Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e86303, doi:10.12957/epp.2025.86303
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE
Entre o Domínio e a Dominação de Si: Sujeição Psíquica no Neoliberalismo
Between Self-Dominion and Self-Domination: Psychic Subjection in Neoliberalism
Entre el Dominio y la Dominación de Sí: La Sujeción Psíquica en el Neoliberalismo
Tatiane de Andrade a
a Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
O presente artigo objetiva discutir as implicações subjetivas do neoliberalismo, cuja ética, assentada na lógica da competição e na norma da empresa, exige um trabalho contínuo do sujeito sobre si mesmo. A partir de alguns pressupostos da racionalidade neoliberal, como a ideia de que o indivíduo é o eu autointeressado em busca das melhores oportunidades no mercado, propomos uma discussão em torno dos modos de sujeição a partir dos quais e pelos quais somos chamados a nos constituir como sujeitos, que, no neoliberalismo, transmuta-se do domínio de si, como operação ética que implica a relação de si consigo mesmo, para uma dominação de si, quer dizer, uma instrumentalização de si mesmo. Se o eu autocrático fomentado por esta racionalidade pôde transformar o desejo em vontade de poder, a questão que nos parece ser preciso articular, como contribuição da psicanálise ao campo da política, diz respeito ao ponto de toque entre esse eu autointeressado das sociedades atuais e o sujeito do desejo, e, a partir deste deslindamento, oferecer-nos formas de resistência ao açambarcamento das subjetividades no neoliberalismo.
Palavras-chave: neoliberalismo, sujeição psíquica, sujeito, processos de subjetivação, psicanálise.
ABSTRACT
This study is aimed to discuss the subjective implications of neoliberalism, whose ethics, based on the logic of competition and on the norm of the company, demand continuous work from the subject on themselves. Based on some assumptions of neoliberal rationality, such as the idea that the individual is the self-interested self in search of the best opportunities in the market, we propose a discussion around the modes of subjection from which and by which we are called to constitute ourselves as subjects, which, in neoliberalism, is transmuted from self-dominion, as an ethical operation that implies the relationship of oneself with oneself to self-domination, that is, self-instrumentalization. If the autocratic-self fostered by this rationality was able to turn desire into the will to power, the question that seems to be necessary to articulate, as a contribution of psychoanalysis to the field of politics, concerns the point of contact between this self-interested self of current societies and the subject of desire, and, from this unravelling, offer forms of resistance to the monopoly of subjectivities in neoliberalism.
Keywords: neoliberalism, psychic subjection, subject, processes of subjectivation, psychoanalysis.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo discutir las implicaciones subjetivas del neoliberalismo, cuya ética, basada en la lógica de la competencia y en la norma de la empresa, exige un trabajo continuo del sujeto sobre sí mismo. A partir de algunos supuestos de la racionalidad neoliberal, como la idea de que el individuo es el yo egoísta en busca de las mejores oportunidades en el mercado, proponemos una discusión en torno a los modos de sujeción desde los cuales y por los cuales estamos llamados a constituirnos nosotros mismos como sujetos, lo que, en el neoliberalismo, se transmuta de autodominio, como una operación ética que implica la relación del ser consigo mismo, en autodominación, es decir, en auto instrumentalización. Si el yo autocrático fomentado por esta racionalidad fue capaz de transformar el deseo en voluntad de poder, la pregunta que nos parece necesario articular, como aporte del psicoanálisis al campo de la política, se refiere al punto de contacto entre ese yo - yo interesado de las sociedades actuales y sujeto del deseo, y, a partir de este desenmarañamiento, ofrecernos formas de resistencia al acaparamiento de subjetividades en el neoliberalismo.
Palabras clave: neoliberalismo, sujeción psíquica, sujeto, procesos de subjetivación, psicoanálisis.
Em 1981, Margaret Thatcher, então Primeira-Ministra do Reino Unido, em entrevista ao Sunday Times, colocou em discurso a programática geral do neoliberalismo: a economia é o método, o objetivo é "mudar a alma e o coração" (Thatcher, 1981). De saída, a governante expunha a lógica liberal, cujo objetivo ultrapassava a determinação econômica, empenhando-se na produção de uma sociedade que a suportasse e de uma subjetividade que a difundisse.
Nesse sentido, teóricos do neoliberalismo, como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek, dedicaram-se à construção de um novo homem, capaz de dar suporte subjetivo a essa ordem social e econômica nascente. A partir de um quadro teórico situado entre a economia e a psicologia, Von Mises postulou a praxeologia, como "ciência da ação humana" (Von Mises, 2010, p. 35), cujo objeto seria o comportamento humano, e o método, as formas de intervir e influenciar a conduta dos agentes econômicos na construção dos meios necessários para atingir determinados fins. O que está em jogo na praxeologia é a redefinição da concepção de homem econômico, que passa a ser compreendido como empreendedor que sabe aproveitar as oportunidades de lucro que lhes aparecem. Se o homo agens, enquanto suporte da economia, é o sujeito acrítico, e, por conseguinte, suscetível a inúmeras técnicas que visam manipulá-lo, conforme defendem os austríacos, a praxeologia responde à estruturação de uma "teoria do modo como o indivíduo é conduzido a governar a si mesmo no mercado" (Dardot & Laval, 2016, p. 141).
Percebendo a importância da obra Ação Humana (Von Mises, 2010) na estruturação da racionalidade neoliberal, Dardot e Laval (2016) nos fazem uma injunção: "se o opus magnum de Von Mises intitula-se Ação Humana, convém levar muito a sério o título" (Dardot & Laval, 2016, p. 141). Somos sensíveis à injunção dos teóricos: são os modos de produção que produzem uma consciência mais ou menos alienada, ou, o modelo de subjetividade que será essencial ao modo de produção?
Este artigo objetiva discutir as implicações subjetivas no neoliberalismo, tomando como ponto de partida e apoio discursivo duas problemáticas que se intercambiam: a objetivação do sujeito como efeito imediato das relações de saber-poder, a qual pressupõe uma relação de interioridade entre sujeito e poder, e a relação estabelecida entre a forma de governamentalidade neoliberal e as modalidades de relações consigo mesmo através das quais os sujeitos se constituem como sujeitos, ambas as problemáticas formuladas por Michel Foucault (1995; 1983/2017). Para tanto, o recorte teórico adotado prima por autores que, junto e contra Foucault, têm se debruçado sobre as consequências contemporâneas da constituição subjetiva no neoliberalismo. Além da literatura foucaultiana, e no que pese as divergências teóricas entre os dois campos epistêmicos, recorreremos à psicanálise a partir de uma leitura freudo-lacaniana como modo de articularmos as nossas questões, quais sejam: como se dá a constituição de si no neoliberalismo? Pergunta que se desdobra em outras mais: qual a especificidade das relações de sujeição no neoliberalismo? Podemos pressupor uma relação de dominação de si efetuada pelo próprio sujeito no neoliberalismo? Se há consistência nessa suposição teórica, política, ética e subjetiva, no que ela se difere de uma relação de poder, bem como de uma relação de domínio de si?
O artigo em tela busca discutir estas formulações. Para tanto, está dividido, além da introdução, em quatro etapas. Na primeira, Entre domínio e dominação de si, discutiremos a constituição do capital humano como fator preponderante para a consolidação da racionalidade neoliberal, capital este para o qual se requer, além de um trabalho ético do sujeito sobre si mesmo, a instrumentalização deste si. Na segunda etapa, Dominação de si: tornar-se instrumento do próprio desejo, buscaremos discutir qual é a parte de si exigida como substância ética no neoliberalismo, bem como as técnicas de sujeição empregadas para esta finalidade; assim, abordaremos qual a característica desta sujeição que nos possibilita pensar em uma deriva que se dá de um domínio de si, tal como trabalhado extensamente por Foucault a partir dos anos 80, para uma dominação de si, na qual a característica fundamental é a instrumentalização da subjetividade a partir da tomada de si mesmo como objeto de consumo; neste aspecto, tomaremos como aporte teórico a discussão promovida por alguns teóricos que trabalham a relação entre o pensamento foucaultiano e a psicanálise. Na terceira etapa, Tornar-se sujeito, alteridade e heteronomia, problematizamos a constituição do sujeito com o aporte teórico psicanalítico. Em que pesem as divergências epistêmicas entre os discursos foucaultiano e psicanalítico, adotados como pontos de apoio neste artigo, justificamos a escolha dada a complexidade das questões colocadas, as quais exigem que nos situemos na interface entre estes discursos.
Entre Domínio e Dominação de Si
Uma das grandes formulações efetuadas pela racionalidade neoliberal em relação aos liberais foi a inclusão do fator humano como primeiro e indispensável à análise da atividade econômica. Assim, ao invés de centrar-se na análise universal e histórica dos processos econômicos, as análises de Shultz (1964) e Becker (1994) deslocaram-se da economia clássica, centrada na tríade terra, capital e trabalho, para a singularidade do comportamento humano, quer dizer, o cálculo que os indivíduos fazem ao empregar sua força de trabalho. Somou-se ao trabalho a noção de capital humano enquanto variante pessoal e intransmissível que agrega valor e transforma profundamente a relação entre o capital e aquilo que se produz. Deslocamento que se efetua do trabalhador enquanto objeto de uma oferta de força de trabalho para "sujeito econômico ativo" (Foucault, 2018, p. 284), senhor de seu próprio bem, de modo que este não mais percebe o trabalho como força que se vende, mas como atividade que se incorpora aos seus próprios predicados, e o salário transmuta-se em lucro obtido a partir do investimento realizado: será o rendimento de um capital que é o próprio trabalho, extraído do "capital-competência" (Foucault, 2018, p. 285) em que se constitui o trabalhador. Dono do próprio capital, o trabalhador não se verá explorado, ele será para si sua própria empresa, na qual precisa investir de forma permanente. A noção de capital humano dissolve a ideia marxista de alienação do trabalho, uma vez que o sujeito é "para si mesmo o seu produtor, (....) a fonte dos seus rendimentos", o seu próprio capital, o "empresário de si mesmo" (Foucault, 2018, p. 286).
Importa-se do meio econômico a forma empresa como modelo subjetivo que orienta a ação dos sujeitos econômicos segundo a norma da concorrência e a lógica da maximização dos lucros. O homo oeconomicus neoliberal é o trabalhador enquanto "empresário de si mesmo", consumidor e produtor da sua própria satisfação. O objeto da análise do neoliberalismo, notadamente o estadunidense, será a maneira como se constitui e se acumula o capital humano, o que o permitiu estender a análise a vastos domínios da atividade humana.
Uma crítica importante ao capital humano fora formulada pelo economista Amartya Sen (2010) para quem, além da visão reducionista do comportamento humano, identificado como comportamento racional autointeressado, há flagrante e deliberada confusão entre meios e fins, posto que o conjunto das capacidades humanas reduz-se às capacidades necessárias à produção econômica, suplantando, deste modo, a importância do desenvolvimento de habilidades e conhecimentos para a mudança social, e mesmo para o bem-estar e liberdade das pessoas. Sen alertava que era preciso "ir além da noção de capital humano", posto que "os homens não são meramente meios de produção, mas também a finalidade de todo o processo" (Sen, 2010, p. 345), ou seja, tornava-se imprescindível que as necessidades humanas fossem incorporadas ao processo econômico, sob o risco de tornar o homem mero instrumento deste processo.
O neoliberalismo, com sua plasticidade formidável, empenhou-se na incorporação e superação desta crítica. Quer dizer, a noção de capital, ao tomar o humano como instrumento da produção econômica e converter as suas necessidades e aspirações em termos de relações econômicas baseadas no lucro e acúmulo deste capital, tornou o trabalhador responsável por sua própria satisfação, convertendo-o em instrumento do seu próprio fim. O sujeito neoliberal viu-se impelido a apostar continuamente na possibilidade de lucros futuros e na conjuração dos riscos do presente através do trabalho cuidadoso efetuado sobre si mesmo.
É interessante observarmos esse aspecto sob a perspectiva daquilo que Michel Foucault nos propõe como "tecnologias", ou seja, como técnicas que permitem aos indivíduos, nos "jogos de verdade" (Foucault, 2004a, p. 323), produzirem conhecimentos sobre eles mesmos. Tais tecnologias, como matrizes da razão prática, foram categorizadas pelo filósofo em tecnologias de produção – que permitem produzir e transformar as coisas; tecnologias de sistemas de signos – através das quais fazemos usos dos sentidos, signos e significações; tecnologias de poder – que buscam determinar a conduta dos indivíduos; e, por fim, as tecnologias de si, como tecnologias que:
Permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um certo número de operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a transformá-los com o objetivo de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição, imortalidade (Foucault, 2004a, pp. 323- 324).
Como racionalidade prática de governo, o neoliberalismo fez do homem o ponto de cruzamento dessas diferentes matrizes da razão prática, ao submetê-lo como sujeito à ascese laboriosa desse si mesmo, que se toma como objeto manipulado, significado e conduzido por si mesmo. Coisa/sentido/condução/construção se articulam na determinação deste si, como forma pela qual o ser se constitui como experiência no neoliberalismo.
A genealogia do sujeito moderno empreendida por Foucault compreende os atravessamentos entre as tecnologias de poder e dominação e as tecnologias de si, ou seja, entre o governo dos homens como prática política e o autogoverno como exercício ético que se dá na relação de si consigo mesmo. Por conseguinte, a partir das formas de subjetivação, Foucault não cessou de afirmar que não são os sujeitos que determinam as práticas e os discursos sobre eles, mas estes últimos que engendram os sujeitos ao conferir-lhes uma história, apontando a pertinência de dessubstancializar o poder e de desessencializar o sujeito. Deste modo, a genealogia do sujeito prefigura uma "genealogia da relação do ser consigo mesmo e das formas técnicas que ela tem assumido" (Rose, 2011), uma vez que sua ontologia é histórica. Para Rose (2011), essa relação de si a si não se dá em termos de entidades, mas é fundamentalmente reflexiva, o que implica que "a história do ser humano requer, portanto, investigação das técnicas intelectuais e práticas que vêm compondo os instrumentos através dos quais o ser tem se construído historicamente" (Rose, 2011, p. 42).
No seu trabalho "histórico e crítico" Foucault percebe que todas as práticas que levaram os indivíduos a prestarem atenção a si mesmos estavam relacionadas a uma forma específica de se reconhecerem como "sujeitos de desejo, estabelecendo de si para consigo uma certa relação que lhes permitiria descobrir, no desejo, a verdade de seu ser, seja ele natural ou decaído" (Foucault, 2007, p. 11), e, a partir dessa hermenêutica efetuada sobre si enquanto desejo, alcançar o domínio de si, quer como procedimento indispensável ao domínio do outro e da cidade, quer como forma de ascender a deus e, portanto, reconciliar-se com a verdade divina. Nesse sentido, ter o domínio de si consiste na capacidade refletida de dobrar pela superação, pelo sacrifício ou pela transcendência esta parte oculta de nós mesmos. Se o problema é o mesmo – alcançar o domínio de si – as soluções e temas abordados são diferentes, variando conforme o tempo, o espaço e as intenções. A interrogante de Foucault recai, então, sobre os "jogos de verdade" (Foucault 2004b, p. 263), o "jogo ético" através dos quais o ser se reconhece como sujeito, mais especificamente, como sujeito de desejo.
Para o filósofo, cada período teria sua própria "substância ética", ou seja, uma "parte de nós mesmos comprometida na experiência ética" (Foucault 2004b, p. 263) em torno da qual se articulam: modos de sujeição específicos – como "a maneira pela qual as pessoas são chamadas ou incitadas a reconhecer suas obrigações morais" –; técnicas de modificação de si mesmos, visando tornar-se sujeitos éticos; e uma teleologia, isto é, a finalidade última deste trabalho sobre si. Assim, a experiência ética comportaria quatro elementos fundamentais, variáveis segundo o período, os objetivos, as injunções, os meios e os fins. Deste modo, Foucault procede à análise de algumas experiências – dos Gregos aos Cristãos – para pensar a produção de subjetividade referida não mais ao Eu, como ocorre em toda a modernidade, mas centrada na parte do ser que não se oferece à significação senão pelo negativo, quer dizer, como aquilo que deve ser transformado, superado ou rejeitado para que o sujeito possa se reconhecer como sujeito ético.
Neste sentido, abre-se o questionamento: se a ética neoliberal está assentada na lógica da competição e na norma da empresa, qual a parte do ser comprometida na e com a experiência ética no contexto do neoliberalismo? Quais os modos de sujeição a partir dos quais e pelos quais o ser é chamado a constituir-se como sujeito de ações éticas e morais? Quais as técnicas utilizadas e qual a teleologia a que se obedece?
O sujeito autoengendrado do neoliberalismo, com suas demandas de desempenho e gozo, não parece estar muito preocupado com pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade que orientavam o "conhecimento de si" e o "cuidado de si" como práticas efetuadas sobre si mesmo na Grécia Antiga, no Estoicismo ou mesmo no cristianismo. Entretanto, isso não significa que as tecnologias de si tenham desaparecido. Ao contrário, sob a égide neoliberal, revestiram-se em mais uma das formas de valorização do capital.
A insistência teórica de Foucault nas formas de subjetivação é o modo de marcar a dimensão produtiva da subjetividade, engendrada pelas tecnologias de si e, por conseguinte, inseparáveis da dimensão política, as quais seriam reveladoras da "inconsistência ontológica do sujeito" (Birman, 2000a, p. 81). Tal inconsistência nos permite afirmar, nos decalques de Foucault, que o neoliberalismo não produz apenas uma alteração das formas de trabalho; ele se imiscui na configuração ontológica (precária e contingente) do ser, que passa a ser (auto) determinada pela forma trabalho e pela norma da empresa. A moral do desempenho transformou o trabalho ético em superação de si mesmo.
Se Foucault afirma estar "cada vez mais interessado na interação entre si e os outros e nas tecnologias de dominação individual, a história de como um indivíduo age sobre si mesmo, na tecnologia de si" (Foucault, 2004a, p. 324, grifo nosso) é porque falar em dominação individual implica que o domínio de si só se efetua, também, como dominação do si mesmo. Portanto, o sujeito está exposto a um oximoro fundador, na medida em que se construir como sujeito ético, cujas ações são balizadas por uma norma que lhe é externa, parece só ser possível com a dominação de uma parte de si mesmo, pois, para que haja proibição, é necessária a constituição de um campo sobre o qual intervir. O sujeito emerge enquanto tal já penhorado nesta determinação. Caso haja coerência neste argumento, o problema da sujeição é inerente à genealogia do sujeito humano, e, por isso mesmo, político e ético por excelência.
Tal genealogia do sujeito estaria, então, entre a dominação política e o domínio de si; contaria, portanto, a história crítica de como a dominação política precisou investir cada vez mais sobre o domínio de si, chegando às bordas de transformar a relação ética do sujeito em forma de dominação. Encontramos perspectiva semelhante em Judith Butler (2017b), para quem o sistema normativo não só tudo engloba, como o devir do sujeito é a marca de uma violência ética que o antecede e o constitui.
Nossa suposição é de que a abertura ao campo da ética na obra de Foucault foi o destino das elaborações teóricas que antecederam à problematização da subjetividade, caminho que se mostrou incontornável a partir das configurações impostas aos sujeitos pelo neoliberalismo; dito de outro modo, da percepção das armadilhas montadas pelo neoliberalismo ao sujeito moderno que Foucault buscou a abertura ao campo da ética como forma de pensar a formação desse poder que não apenas constitui, como compromete o sujeito, inclusive em suas formas de desejar e, enquanto sujeito de desejo – quer dizer, enquanto sujeito que busca nas suas modalidades de desejo a verdade sobre si –, convocando-o e o incitando constantemente a uma relação intensa, íntima e privada consigo mesmo. As técnicas de poder estão intimamente vinculadas aos sistemas éticos.
Dominação de Si: Tornar-se Instrumento do Próprio Desejo
Mudar mentes e corações como empreendimento pode significar as tentativas sempre reiteradas de produzir uma dobra no sujeito, quer dizer, o trabalho constante de incitar o sujeito a transformar em demandas, desejos e necessidades pessoais – entendendo pessoal como aquilo que seria inderrogável – o que lhe é sugerido como sendo ou devendo ser seu. Como formulado por Boltanski e Chiapello (2009), através de uma série de manipulações, o consumidor, na sociedade capitalista, foi levado a tomar como "desejo próprio proveniente de sua vontade autônoma como indivíduo singular" bens que lhe são ofertados. Assim, "ele deseja aquilo que querem que ele deseje; o efeito da oferta subjuga e determina a demanda ou, como diz Marx, a produção não produz somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto" (Boltanski & Chiapello, 2009, p. 425). Obviamente não estamos mais falando do indivíduo premido pela imposição de escolhas entre mercadorias, embora os efeitos sejam similares. Se na sociedade de consumo problematizada por Marx o consumidor supostamente livre estava submetido à produção, que orientava a demanda, qual a situação desse sujeito quando a produção a qual está submetido é aquela da própria satisfação, da sua autonomia e de si mesmo?
A leitura de Daniel Dufour (2005) sobre o neoliberalismo nos ajuda a formular essa questão. Para o autor, o neoliberalismo foi possível com a destruição
do duplo sujeito moderno, quer dizer, o sujeito crítico kantiano e o sujeito neurótico freudiano, ao substituir as referências simbólicos que serviam de baliza para o homem pela mercadoria. Entretanto, a própria característica da mercadoria, contingente e precária, a torna insuficiente como Outro, quer dizer, como "ficção compartilhada", de finalidade heurística, que serve para explicar, a partir de uma anterioridade temporal e de uma exterioridade espacial, a questão da origem. No neoliberalismo, estaríamos despossuídos de uma referência simbólica universal, portanto totalmente entregues à vertigem da autofundação a partir de uma "dessimbolização radical". (Dufour, 2005, p. 146)
Apoiando-se nesta dessimbolização, o neoliberalismo incitaria cada um a construir a si mesmo. O autor argumenta que o neoliberalismo inaugura uma forma inédita de dominação que objetiva justamente as nossas formas simbólicas, configurando-se como uma dominação ontológica na medida em que busca criar um homem liberto de qualquer amarra simbólica que lhe confira substância. Para o autor, o sujeito neoliberal é um sujeito precário, incerto, a-crítico: sujeito dessimbolizado e, por isso mesmo, joguete do laissez-faire. O neoliberalismo operaria, então, pela "redução dos espíritos. Como se o pleno desenvolvimento da razão instrumental, permitido pelo capitalismo, se consolidasse por um déficit da razão pura" (Dufour, 2005, p. 10).
Embora, ao contrário de Dufour e com Foucault, entendamos o sujeito como resultante das determinações histórico-socias, portanto, de saída, precário e dessubstancializado, concordamos que a perda de referencial simbólico pressupõe uma a-historicidade do sujeito, dado que o simbólico implica o feixe de relações que costura a concretude do sujeito. Esta a-historicidade, no entanto, longe de instituir um ser universal, instaura um indivíduo sem passado e sem futuro, entregue ao vórtice de um presente real e um agora deserto. Neste sentido que podemos falar da permanência do sujeito no campo do imaginário, uma vez que o indivíduo se vê como definidor de si mesmo; a fantasia do antoengendramento recobre o simbólico pelo imaginário.
Seja por déficit da razão como capacidade de julgamento crítico, seja pelo recobrimento do simbólico pelo imaginário ou por uma reconfiguração do desejo, convertendo em próprio o que é alhures, o sujeito neoliberal não se submete mais às coações externas, mas se sujeita aos imperativos desta interioridade compulsiva em que se constitui. Nesse jogo, o governo de si confunde-se com o gozo de si, pois o horizonte de ação desse sujeito é a aspiração a uma plenitude que só pode se realizar como impossível, ao mesmo tempo em que os sacrifícios a que o sujeito se submete não são justificados por uma transcendência ou por algo inerente à necessidade humana, mas pela reivindicação de uma decisão individual de um ser que não deve nada a ninguém; portanto, como responsabilidade que se assume perante o si mesmo. As servidões, sujeições e submissões não aparecem como tal, uma vez que o ato que as condiciona é decidido pelo próprio sujeito. Em linhas gerais, é possível afirmar que o empreendimento neoliberal é a "dominação tecnológica da subjetividade" (Rose, 2011, p. 160), cuja estratégia passa pela intensificação da relação de produção e consumo, de desempenho e gozo.
O sujeito autoengendrado do neoliberalismo tem o si mesmo como a própria substância ética, quer dizer, ele está completamente comprometido nessa ascese laboriosa e autossacrificial que o convoca a ser bem-sucedido, competitivo e sua própria fonte de lucro. Assim, o modo de sujeição neoliberal se dá com a convocação do sujeito a ser responsável pelo próprio destino, a superar a expectativa do seu desempenho e a fruir o excesso que ele mesmo produz. Assim como os gregos, o sujeito neoliberal opera uma escolha, mas não será uma escolha ético-política, antes social e econômica. Assim como os estoicos, busca superar a si mesmo, não para obter o domínio de si, mas para o puro gozo de si. Como os cristãos, voltar-se-á para si, não para renunciá-lo, mas para afirmá-lo como independente de qualquer sistema simbólico. A moral do desempenho transformou a ética em superação de si mesmo, ao passo que o sujeito tomou a si como instrumento do seu próprio desejo.
As promessas de libertação embutidas no projeto neoliberal, orientadas para o self-made man, conduziu o sujeito às bordas de si mesmo; em outras palavras, o grande paradoxo ao qual o ser neoliberal está exposto é de ordem ontológica: ao se tomar como instrumento produtor do seu bem-estar, o neossujeito é levado a consumir a si mesmo; consumir a si como produto e, portanto, consumir-se enquanto sujeito. O neoliberalismo elevou a sociedade de consumo à completa reificação do sujeito ao transformá-lo em objeto para o próprio consumo.
Ao jogar estrategicamente com o cálculo utilitarista que os indivíduos realizam, o neoliberalismo acrescentou à economia política uma economia psíquica, mobilizando medos, incitando à responsabilidade e se imiscuindo na composição dos desejos individuais. Não bastou ao poder direcionar as condutas, foi preciso ir além do controle do corpo e da obediência calculada. Levando a sério as advertências dos antigos liberais, os neoliberais colocaram sob a batuta do governo a parte supostamente irredutível do homem, aquela que não se deixa dominar sem protestos. Se não é possível dominar o desejo, convêm comprometê-lo: desejo, "o alvo do novo poder" (Dardot e Laval, 2016, p. 327).
Dardot e Laval ressaltam que o ser desejante não será apenas o ponto móvel de aplicação desse novo poder, mas o substituto para as antigas técnicas de condução de condutas. Isso porque, ao mobilizar e comprometer os desejos dos indivíduos com as aspirações ao sucesso, à vontade de realização pessoal e de superação de si, o neoliberalismo deslocou as técnicas de controle do exterior para o interior, tornando cada indivíduo panóptico de si mesmo. No universo em que cada um é responsável pelos seus próprios desejos e destinos, cada um também será o senhor direto dos seus deveres. Embora pareça sutil, a passagem da obrigação de sujeitar-se a um poder que lhe é externo para o dever de cumprir com o seu próprio desejo é prenhe de consequências: não se obedece mais a uma injunção externa, mas se acolhe o dever como sendo uma determinação em si, de si e para si.
[...] como se essa conduta viesse do próprio [sujeito], como se esta lhe fosse comandada de dentro por uma ordem imperiosa de seu próprio desejo, à qual ele não pode resistir. As novas técnicas da 'empresa pessoal' chegam ao cúmulo da alienação ao pretender suprimir qualquer sentimento de alienação: obedecer ao próprio desejo ou ao Outro que fala em voz baixa dentro de nós dá no mesmo. Neste sentido, a gestão moderna é um governo lacaniano: o desejo do sujeito é o desejo do Outro. Desde que o poder moderno se torne o Outro do sujeito (Dardot & Laval, 2016, p. 327).
A empresa de si mesmo aprendeu a racionalizar o desejo, o que significa implicá-lo na menor das ações e transformar cada ação em ato de desejo. Se a ação, tal qual definida por von Mises (2010), é a busca pela realização dos interesses, o desejo pode ser então amalgamado ao interesse, e o sujeito da ação identificado com aquilo que o orienta, qual seja, a própria ação. Extrai-se do sujeito a substância ética que o define: o si mesmo, ao mesmo tempo em que o aprisiona à imagem especular de um Outro (Lacan, 1999) que lhe possa conferir alguma substância, reconciliando-o, enfim, com o seu próprio desejo. Dizer que o poder moderno é o Outro do sujeito é insistir que já não há distância entre o agir e o desejar, e que o desejo toma como objeto o próprio poder. No limite, o sujeito neoliberal deseja o poder, pois deseja desesperadamente reconciliar-se consigo mesmo, com esse fragmento penhorado ao se arriscar na determinação de um em si. Paradoxalmente, ao desejar o poder como modo de constituição de si, o sujeito deseja sua própria opressão. As formas de subjetivação são também modos de sujeição.
Atingir o desejo significa, então, recriar, reinventar e implantar novas técnicas de governo, as quais "visam a produzir formas mais eficazes de sujeição" (Dardot & Laval, 2016, p. 329), ao transformar o desejo do sujeito no desejo do Outro. Não é pouco afirmar que a sujeição neoliberal é uma sujeição pelo desejo.
No campo das práticas, o neoliberalismo mobilizou os interesses e os desejos na homogeneização do discurso sobre o homem em torno da empresa, unificando as formas plurais da subjetividade sob a norma do sujeito empresarial. Não se trata apenas de adestrar os corpos e dobrar os espíritos, como Foucault (2017) reconhece, mas de instrumentalizar esse sujeito ativo, autônomo, dotado de capacidade de escolha, autorresponsável e com aspirações à autorrealização, de modo a tornar os ideias do eu interrelacionados aos objetivos do poder político (Rose, 2011); ou seja, mais que governar, trata-se, nas sociedades neoliberais, de conduzir as ações de um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente comprometida na ação que dele é exigida.
O envolvimento total desse si mesmo, imprescindível à fabricação do sujeito neoliberal, foi possível com a incorporação dos imperativos da responsabilidade, da concorrência e da realização pessoal, fazendo coincidir o ideal de eu (Freud, 1914/1996a) com a própria empresa. Deste modo, a identificação plena do trabalhador com o ethos da empresa, cuja existência está orientada para o lucro, faz com que esse sujeito trabalhe como se trabalhasse para si mesmo, deseje como se desejasse um desejo que lhe fosse imanente, viva como se estivesse construindo de forma permanente um patrimônio cujo capital é seu próprio ser.
Convertido em recurso humano, a gestão desse homem empresa disporá de uma série de técnicas que busca atingir a ação desses novos sujeitos através do aperfeiçoamento, treino e capacitação permanente de suas habilidades, bem como com estímulos, motivações e incentivos. Dentro desse contexto, multiplicam-se as formas de avaliação e de autoavaliação, geralmente referidas a um desempenho ótimo a partir do qual o valor do homem é extraído. Portanto, adaptar-se voluntariamente ao imperativo da excelência e do desempenho não se reduz ao esforço, ao trabalho e ao sacrifício, mas se conecta intimamente à valoração de si mesmo e ao gozo que se extrai desta e com essa performance produtora de sentidos sociais, morais e subjetivos.
O homem neoliberal é a empresa de si, aquele que produz valor e, portanto, a própria satisfação. Mais ainda, é o homem que produz a si mesmo. Se a imagem do homem formulada no neoliberalismo é aquele que constrói a si mesmo e, portanto, é responsável por si e busca o próprio interesse, por derivação, o desempenho converte-se em pré-condição para o gozo, e a incitação ao gozo é o dispositivo de produção do desempenho. Corações e mentes empenhados no circuito da produção e do consumo; determinados e comprometidos em e com a sua autossujeição.
Dissolve-se, portanto, a heterogeneidade constitutiva do homem em prol de uma visão unidimensional (Marcuse, 2015) do indivíduo que se fabrica enquanto produtor e se realiza quando consumidor, obedecendo, ao mesmo tempo, à lógica austera da disciplina e à lógica excessiva do gozo. Segundo Dardot e Laval (2016), desempenho e gozo tornam-se indissociáveis, na medida em que a luta pela sobrevivência é também o princípio do triunfo e da formação de si. O neossujeito fabricado nas trincheiras do neoliberalismo não está divido entre a obrigação que lhe coage e o desejo que lhe escapa, mas transforma a si mesmo em plataforma imaginária que planifica os sulcos que lhe seccionam. Ao obliterar os conflitos, este "sujeito unitário", fabricado pelo "dispositivo desempenho/gozo" (Dardot & Laval, 2016, p. 353) empreende com a sua existência, empreende a existência, existe para empreender; ele "é o sujeito do envolvimento total de si mesmo" (Dardot & Laval, 2016, p. 327), empresário e explorador de si.
A grande inovação do neoliberalismo certamente foi ter vinculado o governo enquanto poder político ao autogoverno. Nesse sentido, conforme apontado por Dardot e Laval, oximoros como "autonomia controlada" ou "coerção flexível" perdem força, pois se trata de entrelaçar no mesmo sujeito os imperativos do poder e as aspirações pela liberdade. Dos atos de obediência inculcados, passamos à invocação da consciência e do desejo de melhorar e de ter reconhecimento: "quando se estabelece que a arte de governar não consiste em transformar um sujeito em puro objeto passivo, mas conduzir um sujeito a fazer o que aceita querer fazer, a questão se apresenta sob uma nova luz" (Dardot & Laval, 2016, p. 355). Qual, pois, a especificidade desse neogoverno dos homens?
Deleuze e Guattari (2011) insistiram no caráter esquizofrênico do capitalismo, posto que apoiado na decodificação e reterritorialização dos fluxos desejantes. Na esteira de Deleuze e Guattari, e também de Lacan (1992), Dufour (2005) e Dardot e Laval, apontam a construção de um ethos do excesso no neoliberalismo, no qual exige-se do indivíduo "que produza sempre mais e goze sempre mais e, deste modo, conecte-se diretamente com um mais-de-gozar que se tornou sistêmico" (Dardot & Laval, 2016, p. 355). Deste modo, os autores nos legam preciosas pistas sobre as técnicas empregadas por esse poder na colonização do imaginário social a partir, sobretudo, de um complexo dispositivo de técnicas discursivas e não-discursivas que lastreiam a existência, tornando-a porosa aos apelos sensuais desse novo poder.
A leitura foucaultiana do neoliberalismo estadunidense, como observamos anteriormente, diagnosticou a especificidade desse modelo de governamento, o qual investe na produção de um novo indivíduo que, diferente daquele da troca, é profundamente "governável e governado pelas sensações", obedecendo unicamente à injunção interna de valorização do próprio capital a partir de dispositivos de incitação e desincitação. Governar na lógica e a partir dos pressupostos neoliberais terá como imperativo a estruturação do campo de ação eventual do outro (Foucault, 1995). Nesse sentido, Dardot e Laval recuperam a metáfora da mão invisível como imagem para esse poder que age no meio, à distância, sobre as ações virtuais dos sujeitos ao influenciar os desejos e interesses, gerindo as mentes e moldando as subjetividades muito mais que adestrando os corpos:
O novo governo dos homens penetra até em seu pensamento, acompanha, orienta, estimula, educa esse pensamento. O poder já não é somente a vontade soberana, mas, como Bentham diz tão bem, tornou-se 'método oblíquo' ou 'legislação indireta', destinado a conduzir os interesses (Dardot & Laval, 2016, p. 325).
Ainda, acrescentam os teóricos: "para governar as condutas, é preciso saber influenciar a formação dos motivos, isto é, atuar sobre a 'dinâmica psicológica', segundo expressão criada por Bentham" (Dardot & Laval, 2016, p. 358). Afinal, em que consiste essa modalidade de poder que consegue penetrar no cálculo individual, compô-lo, produzir desejos e induzir à ação, em suma, sujeitar a partir do desejo?
A psicanálise tem muito a nos oferecer na compreensão desse poder que age como "legislação indireta", e cuja técnica privilegiada é a tentativa de influenciar a formação dos interesses e desejos individuais com o propósito de induzir a uma ação – ou omissão, haja vista que a influência, como técnica de condução indireta das condutas, não só esteve presente no nascedouro da psicanálise como forma de saber e como método terapêutico, como serviu-lhe de parteira. Se no percurso e desenvolvimento da técnica analítica baseada na transferência, ou seja, na relação hierarquizada estabelecida entre o paciente e o analista, ela teve que se haver com o exercício do poder através do qual a possibilidade de influenciar o analisando sempre esteve presente como um espectro, fazemos uma aposta na capacidade de a psicanálise nos oferecer caminhos de resistência a esse poder que penetra em nossas mentes, corações e condutas.
Tornar-se Sujeito: Entre Alteridade e Heteronomia
Desde Freud, sabemos que "o eu não é o senhor da sua própria casa", servindo ao mesmo tempo a três tirânicos senhores (Freud, 1923/1996b), os quais o pressionam, o confinam e o repelem. Por conseguinte, o eu nada mais é que o mediador entre as instâncias que tencionam a descarga total das intensidades que povoam o corpo e a conformação a normas sociais e imaginárias que submetem e produzem o desejo; o eu é uma dobradiça que articula o conflito entre as exigências pulsionais, alheias ao próprio indivíduo, e as exigências do mundo externo, como o Outro do sujeito (Lacan, 1999), que, no entanto, também o constitui. Premido entre o que lhe é alheio e o que se lhe afigura como Outro, o eu é o cruzamento entre uma vontade de nada (logo, vontade de qualquer coisa) e uma consciência de si enquanto consciência do Outro, e não uma instância soberana que domina as suas ações e age de forma consciente em busca da concretização dos seus interesses racionais.
Ao transformar este eu estruturalmente vacilante, pois cindido pelo conflito que lhe é inderrogável, em uma instância egocentrada e de escolhas assertivas, o neoliberalismo fez do processo de subjetivação uma teleologia orientada para o eu, amalgamado a um Ideal que é "bom para todos": o homem empreendedor, do sucesso e da fortuna. Deste modo, talvez tenha sido a experiência histórica de dominação que tenha mais bem entendido e tirado proveito do desejo e da produção de um si mesmo engajado na própria dominação, ao identificar a instância egóica, como lugar das "alienações imaginárias do sujeito" (LACAN, 1998a), ao próprio sujeito – quer o entendamos como sede do desejo ou como efeito das relações de saber-poder. O sujeito neoliberal é aquele que persegue a si mesmo como última ancoragem possível num mundo em que as verdades desabaram. A sujeição não se dá por renúncia de si, mas pela busca desesperada de um si mesmo. A longa genealogia do sujeito moderno traça o seu reposicionamento: de obedientes à dependentes do poder.
Neste sentido, torna-se fundamental investigarmos não apenas a vontade de poder, mas os modos pelos quais a sujeição do desejo institui um desejo de sujeição, como discutido por Judith Butler (2017a). Para a autora, a constituição do sujeito expõe a sujeição psíquica como modalidade específica de sujeição, uma vez que a vulnerabilidade psíquica própria à condição de desamparo expõe o sujeito às normas sociais, as quais configuram e produzem o desejo como desejo de sujeição. Isso porque, o sujeito pode ser considerado como uma volta do poder sobre si mesmo, ou seja, o sujeito é o efeito da produção de sentido nas voltas do poder, por isso não está referido a um ente a priori, mas a um efeito discursivo pré-ontológico, um "efeito do poder em recuo" (Butler, 2017a, p. 15). Segundo Butler, o paradoxo da sujeição resulta no paradoxo da referencialidade, uma vez que falar da constituição do sujeito na e pela sujeição é falar daquilo que ainda não existe.
É exatamente na origem da consciência que Butler localiza a problemática da sujeição psíquica, entre a internalização da norma e a constituição de si. Em sua argumentação, a proibição do incesto, como norma matriz de constituição do psíquico, leva a pulsão a voltar-se sobre si mesma, criando uma esfera interior que é condição de reflexividade a partir da internalização da proibição. Ou seja, a pulsão que retorna sobre si mesma a partir da proibição é indicativa de um o "apego apaixonado à sujeição" (Butler, 2017a, p. 72), condição precipitante para a formação do sujeito: proibição privativa e produtiva, posto que diz respeito não somente à sujeição do sujeito às normas, mas, paradoxalmente, da sua constituição a partir desta sujeição, instalando os limites entre o dentro e o fora. Para a filósofa, a "dobra sobre si " (p. 31) realizada pelo desejo cria o hábito psíquico da autocensura, que se consolida ao longo do tempo como consciência (moral):
A reflexividade se torna o meio pelo qual o sujeito se transmuta para o circuito da autorreflexão. No entanto, a dobra do desejo que culmina na reflexividade produz uma nova ordem de desejo: o desejo pelo próprio circuito, pela reflexividade e, por fim, pela sujeição" (Butler, 2017a, p. 31)
Butler lança então a questão:
O que então se deseja na sujeição? Seria o simples amor pelos grilhões, ou existe um cenário mais complexo em ação? Como manter a sobrevivência se os termos de garantia da existência são justamente aqueles que exigem e instituem a subordinação? Nessa perspectiva, a sujeição é o efeito paradoxal de um regime de poder em que as próprias "condições de existência", a possibilidade de continuar como ser social reconhecível, requer a formação e a manutenção do sujeito na subordinação (Butler, 2017a, p. 36).
A perda que inaugura o sujeito e o ameaça de dissolução é a perda da possibilidade de amor, daí que a melancolia se apresente como categoria analítica para a autora, pois ela marca o limite para o senso de pouvoir do sujeito. Butler mobiliza a categoria hegeliana de reconhecimento, no sentido ontológico, como operador subjetivo da alienação do sujeito, uma vez que este procura em outro sujeito o reconhecimento de si, percebendo-se, deste modo, como objeto em um movimento reflexivo. Neste sentido, o desejo de existir institui o desejo pela sujeição.
Isso porque, embora a construção do eu passe pela assunção especular de uma imagem que lhe é refletida, há uma opacidade que não se deixa apreender, pois o desejo daquele que o chancela enquanto tal não se revela. Daí que, para Lacan (1998a), o modelo da constituição do desejo se dê em relação a essa ausência primordial de simbolização, a qual precipita o sujeito no desejo do Outro, isto é, frente ao enigma do desejo do Outro que lhe garante existência, o assujeito – termo utilizado por Lacan para dar contadaquele que, no início, está inteiramente assujeitado a um outro – lança-se nesse desejar que lhe é alheio, de modo que o desejo já está completamente penhorado nesta antecipação. Em sentido lacaniano, o desejo é a busca deste objeto inacessível e inassimilável por definição, o que remete à indeterminação ontológica a que o sujeito está exposto desde o princípio. O desejo é "desejo de desejo" (Lacan, 1999, p. 197). A ausência da mãe (ou do seu desejo) passa a ser sustentação de um desejo que se produz como desejo do Outro, como enigma a que a criança tenta responder. Lacan falará de uma "simbolização primordial" (Lacan, 1999, p. 186) como "ponto nodal" (p. 191) no qual se dá a inscrição da metáfora paterna, como condição para que esse assujeito seja resgatado dos caprichos que o submete inteiramente ao desejo de um outro. Da inteira dependência do desejo do outro passa-se à submissão e inscrição à lei que funda o sujeito do inconsciente como outra cena, posto que discurso do Outro: "não há sujeito sem significante que o funde" (Lacan, 1999, p. 195), dirá Lacan. Uma outra forma de ratificar a condição insuperável de desamparo a que estamos expostos.
Autores contemporâneos brasileiros, como Birman (2000b) e Safatle (2016), veem insistido na dimensão produtiva do desamparo como operador social a partir do qual é possível a abertura ao campo da alteridade. Assim, a construção de projetos políticos de emancipação passaria necessariamente pela assunção do desamparo, "já que aquele é a resultante na subjetividade de um mundo que não se funda mais sobre ideias totalizantes e universalizantes" (Birman, 2000b, p. 95), e pela recusa a modelos subjetivos fortemente ancorados no senso de identidade pessoal, como o eu autocrático neoliberal:
Estar desamparado é deixar-se abrir a um afeto que me despossui dos predicados que me identificam. Por isso, afeto que me confronta com uma impotência que é, na verdade, forma de expressão do desabamento de potências que produzem sempre os mesmos atos, sempre os mesmos agentes (Safatle, 2016, p. 21).
Considerações Finais: Entre a Vontade do Eu e o Desejo do Sujeito
Ocorre que o sujeito neoliberal parece recusar o desamparo como esse ponto de dependência que o aliena, ao submetê-lo à ordem simbólica como condição necessária ao laço com o outro e o subjetiva fora si, em outra cena como o lugar do inconsciente; o eu empreendedor de si mesmo escamoteou os conflitos em nome de uma totalidade que só pode ser vivenciada como abstração. Deste modo, regressões violentas ao momento idílico em que o eu e o eu ideal eram uma só e mesma coisa estará sempre no horizonte de possibilidades. Se o modelo do eu oferecido por Lacan (1998b) é o da paranoia, é porque a sua afirmação intransigente passa pela "suplência do simbólico pelo imaginário", ou seja, o Outro simbólico é reduzido ao outro imaginário, dual, como reflexo da sua própria imagem. Isso permitiu a Dardot e Laval (2016) afirmarem, em relação ao sujeito neoliberal, que o Outro do sujeito é o poder e, portanto, se o sujeito deseja o desejo do outro, deseja o próprio poder.
Se a construção do eu passa pela assunção de uma imago reconhecida pelo Outro em seus efeitos de captura e alienação, podemos depreender que o empreendimento ontológico do poder visa a oferecer modelos identificatórios que, ao serem internalizados, produzem a esfera psíquica como efeito da reprodução normativa. Não à toa que toda a discussão neoliberal passa necessariamente pelo fortalecimento dessa estrutura imaginária que é o eu, o qual será produzido e reproduzido não como "obra de arte", conforme pôde supor Foucault, antes como empresa cuja rendimento máximo é indissociável da sua constante modulação em torno de padrões ideias.
Assim, enquanto "objetivação imaginária do sujeito" (Lacan, 1998a), o eu autocrático fomentado pelo neoliberalismo pôde transformar o desejo em vontade de poder. Nesse sentido, a questão que nos parece ser preciso articular, como contribuição da psicanálise ao campo da política, diz respeito ao ponto de toque entre o sujeito do desejo e o eu autointeressado das sociedades atuais. Estaríamos vivenciando a redução daquele a este último, ou seja, o interesse do eu baseado na vontade coincide, no neoliberalismo, com o desejo inconsciente do sujeito?
A misteriosa influência que um sujeito exerce sobre o outro é a capacidade de afetá-lo, de mobilizar as suas demandas de amparo a ponto de servir de modelo identificatório através do qual o eu se constitui. Se a sujeição ao Outro é estruturante, a perpetuação desta sujeição depende do jogo arriscando entre os investimentos identificatórios e os contra-investimentos resistentes à influência destas identificações realizados pelo eu.
De algum modo, cruzamos com a tese foucaultiana de O sujeito e o poder. Se Foucault (1995) privilegia o segundo termo, nossa curvatura se dará em relação ao primeiro: não há sujeito onde não houve um apego apaixonado à sujeição; ali onde há sujeito e, portanto, sujeição, o sedimento identitário se chama eu; a resistência, como opacidade, sujeito. Dito de outro modo, onde há sujeito, há resistência, pois lembrança de uma norma que só se institui (em conflito) por ausência.
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Endereço para correspondência
Tatiane de Andrade - tatiandrade.aju@gmail.com
Recebido em: 31/07/2024
Aceito em: 25/11/2024
Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de pesquisa de pós-doutorado Nota 10 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (PDR Nota 10/FAPERJ) da autora. (Nº Processo E-26/205.790/2022).
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