Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e86572, doi:10.12957/epp.2025.86572
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

Efeitos Clínico-Institucionais de uma Oficina de Arte com Psicóticos em um Serviço Residencial Terapêutico

 

Clinical-Institutional Effects of an Art Workshop for Individuals with Psychotic Disorders in a Therapeutic Residential Service

 

Efectos Clínico-Institucionales de un Taller de Arte con Psicóticos en un Servicio Residencial Terapéutico

 

Olga Damasceno Nogueira de Sousa a, Leônia Cavalcante Teixeira a, Suênia de Lima Duarte b, Ana Cláudia Coelho Brito a

a Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil
b Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Após a Reforma Psiquiátrica, a arte se constituiu como recurso amplamente difundido na saúde mental. Neste estudo, ela aparece em forma de oficinas artísticas com pacientes psicóticos, em um equipamento (Serviços Residenciais Terapêuticos) na cidade de Fortaleza-CE, o qual visa ajudar essas pessoas a lidarem com o desafio de morar, habitar a cidade e viver em sociedade. Esses direitos lhes foram impedidos devido aos longos períodos de institucionalização em hospital psiquiátrico. Posto isto, objetivou-se investigar os efeitos clínico-institucionais da realização de oficinas artísticas em um Serviço Residencial Terapêutico, articulando o enclausuramento e suas possíveis reencenações. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de cunho empírico, com viés psicanalítico, realizada de dezembro de 2020 a agosto de 2021. Os moradores do referido equipamento passaram por um processo de apropriação subjetiva da casa, que os fez se voltarem para dentro de si. Foi na impossibilidade do Fora que eles retornaram para Dentro. Por meio das experiências com a arte, eles puderam (re)encenar uma realidade que antes não existia. Os resultados da pesquisa mostraram que o grupo com pacientes psicóticos tem um funcionamento próprio, que requer um olhar cuidadoso do pesquisador, a fim de não cair em uma ortopedia neurótica do sujeito psicótico.

Palavras-chave: serviço residencial terapêutico, saúde mental, psicanálise, psicose, oficinas.


ABSTRACT

After the Psychiatric Reform, art became a widely disseminated resource in mental health. In this study it appears in the form of artistic workshops with psychotic patients in a facility - Therapeutic Residential Services - located in the city of Fortaleza-CE. Such equipment aims to deal with the challenge of inhabiting the city, and living in society for people who are prevented from this right due to long periods of institutionalization in a psychiatric hospital. Given this, this study aimed to investigate the institutional and clinical effects of holding artistic workshops in a Therapeutic Residential Service, articulating enclosure and its possible re-enactments. This is qualitative research of empirical nature with a psychoanalytic bias carried out from December 2020 to August 2021. The residents of the Therapeutic Residential Service went through a process of subjective appropriation of the house, which made them turn inward. In the impossibility of the Outside, they returned to the Inside. Through these experiences with art, they were able to (re)enact a reality that did not exist before. It is concluded that the group with psychotic patients has its own functioning that requires a careful look from the researcher in order not to fall into a neurotic orthopaedics of the psychotic subject.

Keywords: therapeutic residential service, mental health, psychoanalysis, psychosis, workshops.


RESUMEN

Después de la Reforma Psiquiátrica, el arte se convirtió en un recurso ampliamente difundido en la salud mental. El estudio en cuestión lo utilizó a través de talleres artísticos con pacientes psicóticos, en un establecimiento - Servicios Residenciales Terapéuticos - ubicado en la ciudad de Fortaleza-CE. Dicho equipamiento tiene como objetivo ayudar a estas personar a lidiar com el desafío de vivir, habitar la ciudad y vivir en sociedad. Estes derechos les fueron quitados, debido a largos períodos de institucionalización en hospital psiquiátrico. Ante esto, el objetivo de este estudio fue investigar los efectos clínicos institucionales de la realización de talleres artísticos en un Servicio Residencial Terapéutico, articulando el encierro y sus posibles recreaciones. Se trata de una investigación cualitativa de carácter empírico con sesgo psicoanalítico realizada entre diciembre de 2020 y agosto de 2021. Los residentes del Servicio Residencial Terapéutico atravesaron un proceso de apropiación subjetiva de la casa, que los hizo volverse hacia adentro. Fue en la imposibilidad del Afuera que regresaron al Adentro. A través de estas experiencias con el arte, pudieron (re)crear una realidad que antes no existía. Se concluye que el grupo con pacientes psicóticos tiene un funcionamiento propio que requiere una mirada atenta por parte del investigador, para no caer en una ortopedia neurótica del sujeto psicótico.

Palabras clave: servicio residencial terapéutico, salud mental, psicoanálisis, psicosis, talleres.


 

 

Desde a promulgação da Lei nº 10.216 (2001), a Rede de Saúde Mental começou a ser designada como política de estado, regulamentada por portarias que definem o funcionamento de equipamentos e programas, entre eles: o "Programa De Volta Pra Casa", que garante auxílio financeiro àquelas pessoas que se encontram em longa internação em hospital psiquiátrico (mais de dois anos); os Centros de Atenção Psicossocial em suas diferentes modalidades; os Centros de Convivências; os Leitos Psiquiátricos em hospital geral; e o Serviço Residencial Terapêutico (SRT).

De todos esses equipamentos instituídos, oriundos da Reforma Psiquiátrica Brasileira, este estudo se restringe ao Serviço Residencial Terapêutico, que se destina a pessoas que passaram longos períodos de institucionalização em hospital psiquiátrico (Portaria n.º 2.068, 2004).

Estabelecido e alicerçado em Portaria Ministerial desde 2000, embora com experiências exitosas antes dessa data, esse "dispositivo de cuidado" aborda uma das partes mais difíceis da Reforma: auxiliar aqueles que passaram muitos anos em hospital psiquiátrico e estiveram em sofrimento psíquico grave (cronificado pelo processo de institucionalização) a lidar com a problemática do "estar em" e do "habitar" não somente a casa, mas a cidade e a sociedade (Santos, 2006 como citado em Frare, 2012).

De acordo com o Ministério da Saúde, existem mais de 700 SRT cadastrados no país. Oliveira (2013) ressalta que apesar de serem regulados por portaria que estabelece a quantidade de moradores por casa e de profissionais previstos em cada equipamento, existe diversidade desse equipamento em todo território nacional. Isso quer dizer que o funcionamento depende de onde está inserido, da cultura local, da rede assistencial de suporte, do processo de implementação da instituição, das particularidades dos moradores e de onde vieram, além das especificidades da equipe que acompanha a instituição. O autor afirma ainda que, após a passagem do sujeito pelo hospital psiquiátrico, a moradia em SRT não pode ser compreendida como um fim em si, mas como abertura para despertar e sustentar novos desejos.

Ao considerar a situação das pessoas atendidas pelo SRT e a necessidade de continuação de seu tratamento durante a pandemia de Covid-19 - especificamente diante das medidas de isolamento, que duraram mais rigorosamente de março a abril de 2020, quando ficou inviável a circulação dos moradores do SRT nos outros equipamentos do território -, pensou-se no recurso das oficinas terapêuticas como atividade a ser aplicada nesse contexto. A ideia teve respaldo no fato de esse recurso ser amplamente utilizado no âmbito da saúde mental.

Posto isto, a problemática que norteou o estudo foi: é válido trazer oficinas de arte para o SRT se é sabido que a casa deve ser um espaço de moradia e que todas as ações terapêuticas devem ser priorizadas nos outros equipamentos de saúde e na rede assistencial?

Dessa forma, o artigo objetivou investigar os efeitos clínico-institucionais da realização de oficinas artísticas em um SRT, articulando o enclausuramento e suas possíveis reencenações. Efeitos clínicos-institucionais são os efeitos de um dispositivo ou caso clínico no âmbito de uma instituição. A psicanálise funciona como dobradiça e chave de leitura de como o sujeito no caso a caso sofre os efeitos simbólicos dos diversos discursos que atravessam as instituições de saúde (Sousa et al., 2022; Costa-Moura, 2022). A proposta investigativa nasceu de um recorte da dissertação de uma das autoras, intitulada "Psicanálise e Psicose: os efeitos clínicos institucionais do dispositivo construção do caso clínico em um Serviço Residencial Terapêutico", defendida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

O amparo na arte surgiu como uma possibilidade de dar algum contorno ao mal-estar do enclausuramento, reencenado pelo distanciamento social, em corpos que já tinham tido essa experiência pela institucionalização em hospital psiquiátrico. A arte foi direcionada, no estudo, com o intuito de apropriação da casa pelo sujeito, tendo em vista que o processo de subjetiva-la não se dá de forma imediata.

Concorda-se com Alemán et al. (2023) que não se deve pensar uma clínica psicanalítica desvencilhada da política que desconsidere as minorias excluídas e os contextos políticos e sociais de sua época. Afinal, a psicanálise vem inserir um discurso que faz barra ao discurso da ciência que exclui os sujeitos, com destaque para as pessoas psiquiatrizadas, e à própria criação da ciência psiquiátrica. Dessa forma, é relevante um breve retorno à abordagem histórica de Foucault (1978), que marca a passagem da loucura pela razão, desrazão até a invenção da doença mental como se compreende hoje.

A história da loucura faz um retorno às condições e possibilidades que nos fizeram entender o louco como doente mental. Foucault (1978), em sua arqueologia, desnaturaliza a continuidade entre loucura e doença mental, contando que a última nasce junto à instituição asilar, portanto enclausurada.

Na Renascença, não havia um lugar específico para o louco, ele vivia solto, errante pela cidade. Às vezes expulso, era entregue a navegantes ou mercadores. Sobre "Nau dos Loucos", representação exposta por Bosch através de pintura, Foucault (1978) traz algumas interpretações simbólicas que apresentam inquietações sobre a loucura nesse período da história. Para o autor, entregar os loucos aos navegantes era ter a certeza de que esses não ficariam vagando entre os muros da cidade: "(…) é torná-los prisioneiros de sua própria partida (…)" (p. 12).

Para Foucault (1978), na época Clássica, a dominação da razão sobre a loucura se radicalizou. Nesse período, denominado pelo filósofo de "O Grande Enclausuramento", o critério de internação nas diversas instituições não era médico-científico, mas partia da percepção social, produzida por diversas instituições: Igreja, polícia, justiça e família. Os internados haviam transgredido as leis da razão e da moralidade (Machado, 1986) e por isso eram considerados como personagens que se desviavam da norma social. Entre eles estavam prostitutas, sodomitas, doentes venéreos, adúlteros, feiticeiros, alquimistas e, por fim, os loucos.

Na passagem da fase de desrazão para a de alienação, deu-se a interiorização da experiência da loucura. Esse deslocamento da relação com ela estabelecida implicou um deslocamento institucional determinado também por fatores sociais e políticos. No período do Mercantilismo, por exemplo, os habitantes do Grande Enclausuramento não eram economicamente ativos, sendo por isso excluídos do circuito econômico. Já com o Capitalismo, de caráter industrial, firmando-se no final do século XVIII, os enclausurados, afora os loucos, foram liberados para servir de força de trabalho (Machado, 1986).

Uma vez que a loucura foi interiorizada e individualizada, criou-se um lugar específico para os loucos. Todavia, fica claro que a classificação nosográfica, bem como o entendimento da loucura como doença mental, a própria criação da psiquiatria e a produção de um lugar específico para loucos não foram atitudes de humanização. Pelo contrário, esse tipo social, diante de todas as modificações sociopolíticas, continuou enclausurado, agora, entretanto, em outras condições.

Pelbart (1989), no livro "Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura", discorre sobre a existência da loucura como uma necessidade de enclausurar o "Fora". Conforme seu entendimento, a loucura não seria apenas o que está à margem, mas o próprio enclausuramento desse Fora em um personagem exilado. Refletindo melhor a respeito, é possível inferir que o louco está sempre circunscrevendo esse Fora: Fora das normas sociais; Fora da cidade entregue aos navegantes; Fora da força de trabalho do capital. Sendo assim, a loucura está presa no mar aberto do Fora, remetendo à Nau dos insensatos que Foucault descreve tão bem, e que, por isso mesmo: "A ilha da loucura é cristalização e fechamento do mar aberto, do Fora" (p. 170).

Mesmo com todas as mudanças em relação à loucura propiciadas pela Reforma Psiquiátrica, que devolveu ao doente mental a condição de cidadão ao se mudar para dispositivos como SRT, não se tem a garantia de que esse equipamento não possa reencenar o enclausuramento, por mais que seus objetivos sejam exatamente o oposto: de abertura para o Fora, para a cidade e todas as possibilidades de viver que comportam uma vida.

Artigos que tratam sobre o SRT e a Psicanálise apontam o cotidiano, o uso dos objetos pessoais, as regras de convivência da casa, a rotina institucional, a própria equipe como possibilidade de fazer anteparo ao Outro (Sztajberg & Cavalcante, 2010).

De acordo com Marcos (2004), o cotidiano, entendido neste estudo como o modo como cada sujeito se apropria do tempo, do espaço e da utilização dos objetos, tem seu conceito inspirado na tese de Certeau (2014), que compreende o termo como um lugar de diferença em uma sociedade massificadora. Em complemento, Certeau (2014) propõe que nas práticas cotidianas, como ler, falar, habitar, cozinhar, entre outras, os sujeitos consumidores façam uso próprio dos objetos, o que ele denominou de bricolagem. Significa que esses sujeitos subvertem o uso comum do espaço, do objeto da linguagem, a fim de conseguir seus objetivos. Os usos próprios são soluções táticas que perfuram as estratégias (poderes estabelecidos institucionalmente).

Em se tratando do SRT, a instituição traz estratégias definidas, amparadas por dispositivos legais e por rotinas institucionais. No entanto, os sujeitos fazem uso próprio (tático) desse espaço e essa apropriação é em si subjetivante.

Como afirma Frare (2012), não há garantia de que, ao se mudar para o SRT, o sujeito terá uma casa, ou seja, de que ele terá uma habitação. Ademais, para que a casa seja subjetivada por cada sujeito vai depender de como cada um vai construí-la psiquicamente. Considerando que o SRT é "Uma casa que é um serviço que é uma casa" (p. 46), ele precisa assumir os efeitos clínico-institucionais que atravessam a forma de moradia para que haja a possibilidade (ou não) de estabilização do "quadro do paciente".

A estabilização mencionada está imbricada com a capacidade da casa, assumindo o paciente o lugar de serviço, seja o menor serviço possível: "quanto menos se ocupar como 'serviço' mais o SRT poderá oportunizar ao paciente a tentativa de se vincular a partir da cidade e, portanto, menos precisará de serviços" (Frare, 2012, p. 37). Dito de outra forma, quanto mais o morador se ocupar de atribuições, mais chances de vincular-se subjetivamente à casa, apropriando-se do desafio que é viver em sociedade após uma experiência de internação em um hospital psiquiátrico. Assim, a cidade comparece como aliada clínica para que o sujeito precise menos de serviço.

Como já dito, este estudo ocorreu no período da pandemia de Covid-19, contexto que, além de outros efeitos, restringiu a cidade ao papel de aliada terapêutica com reverberação nas possibilidades e nos modos de estabilização dos casos. Sendo assim, como estratégia para lidar com as limitações que a pandemia impôs, recorreu-se à utilização de oficinas artísticas, tendo em vista que todas as atividades do território foram interrompidas.

As oficinas, apesar de terem sido incorporadas no discurso da Reforma Psiquiátrica, surgiram no contexto do tratamento prestado em hospital psiquiátrico. Kinker e Imbrizi (2015) resgatam o histórico da noção de "atividade terapêutica" como um fazer próprio da Terapia Ocupacional para situar que estas, nas instituições fechadas, funcionavam na lógica sintoma-doença. Em outras palavras, "as atividades terapêuticas" existiam, em certa medida, como uma forma de silenciar e de ocupar tempo, mortificando o sujeito.

Foram as Atividades Terapêuticas, oriundas da Terapia Ocupacional, que deram origem às Oficinas Terapêuticas. No contexto da Reforma Psiquiátrica, com o nascimento dos serviços substitutivos, passaram a ser um fazer que não se restringe à Terapia Ocupacional, podendo ser executadas pelos demais técnicos de diversos saberes que compõem a equipe dos serviços substitutivos.

Cedraz e Dimenstein (2005), no entanto, questionam se o dispositivo Oficina Terapêutica estaria a serviço da desinstitucionalização - promovendo aos sujeitos envolvidos uma abertura para a cidade e para reabilitação psicossocial -, ou se seria uma forma de manter os resquícios da lógica manicomial, ocupando o sujeito, entretanto sem fazer uma reflexão crítica sobre a tarefa executada com vistas a promover um outro lugar social para a loucura.

Desde 2004, as Oficinas Terapêuticas aparecem nos manuais do Ministério da Saúde como a principal forma de tratamento aplicada no Centro de Atenção Psicossocial, equipamento estratégico na efetivação da Reforma Psiquiátrica. No manual também constam os diversos modos de fazer oficina, quais sejam: oficinas expressivas; oficinas verbais; oficinas corporais; e oficinas de geração de renda. São citados ainda no documento os diversos recursos plásticos, como pintura, argila e desenho, além de linguagens artísticas, como música, teatro e dança.

As oficinas, em geral, consistem em organizar os sujeitos em torno de uma tarefa a ser executada, permitindo que entrem no circuito das trocas sociais e saiam da marginalidade habitual em que a loucura é colocada. Clinicamente, a oficina de arte pode favorecer que o sujeito psicótico, por meio da criação artística, produza o delírio como via de estabilização e organização subjetiva (Tenório, 2001).

 

Método

Este estudo constitui-se como uma pesquisa qualitativa, de cunho empírico, com orientação psicanalítica. Em "Dois Verbetes de Enciclopédia", Freud (1996a) afirma que, antes de tudo, a Psicanálise é um método de investigação muito específico, sendo inacessível a qualquer outro saber pois diz respeito à investigação de conteúdos inconscientes. Acrescenta Freud que somente é possível tal investigação devido à transferência, que consiste na relação privilegiada entre o "médico" e o paciente. Nesse sentido, a transferência, tanto positiva quanto negativa, é a mola mestra do processo de cura.

A pesquisa psicanalítica difere de outras abordagens metodológicas, pois não está interessada em generalizações, seguindo no sentido de investigar o particular. O campo de pesquisa em psicanálise é, em última análise, sempre o inconsciente, e o método, a via de acesso ao inconsciente (Chrisóstimo et al., 2018).

Buscou-se, com este estudo, analisar a realização de dez oficinas artísticas com envolvimento das linguagens da pintura, da fotografia e da música, executadas em um SRT situado na Cidade de Fortaleza-CE, localizado no Bairro Bom Jardim. Essas linguagens artísticas foram escolhidas para análise por serem potentes na apreensão de uma verdade pelo sujeito, como também de fácil manifestação e expressão em um mundo interno, que pode passar a existir para o outro que a olha e aprecia. Na interrelação entre essas linguagens artísticas, um diálogo pode surgir, enriquecendo e ampliando a experiência estética para o sujeito que a vivencia de diferentes formas, seja como cria-dor ou como especta-dor.

O SRT do Bom Jardim é caracterizado como tipo II e abriga de quatro a dez participantes com maior grau de dependência. Segundo a Portaria nº 3.090 (2011), a instituição é destinada àquelas pessoas que precisam de cuidadores permanentes, com apoio técnico diário. Para essa modalidade de SRT é prevista equipe de cuidadores e técnico de enfermagem, que devem estar em articulação com a equipe do serviço de referência.

O Bairro Bom Jardim é um dos bairros de maior vulnerabilidade social da cidade de Fortaleza. A população que o habita é oriunda do êxodo rural, provocado pela estiagem no interior do estado. O bairro está localizado justamente no acesso do interior à capital, o que também contribuiu para a instalação dessas pessoas em seu território.

A Regional de Saúde em que se localiza o SRT abordado neste estudo apresenta menores indicadores sociais e sanitários, além da menor capacidade de instalação de equipamentos de saúde (Godoy, 2012). A casa é composta por dez moradores, sendo sete do sexo masculino e três do sexo feminino. Foi fundada em 2011, sendo considerado o segundo SRT de três existentes na cidade. O equipamento encontra-se sob responsabilidade técnica do Centro de Atenção Psicossocial Comunitário do Bom Jardim e da ONG Movimento Saúde Mental.

O estudo aconteceu a partir de dois momentos. No primeiro, foi realizada observação da dinâmica institucional, durante um mês, quatro horas por dia, duas vezes por semana. No segundo momento, foram realizadas dez oficinas artísticas com os moradores do SRT que desejavam participar e estavam de acordo com os critérios de inclusão e exclusão. As oficinas aconteceram uma vez por semana, com duração de uma hora e trinta minutos, durante três meses.

O instrumento escolhido para análise das oficinas foi o Diário de Campo, amplamente usado nas pesquisas em ciências humanas e da saúde, com vistas a registar as implicações subjetivas do pesquisador no campo investigado, as quais englobam as angústias e as mudanças de caminho no decorrer da pesquisa. Essa modalidade de escrita compreende a descrição dos procedimentos realizados e das atividades propostas, além de propiciar que o pesquisador construa uma narrativa sobre o que é visto e sentido no campo (Kroef et al., 2020).

A pesquisa foi submetida à apreciação e autorização da coordenação de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde (COGTES) do município de Fortaleza e do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Fortaleza (COÉTICA-UNIFOR), conforme Parecer nº 4.363.491. Respeitaram-se os aspectos éticos preconizados nas Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde e do Ministério da Saúde, que determinam as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas envolvendo seres humanos.

A pesquisadora assegurou aos sujeitos participantes sigilo, anonimato, isenção de custos, além de garantir liberdade para desistirem da pesquisa a qualquer instante, a partir do momento do aceite pelo Termo de Assentimento e Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa foi realizada com o intuito de contribuir para o tratamento dos moradores do SRT e para o avanço da ciência.

 

Resultados e Discussão

Primeiras Impressões

Tendo como base o método psicanalítico de pesquisa, ou seja, investigar o particular que emerge do discurso de cada participante, as oficinas foram disponibilizadas para os dez moradores que desejaram participar, entretanto, nem sempre todos participaram dos encontros. Na maioria das vezes, estavam presentes em torno de sete pessoas.

As primeiras oficinas foram organizadas no sentido de apresentar a proposta da pesquisa e familiarizar os moradores com o recurso da aquarela. Esses primeiros encontros se mostraram caóticos, pois alguns participantes falavam ao mesmo tempo, enquanto outros não interagiam de forma nenhuma com o grupo, manifestando-se apenas quando eram perguntados. Esses momentos iniciais apontam para algo que teoricamente se sustenta na teoria psicanalítica e que se constata na clínica: o trabalho em grupo com sujeitos psicóticos difere da condição de sujeitos neuróticos. Cada um parecia estar em seu mundo, aparentemente não apresentando muito interesse nos conteúdos vindos dos outros participantes do grupo.

Grupo Terapêutico e Psicose em Psicanálise

Freud (1996c), em "Psicologia de Grupo e Análise do Ego", adverte que não há dicotomia entre psicologia individual e psicologia social, tendo em vista que o sujeito se constitui, primeiramente, por identificação com objetos de amor nas figuras materna e paterna, e pelas identificações posteriores, que compõem os grupos substitutos desses primeiros objetos.

A identificação é um mecanismo que se dá no complexo de Édipo, ou seja, no menino que renuncia ao desejo de ter a mãe e se submete à castração simbólica do pai, passando a identificar-se, posteriormente, com ele. Todavia, como é possível pensar esse processo de identificação em sujeitos que se encontram na estrutura psicótica, e que por isso não passaram pelo complexo de Édipo nem pela castração, não havendo nesses casos a assunção da lei simbólica?

Vitta e Ribeiro (2007) diferenciam a condução de um grupo com sujeitos neuróticos da condução de grupo com sujeitos psicóticos. Para as autoras, o grupo com sujeitos neuróticos recebe um tratamento "das identificações", uma vez que o lugar que o analista ocupa na direção do tratamento é, no primeiro momento, de acolher as identificações e promovê-las para que, no segundo momento, possa fazer emergir o que há de singular em cada integrante do grupo.

Já no grupo com psicóticos o tratamento é "pelas identificações", pois, o psicótico não forma grupo propriamente, uma vez que não faz identificações oriundas do complexo de Édipo. O psicótico faz uma espécie de identificação imaginária, que pode ser promovida pelo analista no processo de grupo e que possibilita uma nomeação ao sujeito e uma inscrição no laço social.

Para compreender melhor a identificação imaginária, retorna-se a Lacan (1985) quando diz que resta ao psicótico o engajamento em uma identificação imaginária que não se sustenta na triangulação edípica. Essa identificação aparece como uma série de identificações com personagens que vão dar ao sujeito a sensação do que se deve fazer para ser um homem. Lacan se pergunta, então, por que certos psicóticos nunca descompensam, atribuindo a essa questão a metáfora "as muletas imaginárias". Dessa forma, o autor compara a compensação desses sujeitos a um banco de três pés, caso algo de sua biografia incida, no nível do significante, sobre algo que faça menção ao significado. Sendo o nome-do-Pai ausente, o sujeito se desorganiza, como se nunca tivesse tipo um terceiro pé.

De modo semelhante, o psicótico pode também se servir do grupo como lugar de sustentação, onde as trocas sociais são feitas de forma protegida. Nessas situações, cabe ao analista o trabalho de acolher e prover tais identificações imaginárias, ficando atento para o limite de cada participante do grupo.

No estudo em questão, as oficinas de arte provocaram o movimento de ocupação da casa. A análise retrospectiva desses recursos mostrou que ele caminhou em vários cômodos coletivos da casa, propiciando modificar a relação dos usuários com o espaço. Retoma-se, então, o que Frare (2012) sustenta sobre a não garantia de que, ao se mudar para o SRT, o sujeito terá uma casa, ou terá um espaço de moradia, afirmando ainda que a casa depende de como cada um irá construí-la psiquicamente.

O grupo teve início na parte superior da casa, depois passou-se a ocupar a lavanderia, para contemplar uma moradora que não subia para o segundo piso. Em seguida, trabalhou-se na sala de estar, onde ficava a televisão. Apesar de ter um planejamento e um roteiro de realização das oficinas, o próprio movimento do grupo convocou a pesquisadora a refazer o planejamento, contemplando elementos necessários para os participantes.

As oficinas começaram a partir do recurso da aquarela, mas na maioria dos encontros foi usado o recurso da fotografia. Nas oficinas de fotografia, os participantes foram conduzidos a fotografar objetos significativos para eles. Em seguida foram orientados a fotografar uns aos outros, os lugares significativos da casa, depois as pessoas (funcionários) que participavam da rotina do lugar. Tudo foi pensado com o intuito de facilitar a construção dessa casa psiquicamente. Dessa forma, como efeito clínico-institucional, denota-se a captura do outro, ou seja, no momento em que o sujeito captura a imagem, ela passa a existir em seu mundo. Então, construir a casa psiquicamente também faz com que o sujeito seja psiquicamente reorganizado. Pode-se inferir, portanto, que o trabalho com arte pode dar alguma sustentação e organização psíquica aos sujeitos participantes.

Além da própria relação dos usuários com a casa, a presença da pesquisadora propiciou, como efeito clínico-institucional, o deslocamento do olhar dos cuidadores para os usuários. Destaca-se o momento em que os participantes da oficina assinaram os nomes nos trabalhos realizados, inclusive duas participantes que a equipe pensava não possuírem essa habilidade. Ao ver o movimento realizado por essas moradoras, uma cuidadora que se surpreendeu disse: "Nossa! Eu não sabia que elas sabiam assinar o nome". Em resposta, a psicanalista/pesquisadora assim pontuou: "Quando os grupos do CAPS retornarem (pós-pandemia) vocês podem assinar a lista de frequência".

A situação descrita revela que, no trabalho cotidiano dos cuidadores na SRT, é importante que os profissionais estejam sempre atentos aos efeitos institucionais que não raro obstaculizam seu olhar para os moradores.

Ao longo do processo de execução das oficinas, elementos que eram importantes para os participantes, como a música, foram sendo incorporados. Decerto, a música fazia parte da rotina da casa, destacando-se as atividades promovidas pelo compositor do "Bloco Doido é Tu", que uma vez por semana ia ao encontro dos moradores da SRT. Esses momentos, entretanto, foram interrompidos devido à pandemia, mas ao final de cada oficina, a pesquisadora sempre cantava uma música ao gosto dos moradores.

O uso da música remete ao que Sztajberg e Cavalcante (2014 como citado em Certeau, 2014) admitem sobre o cotidiano, tratando-o como lugar de diferença em uma sociedade massificada. Por essa perspectiva, as práticas cotidianas são entendidas como ler, falar, habitar, cozinhar, e pode-se incluir o cantar, que, como manifestação espontânea, possibilitou subverter o uso comum do espaço da casa e da própria língua. Isso aconteceu uma vez que a música expressava a subjetividade dos moradores da casa e que o ato de escolher as canções em si já se mostrava subjetivante.

Dentre as músicas escolhidas chamou atenção uma de Sérgio Reis, que sempre era lembrada pelos moradores e sua letra remeteu a pesquisadora/psicanalista à questão do morar e do habitar. Assim diz:

Nessa casa tem goteira
Pinga ni mim
Pinga ni mim
Pinga ni mim
Lá no bairro aonde eu moro
Tem alguém que eu adoro
Ela é minha ilusão
Vou meter pinga no peito
Sufocar meu coração
E nessa casa tem goteira

De certa forma, a letra remete à estrutura física precária da casa, que, na ocasião da pesquisa, contava com infiltrações, precisando de reparos para tornar-se um ambiente mais harmônico. Não por acaso, a música era unanimidade entre os moradores e participantes das oficinas. Como efeito clínico-institucional, acredita-se que de algum modo expressava uma identificação do grupo, mesmo que imaginária, com as condições da moradia onde viviam, ou seja, que era um ponto em comum possível de expressar um incômodo coletivo.

Efeitos Clínico-Institucionais Recolhidos das Oficinas Artísticas: Estela e Ermínio

A cada oficina, eram trazidas as memórias das oficinas anteriores e as fotos nelas produzidas. Na antepenúltima oficina, pediu-se que os moradores escolhessem duas imagens para serem reveladas. O objetivo dessas fotos eram dois produtos: uma exposição coletiva, com a criação de um varal de fotos a ser exposto na casa; e um quadro individual a ser exposto com apenas uma foto no lugar da casa escolhido pelos participantes.

Dois movimentos chamaram a atenção na culminância da oficina, os quais foram trazidos nos relatos de Estela e de Ermínio.

Estela

O primeiro foi de uma moradora, de nome Estela, que "não participava" de uma forma convencional das oficinas. A posteriori, verificou-se que ela se envolvia, mas que, de forma peculiar, pois não estava com o coletivo do começo ao fim. Ela veio ao encontro do grupo comentar o desenho de um participante e disse: "Ficou bonito". Observava o que estava acontecendo, às vezes interessada, às vezes desconfiada. No momento da escolha da foto para ser usada no trabalho individual e das que iriam para a exposição coletiva, falou: "E não tem foto da Estelinha não?". A pesquisadora/psicanalista então respondeu: "Mas você não quis ser fotografada! Eu posso te fotografar agora e trazer na próxima semana. Você quer?". Nesse momento, Estela participou de toda a oficina e se engajou em pintar os pregadores que estavam sendo elaborados para exposição coletiva.

Na oficina seguinte, em que seria feita a moldura do quadro com a foto, ela participou de todo processo com maestria e ainda escolheu o lugar onde deveria ficar a sua foto. Ela disse: "Quero a foto da Estelinha em cima da cama". Após o quadro instalado, ela afirmou para a pesquisadora/ psicanalista: "Gostei da Estelinha!", apontando para o quadro.

A questão da inserção de Estela na oficina pode ser pensada a partir de Guerra (2012), como o psicótico, que tem de lidar com o laço social. Guerra trabalha na esteira do pensamento de Lacan, com a ideia de uma desinserção estrutural. Em outras palavras, o sujeito, ao nascer, seja psicótico ou neurótico, já porta a desinserção entre o seu corpo e o seu nome, em seguida precisa lidar com a perda do objeto e a falta constitutiva que permite a assunção do desejo.

Para Guerra (2012) é a exclusão ou desinserção estrutural que comporta o vazio que faz com que o sujeito se amarre ao campo do Outro, através do sintoma. Esse sintoma não é entendido aqui como algo que deva ser extirpado, mas que comporta um real em jogo, sendo o preço que se paga para entrar no laço civilizatório. Dessa forma, cada um encontra, ao seu modo, a partir do seu sintoma, a forma de lidar com o mal-estar inerente ao pacto civilizatório.

Sendo assim, desvio à norma, o desarranjo não seria um privilégio da loucura ou da estrutura psicótica, uma vez que a desinserção estrutural está para todos. O psicótico é, pois, alguém que leva a desinserção estrutural em sua radicalidade, tendo em vista o modo peculiar de lidar com a linguagem e com o Outro. Como aponta Rabinovitch (2001), esse sujeito não habita a linguagem, mas é habitada por ela. Nessas condições, a arte permitiu aos moradores do SRT em questão lidarem com a habitação na casa, mas também, de certa forma, serviu de anteparo ao Outro, que, para o psicótico, é invasor.

Por meio da arte e da sua linguagem, o psicótico expressa seu mundo particular, possibilitando que o olhar invasivo do Outro seja desviado do sujeito para obra de arte. Isso explica a desorganização psíquica desses sujeitos no início das oficinas, citada no início dos resultados, e a possibilidade de maior organização subjetiva ao final das oficinas.

A partir dessa ideia de desinserção estrutural, no encontro do psicótico com o laço social e com o pacto civilizatório não há o que adaptar ou incluir, mas sim suportar o embaraço do laço e acolher, no caso a caso, a invenção do sujeito a partir desse embaraço.

A essa discussão pode-se acrescentar o pensamento de Pelbart (1989) sobre o louco, figurado pela psicanálise como o psicótico que circunscreve o Fora. É o caso de Estela, cuja participação se dava desde Fora do grupo, mas não por isso deixa de ser participação. A moradora deflagrou sua participação quando sentiu falta de sua imagem entre as imagens do coletivo de participante das oficinas, falta esta que talvez tenha servido como ponto de ancoragem provisória, que faz dirigir uma demanda ao analista. Não tem foto da Estelinha não? Aposta-se que a materialidade da fotografia possa ter dado alguma consistência ao psicótico, que permaneceu alienado ao desejo materno. Em Estela, essa alienação aparece inclusive na forma de se referir a si na terceira pessoa.

É necessário, aqui, enfatizar a importância de acolher a forma "errática" de participação de Estela, apontando para o que Guerra (2012) traz sobre o embaraço a que o psicótico nos convoca diante do laço social. Ora, o sujeito irá participar ao seu modo, às vezes na "beira" do laço, como apontou Pelbart (1989), circunscrevendo o Fora próprio da loucura. Cabe ao analista estar atento para não fazer uma ortopedia neurótica do funcionamento psicótico em nome de um ideal de participação.

Ermínio

O segundo participante que trouxe inquietação à pesquisadora foi Ermínio. Ele estava presente em todos os encontros e participava de todo o processo. Ermínio é um paciente refratário, o último a chegar na SRT, transferido de outra unidade. Nos primeiros encontros, ainda de reencontro com o campo de pesquisa, ele estava completamente dopado. No período das oficinas, estava bem mais ativo, mas durante as atividades fingia que estava dormindo, ficava um pouco e saia. Acredita-se que é um paciente que se aproxima mais da esquizofrenia do que da paranoia.

Quinet (1997) traz a distinção entre os dois distúrbios. Para o autor, na psicose a cadeia significante encontra-se em holófrase. Significa que entre S1 e S2 não existe intervalo, formando-se ali um bloco. Afirma ainda que entre S1 e S2 há sujeito, mas que o recalque não opera e, por consequência, não há extração do Objeto a. No que diz respeito ao Outro, tanto para neurose como para a psicose, é tesouro do significante, no entanto, devido à castração, o Outro da neurose é barrado, enquanto o Outro da psicose não é barrado e vocifera o sujeito através do sintoma de alucinação e delírio. Na paranoia, em particular, o sujeito ocupa o lugar de objeto de gozo do Outro e há também o reviramento gramatical, fruto do mecanismo de projeção que Freud (1996b) sistematiza com o caso Schreber.

Já na esquizofrenia há, frequentemente, os fenômenos de despedaçamento do corpo, com dores múltiplas que vão até a cadaverização. O despedaçamento do corpo toca o que acontece no estágio do espelho. No início da constituição do eu, o corpo é atravessado somente por pulsões e a unificação da imagem corporal é fornecida por imagens provenientes do Outro. Desse modo, pode-se dizer que a formação do eu do sujeito, proveniente do estágio do espelho, sempre terá um componente paranoico, tendo em vista que se forma a partir de imagens fornecidas pelo Outro. No entanto, a passagem pelo estágio do espelho não é o suficiente para que o sujeito possa tomar posse do seu corpo. Junto com a imagem é fundamental a formação do simbólico e é justamente nesse ponto que a perturbação toca o corpo do psicótico, uma vez que o acesso ao simbólico encontra-se prejudicado pela não instauração da metáfora paterna (Quinet,1997).

Durante as atividades em grupo, o morador Ermínio apresentou movimentos repetitivos. Ele batia na parede, principalmente nos interruptores. Os cuidadores sempre ficavam atentos a esses movimentos, pois Ermínio já havia quebrado alguns desses interruptores. Nesse ponto, já é possível inferir a perturbação da esquizofrenia no tocante à formação do corpo, pois Ermínio não expressava dor em tais movimentos, precisando de uma agente externa que o impedisse e ajudasse a preservar sua integridade física e a integridade dos objetos da casa.

Na última oficina, durante a fabricação do quadro com as fotos de cada participante, Ermínio precisou de ajuda de outros integrantes do grupo para fazer a moldura. Quando o quadro estava sendo posto onde ele havia escolhido, com ajuda da pesquisadora/psicanalista e da cuidadora, Ermínio acariciou a foto e sorriu. Tal gesto remete ao primeiro júbilo da criança ao reconhecer a própria imagem no espelho. Dessa forma, este trabalho aponta para a possibilidade de dar algum tratamento para o despedaçamento do corpo do esquizofrênico.

No retorno a esse momento da constituição, o eu, como já colocado, sempre se forma a partir de imagens fornecidas pelo Outro. Pode-se dizer, então, que a arte e suas vicissitudes possibilitam que os sujeitos se apropriem de si e do mundo à sua maneira, a partir de sua verdade. Sendo assim, terá Érminio se apropriado subjetivamente de si por meio de uma obra prima de si? A arte tem seus mistérios na singularização do mundo para cada sujeito.

 

Considerações Finais

O SRT é um dispositivo da saúde mental que nos convoca a grandes desafios, devido às características próprias desse serviço. Trata-se de um dispositivo que lida com a mediação dos moradores com outros equipamentos da rede, com a cidade e com o território, além de trabalhar com algo tão íntimo, que é a relação dos sujeitos com a própria casa e com cotidiano atravessado pelos efeitos clínico-institucionais.

Os sujeitos moradores desses equipamentos - pacientes egressos de longas internações em hospitais psiquiátricos -, além do diagnóstico de seus transtornos sofrem os efeitos da institucionalização em hospitais psiquiátricos, que incidem diretamente em seus corpos, os quais foram privados, por anos, do encontro com a cidade, com a família e com o laço social. Tais marcas agravam os quadros desses sujeitos, convocando, em sua radicalidade, o chamado de Lacan (1985) aos psicanalistas, para não recuar diante das psicoses.

No que diz respeito ao SRT abordado neste estudo e à realidade dos seus moradores, as oficinas de arte se mostraram como um recurso potente para eles lidarem com a apropriação da casa, de si e do mundo. A arte lhes possibilitou ainda uma comunicação com o Fora e com suas memórias, fazendo com que olhassem para Dentro. Acredita-se que também auxiliou no processo de apropriação do espaço de morar, contribuindo para a construção de uma casa subjetiva.

No que tange aos efeitos clínico-institucionais, entende-se que a presença de uma pesquisadora externa e a realização das oficinas possibilitaram um novo olhar dos cuidadores - muitas vezes anestesiados pela lida cotidiana do trabalho - para seus usuários.

Ainda sobre esses efeitos, observou-se que as oficinas auxiliaram na estabilização dos quadros dos pacientes, possibilitando um espaço de fala e de produção subjetiva que, mediado pela arte, favorece a organização do mundo psíquico do psicótico, que pode ser caótico.

Em relação ao analista, ressalta-se a importância de pensar em outras possibilidades de intervenção para além do consultório tradicional, apostando nas oficinas de arte, amplamente utilizadas pela saúde mental, podendo ser recurso potente para aqueles que se dedicam à clínica das psicoses. Destaca-se a importância de pesquisa nessa direção, uma vez que ainda são escassos os artigos sobre oficinas de arte pelo viés psicanalítico.

Nos aspectos singulares dos recortes da pesquisa, quanto às suas limitações e desafios, as oficinas mostraram que o grupo com sujeitos psicóticos têm um funcionamento próprio, que requer um olhar cuidadoso do pesquisador, a fim de não cair em uma ortopedia neurótica do sujeito psicótico. No grupo investigado, apareceu justamente a dificuldade do psicótico em habitar o pacto civilizatório e fazer laço social, cabendo a esse profissional escutar e perceber como cada sujeito flerta com esse laço ao seu modo, muitas vezes de uma forma estranha, que não corresponde ao ideal de participação neurótico.

Além disso, o grupo se mostrou desafiador, pois apesar de ter um roteiro norteador, esse precisou ser revisto e se adequar ao funcionamento dos participantes e das rotinas da casa.

Por fim, aponta-se que o trabalho com as oficinas de arte, sobretudo quando utilizada a linguagem da fotografia no SRT, possibilitou tocar em algo muito específico da clínica da psicose, em especial da esquizofrenia: a relação desses sujeitos com o próprio corpo. A moldura construída de forma material na realidade possibilitou dar alguma consistência a essa imagem que, na esquizofrenia, pode estar despedaçada, possibilitando, no caso de Ermínio, paciente refratário participante da pesquisa, alegrar-se ao ver sua imagem registrada na fotografia.

 

Referências

Alemán, J., Mollica, M., Brunhari, M. V., Martins, A. C. B. L., Barros, R. M. M., & Darriba, V. (2023). Psicanálise e Política: A Insistência do Real-Um Diálogo com Jorge Alemán. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 23(4), 1180-1192.

Brasil (2001). Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Presidência da República. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm

Brasil (2004). Portaria n.º 2.068, de 24 de setembro de 2004. Destina incentivo financeiro para os Serviços Residenciais Terapêuticos e dá outras providências.

Brasil (2011). Portaria n.º 3.090 de dezembro de 2011. Estabelece que os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), sejam definidos em tipo I e II, destina recuso financeiro para incentivo e custeio dos SRTs e dá outras providências. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3090_23_12_2011_rep.html

Cedraz, A., & Dimenstein, M. (2005). Oficinas terapêuticas no cenário da Reforma Psiquiátrica: modalidades desinstitucionalizantes ou não? Revista Mal-Estar e Subjetividade, 05(2), 300-327.

Certeau, M. (2014). A invenção do cotidiano.1 Artes de Fazer. (Alves, E. F. Tradu). Vozes.

Chrisóstimo, M. C., Moreira, J. O., Guerra, A. M. C. (2018). A pesquisa psicanalítica de fenômenos sociais: algumas considerações. Psicologia em Revista, 24(2), 645-660.

Costa-Moura, R. (2022). Prefácio. In L. C. Teixeira, & R. F. Nicolau (Orgs.), Psicanálise & políticas públicas: A construção do caso clínico em equipes de saúde mental e a garantia de direitos fundamentais (pp. 15-18). CRV.

Foucault, M. (1978). A história da loucura na idade clássica. Perspectiva.

Frare, A. P. (2012). No litoral da Casa e do Serviço: A Psicanálise no Serviço Residencial Terapêutico [Tese de Doutorado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro].

Freud, S. (1996a). Dois verbetes de enciclopédia: Psicanálise. In J. Strachey (Ed.). Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (Vol. 18, pp. 243-260). Imago.

Freud, S. (1996b). O Caso Schreber, Artigos Sobre Técnica e Outros Trabalhos (Vol. 12). Imago.

Freud, S. (1996c). Psicologia de Grupo e Análise do Ego. In J. Strachey (Ed.). Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (Vol. 18, pp. 65-144). Imago.

Godoy, M. G. (2012). O Compartilhamento do Cuidado em Saúde Mental: uma experiência de cogestão de um centro de atenção psicossocial em Fortaleza, CE, apoiada em abordagens psicossociais. Saúde e Sociedade, 21(1), 152-163.

Guerra, A. M. (2012). Oficinas em Saúde Mental: costuras entre o real, simbólico e imaginário. Rev. Assoc. Psicanal. de Porto Alegre (APOA), 86-100.

Kinker, F.S., & Imbrizi, M. J. (2015). O Mito das Oficinas Terapêuticas. Revista Polis e Psique, 5(3), 61-79.

Kroef, R., Gravillon, P., Ramm, L. (2020). Diário de Campo e a Relação do(a) Pesquisador(a) com o Campo-Tema na Pesquisa- Intervenção. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 2(2), 464-480.

Lacan, J. (1985). O seminário, livro 3: As psicoses (2ª ed.), Zahar.

Machado, R. (1986). Ciência e Saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Graal.

Marcos, C. M. (2004). A reinvenção do coditiano e a clínica possível nos "Serviços Residenciais Terapêuticos". Psychê, 8(14), 179-190.

Oliveira, R. W. (2013). Os caminhos da reforma psiquiátrica: Acompanhamento Terapêutico, propagação e contágio na metrópole. Psicologia & Sociedade, 25(2), 90-94.

Pelbart, P. P. (1989). Da clausura do fora ao fora da clausura. Brasiliense.

Quinet, A. (1997). Teoria e Clínica da Psicose. Forense Universitária.

Rabinovitch, S. (2001). A Forclusão. Presos do Lado de Fora. Zahar. Rio de Janeiro.

Sousa, O. D., Teixeira, L. C., Nicolau, R. F., & Frare, A. P. (2022). Os efeitos clínicos e institucionais do dispositivo "Construção do Caso Clínico" em um Serviço Residencial Terapêutico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 25(4), 714-738.

Sztajberg, T. K., & Cavalcante, M. T. (2010). A arte de morar na Lua: a construção de um novo espaço de morar frente à mudança do dispositivo asilar para o Serviço Residencial Terapêutico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 13(3), 457-468.

Sztajberg, T. K., & Cavalcanti, M. T. (2014). Sob o pé do castanheiro: histórias que perpassam um Serviço Residencial Terapêutico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 17(2), 265-278.

Tenório, F. (2001). A Psicanálise e a Clínica da Reforma Psiquiátrica. Ambiciosos.

Vitta, A. R., & Ribeiro, P. C. (2007). O manejo da identificação imaginária em grupos de psicóticos. Revista Latinoamericana de Psicopatologia, 10(4), 653-663.

 

 

Endereço para correspondência
Olga Damasceno Nogueira de Sousa - olganogueiradesousa@gmail.com

Recebido em: 14/08/2024
Aceito em: 22/02/2025

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado da primeira autora pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Pela bolsa de doutorado da terceira autora, também pela FUNCAP, e pela bolsa de doutorado da quarta autora, pela Fundação Edson Queiroz.

 

Agradecimentos: Os autores agradecem à FUNCAP e à Fundação Edson Queiroz pelo apoio financeiro para a realização da pesquisa.

 

 

Este artigo da revista Estudos e Pesquisas em Psicologia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 3.0 Não Adaptada.