APRESENTAÇÃO

 

Ferramentas conceituais e metodológicas para o trabalho coletivo: pesquisas em análise

 

 

Roberta Carvalho Romagnoli I,*; Marisa Lopes da Rocha II,**

I Professora do Mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-MG, Belo Horizonte, MG, Brasil
II Professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Este número da Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia constitui-se a partir de uma iniciativa do GT Políticas de subjetivação, invenção do cotidiano e clínica da resistência da ANPEPP que, em parceria com membros dos GT´s Subjetividade, conhecimento e práticas sociais e História da Psicologia e com colaboradores de outras áreas, como, medicina e enfermagem vinculados à ABRASCO, decidiu produzir um dossiê que tratasse da construção de novas metodologias para o trabalho coletivo e ações institucionais. A perspectiva é, portanto, a de afirmar outros parâmetros que facultem análises do que se passa nos diversos campos de investigação e intervenção dos trabalhadores sociais, apontando para a transdisciplinaridade e para as implicações dessas práticas com as políticas públicas e com a produção de subjetividades. Por políticas públicas entendemos a transversalização da dimensão macropolítica de análise que aponta para as instituições de âmbito representacional, com a dimensão micropolítica que se constitui no modo como os coletivos se tensionam entre assujeitamentos e conexões de expansão da vida nos diferentes territórios de trabalho. As demandas por outras ferramentas de investigação surgem de setores de nossa realidade que vêm se mostrando resistentes às transformações com o que dispomos para trabalhar, surgindo uma insatisfação com os limites de nossas ações em suas capacidades de interceder a favor da ampliação da qualidade de vida. A pesquisa com grupos, comunidades, movimentos sociais requer o dimensionamento das bases conceituais e metodológicas para que possam ultrapassar as fronteiras espaciais e abordar o campo de forças que instala um em comum produtor de outros modos de existência a começar pela própria relação entre pesquisador e pesquisado.

Observamos que essa insatisfação não surge somente do cotidiano profissional nos equipamentos de prestação de serviços, mas também no seio da própria academia que, nos dias de hoje, através de muitos pesquisadores, vem colocando em xeque a produção de conhecimento e o ato de pesquisar sustentados pelos ideais da modernidade. Ideais, estes, intensificados pelos mecanismos neoliberalizantes da produtividade e da competitividade. A primazia da razão em detrimento de outras fontes de saber, a busca da objetividade e da generalização que perseguem esquemas deterministas nas constantes avaliações, a neutralidade do pesquisador, como condições sine qua non para a manutenção do atributo de cientificidade e conseqüente respeitabilidade profissional, são cada vez mais questionadas por muitos. A ciência, tecendo novos paradigmas, esforça-se, assim, para rastrear a complexidade e a transdiciplinarização, interrogando os conhecimentos que se impõem como verdade, simplificando e modelizando a vida, com o objetivo de torná-la previsível e quantificável a partir de um espaço inteligível de certezas.

Dessa maneira, tanto as demandas sociais cotidianas que chegam à academia, como a complexificação crescente da realidade na qual nos constituímos, a aceleração e a mutabilidade que se expressam em problemáticas múltiplas, aliadas à constatação da provisoriedade e circunstancialidade de possíveis respostas, nos conduzem a metodologias de pesquisas interventivas, a partir de nosso próprio lugar. Metodologias que pretendem a criação de novos dispositivos a cada vez e que permitam acompanhar a processualidade dos modos de subjetivação que buscamos cartografar. Isso implica sustentar um plano de indagação que provoque o pensar, uma dobra sobre si mesmo que agencie a vida de maneira processual e singular em conexão com o ato de pesquisar. O desafio está em desarticular os hábitos e discursos instituídos, dando passagem aos paradoxos e às relações potencializadoras que nos lançam à invenção, pois é nesse jogo que se dá a construção do conhecimento.

Rigor e precisão localizam-se, assim, na constituição de planos de imanência, entre sensibilidade e razão, colocando em análise o que se passa no campo de experimentação. São esses movimentos que fazem da vida e da pesquisa um território de criação de outros possíveis.

Cabe ressaltar que os artigos que se seguem, realizam-se no esteio de muitas mãos, mãos do além mar, de outras terras, mãos habitando GTs ou outras associações de pesquisa, enfim, mãos anônimas que nos atravessaram no percurso do trabalho, tensionando-o e nos convocando a vivê-lo, incluindo aí no encargo da escrita. Somos muitos e múltiplos, abraçando o desafio de operar questões contemporâneas na turbulência que se abre à produção de conhecimento como uma atividade coletiva em que transformar é agenciar práticas de ruptura, de si e do mundo, tendo, portanto, uma dimensão ético-política. Acreditamos que essa dimensão deve ser cada vez mais afirmada, com o intuito de facultar bifurcações na produção de subjetividade que nos propomos interferir/conhecer e de contribuir, de forma inventiva, para o desdobramento das situações vividas como impasses com as quais a psicologia se depara na atualidade. Entendemos que é preciso produzir estratégias singulares que burlem a serialização em curso e a reprodução via agenciamentos, conexões. Entre saberes, práticas, profissões, GT´s, somos convocados às artes de fazer, como constatamos a seguir. O artigo “Analyser ses implications dans l’institution scientifique : une voie alternative” de Gilles Monceau nos traz uma breve revisão da trajetória do conceito de implicação na obra de René Lourau, mostrando que as implicações com as instituições em jogo e efeitos de seu processo na pesquisa não impedem o seu fazer, mas são antes sua condição de produção. Partindo das mudanças paradigmáticas que vêm ocorrendo no pensamento científico contemporâneo, Saul Fuks, em seu artigo “En primera persona: investigando mundos de los que somos partes” questiona a neutralidade e a objetividade da produção de conhecimento, estabelecendo que o processo de pesquisa transforma pesquisador e pesquisado. Enquanto construção conjunta, participações e conversações agenciam sempre outros sentidos. Ao analisar a inserção da saúde mental no programa Estratégia Saúde da Família, Silvana do Carmo Maia Barros e Magda Dimenstein, no texto “O apoio institucional como dispositivo de reordenamento dos processos de trabalho na atenção básica”, utilizam a roda de conversa e a terapia comunitária como ferramentas metodológicas. A partir desse dispositivo as autoras rastrearam, no discurso das equipes, a conexão entre saúde mental e atenção básica. Em “Entreatos: percursos e construções da psicologia na rede pública de ensino”, Marisa Lopes da Rocha e Kátia Faria de Aguiar, trazem à discussão a pesquisa que vem se constituindo com a Rede de Proteção ao Educando no ensino público do Rio de Janeiro, abordando a formação dos trabalhadores sociais como um processo desafiador de novos conceitos e práticas institucionais na perspectiva ético-estética e política. O artigo “Pesquisa-intervenção e cartografia: melindres e meandros metodológicos” de Simone Paulon e Roberta Romagnoli debate reducionismos que as pesquisas baseadas na racionalidade científica oferecem aos estudos da subjetividade, evocando para isso, insinuações que já no século XIX Dostoiésvskifazia em suas Memórias de Subsolo. Examina diferenças e aproximações entre a modalidade da pesquisa-intervenção e as abordagens cartográficas para justificar a emergência de novos instrumentais científicos que permitam acompanhar a complexidade e a processualidade dos modos de subjetivação atuais. Em “Noturnos urbanos: interpelações da literatura para uma ética da pesquisa”, Luis Antonio dos Santos Baptista, através da literatura e da fotografia, traz a polêmica da ética da pesquisa nas ciências humanas sob o enfoque transdisciplinar, refletindo as políticas e, a partir do conceito foucaultiano de poder como produção, os efeitos do poder na construção e análise dos objetos das práticas psi. Entre tecnologias de poder e linhas de fuga, Leila Domingues Machado e Maria Cristina Campello Lavrador, através do artigo “As políticas que incidem sobre a vida”, colocam em discussão a concepção de reapropriação existencial enquanto uma prática ética em que as políticas de pensamento e ação se constituem em consonância. Implicar-se na produção de comuns é o desafio para novas condições biopolíticas da existência. Tendo como referência as formulações mais recentes da sócio-análise francesa e da Etnometodologia, Manoel Mendonça Filho e Michele de Freitas Faria de Vasconcelos no artigo “Questões de método e pesquisa dos dispositivos biopolíticos de confinamento do presente”, tratam de problemáticas de pesquisa quando a questão está na análise das formas de objetivação das assim chamadas ”políticas públicas” de segurança e saúde mental que vêm compondo com o confinamento dos últimos vinte anos. O artigo “Micropolítica do processo de acolhimento em saúde”, de Cláudia E. Abbês Baeta Neves e Ana Lucia C. Heckert, analisa o processo de acolhimento nas práticas de saúde, pela micropolítica que vem agenciando nos processos interventivos no campo da saúde e da educação. Nesse percurso, os conceitos de encontro, gestão e ética estarão em discussão. Em “O delírio como método: a poética desmedida das singularidades”, Tania Mara Galli Fonseca et al, têm como questão a produção de conhecimento em sua poésis, como linha de fuga aos métodos que buscam as estabilidades e universalizações. Trata-se, portanto, de cartografar efeitos de superfície em que deslizam experiências que desdobram sentidos, criando múltiplos estilos de existência. Partindo do conceito deleuziano de intercessor, Heliana de Barros Conde Rodrigues em seu artigo “A história oral como intercessor: em favor de uma dessujeição metodológica”, analisa a oralidade não só como fonte de narrativa, mas também como dispositivo que permite a emergência de forças rizomáticas, favorecendo a abertura para singularizações. Esse dispositivo permite o escape às leituras dominantes e transcendentes presentes nas pesquisas sociais. Mônica de Oliveira Nunes et al, em seu texto “A articulação da experiência dos usuários nas microculturas dos Centros de Atenção Psicossocial: uma proposta metodológica” desenvolvem uma metodologia qualitativa de avaliação no campo da saúde mental, que leva em consideração a subjetividade, abordando as produções de significados de usuários, familiares e profissionais em sua relação com o CAPS. O artigo “Oficinas de construção de indicadores e dispositivos de avaliação: uma nova técnica de consenso” de Rosana Teresa Onocko Campos et al, apresenta uma pesquisa participativa constituída por meio de oficinas. Este trabalho avalia as vantagens de tais dispositivos frente às técnicas tradicionais de consenso, uma vez que aumentam a diversidade dos atores e as inserções sócio-políticas dos participantes. No artigo “Avaliando a política de saúde mental num CAPS: a trajetória na luta antimanicomial”, Luciane Prado Kantorski et al, trazem o estudo de cunho etnográfico de um CAPS do Rio Grande do Sul com a perspectiva de colocar em questão o modo como a política de saúde mental vem atravessando a gestão local na luta antimanicomial. Marcelo de Almeida Ferreri e Maria Teresa Nobre, no artigo “A festa dos canos e a noite das facadas: a pesquisa etnográfica e o estatuto das falas dispersas no campo”, analisam uma investigação etnográfica sobre a violência na rede pública de saúde em Aracaju, evidenciando que um acontecimento discursivo pode se tornar acontecimento no âmbito da produção da pesquisa. Em “A busca ativa como princípio político das práticas de cuidado no território”, Ruben Artur Lemke e Rosane Azevedo Neves da Silva examinam o procedimento da busca ativa como dispositivo presente nas práticas de saúde. Em suas análises, os autores rastreiam configurações e dimensões em articulação com o território, desvelando ora sua utilização como mecanismo de controle, ora sua potência de criação.

Como podemos perceber, os escritos aqui apresentados, compõem em seu conjunto, um território que aborda múltiplas instituições e uma diversidade de serviços com a perspectiva de afirmar referenciais teórico-metodológicos para as práticas de resistência que insistem na invenção de outros modos de subjetivar na sociedade contemporânea. Porém, mais do que apresentar métodos, técnicas, trabalhos e investigações, as propostas de pesquisa e de intervenção, aqui, constituem-se em uma atitude que convida o leitor à composição de um campo de experimentação entre nós e à interrogação de suas próprias práticas. Isto é o que entendemos como densificação de um plano de forças em que informação é dispositivo para um coletivo que se desdobra num devir grupo. É o que desejamos à ANPEPP, associação por um fio, correndo o risco entre o exercício da autonomia e o compromisso com a criação de novos possíveis. Se não queremos modelos em repetição sem fazer diferença o outro e sua imprevisibilidade têm que entrar em cena. É este o desafio e o convite dos artigos que se seguem.

 

 

Endereço para correspondência
Marisa Lopes da Rocha
UERJ, Rua São Francisco Xavier, 524, Instituto de Psicologia, 10º andar, Maracanã, CEP 20550-013, Rio de Janeiro - RJ, Brasil
Endereço eletrônico: marisalrocha@uol.com.br
Roberta Carvalho Romagnoli
Programa de Pós Graduação em Psicologia da Pontifica Universidade Católica de Minas Gerais, Av. Itaú, 525, Edifício Redentoristas, 1º subsolo, Bairro Dom Cabral, CEP 30535-012, Belo Horizonte - MG, Brasil
Endereço eletrônico: robertaroma@uaivip.com.br

 

 

Notas

* Psicóloga, Mestre em Psicologia Social pela UFMG, Doutora em Psicologia pela PUC-SP.
** Pesquisadora CNPq, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP.