Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e87194, doi:10.12957/epp.2025.87194
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

A Racialização do/a Negro/a de Pele Clara em Episódios de Racismo Cotidiano

 

The Racialization of Light Skinned Black People in Episodes of Everyday Racism

 

La Racialización de los Negros de Piel Clara en los Episodios del Racismo Cotidiano

 

Carolina da Silva Pereira a, Lia Vainer Schucman b

a Universidade Federal do Rio do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
b Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Analisar o processo de racialização e de pertencimento racial de pessoas negras de pele clara a partir de cenas do racismo cotidiano. Utilizamos entrevistas com pessoas negras de pele clara com o intuito de compreender como se dá o processo de constituição subjetiva e de pertencimento racial desses sujeitos. Optamos por enunciar episódios de racismo dos seus cotidianos para análise dos sentidos socialmente atribuídos aos seus corpos e quais os efeitos subjetivos que esses produzem em sua racialização. Tornou-se possível afirmar a existência de um lugar social específico para a pessoa negra de pele clara, marcado pela negação de sua negritude e pela criação de uma posição simbólica de miscigenação respaldada pelas ideologias raciais hegemônicas no Brasil que formam subjetividades racializadas sob os preceitos da branquitude, os quais produzem estratégias para mantê-las em um processo de alienação racial, além de fixá-las em uma posição social inferior. Tal fenômeno cria barreiras à constituição de uma identidade negra positiva.

Palavras-chave: negro/a de pele clara, parda/o, mestiçagem, identidade racial.


ABSTRACT

Analyze the process of racialization and racial belonging of light-skinned black people based on scenes of everyday racism. We used interviews with light-skinned black people to understand how their process of subjective constitution and racial belonging takes place. We chose to enunciate occurrences of racism from their daily lives to analyze the meanings socially attributed to their bodies and what are the subjective effects that these produce in their racialization. It became possible to affirm the existence of a specific social place for the light-skinned black person, marked by the denial of their blackness and by the creation of a symbolic position of miscegenation supported by hegemonic Brazilian racial ideologies, which form racialized subjectivities under the precepts of whiteness, in which it produces strategies to keep them in a structural position of racial alienation, in addition to fixating them in a social position of inferiority. Such phenomenon creates barriers to the constitution of a positive black identity.

Keywords: light-skinned black person, parda/o, miscegenation, racial identity.


RESUMEN

Analizar el proceso de racialización y pertenencia racial de las personas negras de piel clara a partir de escenas de racismo cotidiano. Utilizamos entrevistas con personas negras de piel clara para comprender cómo ocurre el proceso de constitución subjetiva y pertenencia racial. Optamos por enunciar escenas de su cotidianidad para analizar los significados socialmente atribuidos a sus cuerpos y cuáles son los efectos subjetivos que estos producen en su racialización. Se hizo posible afirmar la existencia de un lugar social específico para el negro de piel clara, marcado por la negación de su negritud y por la creación de una posición simbólica de mestizaje sostenida por las ideologías raciales hegemónicas brasileñas, que forman subjetividades racializadas bajo los preceptos de la blanquitud que producen estrategias para mantenerlos en una posición racial estructural de inferioridad, fenómeno que crea barreras a la constitución de una identidad negra positiva.

Palabras clave: negro/a de piel clara, parda/o, mestizaje, identidad racial.


 

 

Pensar a complexidade das relações étnico-raciais é crucial diante do cenário brasileiro contemporâneo em que as discussões em torno da racialidade negra emergem após a implementação das políticas de ações afirmativas raciais - que são um conjunto de políticas públicas criadas com a finalidade de diminuir as disparidades econômicas, sociais e educacionais relacionadas às desigualdades raciais estruturais em nosso país. Após a aprovação da Lei de Cotas para o ensino superior (Lei nº 12.711, 2012), que estipula a reserva de vagas para estudantes negros/as nas instituições de ensino superior federais do país, amplificam-se os tensionamentos em torno das relações étnico-raciais. A partir de então, observa-se, na última década, um aumento significativo na produção acadêmica e midiática sobre o fenômeno racial no país, ampliando a visibilidade social para a temática. Tanto narrativas raciais hegemônicas, quanto os discursos contra-hegemônicos que problematizam as especificidades do pensamento racial brasileiro e que denunciam o racismo estrutural e as extremas desigualdades raciais dele decorrentes estão presentes no imaginário social hoje, produzindo efeitos importantes. É diante desse contexto de disputas discursivas que a questão acerca da racialidade da pessoa parda de origem africana, potencial beneficiária das políticas de ações afirmativas, ganha destaque. Afinal, quem pode ser considerado/a negro/a no Brasil? As pessoas negras de pele clara podem ser entendidas como pardas, conforme os critérios classificatórios propostos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000), pois tal classificação racial surge justamente da ideia de origens multirraciais, englobando a pessoa que se declara mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça. Historicamente, as pesquisas voltadas às relações raciais no Brasil apontam desde a década de 1970 que as pessoas pardas apresentam condição socioeconômica muito similar à das pessoas pretas (Hasenbalg, 1979), evidenciando que a divisão de renda e de mobilidade social se manifesta através da chave brancas/os e não-brancas/os e que, portanto, não há distinções significativas entre pardas/os e pretas/os no que diz respeito ao status e ao acesso a recursos sociais (IBGE, 2019). Diante desse contexto, o Movimento Negro brasileiro batalhou pela oficialização da classificação racial bipolar entre brancos e negros com o intuito de incluir as pessoas pardas - parcela majoritária da população negra no Brasil - dentro da categoria negra, fortalecendo assim o poder político coletivo em busca da garantia de direitos à população negra brasileira como um todo. Após uma luta histórica criou-se, no ano de 2010, o Estatuto da Igualdade Racial Brasileira, no qual se define negro/a como a soma de quem se autodeclara preta/o ou parda/o, conforme o quesito cor ou raça do IBGE.

O pensamento racial brasileiro é hegemonicamente moldado pela ideologia do branqueamento e pelo mito de democracia racial que, apesar das denúncias históricas, seguem ecoando no imaginário social. O mito da democracia racial é permeado pela narrativa de convivência harmoniosa, pois, apesar das desigualdades sociais, seríamos todas/os miscigenadas/os, formando um povo composto pela raça morena ou "brasileira" (Guimarães, 1999a). Já o ideal de branqueamento se alicerça na falácia da superioridade da raça branca, estruturada em uma escala hierárquica de colorações na qual a cor preta e as suas representações são posicionadas em seu ponto mais baixo, estimulando que a pessoa negra, sob o jugo do racismo, almeje o próprio branqueamento físico e simbólico (Kilomba, 2019; Fanon 2020). Diante desse contexto, é a significação do corpo da pessoa negra de pele clara que dá concretude ao mito da democracia racial, marcando-o com a ideia de mistura, ao mesmo tempo em que simboliza o processo de branqueamento racial em curso. Assim, o lugar social do/a negro/a de pele clara é construído através das narrativas sociais de miscigenação, da morenidade, das propagandas e imagens da mulata e do malandro brasileiro/a, convertendo-o/a na prova viva da "raça brasileira".

Apesar da ênfase do termo recair sobre a tonalidade de pele, a identificação racial que situa a pessoa negra como negra/o de pele clara passa também pela significação de outros traços fenotípicos importantes à racialização negra, como o formato do nariz e a textura dos cabelos. Nessa perspectiva, os sentidos produzidos a partir da leitura acerca de cabelos lisos ou ondulados em um corpo negro, por exemplo, também colaboram para situar o sujeito negro em um lugar específico dentro do continuum hierárquico racializante. É a leitura racial da combinação dos traços físicos entendidos como mais ou menos brancos ou mais ou menos negros que produz sentidos ao corpo da pessoa negra de pele clara, marcando-a como um corpo simbolicamente miscigenado. Ainda, cabe destacar que, apesar do grande papel da aparência física e seus sentidos no processo de classificação racial brasileiro, a leitura racial também é influenciada por outras categorias tais como gênero, classe e território (Guimarães, 1999b; Schwarcz, 2019).

Entendemos aqui, portanto, que a classificação como negra/o de pele clara agrega as pessoas negras cotidianamente lidas como mulatas/os, morenas/os, mestiças/os entre outros termos que remetem à ideia de miscigenação racial. Ao se identificar como negro/a de pele clara, o sujeito afirma o seu lugar dentro da categoria negra/o, distanciando-se de uma possível posição racial de trânsito, ambiguidade ou dúvida, sem desconsiderar os sentidos produzidos sobre si que estão atravessados pelas narrativas hegemônicas de miscigenação racial (Rodrigues, 2021).

Identificar-se como negro/a de pele clara e constituir uma identidade negra positiva é crucial para a ampliação do grupo negro em seu caráter político, visando o fortalecimento das estratégias coletivas de enfrentamento às desigualdades sociais e à violência material e simbólica advindas do racismo que estrutura nosso país, mola propulsora para o sofrimento psíquico em sujeitos negros (Guimarães, 1999b).

Raça e Classificação Racial Brasileira

A ideia de raça presente no imaginário social foi produzida pela ciência moderna nos séculos XIX e XX, utilizada na dinâmica colonial para classificar a diversidade humana em grupos de pessoas que têm características físicas comuns responsabilizadas pela determinação de aspectos psicológicos, morais, intelectuais e estéticas dos membros desses grupos, os quais são posicionados em uma escala hierárquica que estrutura a desigualdade social com base em uma noção biológica errônea (Munanga, 2004). Assim, mesmo que "raça" seja uma ficção, do ponto de vista social ela ganha plena existência na classificação e na hierarquização a partir de diferenças fenotípicas utilizadas para reprodução do racismo, o qual pode-se definir como um fenômeno que se manifesta de diferentes formas, ligadas aos interesses do grupo racial branco (ou branquitude) em conferir-se uma imagem e representar-se como racialmente superior, justificando os privilégios, as formas de dominação e opressão e as desigualdades materiais e simbólicas com base na ideia de raça (Guimarães, 1999b; Munanga, 2004). Nessa perspectiva, a branquitude é o termo construído dentro da teoria crítica de raça com o objetivo de enunciar como as estruturas sociais (re)produzem a supremacia branca e o privilégio branco enquanto "resultado da relação colonial, que legou determinada configuração à subjetividade e orientou lugares sociais para brancos e não brancos" (Cardoso & Müller, 2017, p. 23).

O processo de classificação racial do Brasil tem como base a aparência física e não a ascendência (Guimarães, 1999b; Schwarcz, 2019). A partir de uma pesquisa comparativa das relações raciais do Brasil e dos Estados Unidos, Oracy Nogueira (2007) define que o preconceito racial que se manifesta em nosso país é um "preconceito de marca", pautado pelos sentidos atribuídos às marcas físicas entendidas como tipicamente africanas - traços físicos, a fisionomia, os gestos, os sotaques associados à cor de pele não branca. Uma das especificidades da classificação racial brasileira reside justamente na relação intrínseca entre raça e cor. A definição de cor é então baseada em um sistema que agrupa coloração da pele, traços físicos (formato do nariz, lábios, cor e tipo de cabelo), origem regional, além de atributos socioeconômicos, como o grau de instrução, a ocupação e os hábitos pessoais (Nogueira, 2007). Para Jacques D'Adesky (2001, p. 135), existem cinco modos de classificação racial: o uso das cinco categorias oficiais do IBGE; "o sistema branco, negro e índio, referente ao mito fundador da civilização brasileira"; o sistema classificatório popular de 135 cores, segundo apurado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE, 1976); o modo binário branco e não branco usado por inúmeros pesquisadores/as nas ciências humanas e, por último, o modelo binário branco e negro, proposto pelas organizações e movimentos negros.

Contudo, as diferentes formas de classificação racial carregam duas características principais. A primeira é a classificação a partir da marca física, ou seja, os diferentes nomes fazem referência às cores dos corpos das pessoas. A segunda característica é que este continuum de nomes dados às diferentes colorações dos/as brasileiros/as é atravessado por uma lógica hierárquica pautada na ideologia do branqueamento, segundo a qual "a classificação popular reflete antes de tudo uma hierarquização, uma relação assimétrica, um continuum vertical em que a categoria branca se situa no topo e a categoria negro, em baixo" (D'Adesky, 2001, p. 37).

Corpos Simbolicamente Miscigenados

Nossos corpos constituem-se na referência que ancora a identidade do sujeito, integrado ao universo simbólico que habitamos. Em uma sociedade atravessada pelo racismo estrutural, o corpo é uma barreira indisfarçável para a construção das relações sociais opressoras, dando materialidade ao racismo. É a partir da leitura simbólica do corpo que as marcas perceptíveis são classificadas e associadas à moralidade, à intelectualidade, à estética, dentro de uma estrutura racialmente hierarquizada que tem a raça branca como ideal (Bento, 2002). Nesse sentido, quanto mais alguém se assemelha a imagem estereotipada do/a negro/a, mais distante estará daquilo que é considerado belo, inteligente, confiável, de acordo com a lente fabricada pela branquitude. Dessa forma, os elementos fenotípicos se constituem em um recurso simbólico importante para constituição subjetiva ligada à raça e ao gênero. Além de inscrever as pessoas negras de pele clara no campo social sob a representação da mestiçagem, a engrenagem colonial as marcam por narrativas de inferioridade que denotam uma condição animalesca, historicamente ligada às políticas coloniais de controle da reprodução e de proibição do "cruzamento de raças" (Kilomba, 2019), ideais presentes em terminologias como "mestiça/o" e "mulata/o". Ainda, também são produzidos sentidos ao corpo de pessoas negras de pele clara que estão relacionados ao estupro colonial de mulheres negras e indígenas (Nascimento, 2016). Ou seja, são corpos marcados por representações de violência, perversão e de animalidade.

Para Stuart Hall (1995), o corpo é lido como um texto. Na verdade, o corpo se torna um texto dentro do sistema de classificação de diferenças justamente porque os traços físicos (como textura do cabelo e cor de pele) constituem as marcas de diferenças visíveis e concretamente presentes na cena social, as quais serão racializadas e generificadas. Em uma estrutura racista, os traços biológicos são transformados em um sistema discursivo com a função de essencializar, naturalizar e hierarquizar diferenças. Por meio desse campo simbólico, o corpo negro é considerado impróprio em espaços de poder, considerado como algo "fora" do lugar. Quando a leitura do corpo-texto não funciona, quando a representação dos significados sociais atrelados ao corpo não "encaixa" com os traços físicos que a pessoa apresenta, emerge um desconforto naquela/e que se dispõe a decifrá-lo (Hall, 1995). Por vezes, o incômodo ganha proporções maiores, principalmente quando traços considerados brancos são vistos em um corpo lido como racializado/negro, o que pode acontecer com pessoas negras de pele clara justamente pela simbolização corpórea ligada à mistura racial. Aqui vale dizer que negros/as de pele escura também podem ser miscigenados/as, mas a marca no corpo não traz esse elemento, mostrando assim que não é a mestiçagem real que produz esse efeito, mas sim a possível mestiçagem que aparece como marca que pode ser lida como tal, ou seja, corpos que têm "algo de branco". A partir desse contato podem emergir então cenas do racismo cotidiano que visam (re)posicionar as pessoas negras de pele clara no lugar social a elas destinado: um lugar de inferioridade.

A pesquisa

Para compreender a produção de subjetividades racializadas e a noção de pertencimento racial em pessoas negras de pele clara, optamos por trazer aqui algumas análises feitas em torno de cenas de racismo cotidiano que envolvem a significação racial dos seus próprios corpos trazidas por sujeitos negros de pele clara. Escolhemos abordar neste artigo algumas análises (parte de um trabalho maior apresentado como dissertação de mestrado) acerca das cenas de racismo cotidiano trazidas pelos/as participantes, associadas aos sentidos racializados atribuídos ao seu corpo e, consequentemente, ligados à constituição de sua identidade racial (Pereira, 2023). As cenas de racismo cotidiano se configuram como um "padrão contínuo de abuso" (Kilomba, 2019, p. 80), uma violência que atravessa o dia a dia do sujeito negro por meio de gestos, discursos, imagens, ações e olhares que o colocam como tela de projeção de elementos socialmente reprimidos, tais como aqueles associados à sexualidade e à agressividade, processo que o situa na posição de Outridade: "a personificação dos aspectos reprimidos na sociedade branca" (Kilomba, 2019, p.78). Como decorrência desse fenômeno, o sujeito negro corresponderá à imagem da ameaça, do perigo, da violência, do sujo, mas também do excitante e do desejável. Diante dessa dinâmica, o sujeito negro é levado a performar o eu roteirizado pela branquitude (Kilomba, 2019).

Nesse sentido, as cenas de racismo cotidiano servem para posicionar a pessoa negra de pele clara como alguém externo ao grupo branco, pertencente à "Outridade" negra (Kilomba, 2019). Nessa esteira, além das análises lançadas por Grada Kilomba acerca dos fenômenos racistas e coloniais e seus impactos subjetivos, também utilizamos as teorizações de Franz Fanon (2020), nas quais o autor desvela como a violência dos processos coloniais e do racismo cria barreiras à constituição de uma imagem positiva de si e de sua negritude para o/a negro/a, o que impulsiona à adoção de máscaras brancas com objetivo de obter o reconhecimento do outro enquanto sujeito. A metodologia utilizada para esta pesquisa parte da proposta de "campo-tema" de Peter Spink (2003), uma perspectiva de campo mais livre que ultrapassa a demarcação de um local específico para a coleta de informações. O "campo-tema" surge da imersão do/a pesquisador/a na temática, dando ênfase aos acontecimentos cotidianos. Ao entender que identidade racial se constitui em um tema delicado para as pessoas negras, se torna crucial pensar métodos que atenuem as possibilidades de violência simbólica. Como estratégia, Pierre Bourdieu (1999) propõe agir na escolha dos/as participantes da pesquisa, visando amenizar possíveis diferenças de capitais simbólicos e culturais. A proximidade social e a familiaridade são duas das principais condições que assegurariam uma comunicação que não se configure como uma forma de violência. Partindo desse pressuposto, o primeiro critério para escolha das/os participantes da pesquisa foi a proximidade com a pesquisadora, bem como a autoidentificação como negro/a de pele clara, pardo/a ou moreno/a, desde que o "moreno/a" possuísse relação com características raciais negras. O segundo critério de escolha foi residir na cidade de Porto Alegre ou na região metropolitana por período superior a dois anos e, por fim, a idade mínima de 18 anos. Para analisar a identidade da pessoa negra de pele clara buscamos pessoas cujas aparências físicas denotassem a ideia de miscigenação negra. Optamos pela realização de entrevistas por ser um momento de troca no qual significados, interpretações e informações são produzidos. Construímos um roteiro de entrevistas que contemplasse os sentidos da própria racialidade produzidos por cada participante e sua compreensão acerca da categoria de raça, entendendo de que forma essas significações foram constituídas, tendo em vista os impactos singulares das ideologias raciais hegemônicas, bem como dos novos discursos de valorização racial advindas das reivindicações políticas dos movimentos negros. As entrevistas semiestruturadas ocorreram em um único encontro nos lugares de preferência das/os entrevistadas/os. No início das entrevistas, foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), ressaltando o caráter anônimo da pesquisa, marcado por nomes fictícios. Essa entrevista teve como objetivo a compreensão do processo de constituição da identidade racial para negros/as de pele clara (Pereira, 2023). Para este artigo realizou-se um total de quatro entrevistas no ano de 2022 com duração média de uma hora. As/os participantes são oriundas/os de distintos contextos socioeconômicos, cujas idades variaram entre 22 e 49 anos. Todos/as foram por nós identificadas/os como negros/as e consideraram-se racializados/as em alguma medida. Para descrever as/os participantes, foram utilizados os seguintes dados: nome, idade, ocupação, autodefinição racial sua e de seus pais, autodefinição de classe social e de gênero.

 

Tabela 1

Perfil dos Sujeitos Entrevistados

Nome fictício

Idade

Autoidentificação racial

Identificação racial dos pais 

Classe Social

Gênero

Ocupação

Bruna

22

parda/parda

mãe negra e pai branco

classe média baixa

feminino

estudante de Direito

Iago

26

negro/preto

mãe negra e pai branco

classe média

masculino

estudante de História

Regina

49

negra/parda

mãe branca e pai pardo

classe média baixa

feminino

recepcionista

Lisiane

30

negra/parda

mãe negra e pai branco

classe média

feminino

cantora

Fonte: Dados da pesquisa.

 

Utilizou-se a análise temática reflexiva, abordagem ligada a pesquisas sociais e com agenda de justiça social (Braun & Clarke, 2006). As análises das entrevistas basearam-se em teorias de pesquisadores/as dos estudos das relações raciais e em teorias pós-coloniais propostas por autores/as como Grada Kilomba (2019) e Franz Fanon (2020). Aqui, fazemos um recorte dos resultados da pesquisa a partir das cenas de racismo cotidiano, as quais elucidamos de forma mais didática, categorizando-as de acordo com os distintos traços corporais aos quais fazem referência.

Cabelo

O cabelo é um importante símbolo identitário que, ao lado da cor da pele, constituem as principais marcas de racialização negra. Historicamente, constituiu-se uma hierarquia capilar ainda no período da escravização. Um/a escravizado/a de cabelo alisado ou anelado e de pele clara possuía maior valor de mercado. Ainda hoje quanto mais crespo o cabelo - símbolo importante de presença africana e negra -, maior a desvalorização estética diante dos preceitos raciais estruturais (Gomes, 2020). Na contramão, há um movimento crescente de valorização dos cabelos cacheados e crespos presentes em narrativas contra-hegemônicas de positivação da negritude, intensificado nas duas últimas décadas com os avanços políticos associados às questões étnico-raciais brasileiras.

Nesse sentido, Bruna, estudante de Direito, traz diversas cenas relacionadas ao questionamento da autenticidade dos seus cabelos naturalmente lisos. Em uma delas é interpelada por uma mulher branca, a qual duvidando da naturalidade de seus cabelos decide tocá-los.

Tipo, tu tá conversando com alguém e tu olha os olhos da pessoa olhando para o teu cabelo e, teve uma situação também um tempo atrás que uma mulher chegou a pedir para olhar minha raiz para ver se meu cabelo era liso mesmo porque ela não acreditava. Daí eu tenho que puxar toda minha árvore genealógica pro lado do meu pai pra falar, sabe? E aí ano passado eu tentei fazer progressiva no meu cabelo e quase fiquei careca, era muito forte e meu fio é muito fino. E aí peguei trauma com esse negócio de progressiva tanto que hoje em dia as pessoas perguntam e eu: "ah, eu tentei fazer mas não deu, não rolou" né, não consegui. E mesmo assim as pessoas seguem desacreditando, até pessoas que conheço faz tempo me veem e falam: "nossa como teu cabelo tá bonito, bem liso né, que tu fez? Fez chapinha? Fez escova? Ai, fez progressiva?" Sendo que são pessoas que me conhecem há mais de anos, sendo que sempre me viram desse jeito e continuam desacreditando... (Bruna)
E quando tu quis fazer progressiva? Porque tu quis fazer? (Eu)
Não sei. Eu botei na minha cabeça que meu cabelo tipo não tava liso, sabe? Meio que fui entrando nessa nóia das pessoas e comecei a botar: "não, meu cabelo não é assim, meu cabelo vai ficar liso" e meio que entrei nessa nóia, sabe? E acabei fazendo e depois desisti, tirei da cabeça, depois não fiz mais nada no cabelo, só as luzes. (Bruna)
E por que tu acha que ele mudou? (Eu)
Não sei, desde 2018 ou 2019 eu comecei a perder muito cabelo, muito cabelo mesmo. Meu cabelo ficou muito fino, pode ter sido alguma coisa assim de estresse, ansiedade que começou a afetar o cabelo, não sei. E pode ser que eu comecei a acreditar naquilo porque quando tu acredita muito numa coisa tu acha que aquilo é real. (Bruna)
No sentido de acreditar que teu cabelo não era liso? (Eu)
É. (Bruna)
E essa situação da mulher que tu falou antes é recente? (Eu)
Não, acho que foi 2019 mais ou menos também. (Bruna)
E ela queria encostar no teu cabelo? (Eu)
Sim. Queria e ela tocou [risos nervosos]. E eu falei: "tá, vê" e ela ficou catando, assim. Olhou toda a borda da cabeça, abriu o cabelo para ver. Aliás, essa função do cabelo no Ensino Médio quando as pessoas perguntavam se era mega. Eu até mexia no cabelo assim, sabe? Pras pessoas verem que não tinham nada. (Bruna).  (Pereira, 2023, p. 106).

Sempre que é questionada, Bruna é colocada numa posição de inautenticidade: por mais que ela explique "puxando sua árvore genealógica" isso não é suficiente para barrar os questionamentos e seu cabelo segue entendido através de uma narrativa de falsidade, pois parece ser simplesmente impossível que ela possua algo tão simbolicamente branco como cabelos naturalmente lisos. Há um desejo branco de recolocá-la e lembrá-la do seu "lugar" racial (Kilomba, 2019). Mas por que um cabelo naturalmente liso incomoda a branquitude e um cabelo alisado não? Na lógica da subalternidade que permeia o pensamento racial brasileiro, a pessoa negra é estruturalmente convocada a buscar estratégias de aproximação com a estética branca, estimulando a produção de imagens semelhantes ao que se entende como branca/o. Porém, essa aproximação deve ficar no campo da imitação. Espera-se que a/o negra/o adote uma postura mimética, camuflando a sua negrura para fins de adaptabilidade ao meio racista (Djokic, 2015).

Ultrapassar essa fronteira racial simbólica pode ser entendido como uma afronta. Não é à toa que, mesmo entre pessoas que conhecem Bruna há anos, o questionamento segue ecoando, pois não é a justificativa de Bruna que está em jogo aqui e sim o próprio exercício de poder: eu pergunto porque me incomoda e você deve me responder infinitamente, traçando assim uma "fronteira clara entre Você, a/o ‘Outra/o' racial, que está sendo questionado e tem de se explicar, e Nós, as/os brancas/os, que questionamos e controlamos" (Kilomba, 2019, p. 115). Nesse processo, o sujeito negro é inspecionado como um objeto. Ser tocada, assim como ser interrogada, constitui uma experiência traumática de invasão (Kilomba, 2019).

A situação de violência provocada pelo gesto invasivo da mulher branca, somada a outras tantas situações anteriores, confunde Bruna ao refletir uma representação deformada de si que perturba a sua autoimagem. O discurso da pessoa branca, através de um processo de alienação, torna-se de fato real e seu cabelo não é mais naturalmente liso. Ao realizar o procedimento químico em seus cabelos, Bruna segue o roteiro proposto pela branquitude: ela é um corpo falso, um corpo ambíguo. Ao ser forçada a desenvolver uma relação com o Eu imposta pela branquitude, explicitamente manifestada pela cena violenta de invasão, emerge uma experiência de despersonalização. Bruna se torna, então, uma impostora, uma cópia "malfeita" da/o branca/o. Dentro dessa mesma lógica, há certos traços físicos que pertencem a determinados corpos, estando "no lugar". Assim, Bruna é interpelada por não corresponder ao "negro/a" estereotipada/o pela branquitude, já que seu corpo não se encaixa na representação de negra/o presente no pensamento racial brasileiro hegemônico, o que pode colocá-la em um processo de superexposição ao se aproximar demasiadamente da imagem da/o branca/o, rompendo as fronteiras raciais simbolicamente e materialmente estabelecidas. Nessa perspectiva, um traço considerado branco ou mais próximo da ideia de brancura em um corpo negro também é entendido como algo fora do lugar. No mundo branco, a pessoa negra deve se apresentar de acordo com as imagens coloniais ligadas aos sentidos de "ser um bom negro" (Fanon, 2020, p. 36). E a partir desses sentidos que o/a negro/a será socialmente analisado/a e viagiado/a, já que o mundo branco busca acorrentá-lo à sua imagem. O sujeito negro é, portanto, vítima de sua aparência, mesmo que não seja por ela responsável (Fanon, 2020). Assim, a pessoa negra de pele clara torna-se um corpo-objeto vulnerável à análise e à violência branca.

Pele

Como visto, no pensamento racial brasileiro a cor atua como metáfora para a ideia de raça cujo simbolismo é central no processo de racialização. Sua simbolização aparece em uma cena trazida por Iago. Ele comenta que seus familiares paternos são "todos loiros de olho verde". Apesar de não perceber manifestações de racismo interpessoal em sua família, Iago vê as expressões de racismo relacionadas à negação da sua origem branca em outros ambientes de socialização.

Eu acho que uma vez eu tinha uns oito anos e uma professora tinha o sobrenome do meu pai e eu inocente falei: "ah, a senhora pode ser minha parente porque tem o sobrenome do meu pai". E ela falou: "não, eu não ia ter um parente sujo". E no momento eu nem entendi. Mas depois mais velho eu entendi o que seria o sujo, né? (Iago). (Pereira, 2023, p. 110).

Na cena trazida por Iago há uma manifestação de racismo ligada à ideia de origem. Traços físicos racializados como cor da pele, cabelo, nariz e boca se associam à ideia de origem e ancestralidade (Guimarães, 1999a). Diante desse pensamento racial, o contato com uma pessoa negra com sobrenome europeu igual ao da pessoa branca, denotando certa vinculação entre ambas, é percebido como um insulto tendo em vista que para grande parte dos sujeitos brancos no sul do Brasil o sobrenome é símbolo de origem, e quando este denota uma "origem europeia" é entendido como um marcador de superioridade que produz hierarquias dentro do próprio grupo racial branco. Ao nomeá-lo como "sujo" manifesta-se o poder racial estrutural: "a ideia de sujeira está relacionada à ordem. Suja está qualquer coisa que não esteja no lugar certo" (Kilomba, 2019, p. 171). Ou seja, as pessoas negras são vistas como sujas quando se entende que houve uma transgressão às barreiras raciais físicas ou simbólicas.

Por fim, cabe ressaltar que a ideia de sujeira está intimamente associada aos aspectos da sexualidade reprimidos pela sociedade branca e projetados nos/as "Outros/as" raciais. É comum que a sexualidade seja ligada à agressão, passando a ser vista então como algo sujo (Kilomba, 2019). A imagem de Iago é então duplamente representada, tanto pela via da sexualidade (sujeira), como da agressão (selvageria). Como resultado de tal processo emerge o medo branco de ser sujado por aquele corpo. A sujeira também está ligada à fantasia branca que percebe a negritude como uma doença, uma maldição corporal (Fanon, 2020, p. 92). A parte negra infecta o corpo de Iago.

Portanto, uma pessoa negra com sobrenome alemão é uma afronta, bem como algo a ser mantido à distância devido ao medo branco de contágio. Assim, Iago é rapidamente distanciado da professora e colocado no seu "lugar" racial, ainda que se trate de uma criança. Assim como Iago, Regina também relata episódios nos quais se evidencia a simbolização de sua pele: uma pele "bronzeada".

E tu sempre te considerou negra, ou foi ao longo da tua vida que tu foi pensando sobre isso? (Eu)
Foi ao longo da minha vida. Até das pessoas me olharem e dizerem: "que pele linda! Tu tens uma pele linda!" "Essa cor parece que tá sempre bronzeada!". E aquilo foi me dando orgulho. Sim, eu acho que sou negra. (Regina)
Eu fiquei pensando assim que o teu tom de pele com o teu cabelo como tá agora, alisado, não sei se acham que tu tá bronzeada? (Eu)
Sim, sim, sempre falam. Até geralmente no S. (hospital de Porto Alegre), as médicas - que é (sic) bem branquinha, né? - que falam: "nossa, tu tá sempre bronzeada"! E daí eu disse: "não, minha pele é assim, inverno ou verão é sempre assim" (risos) (Regina). (Pereira, 2023, p. 111).

A morenidade branca aparece como padrão de beleza dominante. Nesse sentido, pode haver um desejo de ser morena entre as mulheres brancas, uma morenidade localizada dentro da raça branca, mas que se coloca em oposição à extrema brancura da pele (Schucman, 2012). Dentro do campo discursivo da morenidade, nota-se como a tonalidade da pele não é somente uma importante marca de racialização. Ao ser simbolizada de forma interseccional com a categoria de gênero, constrói-se uma narrativa de sensualidade. Lélia Gonzalez (1984) analisa a construção da imagem da mulata: "quando querem falar do charme, da beleza da mulher brasileira, pinta logo a imagem de gente queimada da praia, de andar rebolativo, de meneios no olhar, de requebros e faceirices." (Gonzalez, 2020, p. 91). A condição de "queimada" é assim um traço de sensualidade inerente à mulata brasileira, ao mesmo tempo em que atua como uma negação da raça negra, já que queimada é uma condição passageira e reversível: não se é, se está.

A nomeação de sua pele racializa Regina: ela é bronzeada, diferente das "branquinhas" que apontam essa significação. É por meio dessa narrativa que Regina se identifica racialmente como negra. Contudo, essa é uma identidade racial ligada estritamente aos fatores objetivos oriundos da leitura racial de seu corpo, já que Regina não manifesta nenhuma aproximação e/ou interesse em outros elementos da negritude durante a entrevista, apresentando assim uma identificação racial que não produz uma negritude enquanto identidade negra politicamente positivada. Existe, de fato, a armadilha da produção de uma identificação racial alienada.

Olhos

"Se os seus olhos, aqueles olhos que retinham as imagens e conheciam as cenas, fossem diferentes, ou seja, bonitos, ela seria diferente" (Morrison, 2007, p. 46).

A literatura é uma ferramenta excelente para compreensão e crítica dos fenômenos sociais. É o que brilhantemente Toni Morrison realiza em sua obra O olho mais azul (2007). Nela, Pecola é a personagem principal, uma menina negra de pele escura e pobre que após inúmeras vivências de violência racial pede à Deus por olhos azuis. Com seus olhos azuis, Pecola poderia então ser olhada e ser de fato enxergada para além dos signos da negritude, ao mesmo tempo em que estaria livre para olhar o mundo com "outros olhos", um mundo que de fato a incluísse. Olhos claros simbolizam superioridade e beleza, denotam uma ideia de pureza racial ou de maior brancura, tendo em vista que o modelo ideal corresponde a um tom de pele muito claro, cabelos lisos e loiros, olhos claros e ascendência norte-europeia (Schwarcz, 2019). Lisiane traz cenas que envolvem a simbolização dos seus olhos verdes nas quais, de forma similar ao que acontece com Bruna em relação aos seus cabelos, ela é frequentemente questionada acerca da autenticidade desses. No final da entrevista, Lisiane conta que durante a sua infância costumava cobrir seus olhos com as mãos em uma tentativa de defesa contra o racismo cotidiano manifestado por essas insistentes interpelações sociais.

As pessoas perguntam: "Ah, é teu mesmo?" "Então, deixa eu ver se tu não usa lente!". Várias vezes aconteceu, como se tivesse que provar que os olhos eram meus. Mas tem uma coisa que me marcou muito, na faculdade. Fui bolsista na PUCRS em Porto Alegre, e era uma das poucas pessoas negras da sala de aula, e teve uma colega que falou que se eu não tivesse os olhos claros eu nem seria tão bonita. Nunca mais me esqueci dessa frase. Então essa questão dos olhos é algo assim que também trouxe algumas feridas assim, sabe? (Lisiane). (Pereira, 2023, p. 104).

O comentário feito pela colega de Lisiane é uma performance de poder que visa lembrá-la do "seu lugar". Para pessoa negra, ter olhos claros não lhe dá acesso ao mundo branco ainda que essa pessoa seja negra de pele clara, pois há um processo de racialização pela branquitude. A partir da leitura racial do corpo da pessoa negra de pele clara, criam-se estratégias de silenciamento, as quais se dão a partir da destituição, da desvalorização ou da produção de um valor ambíguo que desterritorializa o sujeito, o que produz um efeito alienante: isso que você tem não é sua/seu, não deveria ser sua/seu, isso me pertence (Kilomba, 2019). Enquanto o sujeito branco pode perguntar "O que eu vejo?", o sujeito negro é forçado a lidar com a própria questão "O que elas/eles veem?" (Kilomba, 2019, p. 116).

O olhar do sujeito branco confunde, pois reflete uma representação deformada de si, na qual a pessoa negra não se reconhece, perturbando a sua autoimagem ao dificultar a elaboração do seu próprio esquema corporal (Fanon, 2020). A pessoa negra é colocada em uma relação com a branquitude na qual é triplamente negada: "é um conhecimento em terceira pessoa" (Fanon, 2020, p. 105). Há um esquema epidérmico ou histórico-racial que produz a imagem da pessoa negra enquanto um ser racializado que carrega invariavelmente um corpo, uma raça e uma história (Fanon, 2020).

Em várias ocasiões, Lisiane é convocada a provar que seus olhos são naturalmente verdes. Nessas cenas, ela é objetificada, é ela quem deve servir ao provar algo. Ainda que alguns comentários possam parecer elogios ou se mostrarem ambíguos, é importante lembrar que a relação de poder permanece. Nessa relação é o sujeito negro quem deve comprovar, mostrar ou argumentar. Portanto, é crucial que o sujeito negro se desprenda da fantasia de ter de se explicar ao mundo branco (Kilomba, 2019).

 

Considerações Finais

Diante das cenas e das significações em torno da racialidade das/os participantes desta pesquisa, reforçamos a existência de um lugar social específico à pessoa negra de pele clara, marcado pela negação social de sua negritude e pela demarcação de um lugar como "miscigenada" respaldado pelas ideologias raciais hegemônicas, as quais também formam subjetividades racializadas pautadas pela lente da branquitude que (re)produz estratégias para manter a pessoa negra de pele clara em uma posição racial de "Outridade" (Kilomba, 2019).

Os episódios de racismo cotidiano aqui elucidados produzem racialização, seja negando os traços entendidos como brancos da pessoa negra de pele clara ou ainda negando a sua origem negra. Assim, olhos claros se tornam efeito do uso de lentes de contato, cabelos lisos se tornam necessariamente efeito de procedimentos químicos e peles escuras estão bronzeadas. Há algo no campo do falseamento ou do roubo. Em qualquer uma dessas identificações, a pessoa negra de pele clara é objetificada e essencializada, o que cria barreiras ao processo de singularização do sujeito. Nessa arena discursiva que atua interseccionada à categoria de gênero, a imagem da mulata exerce influência na leitura racial da mulher negra de pele clara, situando-a em uma posição de hiperssexualização que desperta uma dimensão de inveja e desejo de destruição deste corpo-fetiche que deve ser dissecado, vigiado, destituído. Assim, produzem-se marcas violentas de racialização ao ter seus corpos envolvidos por sentidos negativos, alienantes e, por vezes, traumáticos. Sugere-se novos estudos que aprofundem a análise interseccional entre gênero e raça, já que as mulheres negras estão especialmente vulneráveis aos sentidos estéticos do seu corpo pelos quais se estipula uma posição social específica em relação à raça, gênero e beleza.

A constituição da identidade é relacional. Definimos o que somos também com base naquilo que não se é. Nesse sentido, o ser negro/a também se constrói tendo em vista os elementos externos ao que se entende como negritude. Os discursos, as simbologias, os marcadores raciais contra-hegemônicos são organizados a partir do que é hegemonicamente dado no campo social. A compreensão dos cabelos crespos como próprios das pessoas negras e o seu movimento de valorização surge como reação aos ideais de beleza da branquitude, por exemplo. Esse processo é de extrema importância na constituição de uma identidade negra positiva ao ressignificar marcas hegemonicamente entendidas como inferiores. Contudo, pessoas negras cujos fenótipos escapam a essa imagem - como aquelas que possuem cabelos lisos ou olhos claros - podem passar por um processo de exclusão identitária ao ter sua negritude negada inclusive por pessoas negras. Nesse contexto, pode emergir o fenômeno denominado de limbo racial causado pela sensação de não lugar, um lugar subjetivo de sofrimento a essas pessoas que têm sua racialidade negada e/ou constantemente questionada. Nesse sentido, sugerem-se novos estudos que analisem esta temática dentro das relações intragrupo negro, visando a construção estratégias de combate às tensões e conflitos racializados que enfraquecem e desmobilizam as pessoas negras, individual e coletivamente.

Através das análises aqui realizadas, nota-se que a ideia de um suposto privilégio racial dado socialmente às pessoas negras de pele clara em comparação ao negro/a de pele escura é problemática, já que as redes discursivas próprias do racismo estrutural reiteradamente as colocam em uma posição precária em contraponto e subordinação à branquitude. Portanto, apesar da possível produção de um não lugar racial subjetivo à pessoa negra de pele clara, socialmente essa ideia de não lugar é um engodo, na medida em que sua posição na sociedade é rapidamente lembrada assim que demonstra ultrapassar as fronteiras raciais estipuladas pela branquitude, incluindo aquelas relacionadas aos sentidos racializados atribuídos aos seus traços físicos.

Ressalta-se que as tensões grupais estimuladas por meio da política de hierarquização estética racial criam barreiras à constituição da negritude em pessoas negras de pele clara. Dessa forma, a análise dos desdobramentos dessa política se torna um tema caro à psicologia social por ser uma estratégia de manutenção da estrutura de desigualdade racial que privilegia a branquitude ao dividir e desmobilizar as pessoas negras enquanto coletivo político. Compreender a maneira como cada sujeito negro de pele clara internaliza os sentidos racializados acerca do seu corpo e como estes operam na sua autoimagem e na produção do seu pensamento racial é fundamental à análise da sua identidade e do seu pertencimento racial, temática fundamental no campo da produção de identidades sociais.

 

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Endereço para correspondência
Carolina da Silva Pereira - carolinapsiclinica@gmail.com

Recebido em: 09/09/2024
Aceito em: 13/05/2025

 

 

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