser colocado fora do devir, um ser que nao existe mais apenas em si, que nao só está no tempo do mundo, mas também no mundo do tempo, um ser que é mundo, que é engendrado a cada encontro mundano, inclusive no encontro com a pesquisa cartográfica. Aqui, a cartografia beira a ontologia, faz-se ontogenese. Uma pesquisa assim concebida, sem a pretensao de "descobrir" ou de "revelar" uma realidade ou um objeto dado, torna-se um poderoso, mas despretensioso, método de produçao/invençao de conhecimento. E, na medida em que se faz ciente da infinidade pulsante no plano de imanencia, transforma-se em  atrator de virtualidades que pedem passagem.

 

4. Operando aberturas sensíveis: poética-poiese

Descartes (1999) vence o solipsismo de sua dúvida com o chao duro da razao sem corpo, pura abstraçao auto-referente a pairar em um vazio que será preenchido por suas eternas idéias geométricas e matemáticas perfeitas. Nesta aventura de vencer as ilusoes de sarcásticos demônios zombeteiros, abandona a espada flamejante do arcanjo e a troca por uma lâmina de frias luzes com o fio mais fino que o da navalha de Ockan e passa a partir as coisas e colocá-las em seus devidos lugares. Para além do empirismo caótico e intuitivo dos aristotélicos e sua vassoura de cerdas desaprumadas Bacon (1999), agora seria possível dar "chumbo a imaginaçao", pregando-a a promessa do Método Moderno. Para tanto, era necessário nao apenas delimitar o campo empírico, dado e estrito, como também era preciso erigir um método totalmente lúcido, pura razao pura de formas perfeitas e simétricas tal qual os paralelogramas da inteligencia divina agostiniana. E como a imagem do Deus de Santo Agostinho fomos feitos: pura intelecçao, entendimento, apenas consciencia sem corpo seríamos em essencia. Definida nossa racional natureza racional, basta entao definir nossos demais atributos e anulá-los de algum modo: fluídos animais, afetos e imaginaçao deveriam ser iluminados pelo inteligível: "E nao se deve inventar ou imaginar o que a natureza faz ou produz, mas descobri-lo" (BACON, 1999, p.109). Assim, mirando para o empírico diante de nós, nossa alma pode ativamente extrair o inteligível campo próprio ao conhecimento.

Enquanto a sensaçao é o efeito da pressao dos objetos exteriores sobre os órgaos dos sentidos, os quais por sua vez levam suas impressoes até o cérebro, a imaginaçao é apenas uma capacidade de fazer permanecer estas aparencias dos objetos em nossa mente, sendo a nomenclatura latina para o que os gregos chamavam fantasia (HOBBES, 1999). Trata-se, portanto, do delírio do entendimento, posto que "[...] o objeto é uma coisa, e a imagem ou ilusao outra" (HOBBES, 1999, p. 32). É apenas a razao que permite a sanidade dos sentidos, fazendo-os ir além das aparencias até as essencias gerais e eternas.

Por outro lado, as certezas buscadas também podem limitar a complexidade da vida, uma vez que elas nos impoem certa sobriedade para com o mundo. E, diante de suas artimanhas, aceitamos a sua solidez. Há, porém, um pulsar que escapa aos códigos e normas prescritas, já que relança os sentidos a novas produçoes e descobertas. Um encontro entre séries divergentes invade a nossa suposta orientaçao, ao tirarmos o ser do amornamento ilusório de que o mundo nos pertence, ou de que a distinçao entre o pensar e o sentir seria necessária. Nesse ponto, o sentido, embriagado de sua atualidade, encharca-se com novas tramas e cores, e se joga no embate múltiplo entre afeto, razao e fragmento inventado. Com isso, abrimos mao de um método previsível e feito por procedimentos universalizantes, para nos tornarmos efeitos de superfície e experimentarmos as complexidades da linguagem e de suas proliferaçoes.

Para Deleuze (2006a, p.10), a antiga profundidade se desdobrou na superfície, e o "devir ilimitado se desenvolve agora inteiramente nesta largura revirada". Nao importa, pois, o que vem antes, ou o que gera o ser, mas a sua meta-estabilidade, o desequilíbrio transformado em reviravolta de simulacros. Reviramos, entao, as causas ou a previsibilidade das coisas, para nos recobrirmos com novos agenciamentos, tramas inventadas entre elementos múltiplos que se desdobram e invadem o saber e o nao saber, numa narrativa feita de mistérios e aberturas ao intempestivo movimento da vida, tornada maquinaçao e aventura. 

Nesse movimento inusitado, compomos brechas, entre o saber e o non-sense, tal qual uma trama inventada que precisa de uma nova configuraçao. E, mais do que buscar as respostas, deixamos que as perguntas se contaminem com o problemático entorno daquilo que nao se sabe, daquilo que ainda nao tem existencia, mas que insiste, persiste, no jogo duplo dos sentidos inventados. A previsibilidade e o procedimento perdem a importância, já que o método se enlaça a trama dos sentidos misturados, naquilo que o porvir define a cada encontro em contaminaçao com o outro.

Desse modo, ao pensarmos no inteligível, que era concebido enquanto puramente racional e abstrato, podemos agora considerar sua constituiçao híbrida e paradoxal, que o torna também sensível: a abstraçao age no mundo e sua açao nao é apenas concreta, como também está para além do racional, envolvendo os afetos e as afecçoes do corpo. Do mesmo modo, o que chamamos de sensível, e que era considerado a pura sensaçao, concretude variável no tempo, passa a ser também inteligível, a pensar e a problematizar junto ao corpo que também é mente, mentindo mundos verdadeiros vários, construídos por estas forças para além da divisao entre entendimento e sensaçao, epistemologia e ontologia.

Em meio a um plano composto de elementos heterogeneos, o pensar se contamina com o sentir, ambos tornam-se cúmplices de um estranhamento repentino, que os convocam a uma abertura e a uma nova imbricaçao. Nesse devaneio inventado, o corpo encontra o incorpóreo, como se desejasse a sua própria abstraçao, levada a mais alta potencia, roubada de seu antigo vigor, transformada em vertigem sutil. O pensar se enreda com o Fora, nesse plano Impessoal e múltiplo, que carrega, em si, um repertório de sentidos misturados, no tempo de Aion, dos Acontecimentos que provocam tensao e ruptura.

Assim, nao se trata da especulaçao de um mundo interno que sobe a superfície, tampouco buscamos o descobrimento de uma verdade em essencia. Ao cartografar, tentamos produzir os deslizes do eu, bem como o desmanche daquilo que já fazia sentido, para que, dessa falha, seja possível convocar a perfuraçao de mundos e o seu próprio estremecimento. Nesse aspecto, cartografamos as desmesuras da paisagem e escrevemos aquilo que transborda o sentir e o pensar, tal qual um devaneio que encontra uma casa e se transforma em abstraçao colocada em sonho. Conforme Foucault (2006, p.268), na escrita, nao se trata da amarraçao do sujeito em uma linguagem, "trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve nao pára de desaparecer". O sensível se envolve com o conhecer, há um entrelaçamento de idéias e açoes. Pesquisamos, entao, aquilo que nos convoca e atormenta, e tornamo-nos cúmplices de suas audácias e desatinos.

Dessa finitude e estranheza, a noçao de obra também se transforma, uma vez que a marca do escritor, ou do pesquisador, nasce da singularidade de sua ausencia. Escrevemos, ou pesquisamos, no limite daquilo que nao sabemos, ou do que já nao somos mais. Vivemos o tormento de transitar entre o sonho e a aventura da maquinaçao de sentidos. E, nesse jogo caótico, pensamento e sensaçao se imbricam numa estória embrulhada, ao fazerem coexistir as séries divergentes e ao diferir enredos entrelaçados. O método pode, entao, compor uma dobra das composiçoes da existencia, ao costurar os nós entre afeto, cogniçao e abertura cósmica.

Logo, a criaçao, a invençao, fatores antes relegados ao ostracismo epistemico, passam a fazer parte das operaçoes de construçao do conhecimento e constituiçao de intervençoes. Intervir, aqui, implica a interferencia, o corte, a ruptura que convém ao corpo, ao relançá-lo as aventuras de experimentaçao do pensamento. Nesse intrépido estilo cartográfico, podemos compor as narrativas dos encontros inventados e saborear as delícias de um recomeço tornado origem menor, genese inventada, sujeito infame. Por meio de inquietaçoes e desconhecimentos, abrimos o corpo para a sua fissura, para aquilo que o torna estranhamento e dúvida. No limite das ausencias inventadas, escrevemos ou compomos a descoberta do mundo, perante sua insaciável solidao e ternura.

Assim, a ficçao passa a ser o fundamento do documental, a criaçao do dado e o delírio do bom senso: "O delírio está no fundo do bom senso, razao pela qual o bom senso sempre é segundo" (DELEUZE, 1988, p. 363). Perante o dado tornado menor, razao segunda, podemos sofrer com o intempestivo do acaso, tal qual um lance de dados que convoca a variaçao. Devemos, portanto, fazer delirar as coisas, aos modos, subvertendo seus regimes e provocando clinamens que abrem os fluxos.

Em termos bastante genéricos dizemos que há duas maneiras de invocar "destruiçoes necessárias": a do poeta, que fala em nome de uma potencia criadora, apto a reverter todas as ordens e todas as representaçoes, para afirmar a Diferença no estado de revoluçao permanente do eterno retorno; e a do político, que se preocupa, antes de tudo, em negar o que "difere" para conservar, prolongar uma ordem estabelecida na história ou para estabelecer uma ordem histórica que já solicita no mundo as formas de sua representaçao. (DELEUZE, 1988, p. 101)

Nessa luta, temos a chance de fazer voltar todo o delírio que se enlaça aos avessos da história, na tentativa de contá-la de múltiplos modos, para além da previsibilidade das descobertas. Operamos a ética de um retorno que volta os possíveis a sua mais elevada potencia, para relançar a força criadora de afirmaçao de um porvir. Uma ética condicional supoe a chama dos enredos inventados de múltiplos modos e transforma o encontro entre narrativa e poética. Assim, o imperativo do como se pode tomar conta do corpo: viva como se cada instante voltasse eternamente, elevando a mais alta potencia o desejo de criaçao, e tornando o tempo a molecularizaçao da existencia replicada em configuraçoes diversas. Optamos por uma abertura que supoe a ética-estética da existencia, daquilo que já nao somos mais, do que estamos nos tornando, tal qual uma invençao de mundos estranhos e abertos a fluxos nômades. O desafio consiste em viver como se o delírio do verbo voltasse eternamente, ao fazer estremecer as relaçoes entre o falar e o sentir.    

Desse modo, vemos delinear-se a poética como operaçao potencializadora dos possíveis na cartografia. Partindo de "[...] uma idéia de poesia sempre excessiva" (DELEUZE, 1988, p.457), vamos pensar a poética como a poiética do desmedido, daquilo que transborda os sistemas de aceitabilidade e provoca novas intuiçoes que tomam ao corpo de assalto em novas imagens, novos gestos. Assim, o corpo encontra o incorpóreo, jogo extremo de superfícies ao avesso que se enlaçam e convocam a forma a se distorcer. Uma chama envolve a crítica e provoca açoes no pensamento, tornado passagem, envolto no excesso e na sensaçao maquínica das intensidades. Nessa mistura de heterogeneos, forma e força se afetam e dançam a melodia do extremo, como uma nova suavidade lançada ao acaso e tornada método de conhecer e inventar o mundo em sua potencia de expressao e desenlace.   

O humor, a farsa, o non-sense, o absurdo e o paradoxo permitem, pela arte, liberar os simulacros do grave jugo da representaçao: "A obra de arte abandona o domínio da representaçao para tornar-se 'experiencia', empirismo transcendental ou ciencia do sensível" (DELEUZE, 1988, p. 107). Um jogo ardiloso invade a certeza e provoca a desmesura, a degradaçao da verdade, aberta a novas possibilidades e açoes. Nao representamos, pois, o dito, mas envolvemos o nao-dito ao eterno retorno de suas reverberaçoes e promiscuidades.

Com a afirmaçao poética do desmedido, afirmamos uma política delirante onde o paradoxo dá o tom para a orgia sensível que se instaura. Importa, em nossa operaçao, sua poética efetuaçao poética, o erigir modos impuros, tomados do absurdo espantoso que prove o tônus do poeta: é girando manco, bebado em meio a dança, que se instaura a metaestabilidade gonza que vai sempre de viés cerzindo um tracejado incerto. Afirmar a poesia e o risco: "Como diz Nietzsche, entre os justos a afirmaçao é primeira, [...] Eis porque as verdadeiras revoluçoes tem também um ar de festa" (DELEUZE, 1988, p.424). Pensar da poesia que problematiza em virtualizaçoes a ultrapassagem da constituiçao de descriçoes e reduçoes formalistas: pensar de poesia que faz misturas alquímicas e aguarda a poçao explodir em suas maos.

Nao se trata da ciencia da arte nem da arte da ciencia, falamos antes de um híbrido formado na junçao escancarada destes: arte e ciencia, ciencia-arte, arte-ciencia. Poderíamos inclusive abandonar de uma vez por todas a partícula ciencia desta equaçao e dá-la sem ciúme, em baixela de prata adornada aos que buscam sempre serem seus únicos donos. Esta linha de tecnologia do sensível (FONSECA; COSTA; KIRST, 2008) que se afirma entre a ciencia e a arte nao se apresentam como uma novidade em nosso campo, pois diversas sao as experimentaçoes que já aconteceram neste sentido: o olho câmera de Dziga Vertov, a cartografia delirante da Roma de Fellini, as instalaçoes fotográficas entre os Lapoes de Jorma Puranen, os estudos do movimento anamorfomáticos de Marey, as projeçoes subversivas de Shimon Attie em Berlin. Tomar ao som, a imagem, ao corpo, a escrita, entre outras açoes, enquanto possibilidade de expressao de mundos, levando em consideraçao suas inevitáveis inteligibilidade sensível e sensível inteligibilidade: ponto brumoso do paradoxo. "A manifestaçao da filosofia nao é o bom senso, mas o paradoxo" (DELEUZE, 1988, p.364).

Nesse limiar, o paradoxo corre nos dois sentidos, ao mesmo tempo, entre o tempo de cronos, cronologia linear das coisas, e o tempo de Aion, Acontecimento das virtualidades em composiçao. Assim, fazemos o método trabalhar, na direçao da coexistencia entre arte e conhecimento, ou entre linguagem e nao-senso. Este, para Deleuze (1998), nao implica a ausencia de sentido, mas diz o seu próprio sentido, na composiçao de um murmúrio híbrido, aberto aos acasos que se envolvem e produzem novas rupturas e reverberaçoes. O elemento paradoxal torna-se nao-senso e envolve a bifurcaçao das séries, envoltas em complexidades e diferenças. Nao buscamos a clareza das coisas, mas a sua perpétua bifurcaçao e o embaralhamento de sentidos. Dispomos de um pequeno saber, envolto num emaranhado de virtualidades e desconhecimentos, que o interpelam e o desvirtuam de antigas argumentaçoes.      

Nesse trânsito complexo, os dados sao relançados as suas virtualidades, num tempo que se reinventa e se torna nova dobra do mundo. Compomos, nao a escrita de um presente, mas algo entre o que acabou de se passar, ou que vai se passar, tal qual um tempo rachado e cindido em presentes múltiplos, conectados por um passado-futuro por vir. Traçamos a arte dos recomeços, ou a poética das expressoes envoltas em alegrias e mistérios. Tentamos viver, entao, a aventura das escritas maquínicas, revestidas de estórias embrulhadas. E, ao fazer reverberar o verbo e a sintaxe, jogamos o sentido numa trama de coexistencias nômades que se contagiam e revelam a força das superfícies misturadas.

Segundo Deleuze (2006a), propomos uma linguagem em superfície que doa sentidos e mexe numa fronteira caótica, entre as proposiçoes e as coisas. Assim, um sentido é produzido na circulaçao entre séries singulares e heterogeneas, que se subdividem ao infinito e se enlaçam e novas possibilidades e perpetuaçoes. Entre a heterogenese das séries, pode nascer um novo recomeço, uma espécie de ética dos Acontecimentos que se envolve ao corpo do verbo e doa novo ritmo as palavras.

Da poética, a sintaxe se bifurca em proliferaçoes absurdas e beira as bordas de um sentido inventado e relançado a sua embriaguez. Assim, corpo e verbo fazem dobra, e convocam o delírio a transbordar os limites da linguagem e a atormentar os infinitivos com novas idéias e proliferaçoes. Nesse espirituoso murmúrio de indagaçoes, cartografamos o intempestivo jogo de afetos e produçoes desejantes, que fazem sentido na corda bamba entre o pensamento e a invençao: "No começo era o verbo, só depois é que veio o delírio do verbo. [...] A criança nao sabe que o verbo escutar nao funciona para cor, mas para som. Entao se a criança muda a funçao de um verbo, ele delira" (BARROS, 1998a, p.25)

 

5. Estilísticas: a ontologia estética dos modos

As operaçoes poéticas inserem o absurdo onde a linearidade e a conexao lógica imediata regiam. Fazem vibrar uma onda anômala de contágio que agita as singularidades nômades. Tal agitaçao poética das singularidades faz ressoar no impessoal uma melodia bastarda, dissonante perante o cânone da harmonia, levando ao corpo vibraçoes intempestivas que abrem novos possíveis. Vemos, entao, o surgimento de séries rebeldes, séries que se afirmam para além e aquém de modelos, sejam eles uma idéia inteligível ou mesmo uma coisa como referente substancial. A expressao e o sentido nao mais se reduzem a uma representaçao atrelada ao referente primeiro através do cordao razoável da verossimilhança. Adquirindo por si o status de ser, a partir de suas açoes no mundo, subvertem a própria noçao de mundo, produzindo outro pensamento que macula a natureza estável de um modo pensado pela forma e substâncias com a introduçao da paradoxalidade imanente: "Nao é próprio do simulacro ser uma cópia, mas reverter todas as cópias, revertendo também os modelos: todo pensamento torna-se uma agressao" (DELEUZE, 1988, p.17).

Assim, nao há o ponto de origem, do qual a expressao seria serva, que sirva de baliza ao expurgo dos bastardos e sua degradada relaçao de parentesco com a ontologia: o eterno retorno opera a dissoluçao da origem e do original, instituindo uma sucessao ilimitada de cópias, tudo retorna como cópia de si, aquém e além de modelos representativos e identitários. "Cada coisa, animal ou ser é levado ao estado de simulacro [...]" (DELEUZE, 1988, p.122). Tudo se tornou simulacro, e o simulacro nao consiste na reproduçao, na imitaçao de um modelo, mas sim, no próprio ato de reversao que subverte esta hierarquia binária: diluindo a oposiçao entre cópia e original, modelo e imitaçao, expressao e referente, etc.

Os simulacros ultrapassam a dualidade das proposiçoes entre designaçao de coisas e expressao de sentido, acolhendo aos efeitos, aos sentidos, as açoes e as expressoes, como se mais que coisas fossem. Colocamo-nos, entao, para além da reificaçao do ser em forma ou substância, posto que estes se dissolvem nos fluxos: a própria expressao já é. O problema da ausencia de designaçao, de referente no mundo das coisas, representaçoes ou modelos inteligíveis, nao é mais uma barreira ao simulacro. Importa sim seus efeitos, suas expressoes: sua potencia poética é sua força poiética e vice-versa 4. "Como diz Bergson, nao vamos dos sons as imagens e das imagens ao sentido: instalamo-nos logo de saída em pleno sentido" (DELEUZE, 2006a, p.31). Assim, o(a) fundamento da expressao nao se encontra na ponta de um dedo infantil a requerer e inquirir o sentido de um seio. Posto que nem o dedo é ponta, nem o seio coisa, mas ambos sao na expressao de um apontar, sem origem primeira ou fim último que lhes de os contornos do fundamento da designaçao.

Outra natureza é aí constituída, a ontologia se descola da substância e da forma compreendidas como causas do ser que produz as expressoes. Tudo se torna efeito, em um mundo de açoes que se relacionam sem a necessidade de um agente imóvel: "Portanto, atrás das máscaras há ainda máscaras" (DELEUZE, 1988, p.179). O disfarce e as máscaras nada mais sao do que operaçoes de deslocamento virtual entre as séries. Assim sendo, sao as máscaras e os disfarces que dao corpo as expressividades dos problemas. É o problemático e a imanencia que operam a univocidade e a contemporaneidade das séries divergentes, já que estas tem ao caos como único ponto de "convergencia original": tornando inviável a diferenciaçao entre original e cópia. É o eterno retorno que opera o fundo sem fundo, o a-fundamento destas séries divergentes, onde nao é o mesmo que retorna, mas sim o distinto, a diferença: a única constante é de variaçao.

A passagem do pseudo a superfície torna-o nao mais um ser acanhado afeito aos cantos onde a luz da verdade e o chinelo do juízo se fazem ausentes; antes, perde o caráter de pecado e o simulacro passa a ser o seu efeito, a açao que provoca e constitui as superfícies da vida: a potencia do falso é seu efeito. Tomado como açao, efeito, expressao, nao há mais cobrança de coerencia interna, mas sim atençao as relaçoes que constitui em seus agenciamentos: os estilos que cria em sua trajetória. Quando do pecado original, quando o homem abandonou a divindade do verbo e abraçou a carne animal e suas vibraçoes desumanas, quando decaímos em um simulacro de Deus, restando apenas sua imagem e nao sua semelhança tornamo-nos simulacros e, a partir disso, nao importou mais a nossa verdade essencial, mas sim o estilo, a retórica de nossa expressividade existencial. "Tornamo-nos simulacros, perdemos a existencia moral para entrarmos na existencia estética" (DELEUZE, 2006a, p.263). É exatamente esta natureza estética do simulacro que assegura aqui a concepçao do mundo a partir da estética: a este mundo cabe investigar e intervir com os operadores poéticos, questionando e criando retóricas existenciais, estilísticas do ser.

Nessa trama, o mundo se faz profano e mundano, rodeado de vazios e proliferaçoes. O nao-senso invade o sentido e provoca insanidades lingüísticas, rodeadas de estilo e vizinhança estética. Em suas rachaduras, podemos supor um movimento de contemplaçao inventiva, no momento em que a degradaçao do degradado supoe uma alteraçao menor, um pequeno simulacro, tal qual uma molécula transmutada em nova expressividade. Operamos, entao, com o mapeamento das fissuras e suas chances de irradiaçao de diferenças.

Dessa forma, a repetiçao na arte nao é a cópia da vida, a arte nao imita a vida e vice-versa, a arte desloca a substância fluída da vida, problematiza-a, apresentando-se nao como pretendente de suas verdades, mas antes se avivando arte e artificializando-se vida, acentuando na vida a vertigem dos simulacros.

Isto porque nao há problema estético a nao ser o da inserçao da arte na vida cotidiana. Quanto mais nossa vida parece standartizada [...], mais deve a arte ligar-se a ela e dela arrancar esta pequena diferença. (DELEUZE, 1988, p.460)

Assim, vida e estética podem se imbricar, num entrelaçamento de heterogeneos que supoe o plano do inteligível e do sensível em diferença e conexao recíproca, como assevera Barros (1998b, p. 81) "Pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir".

Conforme Deleuze (2006b), podemos pensar a dramatizaçao como um método. Ela se faz por meio de dinamismos espaço-temporais, que supoem um movimento forçado, em direçao a um sujeito larvar, a um campo de individuaçao e de séries de diferenças intensivas. Aquilo que força supoe um duplo envolvimento entre corpos e singularidades, que se enredam e provocam um encontro entre diferenças e intensidades. Trata-se, pois, de um estranho teatro feito de determinaçoes puras, que agitam espaço e tempo, agem sobre a alma, tem larvas por atores. Nesse ponto, um modo de ser larvar recoloca o ser em contato com o rastejar de sua existencia, em direçao a novos percalços e virtualidades. A larva carrega, em si, a potencia embrionária da criaçao de novos possíveis relançados a uma estética da existencia. Em meio a um movimento tomado por uma lentidao plástica, um modo larvar se mistura com o meio e se associa a novas expressividades.

Deparamo-nos com modos larvares e fugazes que escorregam de si e serpenteiam frente ao inacabamento das coisas, ao suportar vazios e dramas. Para Deleuze (2006b), é o conhecimento científico, o sonho e também as coisas em si que dramatizam. Num jogo caótico de afetos e perceptos, o virtual coexiste ao atual e supoe corpos transmutados num porvir de novos enredos e inquietaçoes. O conceito diz de si e, ao mesmo tempo, desdiz a sua história, rompe com a significaçao que já nao lhe serve. Onde se quebram, pois, os limites de uma ciencia que desdenha a própria verdade e se torna moribunda de generalizaçoes, uma vez que acessa um repertório de novos possíveis e se avizinha com estéticas e tecnologias de si?

Assim, a um determinado conceito, podemos procurar e compor o drama a que ele corresponde. A coexistencia do atual e do virtual implicam uma melodia cósmica que faz o método tremer as bases e brincar com as próprias replicaçoes. Um plano caótico de singularidades pré-individuais invade os modos de conhecer, bem como de se tornar sujeito. Abrimos o abstrato e o religamos com as concretudes construídas, num ímpeto infame por novos ritmos para o pensamento. Fazemos tremer o sentido e o sensível, numa espécie de zona intermediária entre afeto e política cognitiva inventiva.

Abre-se agora a possibilidade de debruçar-se sobre o usual objeto da psicologia social de outra maneira. O desafio consiste em perceber no cotidiano o costume, nao como as regras formais que balizam o movimento das formigas em seu dia-a-dia, mas mirar o costume como a estilística da fantasia criada neste carnaval diário e vulgar em sua imanencia e comunalidade. Trata-se, entao, de mapear o jogo de simulaçao e aventura que atravessa o hábito e o torna vítima contemplativa de sua própria transfiguraçao. Com isso, o comum, o infame, o que se repete, carrega também a potencia de variaçao e recomeço, origem segunda de uma diferença inventada e vivida de incontáveis modos.

Em um método psi que desliza dos procedimentos certeiros e se enreda no nao saber e no desencantamento, a dúvida ganha consistencia e reverberaçao. O objeto se torna abandonado de seus mundos, entregue ao acaso e também ao movimento forçado que busca uma política larvar de cogniçao e maquinaçao da vida. E, em meio a entrega de si, o corpo sussurra palavras recriadas e experimenta vazios que o tiram de antigas lamentaçoes. O expresso nao se esconde na profundidade, mas se faz a partir de um deslizamento contínuo e imanente a vida. Ele desliza na movimentaçao de si, absorto em riscos e novas tentativas de duplicar imagens e proposiçoes. Por isso, a linguagem atual também é povoada por seus dramas, por um plano de virtualidades e singularidades impessoais, que podem desdobrar, a qualquer momento, o sentido e seus múltiplos.

Possibilitar, por exemplo, problematizar o balé dos movimentos rotineiros e compreender sua singular aventura de leveza, no lugar de somente imprimir-lhes seus verdadeiros sentidos ocultos nas mínimas minúcias geométricas cotidianas. Nesse ponto, o cotidiano dança diante dos olhos de um transeunte distraído, ao inventar piruetas carregadas de orgia e excentricidade. Ao mesmo tempo, a leveza consiste em fazer o problemático criar novos passos, entrelaçados com ritmos e melodias inventadas. O método pode desejar a problemática coreografia de possíveis que se recria a cada ensaio, aberta a uma suposta expressao intensiva.   

Desse modo, esperamos mirar suas imagens poéticas sem detratá-las como meras miragens esmerilhadas por um prestidigitador, apenas seguir as linhas que compoem seus turbilhoes, o cerzir de suas relaçoes. As paisagens configuram-se como resoluçoes dos agenciamentos territoriais. Paisagens existenciais sao os modos de ser da subjetividade, problematizados exatamente no ponto onde indiferenciam o olhar e o que é visto. Olhar e paisagem formam um ponto cego em seu encontro, no qual ambos se criam.

Nesse enlace paradoxal, a poética se imprime, mas também exprime suas reviravoltas e perplexidades. O indivíduo nao se compoe em uma relaçao figura e fundo com a paisagem, mas constitui-se como puro efeito da própria paisagem, produto e produtor de atualizaçoes de sua imanencia. Em suma, busca-se pensar com a poética, em última instância, como o plano da vida se cria e a potencia em dispersao virótica de variaçao entre as singularidades constitui as estilísticas: variaçoes de variaçoes.

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como eu sou - eu nao aceito.
Nao agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pao as 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que ve a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas
(Manuel de Barros, 1998b, p.79).

 

Referencias Bibliográficas

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Endereço para correspondencia
Tania Mara Galli Fonseca
Programa de Pós-Graduaçao em Informática na Educaçao, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Av. Paulo Gama, 110, prédio 12105, 3o andar, sala 332, CEP 90040-060, Porto Alegre-RS, Brasil
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José Mário Neves
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Recebido em: 27/07/2009
Aceito para publicaçao em: 06/11/2009
Acompanhamento do processo editorial: Deise Mancebo, Marisa Lopes da Rocha, Roberta Romagnoli.

 

 

Notas

* Psicóloga, doutora em educaçao, coordenadora do grupo de pesquisas Corpo, Arte e Clínica nos modos de trabalhar e subjetivar.
** Psicólogo, mestre em Psicologia Social e Institucional na UFRGS; pesquisador do grupo Corpo, Arte e Clínica/UFRGS.
*** Psicóloga, mestre em Psicologia Social e Institucional na UFRGS e mestrado sanduíche em Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, com bolsa da ALBAN; atua como psicóloga do CAPS Capilé/Sao Leopoldo; professora da UNIVATES, no curso de Psicologia e na Especializaçao em Dança, Corpo e Arte; membro do grupo de estudos Corpo, Arte e Clínica/UFRGS, Sao Leopoldo, Brasil.
**** Psicólogo, mestre em Psicologia Social e Institucional/UFRGS; Pesquisador do grupo Corpo, Arte e Clínica; autor do livro A Face Oculta da Organizaçao: a microfísica do poder na gestao do trabalho, pela Editora UFRGS e SULINA.
1 Schérer (2000, p.21) assinala que temos, entre os principais temas do pensamento de Deleuze, "uma substituiçao, desse sujeito e mesmo de uma individualidade ainda por demais maciça, por demais 'molar', de uma pessoa artificial, ou mesmo puramente alegórica, por 'singularidades' moleculares, moventes ou 'nômades'".
2 A palavra atençao está colocada entre aspas para destacar que nao se trata de uma mera "focalizaçao", mas, como observa Kastrup (2007) sobre a atençao: "Seu funcionamento nao se identifica a atos de focalizaçao para preparar a representaçao das formas de objetos, mas se faz através da detecçao de signos e forças circulantes, ou seja, de pontas do processo em curso".
3 Neste sentido, Deleuze (2006b, p. 106) afirma: "Subverter o platonismo significa o seguinte: recusar o primado de um original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem. Glorificar o reino dos simulacros e dos reflexos".
4 Acompanha-se a potencia poética da poiética do paradoxo e vice-versa na sua operaçao sobre a expressao com as aliteraçoes (repetiçao que nao constitui redundância, mas sim diferença), as palavras-coisa (designa o que expressa e expressa a si, sem que seu sentido esteja em outra palavra como usualmente ocorre, flertando assim com o nao senso) e as palavras-valise: "Cada parte virtual de uma tal palavra designa o sentido da outra, ou expressa a outra parte que, por sua vez, o designa" (DELEUZE, p.70, 2006).