Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e85736, doi:10.12957/epp.2025.85736
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

Cumé que a Gente Escuta o Sintoma na Neurose Cultural Brasileira? Articulações Significantes na Cultura

 

How do We Listen to the Symptom in the Brazilian Cultural Neurosis? Significant Articulations in the Culture

 

¿Cómo Escuchamos El Síntoma en la Neurosis Cultural Brasileña? Articulaciones Significativas en la Cultura

 

Thayz Conceição Cunha de Athayde a

a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Este artigo tem como objetivo investigar o pensamento elaborado por Lélia Gonzalez, que discute o racismo como sintoma na Neurose Cultural Brasileira através do que se oculta, para além do que se mostra. O mito da democracia racial, analisado por Lélia Gonzalez na maior parte dos seus textos, é utilizado neste artigo como um conceito-ferramenta que possibilita a leitura do racismo na cultura brasileira. Para tanto, o trabalho analisa a fala de Sergio Camargo, ex-presidente da Fundação Cultural Palmares durante o governo de Jair Bolsonaro, como uma das repetições do sintoma na Neurose Cultural Brasileira. A partir das imagens da Mãe Preta e de Zumbi dos Palmares, esta pesquisa analisa o medo da branquitude em relação às pessoas negras, sobretudo aquelas que não são dóceis e são vistas como "tiranas". Assim como Lélia Gonzalez, o artigo utiliza a teoria psicanalítica para pensar a cultura brasileira. Em diálogo com os conceitos de sintoma, simbólico e cadeia significante de Jacques Lacan, o trabalho examina as articulações entre sintoma e Simbólico. Além da teoria lacaniana, o artigo dialoga com os estudos raciais, feministas e pós-estruturalistas, com o intuito de localizar o racismo como sintoma e analisar sua repetição na Neurose Cultural Brasileira.

Palavras-chave: neurose cultural brasileira, sintoma, significante, racismo.


ABSTRACT

This article aims to investigate the ideas developed by Lélia Gonzalez, who discusses racism as a symptom in Brazilian Cultural Neurosis through what is concealed, beyond what is shown. The myth of racial democracy, analyzed by Lélia Gonzalez in most of her texts, is employed in this article as a conceptual tool enabling the interpretation of racism in Brazilian culture. To this end, the paper examines the statements of Sergio Camargo, former president of the Palmares Cultural Foundation during Jair Bolsonaro's government, as one of the repetitions of the symptom in Brazilian Cultural Neurosis. Drawing from the imagery of the "Black Mother" and Zumbi dos Palmares, this research analyzes the fear of whiteness towards Black people, especially those who are not compliant and are viewed as "tyrants". Like Lélia Gonzalez, the article employs psychoanalytic theory to contemplate Brazilian culture. In dialogue with Jacques Lacan's concepts of symptom, the Symbolic, and the signifying chain, the paper examines the connections between symptom and the Symbolic. In addition to Lacanian theory, the article engages with racial, feminist, and post-structuralist studies with the aim of identifying racism as a symptom and analyzing its recurrence in Brazilian Cultural Neurosis.

Keywords: brazilian cultural neurosis, symptom, signifier, racism.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo investigar el pensamiento desarrollado por Lélia Gonzalez, quien discute el racismo como síntoma en la neurosis cultural brasileña a través de lo que se oculta, más allá de lo que se muestra. El mito de la democracia racial, analizado por Lélia Gonzalez en la mayoría de sus textos, se utiliza en este artículo como un concepto herramienta que permite la interpretación del racismo en la cultura brasileña. Para ello, el trabajo analiza las declaraciones de Sergio Camargo, ex presidente de la Fundación Cultural Palmares durante el gobierno de Jair Bolsonaro, como una de las repeticiones del síntoma en la Neurosis Cultural Brasileña. A partir de las imágenes de la "Mãe Preta" y Zumbi dos Palmares, esta investigación analiza el temor de la blanquitud hacia las personas negras, especialmente aquellas que no son dóciles y son percibidas como "tiranas". Al igual que Lélia Gonzalez, el artículo utiliza la teoría psicoanalítica para reflexionar sobre la cultura brasileña. En diálogo con los conceptos de síntoma, lo simbólico y la cadena significante de Jacques Lacan, el trabajo examina las conexiones entre el síntoma y lo simbólico. Además de la teoría lacaniana, el artículo se adentra en estudios raciales, feministas y posestructuralistas con el objetivo de identificar el racismo como síntoma y analizar su repetición en la neurosis cultural brasileña.

Palabras clave: neurosis cultural brasileña, síntoma, significante, racismo.


 

 

"Ganhar visibilidade através do absurdo é uma estratégia que tem funcionado muito bem para figuras públicas da extrema direita". É assim que Thiago André, pesquisador e roteirista do História Preta (André, 2022) inicia o episódio do seu podcast sobre a Fundação Zumbi dos Palmares. De fato, o que foi vivido durante o violento governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) foi o absurdo que ele prometeu antes mesmo de ser presidente: "Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola" (Veja, 2017). A intenção de Bolsonaro era muito clara: destruir tudo aquilo que não é branco.

A organização Terra de Direitos e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) produziram um estudo chamado Quilombola contra racistas (Quilombolas Contra Racistas, s.d.), que analisou os discursos racistas emitidos por autoridades públicas entre janeiro de 2019 e dezembro de 2021. A pesquisa identificou 94 discursos de autoridades públicas federais, estaduais e municipais, e quem lidera o ranking são Sérgio Camargo e Bolsonaro. Sérgio Camargo chega à presidência da Fundação Zumbi dos Palmares, em 2020, durante o governo de Bolsonaro. Segundo a notícia:

Entre as falas de Bolsonaro, destacam-se as afirmações que apontam que o "racismo é algo raro no Brasil" e a de que "cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós". Já a Camargo estão atrelados aspas como "orgulho do cabelo é ridículo para o negro" e quando ele disse que o Dia da Consciência Negra era o "dia da vitimização do negro". (Previdelli, 2022)

O político conservador Sérgio Camargo, ao deixar o cargo na Fundação para se candidatar a deputado federal pelo PL (Partido Liberal), afirmou que iria "detonar o discurso e as pautas da militância vitimista. [...] Chega dessa porcaria! Negros não precisam ser vítimas. Negros não precisam ser de esquerda. Negros são livres" (Martins, 2022). O que chama a atenção na fala de Camargo é a suposição de que existiria uma forma melhor de ser negro. No seu ponto de vista, seria possível ser "livre" em vez de estar no lugar de vítima.

O que torna possível o suposto desacordo de Camargo às posições "negro" e "vitimismo"? Pensando essas problemáticas, resgato contribuições de Lélia Gonzalez em seu texto "Racismo por omissão" (1983/2020), que analisa as relações entre o racismo por omissão, a ideologia do branqueamento e o mito da democracia racial. Enquanto o primeiro traz o aspecto da colonização de que o Brasil é um país branco e eurocêntrico, o mito da democracia racial atuaria "não só definindo a identidade do negro como determinando seu lugar na hierarquia social; não só 'fazendo cabeça' das elites ditas pensantes como a das lideranças políticas que se querem populares, revolucionárias" (2020, p. 221).

As reverberações do pensamento de Lélia Gonzalez, que no início dos anos 1980 escreve o seu texto "Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira" (Gonzalez, 1984/2020), continuam a ganhar força quase quarenta anos depois. Acho interessante como a Lélia Gonzalez utiliza a palavra "sacar" na sua linguagem, porque um dos sentidos dessa palavra é de arrancar, trazer algo para fora, mostrar algo de forma brusca. É nesse sentido que Lélia Gonzalez pergunta o que o mito da democracia racial oculta, para além do que ele mostra. "O racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira" (p. 76). O mito da democracia racial será utilizado como uma ferramenta de leitura para sacar, no sentido de arrancar, como se manifesta o racismo no Brasil.

Entendendo o Brasil como uma "adolescente neurótica que a gente conhece como cultura brasileira" (Gonzalez, 1984/2020, p. 88), utilizo as falas de Sergio Camargo não para analisar a sua fala enquanto sujeito, mas para ler os enunciados da cultura brasileira, as "mancadas da linguagem" (Gonzalez, 1984/2020), isto é, a cadeia de significantes. Para Jacques Lacan, "o sintoma só é interpretado na ordem do significante. O significante só tem sentido por sua relação com outro significante" (Lacan, 1966/1998, p.135). O presente artigo tem como questão central pensar como se repete o racismo como sintoma da Neurose Cultural Brasileira.  Minha aposta neste texto é o de pensar o mito da democracia racial e a ideologia de branqueamento como articulações significantes do racismo como sintoma.

O que se oculta para além do que se mostra? Como se escuta a repetição de significantes na Neurose Cultural Brasileira? Para tanto, discuto as imagens da Mãe Preta e de Zumbi dos Palmares trazidas por Lélia em seu texto, que, por meio das marcas da africanidade, produziram o Pretuguês, que "nada mais é do que a marca de africanização do português falado no Brasil" (Gonzalez, 1988/2020, p. 128) Ao longo do trabalho, buscarei construir conexões entre os estudos raciais críticos, o pós-estruturalismo e a psicanálise para ler a repetição dos significantes que aparecem na cultura brasileira.

O Racismo como Sintoma

É comum o racismo ser visto como um deslize de alguém, uma série de eventos que coincidem. Mas, na (nossa) verdade, o racismo é "uma realidade violenta. Por séculos, ele tem sido fundamental para o fazer político da Europa, começando com os projetos europeus de escravização, colonização, e para a atual 'Fortaleza Europa'" (Kilomba, 2019, p. 71). Grada Kilomba (2019) explicita o racismo como trauma, uma vez que sua repetição revela "um padrão histórico de abuso racial que envolve não apenas os horrores da violência racista, mas também as memórias coletivas do trauma colonial" (2019, p. 215).

Lélia Gonzalez (1981/2020), no texto "Democracia Racial? Nada disso", escreve logo no início que "o racismo e a discriminação racial são coisas bem concretas e responsáveis por desigualdades terríveis, que vão desde o salário que a gente ganha até os problemas de nossa estrutura familiar." (p. 201). Nesse texto, a autora fala do mito da democracia racial apontando aquilo que se oculta para além do que se mostra: se, por um lado, temos uma ideia na cultura brasileira de que a miscigenação é o que garante a existência da democracia racial - o que se mostra, por outro, as figuras da Mãe Preta e das tias surgem como aquelas que "mantiveram viva a chama dos valores culturais afro-brasileiros [...]" (1981/2020, p. 203), nos tornando um país que fala Pretuguês - o que se oculta.

No Brasil, acontece o que Lélia Gonzalez chamou de racismo por denegação ou racismo disfarçado: "o racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica do branqueamento" (1988/2020, p. 131). O mito da democracia racial e sua articulação com a ideologia de branqueamento podem dar pistas sobre como o racismo se manifesta na contemporaneidade. Nesse sentido, resgato um trecho da epígrafe do texto "Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira", em que Lélia Gonzalez (1984/2020) alerta que "a longa epígrafe diz muito além do que ela conta." (1984/2020, p. 76). "Cumé que a gente fica?" aparece como uma pergunta que o texto articula com a psicanálise. Essa pergunta representa, para mim, a interrogação de como a história do Brasil é contada. Na epígrafe, Gonzalez brinca com as palavras, de (sua) forma debochada quando conta do livro que os brancos fizeram sobre (nós) as pessoas negras.

Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente pra uma festa deles, dizendo que era pra gente também. Negócio de livro sobre a gente. [...]
Tinham chamado a gente pra festa de um livro que falava da gente e a gente se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles. Onde já se viu? Se eles sabiam mais da gente do que a gente mesmo? (Gonzalez, 2020, p. 75)

Com muita sagacidade e ironia, Gonzalez (1984/2020) revela como funciona a Neurose Cultural Brasileira: antes, era o lançamento de um livro sobre (nós) pessoas negras que foram gentilmente convidadas pelos brancos para participar da mesa - e depois, tornou-se um evento sobre como os negros são agressivos, desobedientes e mal-educados. É assim que a autora mostra, logo de início, como opera a Neurose Cultural Brasileira, revelando o racismo como sintoma: de um lado, há uma aparente gentileza da branquitude, do outro, uma agressividade atribuída às pessoas negras.

O racismo é um projeto político que está em andamento através de "cadeias de palavras e imagens que se tornam associativamente equivalentes, mantendo identidades em seu lugar" (Kilomba, 2019, p. 157) e, com isso, cria discursos para que as identidades permaneçam em um lugar de forma hierárquica: pessoas brancas são gentis e pessoas negras são agressivas. Para tanto, acompanho as formas discursivas que sempre se multiplicam, já que o "[...] discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar" (Foucault, 2012, p. 10). O discurso é terreno de disputa política, das relações de poder que são criativas, que se modificam, é com base no jogo de poder discursivo que criamos discursos que não só descrevem algo, mas também podem criar realidades violentas. É com essa tônica que os movimentos e as articulações do mito da democracia racial surgem como uma chave de leitura do racismo na cultura brasileira na contemporaneidade, acompanhando suas mudanças ao longo das últimas décadas.

Partindo de estudos sobre racismo e branquitude, compreendo que a segunda é uma função social composta por um gruposistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso e recursos materiais simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo que se mantêm e são preservados na contemporaneidade" (Schucman, 2014, p. 84). Para Lia Vainer Schucman (2014), que analisou o que significa ser branco no Brasil, a branquitude se apropria das categorias raça e racismo para construir suas subjetividades. A branquitude tem muitas intenções e preocupações referentes às pessoas negras, como analisou Frantz Fanon: "Ele [o branco] tem a necessidade de se defender desse 'diferente', isto é, de caracterizar o Outro. O Outro será suporte de suas preocupações e desejos" (2008, p.147).

Em sua tese de doutorado, que posteriormente se tornou um livro, Maria Aparecida Bento (2002) analisa que o pacto narcísico da branquitude é uma forma de negar o racismo e os privilégios raciais da branquitude: "Um pacto silencioso de apoio e fortalecimento aos iguais. Um pacto que visa preservar, conservar a manutenção de privilégios e de interesses." (2002, p. 105 e 106). A autora também traz um questionamento importante sobre "como lidar com duas coisas que parecem tão diferentes, mas, no fundo parecem brotar da mesma raiz: o pacto narcísico e o medo." (2002, p. 107). Parece que quando se fala sobre o pacto silencioso entre pessoas brancas, o medo aparece como uma resposta da branquitude. É nesse sentido que a autora escreve: "É possível imaginar o pânico e o terror da elite que investe, então, nas políticas de imigração europeia, na exclusão total dessa massa do processo de industrialização que nascia, e no confinamento psiquiátrico e carcerário dos negros." (2002, p. 39-40). A resposta da elite branca daquele período era a de apostar na política de branqueamento e na exclusão de pessoas negras da sociedade. Para Lélia Gonzalez:

o mito da superioridade branca prova sua eficácia pelos efeitos da violenta desintegração e fragmentação da identidade étnica produzida por ele; o desejo de se tornar branco ("limpar o sangue", como se diz no Brasil), é internalizado como consequente negação da própria raça, da própria cultura. (Gonzalez, 2020, p. 144).

Ler a história do Brasil pelo mito da democracia racial brasileira e suas articulações com a ideologia de branqueamento revela o medo branco da população negra e sua cultura, fazendo com que a branquitude daquela época investisse na imigração europeia para embranquecer a população e, consequentemente, sua cultura. Lélia Gonzalez analisa o mito da democracia racial por meio do carnaval, revelando a atualização desse mito.  A autora escreve que a "mulher negra se transforma única e exclusivamente na rainha [...]" (1984/2020, p. 80) e também sofre uma grande carga de violência simbólica: "o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com fortes cargas de agressividade." (Gonzalez, 1984/2020, p. 80). Parece que o jogo do mito da democracia racial é ocultar o que se refere à identidade negra e tentar eliminar o que "[...] deixa transparecer alguma coisa daquilo que os africanos sabiam, mas que precisava ser esquecido, ocultado. (Gonzalez, 1984/2020, p. 81).

Como ler o que está oculto e ao mesmo tempo aparece na nossa linguagem? Em "O seminário sobre " A carta roubada", Lacan (1955/1998) pensa o funcionamento do significante a partir de um conto de Edgar Allan Poe: é na fala que as ações emergem sentidos e direções, sendo também através da fala que é determinado o ponto de vista dos atores.

Mas os investigadores têm uma noção tão imutável do real que não notam que sua busca irá transformá-lo em seu objeto. Traço em que talvez possam distinguir esse objeto de todos os outros. Seria demais pedir-lhes isso, sem dúvida, não em razão de sua falta de visão, mas, antes, da nossa. Pois sua imbecilidade não é de tipo individual, nem corporativo, mas de origem subjetiva. E a imbecilidade realista, que não se limita a se dizer que nada, por mais que uma mão venha a enterrá-lo nas entranhas do mundo, jamais estará escondido ali, uma vez que outra mão poderá encontrá-lo, e que o que está escondido nunca e outra coisa senão aquilo que falta em seu lugar, como é expresso na ficha de arquivo de um volume quando ele está perdido na biblioteca. E este, de fato, estando na prateleira ou na estante ao fado estaria escondido, por mais visível que parecesse. E só se pode dizer que algo falta em seu lugar, à letra, daquilo que pode mudar de lugar, isto é, do simbólico. Pois, quanto ao real, não importa que perturbação se possa introduzir nele, ele está sempre e de qualquer modo em seu lugar, o real o leva colado na sola, sem conhecer nada que possa exilá-lo disso. (Lacan, 1955/ 1998, p. 26)

O que Lacan (1955/1998) propõe é que não há nada escondido, tudo está na superfície sendo dito a partir do Simbólico, um sistema que faz um "entrecruzamento linguístico". Ainda que os registros Simbólico, Imaginário e Real formem um nó, privilegio aqui o registro Simbólico, que tem me ajudado a ler o racismo como sintoma na Neurose Cultural Brasileira. No início de seu ensino, Lacan falava do simbólico como uma possível leitura do inconsciente, já que ele é estruturado como linguagem. Em "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise" (1953/1998), o sintoma é pensado como uma mensagem que pode ser decodificada na linguagem, por isso o "o sintoma se resolve por inteiro numa análise linguajeira, por ser ele mesmo estruturado como uma linguagem, por ser a linguagem cuja fala deve ser libertada." (Lacan, 1953/1998, p. 270). O sintoma aponta para algo que não é dito, que tenta se ocultar e que é preciso decodificar.

[...] a palavra que se dá, o Você é a minha mulher, ou o Você é o meu mestre, o que quer dizer - Você é o que está ainda na minha fala, e isso, eu só posso afirmá-lo tomando a palavra em seu lugar. Isso vem de você, para encontrar aí a certeza do que eu empenho. Esta palavra é uma fala que o empenha, a você. A unidade da palavra falada, enquanto fundadora da posição dos dois sujeitos, aí está manifestada. (Lacan, 1988, p. 47, grifos do autor)

O racismo como sintoma da cultura brasileira pode ser identificado por meio da linguagem da nossa cultura, o Pretuguês.  O que se oculta para além do que se mostra?

É nesse sentido que me atento às falas de Sérgio Camargo durante sua gestão na Fundação Palmares, que se utilizava do engajamento e da polêmica nas redes sociais para também construir seu nome na extrema direita. Um dos funcionamentos que se repete nas notícias sobre Sérgio Camargo me chamou a atenção: seu corpo negro acompanhava as notícias racistas para lembrar aos leitores que quem falava todos esses absurdos era um homem negro. É como se a sua fala carregasse uma "autorização". O que significa a identidade de um homem negro ser um elemento importante na fala proferido por ele?

Talvez por isso o texto de Lélia Gonzalez (2020), escrito em 1984, tenha me deixado inquieta: "o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações [...] ou seja, o lixo vai falar e numa boa". Se somos a lata de lixo da sociedade, pois assim determina a "lógica da dominação" (2020, p. 77), falar significa também assumir o funcionamento da linguagem racista na cultura brasileira. E foi numa dessas de ler como se escreve nossa cultura que um dos tweets de Sérgio Camargo me chamou a atenção:

Não faz sentido homenagear Zumbi [dos Palmares], um líder tirano e escravocrata.
Devemos valorizar quem viveu segundo elevados padrões éticos, cuja biografia é edificante não só para os negros, mas para todos os brasileiros.
Mudar o nome da Fundação Palmares para Princesa Isabel ou André Rebouças é um grande desafio, que um dia terá que ser enfrentado. (Verenicz, 2022)

Diante dessa fala, não quero analisar se a mudança de nome da Fundação seria aprovada ou não, ou mesmo apenas reafirmar o quanto essa fala é absurda, ainda que ela seja. O que me interessa é olhar para a cena e os personagens que estão nelas. Por que há um aparente interesse em nomear Zumbi dos Palmares como um líder agressivo e opressor, enquanto Princesa Isabel e André Rebouças se tornam personagens éticos?

Beatriz Nascimento (2021) compreende que existe uma ideia estereotipada que traz "as noções dos negros como seres primitivos, malfeitores e irresponsáveis e os quilombos como bandos destituídos de caráter político" (2021, p. 110). Os quilombos são organizações comunitárias criadas como "uma reação ao sistema escravista, cuja particularidade foi inaugurar sistemas sociais variados, em base comunitária" (Nascimento, 2021, p. 118).

O quilombo Zumbi dos Palmares era também conhecido como "Angola pequena" pelos portugueses. Esse quilombo tinha um funcionamento de Estado e durou quase 100 anos, sempre sob ataques violentos dos colonizadores europeus, que se tornaram ainda piores quando Zumbi assume a liderança do quilombo. Zumbi não aceitou a ideia de paz que estava sendo negociada por Ganga-Zumba, seu antecessor, que queria "conduzir ao domínio do poder colonial os outros negros que não concordassem com os termos de paz" (Nascimento, 2021, p. 98). Não havia negociação com o poder colonial para Zumbi dos Palmares, uma vez que sua ideia de nação compreendia a liberdade de todas as pessoas negras. Neste sentido, o funcionamento do quilombo e o posicionamento de Zumbi dos Palmares foram uma forma de resistência ao poder colonial.

Isso posto, retorno à fala de Sérgio Camargo de que Zumbi dos Palmares foi um líder tirano e escravocrata. A imagem de Zumbi dos Palmares parece causar medo e, com isso, produz a ideia de que essa imagem precisa ser combatida, eliminada, esquecida. O que se mostra na fala de Camargo é a ficção de que Zumbi dos Palmares foi um negro ruim e tirano e o que se oculta é que Zumbi resistiu ao poder colonial, negou até o fim a negociação da liberdade do Quilombo de Palmares.

Encontramos na fala de Sérgio Camargo uma repetição do sintoma do racismo na neurose cultural brasileira: preto bom é preto dócil, preto ruim é preto tirano. A resistência e a luta de Zumbi dos Palmares e o povo negro é ocultada como algo que não deve ser lembrado, afinal, se esse fala aparece, significa também dizer que foi preciso resistir a algo, a alguém, a um grupo que nomeamos neste texto como branquitude. Ou seja, para que as pessoas brancas continuem num lugar de gentileza e bondade, é necessário que as pessoas negras se tornem dóceis. Talvez por isso seja tão importante que Sergio Camargo, um homem negro, seja destinatário e falante do enunciado segundo o qual ser um bom negro é ser dócil, obediente. A mensagem que se oculta parece ser a de que um bom negro não seria vítima de racismo e nem sofreria violência se ele não fosse agressivo e tirano.

Acompanho Cida Bento (2002) na análise de que o pacto narcísico da branquitude e o medo andam juntos, uma vez que o medo aparece em resposta às pessoas negras. É por aí que se percebe a tentativa de apagar nossa história com o interesse de matar o que não é branco. A morte, nesse contexto, se remete não só ao fim da vida das pessoas negras, mas também ao epistemicídio que acontece sistematicamente contra a (nossa) cultura negra. Segundo Sueli Carneiro,

epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. (Carneiro, 2005, p. 97)

É na tentativa de eliminar a linguagem da cultura brasileira, isto é, o Pretuguês, que é possível observar o racismo como sintoma. Como escreveu Gonzalez (2020), há uma tentativa de ocultar as marcas da nossa africanidade no Brasil, mas não é possível porque é através da figura da Mãe Preta que "a verdade surge da equivocação" (2020, p. 87). Essa tentativa de apagar a linguagem do Pretuguês é uma das formas que o racismo opera no Brasil, através das articulações entre a ideologia de branqueamento que busca embranquecer nossa cultura, e a do mito da democracia racial que tem como ideologia produzir na cultura brasileira a ausência do racismo, isto é, a ideia de que vivemos numa igualdade racial.

A Mãe Preta e o Pretuguês

"Que se atente também para a força simbólica de Zumbi como significante que cutuca a consciência negra do seu despertar" (1984/2020, p. 89), escreve Lélia Gonzalez. A autora mostra a força simbólica de Zumbi como Nome-do-pai no Brasil revelando o medo de Zumbi através das canções populares. Na fala de Camargo, esse medo de um Zumbi tirano aparece na tentativa de mudar o nome da Fundação Zumbi dos Palmares, que foi criada em 1988 para tratar das relações étnico-raciais num cenário de redemocratização do Brasil, junto com outras conquistas como o "combate à intolerância racial no país. Inscreve-se, então, na Constituição de 1988, a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível, além do reconhecimento das terras dos remanescentes de quilombos" (Araújo, 2008).

A Fundação nasce através de muita luta e articulação do movimento negro, segundo Carlos Moura (2008), o primeiro presidente da Fundação Palmares. Uma dessas articulações realizadas pelo movimento negro organizado foi a peregrinação feita até a Serra da Barriga (AL), no município de União dos Palmares, que é um "local sagrado, onde, por 100 anos, os quilombolas, cujo líder mais destacado foi Zumbi, enfrentaram tropas do Império e capitães-do-mato" (Moura, 2008, p.8).

O medo de Zumbi se revela como uma ameaça que poderia desbancar o lugar do povo negro dócil, que é dominado e que está situado num lugar de dominação, daquilo que é falado. Lélia Gonzalez escreveu o texto "Democracia Racial? Nada disso", em 1981, alguns anos antes de escrever "Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira" (1984/2020). No final do texto, a autora fala de uma "mentira histórica" que se escuta no Brasil em relação ao povo negro: de que as pessoas negras aceitaram de forma dócil a escravidão e que os portugueses eram gentis. A figura que aparece como símbolo da bondade portuguesa e da passividade negra é a Mãe Preta, já que era ela quem cuidava das crianças brancas. Não há passividade e nem bondade nessa história, como alerta Gonzalez (1981/2020): a Mãe Preta era escravizada e foi através de muita violência que exerceu essa função, sendo ela a responsável por dar a "rasteira na raça dominante" (1984/2020, p. 87).

Com isso, mantiveram viva a chama dos valores culturais afro-brasileiros, que transmitiram a seus descendentes. E isso também influenciaram mulheres e homens brancos, a quem aleitaram e educaram. Graças a elas, apesar de todo o racismo vigente, os brasileiros falam pretuguês (o português africanizado). E só conseguem afirmar como nacional, justamente aquilo que o negro produziu em termos de cultura: o samba, a feijoada, a descontração, a ginga ou o jogo de cintura, etc. É por essa razão que as "mães" e as "tias" são tão respeitadas dentro da comunidade negra, apesar de todos os pesares. (Gonzalez, 1981/, 2020, p. 203)

Gonzalez (1984/ 2020) lançou a ideia de Neurose Cultural Brasileira, pensando que a Mãe Preta é quem nos insere na linguagem, quem nomeia o pai e quem dá a "rasteira" que a branquitude não esperava: ela produz o Pretuguês através das marcas da africanidade. Isto é, através da sua fala, a Mãe Preta marca a linguagem na cultura brasileira com sua amefricanidade. A amefricanidade é uma "criação nossa e dos nossos antepassados no continente em que vivemos, inspirados em modelos africanos" (p. 135), escreve Lélia Gonzalez no seu texto "A Categoria Político-cultural de amefricanidade" (1988/2020), destacando que, no Brasil, podemos ver a manifestação da amefricanidade "nos modelos iorubá, banto, e ewe-fon" (1988/2020, p. 165).

Gonzalez (1984/2020) escreve que a Mãe Preta dá a rasteira na raça dominante porque há algo que ela inscreve e que marca a nossa história: a nossa linguagem. Ao seu lado, outra intelectual, linguista e influente escritora, Conceição Evaristo (2020), trabalhando o conceito de Escrevivência, traz pistas para analisar a figura da Mãe Preta:

Pensar a Escrevivência como um fenômeno diaspórico e universal, primeiramente me incita a voltar a uma imagem que está no núcleo do termo. Na essência do termo, não como grafia ou como som, mas, como sentido gerador, como uma cadeia de sentidos na qual o termo se fundamenta e inicia a sua dinâmica. A imagem fundante do termo é a figura da Mãe Preta, aquela que vivia a sua condição de escravizada dentro da casa-grande [...].

E havia o momento em que esse corpo escravizado, cerceado em suas vontades, em sua liberdade de calar, silenciar ou gritar, devia estar em estado de obediência para cumprir mais uma tarefa, a de "contar histórias para adormecer os da casa-grande". E a Mãe Preta se encaminhava para os aposentos das crianças para contar histórias, cantar, ninar os futuros senhores e senhoras, que nunca abririam mão de suas heranças e de seus poderes de mando, sobre ela e sua descendência. Foi nesse gesto perene de resgate dessa imagem, que subjaz no fundo de minha memória e história, que encontrei a força motriz para conceber, pensar, falar e desejar e ampliar a semântica do termo. Escrevivência, em sua concepção inicial, se realiza como um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças. (Evaristo, 2020, p. 29-30)

A linguagem da Mãe Preta marcou a linguagem brasileira com sua amefricanidade. Ela era a responsável por cuidar das crianças, senhores e senhoras da Casa Grande, e foi com ela que foram inseridos na linguagem que é tão organizadora para a neurose. A Mãe Preta se torna "a mãe nesse barato doido da cultura brasileira" (Gonzalez, 1984, 2020, p. 87). Conceição Evaristo (2020), quando fala sobre borrar a imagem do passado da Mãe Preta, quer dizer que "a nossa escrevivência não é para adormecer os da casa-grande, e sim acordá-los de seus sonos injustos". (2020, p. 30). A escrevivência é marcada pelo ponto de vista das pessoas negras, que se reconhecem a partir de "um outro ideal de ego. Um ideal que lhe configure um rosto próprio, que encarne seus valores e interesses que tenha como referência e perspectiva a história." (Souza, 2021, p. 77). A escrevivência como linguagem parece ser marcada pelo Pretuguês já que revela as marcas da africanidade na cultura brasileira.

É no reconhecimento das pessoas negras através das (nossas) marcas de amefricanidade que é possível "a dinâmica cultural que não nos leva para o outro lado do Atlântico, mas que nos traz de lá e nos transforma no que somos hoje: amefricanos" (1988/2020, p. 139). O Pretuguês é produzido a partir da possiblidade de sermos negros amefricanos, porém, a ideologia de branqueamento no Brasil segue em curso junto com o mito da democracia racial. Seguindo essa discussão, quero pensar o sintoma atentando-me ao que diz Neusa Santos Souza (2021):

É que no Brasil, nascer com a pele preta e/ou outros caracteres do tipo negroides e compartilhar de uma mesma história de desenraizamento, escravidão e discriminação racial não organizam, por si só, uma identidade negra.
Ser negro, é além disso, tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. (2021, p. 115)

Neusa Santos Souza (2021) pensa o conceito de Ideal do eu branco, revelando uma ferida narcísica para (nós) pessoas negras já que não é possível "se modelar segundo o figurino branco" (Souza, 2021, p. 116). Nesse sentido, M. D. Magno, psicanalista citado por Lélia Gonzalez para pensar as marcas de africanidade, analisa:

Não adianta nadar contra a corrente sintomática, é melhor fazer o sintoma falar, e dizer muito bem. Quer me parecer que as abordagens sociológicas, e outras zoologias, ficam lutando contra a corrente, na aparência de estarem a favor da corrente, mas elas têm umas ideologias de base que não as permitem pegar o sintoma tal como é, e o dizerem bem. Taí o campo da Arte que não me deixa mentir. Por exemplo: existe uma Arte Brasileira, no estrito sentido de que se falou e se disse, um negócio, assim, sintomaticamente situável, que tenha explicitado um sintoma de diferença? Onde está? Ou está-se o tempo todo escondendo esse sintoma atrás de aparências europeias, americanas, sulamericanas, latinas, e coisas desta ordem? (Magno, 2008, p. 27)

O que Magno (2008) analisa vai ao encontro do que Lélia Gonzalez (2020) pensa sobre a diminuição da cultura negra vista como um "folclore". Parece que há um medo de perceber que a cultura brasileira está encharcada de arte negra, de cultura negra, da identidade negra, das marcas da nossa amefricanidade. Concordo com Magno (2008) sobre acompanhar os "significantes que constituem a sintomática nacional" (2008, p. 4). Uma das formas de como se revela o racismo como sintoma se situa no medo que a branquitude tem da cultura negra, sobretudo quando não se apresenta a docilidade que a branquitude espera.  A figura de Zumbi dos Palmares e o medo que se revela sobre sua imagem mostra aquilo que está oculto.  Nesse sentido, Lacan (1953/1998) analisa que:

a função paterna concentra em si relações imaginárias e reais, sempre mais ou menos inadequadas à relação simbólica a constitui essencialmente. E nome do pai se deve reconhecer o suporte da função simbólica que, desde o limiar dos tempos históricos, identifica sua pessoa com a imagem da lei. (Lacan, 1953/1998, p. 279)

Na sua função simbólica, Zumbi aparece na fala de Sergio Camargo como líder tirano na cultura brasileira. Figuras como Zumbi estão aí "como repetição do S1, como representações populares do herói" (Gonzalez, 1984/2020, p. 90). A imagem que se construiu de Zumbi revela o que se oculta, para além do que ele mostra. A (nossa) identidade negra cria marcas de amefricanidade, já que essa categoria política se manifesta nas "revoltas, na elaboração de estratégias de resistência cultural, no desenvolvimento de formas alternativas de organização social livre" (Gonzalez, 1988/2020, p. 138). Nesse sentido, a cultura negra marcada pela amefricanidade se manifesta nas resistências, nas formas livres de organização social, posicionamentos que parecem remontar o medo na branquitude, um medo que pede como resposta a eliminação dessa cultura, isto é, a ideologia de branqueamento.

O mito da democracia racial pode desvelar o racismo como sintoma que "[...]simplesmente toma a brotar qual a erva daninha, compulsão de repetição." (Lacan, 1958/1998, p. 630). Em uma questão preliminar, Lacan (1959/1998) analisa que "é em estado de recalcado (verdriingt) que ela persiste ali, que dali insiste em se representar no significado, através de seu automatismo de repetição (Wiederholungszwang)." (1959/1998, p. 564) É como se esquecêssemos de lembrar que o racismo existe na nossa sociedade, isto é, pensando a cultura brasileira dentro da neurose, não se quer saber o que se oculta para além do que se mostra e, com isso, o sintoma se repete.

Como afirma Aryanne P. O. de Oliveira, em sua dissertação de mestrado, "o racismo brasileiro vislumbra jovens negros como corpos que carregam o não direito à infância e adolescência, mas sendo a escória da sociedade: invisíveis socialmente, carregam em si o ideal de pobreza, criminalidade e violência" (2023, p. 22). Assim como a imagem de Zumbi e seu quilombo, e de outros heróis negros que circulam no imaginário brasileiro, a população negra é vista como um risco, como um grupo que pode a qualquer momento pegar, retirar, violentar o que é branco. Para Isildinha Baptista Nogueira, "a 'brancura' passa a ser parâmetro de pureza artística, nobreza estética, majestade moral, sabedoria científica, etc. Assim, o branco encarna todas as virtudes [...]" (2021, p. 88) Por isso, o pacto narcísico da branquitude é tão importante para manter a estrutura da brancura. Se a mãe é preta e o pai também, como fica a branquitude uma vez que ela não é o parâmetro? É por aí que se vê o medo branco.

Pretuguês e as Marcas da Africanidade

Tem sido cada vez mais comum ver notícias sobre a ruptura do português de Portugal e do português do Brasil (Braun, 2024). Os portugueses apontam essa língua como sendo "brasileira" e diferente da língua que é falada em Portugal. De qual língua brasileira falam? Não é a primeira vez que o racismo se movimenta no sentido de ver as pessoas negras como um objeto (de desejo) místico, que tem poderes de sedução e é hipersexualizado. Por essas e outras que Frantz Fanon (2008) escreveu assim:

O branco está convencido de que o negro é um animal; se não for o comprimento do pênis, é a potência sexual que o impressiona. Ele tem a necessidade de se defender deste "diferente", isto é, de caracterizar o Outro. O Outro será suporte de suas preocupações e de seus desejos. (Fanon, 2008, p. 147)

A forma como se "animaliza" a linguagem da Neurose Cultural Brasileira pode ser observada naquilo que se oculta, ao mesmo tempo que se mostra. Vamos sacar esse tal abrasileiramento como uma referência às marcas da amefricanidade que tenta se esconder através do "véu ideológico do branqueamento, é recalcado por classificações eurocêntricas do tipo 'cultura popular', 'folclore' nacional, etc., que minimizam a importância da contribuição negra" (Gonzalez, 1988/2020, p. 128). Elevando Zumbi como significante, sacando junto com Lélia Gonzalez (1984/2020), é interessante observar que o medo da sua figura se relaciona com o medo da cultura negra, do Pretuguês. É a figura de Zumbi quem cutuca a cultura brasileira, que aponta para o Pretuguês, nossa língua preta materna. As marcas da amefricanidade são significadas como "coisas nossas" o que cutuca a branquitude em sua função social.

Quando Zumbi e outros "heróis negros populares" ganham força no imaginário brasileiro, os brancos (a branquitude) "reagem dessa forma justamente porque a gente põe o dedo na ferida deles, a gente diz que o rei tá pelado. E o corpo do rei é preto, e o Rei é escravo" (Gonzalez, 1984/2020, p. 91). O "pai branco" foi desbancado, já que o "Significante-mestre foi roubado pelo escravo que se impôs como senhor" (Gonzalez, 1984/2020, p. 93). É nessa tônica que Lélia Gonzalez (1984/2020) analisa que o Dia da Consciência Negra foi deslocado para o dia 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares. O dia 13 de maio foi negado pelo movimento negro como uma data para celebrar a Consciência Negra, já que foi nesse dia que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea. É a partir do resgate da memória de Zumbi que se revela "a falsa maternidade da princesa Isabel, afinal, a gente sabe que a mãe preta é que é a mãe" (Gonzalez, 1984/2020, p. 90). O que isso produz na cultura brasileira?

Em 1911, foi realizado em Londres o Congresso Universal das Raças, que reuniu vários países, sendo o Brasil o único país da América Latina, representado pelo intelectual branco João Baptista de Lacerda, que sempre deixou muito claras as suas ideias sobre raça. Na comunicação que fez nesse encontro, entre várias falas eugenistas, Lacerda comemora que o Brasil seria constituído por uma "raça latina" e branca, enquanto as pessoas negras e indígenas iriam desaparecer do país em 100 anos (Lacerda, 1911) Esse enunciado eugenista pode ser observado em muitos discursos racistas de Bolsonaro e de outros políticos da extrema direita, que incitam a destruição de pessoas negras e indígenas. É por meio da violência de Estado que se exerce o poder necropolítico, realizando o poder soberano de matar (Mbembe, 2019). No Brasil, essa gestão se dá através de práticas eugenistas que "se aproveitam da estigmatização de corpos negros para a perpetuação e remodelação de uma necropolítica" (Oliveira, 2023, p. 61).

Sergio Camargo, segundo ele próprio, fazia um governo para o Bolsonaro, o que revela para quem era o destino da mensagem que seu corpo negro carregava: era necessário ser dócil e passivo para ser um bom negro para o governo de Bolsonaro e seus aliados.  A figura de Zumbi aparece aqui como alguém que trai essa história, assim com a Mãe Preta que era conhecida como "traidora". A traição da Mãe Preta e de Zumbi se revela no Pretuguês, quando se desbanca o branco europeu do lugar de pai, fazendo-o de "tio ou corno; do mesmo modo que a europeia acabou sendo a outra." (Gonzalez,1984/2020, p. 93)

O objeto de desejo da branquitude, o sujeito negro "torna-se um objeto de desejo que deve ser atacado e destruído" (Kilomba, 2019). O que é visto como ameaçador para a branquitude no Brasil é a linguagem que falamos na nossa cultura, o Pretuguês. Enquanto vivemos a gestão da morte, a necropolítica (Mbembe, 2019), o mito da democracia racial aparece como a fala do sujeito sobre a ausência do racismo no Brasil, a partir de uma unidade racial e do ocultamento da cultura negra que não é docilizada, mas que borra a história e faz os da casa-grande acordar do sono dos injustos (Evaristo, 2020).

"Se a batalha discursiva, em termos de cultura brasileira, foi ganha pelo negro, o que terá ocorrido com aquele que segundos os cálculos deles ocuparia o lugar do senhor?" (Gonzalez, 1984/2020, p. 93). Teme-se a linguagem preta, teme-se o pai Zumbi, como se ele fosse roubar algo da branquitude, talvez a sua onipotência fálica (Gonzalez, 1984/2020), aquilo que não se captura, mas que se teme perder. A ideologia do branqueamento e o mito da democracia racial encontram novas formas de articularem-se na linguagem da cultura brasileira e quem escapa disso é traidor, é a "neguinha atrevida que dá com a língua dos dentes..." (Gonzalez, 1984/2020, p. 76), é quem fala Pretuguês. Quando Rincon Sapiência canta "pra ficar mais claro, eu escureci" que vou sacando que somos uma multidão de gente atrevida, traidora e que resiste.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Thayz Conceição Cunha de Athayde - thayzathayde@gmail.com

Recebido em: 08/07/2024
Aceito em: 25/11/2024

 

 

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