ARTIGOS

 

O apoio institucional como dispositivo de reordenamento dos processos de trabalho na atenção básica

 

Institutional support as a reordering mechanism for the work processes in primary health care

 

 

Silvana do Carmo Maia Barros I,*; Magda Dimenstein II,**

I Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde de Natal, Natal, RN, Brasil
II Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Atualmente busca-se uma conexão entre saúde mental e a Estratégia Saúde da Família/ESF. Esse trabalho trata-se de um relato de experiência de apoio institucional em unidades de saúde da família. Através do método da roda, utilizado como estratégia metodológica, buscamos identificar no discurso das equipes, os limites e desafios desse encontro entre saúde mental e atenção básica. Observamos que a ESF embora tenha se destacado como um eixo importante de reorganização da atenção básica, deslocando o trabalho em saúde para o território, ainda não conseguiu romper com uma prática construída historicamente pautada em procedimentos médicos. A escuta, o vínculo e a gestão do cuidado ainda são secundarizados, dificultando o acolhimento das demandas de saúde mental. Entretanto, o apoio institucional é uma proposta que vem produzindo efeitos nos modos de trabalho das equipes e fomentando práticas de cuidado condizentes com a perspectiva da atenção psicossocial.

Palavras-chave:Reforma psiquiátrica, Saúde mental, Atenção básica, Estratégia saúde da família, Apoio institucional.


ABSTRACT

There is a current need to establish a link between mental health and the Family Health Strategy. This paper is an experience report of institutional support in family health units. Based on the methodological strategy of the wheel method we sought to identify in team members discourses, the limits and challenges of the mental health and primary health care encounter. The study indicated that the disease-centered model breaks up the team’s work process, leading to an emphasis on professional specialties increase in psychiatric psychology consultation queues, and to frequent psychiatric internments.  Listening, bonding and care management became secondary focuses thereby impeding the receptiveness of the mental health demands in the primary care context.  Furthermore, we observed the team’s weakness in meeting human suffering needs and a strategic organization that was unable to break away from a historically constructed practice centered on medical procedures. However, institutional support to promote care practices consistent with the psychosocial perspective in that setting.

Keywords: Psychiatric reform, Mental health, Primary health care, Family health strategy, Institutional support.


 

 

Introdução

Considerando a importância de romper com a dicotomia entre saúde e saúde mental e de superar a fragmentação do processo de cuidado na atenção básica, buscamos, através da experiência de apoio institucional, identificar dificuldades de uma equipe em acolher demandas de saúde mental em uma unidade de saúde da família, bem como identificar até que ponto essas dificuldades estão relacionadas à forma de organização do seu processo de trabalho. Pretendemos com esse trabalho apontar que a incorporação de ações de saúde mental na atenção básica tem exigido uma mudança no modelo de assistência e na postura dos profissionais que atuam na Estratégia Saúde da Família/ESF. Partimos do pressuposto que um modelo centrado na doença fragmenta o processo de trabalho das equipes dando lugar de destaque às especialidades, elevando as filas de espera por consultas em psiquiatria, psicologia, assim como freqüentes entradas nos hospitais psiquiátricos. Nesse processo, a escuta, o vínculo e a gestão do cuidado são secundarizados, dificultando o acolhimento das demandas de saúde mental na atenção básica. Portanto, efetivar a integração das ações das equipes que atuam na ESF à rede de cuidados em saúde mental é uma unanimidade no campo. Se aposta em estratégias e arranjos que potencializem recursos na atenção básica e que venham garantir novas práticas de cuidado em saúde mental, não restringindo tal atenção apenas aos serviços substitutivos, ampliando-se, conseqüentemente, os espaços sociais de acolhimento da loucura (Amarante, 2003). Portanto, acelerar o processo da reforma psiquiátrica na atenção básica ainda parece ser um grande desafio. Cuidar das pessoas com sofrimento psíquico o mais próximo possível de sua família, em seu contexto social, rompendo com o modelo centrado no hospital, sempre foi o objetivo do movimento da luta antimanicomial.

O município de Natal, onde foi realizada essa pesquisa, tem uma cobertura de atendimento de 47,3% da população pela ESF com 110 equipes implantadas até 2007. Mesmo sendo realizadas mais de 900 mil visitas/ano pelas equipes que atuam na ESF há muitas dificuldades de acolhimento das demandas em saúde mental nas unidades básicas de saúde. Poucos são os registros de atendimento nessa área, principalmente em relação aos atendimentos dos casos de transtorno mental. Só na zona norte da cidade, foco desse trabalho, há 59 equipes de saúde da família implantadas seguindo critérios de alocação determinados pela SMS em função de características da área. Quase 60% das famílias desse território estão cobertas pelos serviços de saúde que acompanham uma população fixa com a qual buscam desenvolver uma relação continuada de cuidado, com exceção da saúde mental (NATAL, 2007a; 2007b). Em Natal, assim como em muitas regiões do país, a porta de entrada para muitos pacientes com sofrimento psíquico continua sendo os hospitais psiquiátricos. Os pacientes em crise não conseguem ser acolhidos nos prontos atendimentos, nos hospitais gerais, nas unidades de saúde, nem mesmo são acolhidos nos CAPS II. Mais grave e angustiante é perceber que ao retornarem das internações, muitas vezes desconhecidas dos técnicos, vêem engrossar as fileiras das solicitações de renovação de receitas tão comum nas policlínicas, pronto-atendimentos, unidades de saúde em geral (DIMENSTEIN et al, 2005; DIMENSTEIN et al, 2009). Em função dessa realidade vivenciada muito de perto pelos autores, iniciou-se um processo de trabalho voltado à identificação das dificuldades vividas por equipes da ESF em relação ao acolhimento em saúde mental, bem como as iniciativas de cuidado em curso e as possibilidades de intervenção no processo de trabalho dessas equipes. Esse artigo visa apresentar os resultados dessa experiência de acompanhamento institucional. É o relato e análise de uma experiência ainda em curso.

 

Saúde Mental e Saúde da Família: algumas reflexões, vários desafios

A Estratégia Saúde da Família tem se destacado como um eixo importante de reorganização da atenção básica. Estruturado com base em equipes multiprofissionais que têm como foco de atuação a adscrição e a territorialização da clientela, deslocando o trabalho em saúde para o território, possibilita a constituição de vínculo e a continuidade do atendimento, recurso importante para acelerar o movimento da reforma psiquiátrica na Atenção Básica. Ao propor a chamada clínica do território, a ESF aponta para importância de explorar o potencial da comunidade, exigindo menos investimento em tecnologias duras (procedimentos de alto custo em ambientes controlados). São, portanto práticas em saúde que exigem mais a incorporação das chamadas tecnologias leves, práticas centradas nas competências de intervenção interpessoal. Nesse sentido Amarante (2007, p. 94) destaca:

A ESF representa o início da possibilidade de reversão desta situação, investindo na promoção da saúde e na defesa da vida, educando a comunidade e desenvolvendo práticas de pensar e lidar com a saúde. Considera-se que em torno de 80% dos problemas de saúde poderiam e deveriam ser resolvidos no âmbito da rede básica, isto é, com cuidados mais simples (mas não desqualificados), sem muitas sofisticações tecnológicas de diagnóstico e tratamento.

Na medida em que o território é o ponto de partida da organização da oferta, a família e a comunidade vêm desempenhar um papel relevante no cuidado em saúde. Essa questão nos remete aos princípios da reforma psiquiátrica que vem ressignificar o papel desempenhado pelos familiares no cuidado em saúde mental, rompendo com a perspectiva asilar onde a família era afastada por entender que as relações familiares eram patogênicas. Considera-se, portanto, que a ESF tem valioso poder de inserção no cotidiano das famílias. Vários autores destacam a posição relevante ocupada pelo agente comunitário de saúde e suas atribuições, onde o cadastramento das famílias e a visita domiciliar pode ser um poderoso elo entre a comunidade e a unidade de saúde. Corroborando o exposto Lancetti (2006, p.93) afirma:

A ação dos agentes de saúde, quando operada em singular parceria com os outros membros da organização sanitária, torna essa relação uma arma fundamental para fazer funcionar esta máquina de produzir saúde e saúde mental.

O autor destaca ainda a potencialidade do agente comunitário em virtude de sua condição paradoxal, onde sendo ao mesmo tempo membro da comunidade e integrante da organização sanitária, tem valioso poder de inserção no território existencial das pessoas. Partindo da proposta da ESF de conhecer as características, as necessidades, as potencialidades da população de uma área adscrita, de facilitar o estabelecimento de um vínculo com as famílias e possibilitar o desenvolvimento de uma relação continuada de cuidado, apoiamos a afirmação de Lancetti (2006, p.49) quando diz:

A Estratégia Saúde da Família é uma práxis na qual a saúde e a saúde mental se articulam de tal modo que a saúde e a saúde mental chegam a fundir-se.

No tocante ao atendimento à demanda em Saúde Mental na Atenção Básica, destacamos a Portaria 224/l992 (Brasil, 1992; 2003) como um marco legal em termos da atenção primária à saúde mental no SUS. Define normas para a atenção em saúde mental tanto em nível ambulatorial (unidade básica de saúde, centro de saúde, ambulatório, núcleo e centro de atenção psicossocial) quanto em nível hospitalar. Define ainda que o atendimento deve ocorrer sob a responsabilidade de uma equipe multiprofissional. Além do atendimento individual, o atendimento grupal (grupo operativo, grupo terapêutico, grupos de orientação, atividades socioterápicas, atividades de sala de espera, atividades educativas em saúde, etc.), as visitas domiciliares (que podem ser realizadas por técnicos de nível médio/ou superior) e atividades comunitárias na área de referência do serviço devem ser consideradas no planejamento das ações de assistência e prevenção. Observamos no relatório da II Conferência Nacional de Saúde Mental (II BRASIL, II CNSM, 1994), recomendações importantes no que diz respeito à inclusão das ações de saúde mental na rede de Atenção Básica, tais como: realizar ações de vigilância em saúde mental relacionadas aos locais de trabalho e condições de moradia, etc.; a criação de equipes especializadas de referência para as equipes de PSF e PACS (no caso de equipes volantes, com a proporção mínima de uma equipe especializada para cada cinco equipes da ESF); inserção de um profissional de saúde mental de referência para cada duas equipes da ESF, com atenção prioritária a casos graves e proporcionar prevenção em saúde mental valendo-se de recursos comunitários.

Mas, apesar dos princípios de integralidade das ações proposto pelo SUS, podemos observar na prática uma dicotomia entre as ações de saúde e saúde mental. Não encontramos registros quanto aos portadores de transtorno mental da área de atuação dos profissionais, como vivem, quem são seus familiares, qual a sua história de vida e de saúde. Nem mesmo no cadastro dos hipertensos, diabéticos ou de alguma outra enfermidade. Até parecem não existir! Nos momentos das oficinas de planejamento não são lembrados e muito menos citados como problemas prioritários. Na relação de indicadores nada se sabe em relação às internações psiquiátricas da área, embora constem alguns dados no Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB). Enfim, a reorganização da Atenção Básica tendo como eixo a Estratégia Saúde da Família de fato parece ser um campo fértil para a produção do cuidado em saúde, mas algo nos inquieta: Como de fato potencializar todo esse recurso de forma a romper com a dicotomia entre saúde e saúde mental? Como produzir práticas em saúde baseada na integralidade das ações? Identificamos nas diretrizes da Política Nacional de humanização (PNH) - estratégia para alcançar a qualificação da atenção e da gestão em saúde no SUS - implementada desde 2004 pelo Ministério da Saúde, importantes contribuições para a inclusão de ações de saúde mental na atenção básica. Entendida como um conjunto de princípios e diretrizes que se traduzem em ações nas diversas práticas de saúde assume o desafio de ultrapassar as fronteiras, muitas vezes rígidas, entre os diferentes saberes/poderes que se ocupam da produção da saúde. Implica mudanças na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho, com o estímulo a diferentes práticas terapêuticas, o deslocamento da ênfase na doença para centrá-la sobre o sujeito concreto que não se resume a uma enfermidade. Busca a reorganização do processo de trabalho tradicional centrado no médico para uma equipe multiprofissional e a qualificação da relação trabalhador-usuário que deve estar orientada por parâmetros humanitários, de solidariedade e cidadania. Desta forma, contribui sobremaneira para a ruptura da dicotomia entre saúde e saúde mental na atenção básica.

 

Saúde Mental na Zona Norte de Natal: contradições de uma rede de serviços

A análise da distribuição da rede de serviços em Saúde Mental do município de Natal vem revelar contradições em sua estrutura organizacional, merecendo destaque nesse trabalho. Composta de 08 serviços especializados, observamos em sua distribuição, uma concentração de serviços na região administrativa leste, contando atualmente com 50% dos serviços existentes no município: 01 Centro de Atenção Psicossocial tipo II, 01 Centro de Atenção Psicossocial tipo AD, 01 Residência Terapêutica, um ambulatório de Saúde Mental. A Região Leste é a que concentra a menor população do município, segundo censo do IBGE no ano 2000. No entanto, a Região administrativa Norte, que representa 34,4% da população do município conta atualmente com apenas um Centro de Atenção Psicossocial tipo AD. O perfil sócio-sanitário dessas regiões é também distinto em função das desigualdades econômicas, sanitárias e sociais de cada um desses territórios. Analisando os dados fornecidos pelo Hospital Dr. João Machado (referência em psiquiatria no estado), observa-se que o número de internações psiquiátricas do município de Natal até novembro de 2007 foi de 823 internações, sendo que os moradores da Zona Norte representaram 30,75% das mesmas. Destacamos ainda o pronto atendimento da região, mesmo sem leitos reservados para psiquiatria e recursos humanos qualificados para o acolhimento a essa demanda, registra uma elevada procura por atendimento em urgências psiquiátricas. Portanto, essa área da cidade, requer a constituição de uma rede de cuidados em saúde mental adequada para o acolhimento das demandas de saúde mental, principalmente no que se refere às crises psiquiátricas, pois sem serviços de acolhimento às crises tipo CAPS III e com demanda reprimida em psiquiatria e psicologia, vem contribuindo para o aumento das internações nos hospitais psiquiátricos do município.

 

Dispositivos de suporte ao Apoio Institucional: método da Roda e Terapia Comunitária

A proposta de Apoio Institucional nasceu na Secretaria Municipal de Saúde de Natal/SMS em 2004 em meio a inúmeras incertezas, discussões e principalmente muita vontade de mudar o modo de funcionamento das ações de supervisão e avaliação desenvolvidas pelos seus diversos departamentos. Naquele momento tinha-se por objetivo implantar um processo que não restringisse as ações de supervisão à fiscalização e controle dos resultados alcançados por uma unidade de saúde, mas um processo que facilitasse a construção de espaços de reflexão, onde o diagnóstico fosse construído de forma interativa, como também a elaboração de novos modos de produção do cuidado. Buscava-se a ampliação da capacidade e da autonomia dos profissionais a partir da compreensão do seu próprio processo de trabalho. A presença de uma pessoa externa às equipes teria como função facilitar a construção de espaços de escuta, onde os objetivos institucionais pudessem ser articulados aos saberes e interesses dos trabalhadores e usuários. Não se tratava de controlar e comandar pessoas, mas de coordenar um processo onde a possibilidade do encontro entre os profissionais fosse potencializada. Buscava-se criar espaços em que a avaliação tomasse por base a reflexão dos próprios resultados alcançados pelas equipes, onde a análise da situação facilitasse a tomada de decisão, ampliando, dessa maneira, a implicação dos trabalhadores no processo. Como referência, buscava-se suporte na perspectiva apresentada por Campos (2003, p.86):

O Apoio Paidéia reúne uma série de recursos metodológicos voltados para lidar com estas relações entre sujeitos de um outro modo. Um modo interativo, um modo que reconhece a diferença de papéis, de poder e de conhecimento, mas que procura estabelecer relações construtivas entre os distintos atores sociais. Assim a supervisão e avaliação deveriam envolver os próprios avaliados tanto na construção dos diagnósticos como na elaboração de novas formas de agir; ou seja, formas democráticas para coordenar e planejar o trabalho.

A postura do apoiador nessa perspectiva é a de incluir-se ativamente no processo, saindo de uma posição burocrática, misturando-se, apoiando as equipes, capacitando os profissionais a depositarem afetos na elaboração de projetos. Pautado no Método da Roda ou Paidéia (Campos, 2000, 2003), o Apoio Institucional possibilita a ampliação da capacidade de análise das equipes, na medida em que busca incluir os sujeitos no trabalho, facilitando a reflexão acerca das dificuldades do cotidiano, o fazer e o agir entra na roda, mobilizando a circulação de afetos, de desejos, de interesses e a constituição de vínculos. Além disso, como parte das estratégias de mudança das condições e organização do trabalho, a SMS incorporou a proposta da Terapia Comunitária desenvolvida por Barreto (2005), a qual forneceu algumas ferramentas no trabalho de Apoio Institucional. Apesar de se tratar de propostas cujas bases teóricas e metodológicas estão ancoradas em solos distintos, partia-se do princípio de que algumas articulações entre as duas perspectivas eram não somente possíveis, mas frutíferas. Destacamos, resumidamente, alguns pontos dessa interface: ambas caracterizam-se por ser espaços abertos de partilha, de troca de experiências, de acolhimento à diversidade e ao confronto de interesses; são instrumentos de construção de redes sociais e de articulação de pessoas e comunidades em um determinado território visando à potencialização de suas capacidades e estratégias de enfrentamento de problemas, o que indica a problematização entre quem produz e quem se beneficia do conhecimento produzido; trabalham para a criação de grupalidade, mas focados na singularidade dos processos e sujeitos; questionam os efeitos de nossas intervenções sobre a realidade subjetiva e social; e, por fim, são modos de atuação no espaço público já que integradas à realidade social e comprometidas com políticas públicas, universais e inclusivas.    

Com base nisso e compreendendo que as equipes demandavam por um espaço de fala, de acolhimento, onde suas dificuldades e problemas pessoais de ordem subjetiva eram trazidos a todo o momento, optamos pela criação de um espaço onde as pessoas pudessem expressar tais dificuldades. Nesses espaços de fala alguns recursos advindos de ambas as perspectivas foram utilizados. Sendo assim, na roda, um tema era escolhido pela equipe, onde o sentimento de impotência, de angústia, tantas vezes trazidos, demonstrava  a necessidade de se aposta em novos modos de gerir o trabalho. Buscavam-se a problematização dos problemas, mas, sobretudo as possibilidades de intervenção com os recursos da própria equipe, apostando-se em novas maneiras de enfrentar os velhos problemas. O grupo apontava saídas criativas, inovadoras, permitindo o deslocamento da posição inicial do sujeito, onde a impotência sentida inicialmente por cada um dava lugar a construções coletivas de intervenção.

Esse movimento fortaleceu os vínculos entre a própria equipe e a criação de laços de solidariedade, estimulando uma maior autonomia dos sujeitos, construída a partir dos recursos de cada um, e não da perspectiva do facilitador. Diferenciando-se assim de outras propostas que apresentam saídas moralizantes e generalizantes, como os alcoólicos anônimos. Nesse sentido e por transitar por outros campos de saber, tivemos o cuidado de nos afastarmos da perspectiva religiosa e pastoral presente e duramente criticada no método da terapia comunitária e apenas algumas técnicas foram utilizadas, levando em conta que sujeitos quando mobilizados são capazes de transformar realidades tranformando-se neste mesmo processo. Buscava-se investir no sentido de criar condições para transformar um grupo humano tão impessoal, com processos fragmentados de trabalho, em um grupo dinâmico e solidário.

 

Percurso metodológico e resultados

O ponto de partida era não apenas identificar dificuldades de uma equipe em acolher demandas de saúde mental, mas também perceber até que ponto essas dificuldades estavam relacionadas à forma de organização do processo de trabalho das mesmas. O cenário com o qual nos deparamos cotidianamente é conflituoso, há variados interesses, onde diversos atores, profissionais e usuários parecem travar uma constante batalha. As equipes são multiprofissionais, mas a grande maioria trabalha de forma isolada. Existe uma tendência a produzir formas burocratizadas de trabalho. A unidade de saúde selecionada para essa análise está situada na zona norte do município.

Os participantes foram os profissionais de duas equipes: 11 agentes comunitários de saúde, 02 enfermeiras, 04 técnicos de enfermagem, 02 médicos, e em momentos eventuais, o administrador. Os profissionais são todos concursados, casados, apenas dois são do sexo masculino. A maioria, com exceção de dois médicos, atua na unidade desde a sua inauguração no final de 2002. Com uma carga horária de 40 horas, apenas 0l ACD, 01 técnica de enfermagem e 02 médicos têm outros vínculos trabalhistas.

O primeiro passo desse processo foi procurar identificar a sistemática de encontro das equipes, onde percebemos que não tinham uma rotina de encontros. O tempo estava todo preenchido com procedimentos de rotina. O passo seguinte foi abrir espaço nessa agenda para reflexão do cotidiano. Após freqüentar algumas reuniões percebemos que a equipe só tratava de questões administrativas, ou planejamento de algum evento, algumas com registro em livro de ata, outras sem nenhum registro. Embora a unidade de saúde da família, ao longo dos seus seis anos de trajetória, já tenha sido merecedora de algumas premiações pelas iniciativas de rodas de conversas, pelo processo de acolhimento implantado e o curso para gestantes, alguns depoimentos revelavam uma equipe com grande potencial, mas cansados de uma rotina que parecia não ser a prometida pela ESF.

Pactuamos naquele momento doze encontros, inicialmente quinzenais, com duração média de três horas. Inicialmente foi esclarecido às equipes o objetivo do trabalho e da proposta metodológica, onde o tema saúde mental seria abordado como desdobramento do processo de apoio institucional. Com o consentimento do grupo, as opiniões, sentimentos e discussões oriundos das oficinas de trabalho foram registrados em livro-ata devidamente assinado por todos os participantes. Os encontros foram organizados em forma de oficinas de trabalho, dedicadas à discussão sobre as diretrizes da Estratégia Saúde da Família e sua interface com a Saúde Mental, interface aqui entendida como a dimensão pragmática do encontro, isto é, aquilo que pode ser feito, transformado ou negociado pelas equipes frente às demandas de saúde mental. Nesses encontros os profissionais destacaram que o trabalho em saúde no território, facilitava a construção de vínculos e a continuidade do tratamento. Alguns apontaram para importância de serem conhecidos pelo nome e de conhecerem os usuários não pelo número de prontuário. Outros reiteraram a possibilidade da ESF facilitar a identificação de famílias em situação de risco ou em maior grau de vulnerabilidade, embora reconheçam também que, na prática, as coisas não funcionam tão bem. Afirmam ter filas de espera, dificuldades de acesso a exames e consultas especializadas, recursos humanos e materiais insuficientes e uma rotina não muito diferente da época anterior à ESF. Relataram que a abordagem comunitário-familiar, embora tenha possibilidade de inserção no cotidiano das famílias, também promove o encontro dos profissionais com situações de abandono, de violência, com questões de cunho econômico e social, para as quais não se sentem preparados para lidar, o que tem gerado sentimentos de angústia e impotência. Isso gerou o seguinte questionamento para as equipes: que modalidade de trabalho é essa que ao cuidar das pessoas, circular no seu cotidiano, gera uma carga insuportável para as equipes?

Em relação às demandas e estratégias de acolhimento em saúde mental foram trabalhados aspectos do cotidiano e as dificuldades impostas pela rotina de trabalho centrada em consultas e exames. Esse processo foi orientado por duas questões: Quais demandas as equipes identificam como sendo de saúde mental? O que as equipes identificam como forma de intervenção para as demandas identificadas?

Em termos das concepções dos profissionais acerca da saúde mental e das demandas identificadas, a maioria das respostas expressa uma concepção ampliada das equipes em relação à saúde mental, pois os profissionais não restringem à doença mental, sintonizada com o exposto por Amarante (2007, p.16):

quando nos referimos à saúde mental, ampliamos o espectro dos conhecimentos envolvidos, de uma forma tão rica e polissêmica que encontramos dificuldades de delimitar seus limites. Saúde Mental não é apenas psicopatologia, semiologia [...] ou seja, não podem ser reduzidas ao estudo e tratamento das doenças mentais.

Em diversos momentos as equipes identificam situações que vão desde problemas de vínculo familiar e social, desemprego, abandono, desamparo, problemas existenciais, até questões de transtorno mentais, propriamente ditos. Algumas falas, a seguir, evidenciam essa questão:

pessoas que vem na unidade, que não encontram em casa apoio ou alguém que as escutem, para mim essas são demandas de saúde mental (ACS)” ou “acho que aqueles pacientes que na visita, começam a chorar, carentes de uma escuta, quase não deixam a gente sair...falam de preocupações. Acho que essas também são demandas de saúde mental (médico).

Além desses relatos, outros profissionais tentaram explicar que condições de vida são importantes determinantes no processo saúde-doença, expressando uma compreensão do sofrimento psíquico sendo influenciado por questões de cunho social e afetivo. Podemos observar nos depoimentos a seguir:

é um desamparo, um não ter com quem contar. Muitas vezes falta até comida, tudo isso só pode alterar o comportamento da pessoa” (ACS)” ou “falta de emprego, para mim é demanda de saúde mental, pois acarreta desajustes na família (Aux. Enfermagem).

Também citaram com frequência situações onde a resistência de alguns pacientes em aderir ao tratamento também é considerada demandas de saúde mental:

pacientes que sabem que não podem fazer, mas fazem...Dona M. comeu uma banda de melancia, tem diabetes, e esta ficando cega. Porque o sujeito vai no sentido da destruição? (Enfermeira)

ou

resistência de alguns pacientes ao tratamento hipertensos, diabéticos, ou mães que se negam a amamentar os filhos, mesmo sabendo da importância do aleitamento (Enfermeira).

Algumas respostas demonstram a preocupação dos profissionais com o excesso de medicações prescritas diariamente e as constantes renovações de receitas. É percebida também a crescente procura de pessoas dependentes dos mais variados benzodiazepínicos, o que já levou a equipe a mapear os casos, ficando evidente também o não saber o que fazer diante dessa situação:

mapeamos todos os casos de pessoas que utilizam medicação controlada, são muitos, mas não fizemos nada com isso ainda, também não sei muito que podemos fazer, acredito que nesses encontros a gente possa descobrir (Dentista).

É possível observar que a medicalização dos sintomas ainda é uma prática comum na ESF, aonde as constantes renovações de receitas vêm denunciar a tentativa de tornar “médico” aquilo que é da ordem do afetivo, do existencial. Busca-se responder às situações do cotidiano, sofrimentos, desamparo, questões sociais, políticas e econômicas, de forma a enquadrá-la em alguma patologia. Nessa linha de pensamento Amarante (2007), afirma que o termo medicalização está relacionado à possibilidade de se fazer com que as pessoas sintam que os seus problemas, são problemas de saúde e não próprios da vida humana. Por exemplo, uma grande tristeza após a perda de um familiar que, ao ser “medicalizada”, torna-se uma “depressão” e a pessoa um “paciente deprimido”. Quanto aos casos de transtorno mental propriamente dito, apontam características de pessoas com comportamentos inusitados tal como indica as falas:

pessoas com medo de tudo e de todos (ACS);

mau humor, pessoas que acham que todos as agridem, sem nem um motivo (ACS);

fobias, medos aparentemente sem motivo. Tem gente que é complicado...É a tal da subjetividade (Dentista).

Comportamentos violentos também foram identificados associados ao uso abusivo de álcool e outras drogas. Essas situações foram relatadas com muita preocupação e angústia por muitos ACS, demonstrando que circular no cotidiano das famílias, nas suas histórias gera angústia, medo e sentimentos de impotência, muitas vezes paralisando as equipes:

uma família que a mãe é alcoólatra e vive com vários parceiros, e ninguém trabalha dentro de casa... A gente nem sabe por onde começa a agir (ACS);

mulher aprisionada pelo marido obrigada a servir outras pessoas....A gente sabe, vê, mas não consegue fazer muita coisa (ACS);

drogas dentro de casa, muitas vezes entre pais e filhos. . é muito complicado (Aux. Enfermagem).

A segunda questão trabalhada dizia respeito às formas de intervenção já desenvolvidas pelas equipes diante das questões acima relatadas. Dentre as estratégias mapeadas o encaminhamento para consultas especializadas foi uma das respostas bastante citada:

para essas questões vejo que a saída é encaminhar ao especialista...  Sabendo que é difícil já que a rede não tem psicólogo e psiquiatra (Dentista);

encaminhamos para acolhimento Psicológico, mas é difícil, nunca tem vaga (ACS);

encaminhá-los aos especialistas, com distinção.Tem casos que só o psiquiatra resolve (Aux. Enfermagem).

Nos relatos observamos que o profissional “psi” é ressaltado pelas diversas categorias profissionais, demonstrando claramente a dificuldade das equipes em lidar com essas demandas, e ao mesmo tempo, reduzindo o campo de atuação em saúde mental à psiquiatria, embora anteriormente os profissionais tenham apresentado concepções ampliadas sobre o sofrimento psíquico. Tomando em particular a fala da enfermeira abaixo, a demanda por um espaço que possibilite a discussão de casos, principalmente daqueles considerados mais complexos, foi apontada como valiosa atividade a ser incorporada de forma sistemática pelos profissionais. Demonstra a necessidade de se inserir a dimensão do trabalho em equipe no modo de produção do cuidado, recurso indispensável para superação dos limites impostos por uma rotina pautada no detalhamento das funções e no isolamento das práticas:

reunir a equipe e tornar conhecido de todos os problemas do paciente, buscando um novo olhar para ter como lidar com o paciente, e juntos buscarmos novos recursos nos casos que ainda não encontramos respostas. Ex: continuar monitorando o paciente e a família para não ter um trabalho em vão, ou seja, sem resposta, precisamos disso (Enfermeira).

Na mesma linha de pensamento Merhy (1997) destaca que o aprisionamento de cada um em seu núcleo específico de saberes e práticas aprisiona o processo de trabalho em estruturas rígidas do conhecimento técnico-estruturado, tornando trabalho morto dependente. Ao contrário, o campo de competências ou o campo de cuidado, além da interação, abre a possibilidade de cada um usar todo seu potencial criativo e criador na relação com o usuário, para juntos realizarem a produção do cuidado. Esse autor reflete ainda sobre a capacidade que a ESF tem de possibilitar a construção de vínculos e a continuidade do tratamento, evitando assim o abandono dos casos mais complexos. Apostando na equipe, aqui compreendida como espaço coletivo de ação e reflexão, abre-se espaço também para a implantação do projeto terapêutico como forma de intervenção. Lancetti (2006) afirma que no caso de saúde mental no contexto saúde da família, a idéia de complexidade é invertida, pois é no nível primário da rede básica que as ações devem ser mais complexas: lidar com a família, com as pessoas em crise, com vizinhança e com os atores sociais no território em que vive.

Observamos também que o trabalho das equipes não se restringe a encaminhamentos. Há um avanço da reflexão em torno da importância de recorrer ao acolhimento como forma de escutar as pessoas, sendo um dos recursos fundamentais no cuidado em saúde mental. Referem-se, dessa maneira, a uma variedade de formas de intervenção ainda incipientes como as rodas de conversa, atividades culturais em grupo, a terapia comunitária, que são estratégias preciosas para operar mudanças nas formas de intervir nas questões de saúde mental. Contudo, consideram que diversificar as atividades impostas pela rotina de trabalho é um grande desafio:

sabemos que o acolhimento é fundamental nos serviços de saúde, muitas pessoas chegam chorando, precisando de uma consulta médica, ao serem ouvidos a necessidade muda. O problema é que a rotina de trabalho não nos permite (Dentista).

Fica explicito no depoimento o reconhecimento da equipe quanto às limitações impostas pela rotina de trabalho, vindo a dificultar a experiência da escuta no processo de cuidado em saúde, passo indispensável quando se busca não só identificar o contexto no qual se originam as enfermidades e o sofrimento das pessoas, mas a tão esperada implicação do sujeito no processo de cuidado, criando a possibilidade do usuário sair de uma condição de paciente-objeto para condição de sujeito. Em função disso, observamos que a abordagem terapêutica da equipe fica marcadamente voltada para eliminação de sintomas, para a busca da cura, o que vem justificar as constantes renovações de receitas, prática anteriormente citada. Tal reducionismo vem fragmentar em grau insuportável, o processo de trabalho em saúde dando lugar aos especialismos. Isso nos leva a uma reflexão sobre as questões micropolíticas do processo de trabalho em saúde e seus ruídos, pois segundo Merhy (2002) a possibilidade de escutar os ruídos do cotidiano institucional é parte de ferramentas analisadoras dos processos institucionais e pode permitir a reconstrução de novos modos de gerir e operar o trabalho em saúde. Permite interrogar sobre a captura do trabalho vivo e sobre a constituição do processo intercessor. O mesmo autor afirma ainda que o trabalho vivo em ato (o vínculo, a escuta, a gestão do cuidado) são secundarizados historicamente em favor da produção de procedimentos mediados por equipamentos e instrumentos médicos.

Essa clínica exclusivamente biomédica reduz o campo de apreensão das necessidades em saúde da população, fazendo com que problemas tipo alcoolismo, abuso de álcool e drogas, depressão, suicídio, violência, as mais diversas situações cotidianas não encontrem espaço, limitando a abordagem das equipes frente a essas questões. Várias discussões em saúde coletiva tiveram como objeto o estudo crítico das práticas médicas, demonstrando que a medicina opera com um objeto reduzido, o que traz implicações negativas tanto para seu campo de saberes quanto para seus méritos e técnicas de intervenção. Apostar numa clínica centrada no sujeito, na sua existência concreta sem, contudo, deixar de considerar a enfermidade como parte dessa existência, parece ser o caminho. Precisamos refletir sobre essa prática que define um padrão a ser seguido, reforçado por programas, rotinas e protocolos, que exerce um poder sobre os profissionais diminuindo sua potencialidade.

Questões referentes à organização de serviços são trazidas a todo o momento no desenvolvimento do trabalho de apoio institucional. A insuficiência de recursos humanos se faz presente em vários relatos e vem ser responsável, em parte, pela sobrecarga de trabalho dos profissionais, assunto que vem ocupando lugar nas reuniões semanais das equipes, restringindo o planejamento, muitas vezes, às atividades de cunho administrativo, como podemos observar no depoimento a seguir:

a rotatividade dos médicos, a falta do arquivista, as dificuldades do processo de trabalho, interferem no processo da equipe, recebemos agressões dos usuários ao longo dos tempos, impossibilita...hoje o lugar que mais fico feliz é dentro  do consultório, cada um vai se afastando e perdendo a dimensão coletiva., talvez uma sacudida assim possa recuperar o gás inicial (Dentista).

Outra questão de extrema importância diz respeito ao espaço físico da unidade. Considerada inadequada pelos profissionais, a pequena casa, embora reformada, não atende as necessidades exigidas pela rotina de trabalho e se distancia dos princípios da Política Nacional de Humanização que vai de encontro à desvalorização do trabalho e a desqualificação da atenção. Porém, mais grave é a produção de sentimentos de desvalorização e sobrecarga na equipe:

não temos ambiente para acolher as pessoas nesta casa, não consigo atender direito, onde esta à humanização? (Aux. de enfermagem); continuo com o pensamento construtivo, mais hoje vejo que o sistema me impõe muitas limitações, sinto-me cansado (Médico).

A análise da cena cotidiana dessa equipe é atravessada por outras limitações impostas que vão além da insuficiência de recursos humanos e materiais. A falta de acessibilidade dos usuários aos serviços em função da burocracia administrativa produz intenso sofrimento e adoecimento da equipe. Sentimentos de angústia e impotência são revelados a seguir:

a população é grande e as áreas descobertas nos tornam impotentes, quando vejo uma pessoa com uma receita na mão até me escondo...a gente fica triste por não poder ajudar as pessoas (Aux. de enfermagem).

A relação entre a organização do processo de trabalho da equipe e a falta de acesso da população aos serviços, são questões que nos remetem ao modo como os serviços estão organizados. A existência dos fora de área vem nos revelar que a ESF não garante o acesso de todas as famílias aos serviços de saúde. Ou seja, é preciso aumentar o número de equipes de saúde da família, ampliando sua cobertura e também investir em novos modos de organização de processo de trabalho.

Indagamos à equipe quais os sentimentos vividos ao iniciarem suas atividades na ESF. Alimentavam um sonho que a ESF ia facilitar o acesso da população aos serviços e resolver os problemas de saúde da população. Na medida em que os profissionais falam, observamos certo grau de decepção, um desencanto na sua trajetória na ESF. Acreditava-se, de fato, que apenas uma mudança na organização do modelo de atenção, alcançaria melhores níveis na qualidade de vida da população. Porém, ressaltam que a ESF não vem conseguindo romper com o modelo centrado em consultas e encaminhamentos, e na prática, ser diferente da rotina tradicional dos serviços de saúde. Sem significativas alterações no processo de trabalho, os profissionais continuam com uma prática de promoção e prevenção “sobre os usuários” e não “com a participação ativa dos usuários”. Busca-se, dessa forma, resolver os problemas da população carente, sem, contudo facilitar que os sujeitos envolvidos reconheçam e expressem seus desejos e interesses, resolver por eles e não com eles. Investe-se em uma prática que nutre cada vez mais a dependência, não favorecendo a autonomia ou a co-responsabilidade.

Mediante a revelação de tantos sentimentos, expectativas, dúvidas, sonhos, conquistas e decepções, uma última pergunta foi feita aos profissionais: O que consideram ter construído na sua trajetória na ESF? Obtivemos falas que demonstram a construção de laços de solidariedade na equipe, sentimentos de partilha, de troca, de companheirismo, de fortalecimento de uma equipe mesmo diante das dificuldades vivenciadas na sua trajetória na ESF. Em outros depoimentos podemos observar a força da equipe e seu processo de crescimento pessoal, mesmo diante das dificuldades relatas ao longo deste trabalho: “Hoje sou uma pessoa diferente, sou mais do que uma agente (ACS)”.

 

Considerações sobre a experiência de Apoio Institucional

Apostar em novos modos de produção do cuidado foi o principal objetivo dessa experiência. Tratava-se de possibilitar mudanças na cultura de atenção aos usuários e da gestão dos processos de trabalho. Buscava-se investir em um novo modo de interação entre os sujeitos. Para tanto era preciso manejar ferramentas que possibilitassem o diálogo entre os profissionais e usuários e recursos que ampliassem a capacidade de análise e a tomada de decisão pelos trabalhadores. Nossas limitações iniciais nesse processo de Apoio Institucional podiam ser traduzidas nas seguintes questões: Como instituir o hábito do encontro entre os trabalhadores? Como instituir o hábito de análise e de tomada de decisão de forma coletiva, quando o modo de trabalho, mesmo sendo organizado com equipes multiprofissionais, é de forma isolada, com uma agenda organizada por programas e que pouco se investe no acompanhamento de resultados? É possível apostar na construção de projetos de intervenção construídos coletivamente fora desse núcleo biomédico? Essas questões disparadoras do trabalho de AI foram sendo enfrentadas paulatinamente com a sistematização dos encontros com as equipes, que passavam a ser semanais e não mais quinzenais como previsto inicialmente. Essa organização possibilitou observar que a constituição das rodas voltadas à reflexão da prática fazia toda diferença no cotidiano dessas equipes. Aos poucos, saíamos do lugar de vítima, desresponsabilizadas de todo o processo e passávamos a buscar saídas para os impasses coletivamente. Trazer para as rodas as visitas domiciliares realizadas pelos profissionais, principalmente pelos dos agentes comunitários de saúde, foi algo extremamente positivo, pois possibilitou a priorização e compartilhamento dos casos de pacientes com transtorno mental severo, com histórias de internação em hospitais psiquiátricos, pacientes que não permitiam a entrada da equipe em suas casas, casos graves de depressão, uso abusivo de álcool e outras drogas o que possibilitou a construção de agendas de visitas partilhadas. A discussão sobre clínica ampliada, projeto terapêutico e a construção de vínculos, auxiliada pela leitura de textos passaram a fazer parte. Além do desenvolvimento de novas habilidades, foi possível observar que as equipes passaram a ter maior segurança no acolhimento em saúde mental, e aos poucos, os grupos e caminhadas foram retomados, ainda com uma tímida participação de alguns pacientes psiquiátricos. As sessões de terapia comunitária foram recomendadas para os casos de depressão, queixa de abandono, insônia, para pessoas dependentes de benzodiazepínicos, familiares de alcoolistas e usuários de drogas, e outras questões de cunho emocional. Nesse sentido, é possível afirmar que a experiência de apoio institucional realizada nessa unidade de saúde funcionou como um dispositivo1 de reordenamento dos processos de trabalho na atenção básica. Além disso, acionou mecanismos instituintes2 de novos modos de cuidado, rompendo com práticas repetitivas, cristalizadas, cronificadas.

 

Considerações Finais

A Estratégia Saúde da Família vem provocando mudanças no modo de produzir saúde, pois incorpora em sua forma operativa a família e a comunidade, enquanto unidades relevantes para a efetivação de ações e serviços de saúde, situando-os em seu contexto histórico e social. No entanto observa-se a fragilidade das ações na atenção básica, em função das limitações de um processo de trabalho focado na medicalização dos sintomas. Foi possível nesse trabalho identificar que as estratégias de intervenção em saúde mental ainda estão centradas no atendimento médico, na dispensação de medicamentos e no encaminhamento para as internações psiquiátricas principalmente dos casos mais graves. Não percebemos, portanto, substancial alteração na forma de intervenção dos profissionais frente às demandas em saúde mental, sendo essa aproximação um processo insuportável para maioria dos profissionais.

Percebemos ainda ao longo desse percurso que a ênfase na abordagem farmacológica tem gerado certa “medicalização” das situações estressantes da vida, sendo o desemprego, abandono, desamparo, problemas de cunho sócio-econômico transformados em sintomas, resultando em constantes renovações de receitas. Acreditamos que a não ampliação desse núcleo biomédico de atuação dificulta o acolhimento das demandas de saúde mental na atenção básica. Esses momentos revelaram ainda algumas iniciativas importantes das equipes, embora incipientes, enquanto possibilidade de ruptura com essa cultura medicocêntrica, ao recorrem à prática do acolhimento como forma de abrir um canal de escuta aos usuários, ao adotarem a dança, o artesanato, a poesia, a terapia comunitária junto aos usuários do serviço. As ações em saúde devem promover uma ampliação do suporte psicossocial (voluntários, cooperativas de trabalho, amigos, familiares, religiosos, espaços de convivência, grupos de caminhadas, etc.), devendo utilizar a maior gama possível de recursos comunitários para ajudar as pessoas a retomarem o controle sobre as suas vidas, sempre em busca da maior autonomia possível. Para tanto se faz necessário implantar um processo de educação continuada, que possibilite diversificar as estratégias de assistência. Nessa vertente de habilidades enquadram-se as estratégias de intervenção comunitária como a terapia comunitária, a massoterapia, além de habilidades para o manejo e a organização de grupos: de familiares de pacientes com transtornos mentais, grupo de mulheres dependentes de benzodiazepínicos, da constituição de grupos de queixas difusas e outros. Portanto, o momento em que vivemos nos convida a assumir o desafio da construção de uma rede de ações que envolva dispositivos de saúde e dispositivos comunitários, onde o caminho do tratamento tenha como eixo central o sujeito e suas vicissitudes. Nessa lógica de atendimento o cuidado deve ser compartilhado, intensificado, seja na atenção básica, seja nos serviços especializados, de forma que o lócus do tratamento seja mutável, ampliando-se os espaços sociais de acolhimento da loucura. Por fim, reiteramos que o apoio institucional é uma proposta que pode estabelecer uma conexão entre saúde mental e a Estratégia Saúde da Família e fomentar práticas de cuidado condizentes com a perspectiva da atenção psicossocial.

 

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Endereço para correspondência
Silvana do Carmo Maia Barros
Secretaria Municipal de Saúde de Natal-RN, Rua Potiguares, s/nº, CEP 59062-280‎, Natal-RN, Brasil
Endereço eletrônico: silvanamaiabarros@hotmail.com
Magda Dimenstein
UFRN, CCHLA, Deptº de Psicologia, Campus Universitário, Lagoa Nova, CEP 59.078-970, Natal-RN, Brasil
Endereço eletrônico: magda@ufrnet.br

Recebido em: 20/06/2009
Aceito para publicação em: 17/08/2009
Acompanhamento do processo editorial: Deise Mancebo, Marisa Lopes da Rocha, Roberta Romagnoli.

 

 

Notas

* Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela FIOCRUZ.
** Doutora em Saúde Mental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e Pesquisadora do CNPq.
1 Montagem de um artifício que possa produzir acontecimentos, inovações no cotidiano do grupo (BAREMBLITT, 1992).
2 Instituinte é a dimensão transformadora, da processualidade, que faz emergir o novo, que rompe com a lógica de funcionamento enrijecida (BAREMBLITT, 1992).