Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e85708, doi:10.12957/epp.2025.85708
ISSN 1808-4281 (online version)

 

CLIO-PSYCHÉ

 

Geraldo Servo (1930-2001) e a Profissionalização da Psicologia no Brasil

 

Geraldo Servo (1930-2001) and the Professionalization of Psychology in Brazil

 

Geraldo Servo (1930-2001) y la Profesionalización de la Psicología en Brasil

 

Rodolfo Luís Leite Batista a

a Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

A pesquisa de biografias é bastante útil para compreender a constituição histórica da psicologia. Este artigo constrói uma biografia do psicólogo brasileiro Geraldo Servo (1930-2001) como exemplo da profissionalização da psicologia durante o século passado. Os documentos analisados foram cedidos pela família de Servo e recolhidos no Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa, no Centro de Documentação e Pesquisa em História da Psicologia e no Sistema de Informações do Arquivo Nacional. A análise documental sistematiza a trajetória biográfica de Geraldo Servo em três períodos: os primeiros contatos com disciplinas psicológicas em institutos católicos brasileiros e italianos (1947-1958); as práticas psicológicas no Instituto de Psicologia e Pedagogia, o registro profissional e os períodos de capacitação em países europeus (1958-1969) e a participação política em entidades profissionais e a atuação como profissional liberal (1969-1999). Esta pesquisa conclui que a biografia de Geraldo Servo exemplifica: (a) a ação da Igreja Católica para a circulação de projetos de psicologia aplicados a temas educacionais; (b) o processo de interiorização da psicologia brasileira por meio do ensino universitário e criação de institutos especializados; e (c) o papel de entidades acadêmico-profissionais para o exercício profissional regulamentado. Este estudo deseja contribuir para a historiografia da psicologia no Brasil.

Palavras-chave: história da psicologia, biografia, psicólogos, profissionalização.


ABSTRACT

Researching biographies is very useful for understanding the historical constitution of Psychology. This paper constructs a biography of the Brazilian psychologist Geraldo Servo (1930-2001) as an example of the professionalization of Psychology during the last century. The documents analyzed were provided by Servo's family and collected at the Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa, at the Centro de Documentação e Pesquisa em História da Psicologia and at the Sistema de Informações do Arquivo Nacional. The documental analysis systematizes Geraldo Servo's biographical trajectory into three periods: his first contacts with psychological disciplines in Brazilian and Italian Catholic institutes (1947-1958); psychological practices at the Institute of Psychology and Pedagogy, professional registration, and training periods in European countries (1958-1969); and. political participation in professional entities and his work as a freelance professional (1969-1999). This research concludes that Geraldo Servo's biography exemplifies: (a) the action of the Catholic Church to circulate Psychology projects applied to educational themes; (b) the process of interiorization of Brazilian Psychology through university teaching and the creation of specialized institutes; and (c) the role of academic-professional entities for regulated professional practice. This study aims to contribute to the historiography of Psychology in Brazil.

Keywords: history of psychology, biography, psychologists, professionalization.


RESUMEN

La investigación de biografías es bastante útil para comprender la constitución histórica de la psicología. Este artículo construye una biografía del psicólogo brasileño Geraldo Servo (1930-2001) como ejemplo de la profesionalización de la psicología durante el último siglo. Los documentos analizados fueron cedidos por la familia de Servo y recogidos en el Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa, en el Centro de Documentação e Pesquisa em História da Psicologia y en el Sistema de Informações do Arquivo Nacional. El análisis documental sistematiza la trayectoria biográfica de Geraldo Servo en tres momentos: los primeros contactos con asignaturas psicológicas en institutos católicos brasileños e italianos (1947-1958); las prácticas psicológicas en el Instituto de Psicología y Pedagogía, el registro profesional y los períodos de entrenamiento en países europeos (1958-1969) y la participación política en entidades profesionales y la actuación como profesional liberal (1969-1999). Esta investigación concluye que la biografía de Geraldo Servo ejemplifica: (a) la acción de la Iglesia católica para la circulación de proyectos de psicología aplicados a temas educativos; (b) el proceso de internalización de la psicología brasileña por medio de la enseñanza universitaria y la creación de institutos especializados; y (c) el rol de entidades académico-profesionales para el ejercicio profesional reglado. Este estudio desea contribuir para la historiografía de la psicología en el Brasil.

Palabras clave: historia de la psicología, biografía, psicólogos, profesionalización.


 

 

Professor de ciências naturais em escolas secundárias. Padre salesiano. Docente de disciplinas psicológicas responsável pela criação de um instituto especializado no interior de Minas Gerais. Psicólogo reconhecido, conforme a Lei n° 4.119. Presidente da Sociedade de Psicologia do Distrito Federal (SPDF) e membro de outras associações científicas. Secretário do primeiro plenário do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Testemunha da intervenção da ditadura militar em entidades de classe. Diretor de um dos primeiros institutos de Psicologia de Brasília. Profissional liberal homenageado pelo Conselho Regional de Psicologia (CRP) do Distrito Federal com o registro de n° 1. Esses são alguns predicados que caracterizam a vida acadêmico-profissional do psicólogo brasileiro Geraldo Servo (1930-2001), cuja biografia é pouco estudada pela literatura ainda que ela exemplifique a trajetória de alguns dos primeiros profissionais da psicologia no país (Batista, 2023; Brandão, 2001).

A biografia é considerada um dos gêneros historiográficos de maior popularidade e de produção mais exigente, sendo que as concepções e os usos sociais desses relatos têm se redefinido ao longo do tempo e documentado as distintas possibilidades de as pessoas lidarem com percursos individuais. De modo resumido, ela é "a narrativa escrita de uma vida humana" ou a descrição de acontecimentos da trajetória e da obra de um personagem tido como relevante (Cruz, 2016, p. 143). Ademais, a biografia permite conhecer as relações entre o contexto social e a história pessoal, pois mostra as possíveis influências e circunstâncias que levaram um indivíduo a tomar certa decisão em uma situação específica. Para Schwarcz e Starling (2015, p. 20), "uma biografia é a evidência mais elementar da profunda conexão entre as esferas pública e privada: somente quando estão articuladas, essas esferas conseguem compor o tecido de uma vida, tornando-a real para sempre".

Na historiografia das ciências, as pesquisas biográficas ajudam a revelar as dinâmicas do meio científico, tais como as relações e o apoio financeiro em instituições acadêmicas, a construção de lideranças intelectuais, a aceitação social e as disputas internas de comunidade de especialistas em um campo de conhecimento (Cruz, 2016). As vidas de cientistas se dão em um contexto, que deve ser descrito de maneira acurada de forma a evitar protagonismos exagerados e heroísmos imaginados. As produções intelectuais de cientistas nascem em circunstâncias - políticas, sociais, econômicas e acadêmicas - próprias que, se não levadas em consideração, podem ser erroneamente vistas como ações de pessoas privilegiadas.

Os historiadores da Psicologia recorrem a biografias para conhecer a constituição da psicologia em âmbito internacional e brasileiro, produzindo ampla literatura difundida em diferentes meios. Dentre as obras nacionais, destacam a Coleção Pioneiros da Psicologia Brasileira, que publicou onze volumes relativos a personagens de atuação fundamental para o estabelecimento da psicologia no país, e o Dicionário Biográfico da Psicologia no Brasil - Pioneiros, que sumariza as trajetórias de centenas de intelectuais (Campos, 2001). Podem ser lidos também artigos biográficos recentemente publicados em periódicos especializados. Embora não devam ser estritamente classificados como biografias, os obituários e os necrológios também registram informações pessoais e profissionais de personagens notáveis nesse domínio de conhecimento (Gomes, 2023).

Para Cruz (2016, p. 161), "a incorporação da biografia ao campo historiográfico da psicologia promoveria a expansão da consciência histórica de seus praticantes", pois cria condições para se vislumbrar distintos percursos individuais e informa acerca da formulação de conceitos e de práticas científicas. Ainda que as biografias possibilitem perceber os rumos da psicologia em diferentes cenários, algumas críticas são colocadas aos estudos biográficos: deve-se evitar uma concepção finalista em que a vida do biografado é tomada como resultado de uma evolução linear e progressiva, que conduz à sua consagração excessiva. Além disso, existe o risco de uma análise excessivamente cerimonial e disciplinar, quando o foco investigativo é voltado para eventos históricos que corroboram certos estereótipos de ciência. Essas críticas recaem sobre uma historiografia laudatória, que marginaliza e exclui grupos sociais minorizados (e.g., mulheres, negros, indígenas e pessoas dissidentes de gênero).

A trajetória do psicólogo Geraldo Servo merece ser investigada, pois esse personagem atuou como um intelectual mediador, ao apropriar e fazer difundir a psicologia em diferentes ambientes - institutos católicos, entidades profissionais, cursos de graduação e clínicas particulares, por exemplo. Além disso, ele atuou com práticas psicológicas em meio a disputas pela regulamentação profissional. Assim, suas diferentes facetas revelam temas emergentes para a historiografia da psicologia brasileira, a saber: a relação entre a Igreja Católica e os projetos científicos de psicologia na primeira metade do século passado (Jacó-Vilela & Rocha, 2014); a ação de integrantes da ditadura militar em entidades profissionais (Souza, 2023); e a interiorização da psicologia no país mediante o ensino, a criação de estabelecimentos e a prestação de serviços (Castelo-Branco & Feitosa, 2017).

Esta pesquisa documental constrói uma biografia de Geraldo Servo em três períodos consecutivos: seus primeiros contatos com a psicologia em institutos católicos brasileiros e italianos durante a formação como salesiano e professor de escolas secundárias (1947 a 1958); a atuação junto ao Instituto de Psicologia e Pedagogia (IPP) e os momentos de capacitação em países europeus, que lhe permitiram requerer o registro profissional de psicólogo (1958 a 1969); e a participação política em entidades de categoria e a atuação como profissional liberal até sua aposentadoria (1969 a 1999). O corpus analisado foi estabelecido com documentos cedidos pela família do biografado e fontes disponíveis no Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa, em Barbacena (MG); no Centro de Documentação e Pesquisa em História da Psicologia, mantido pela Universidade Federal de São João del-Rei; e no Sistema de Informações do Arquivo Nacional. O acesso a diferentes arquivos e a diversidade de fontes (documentos pessoais, currículos, cartas, fotografias, anotações de aula e memoriais acadêmicos) foram fundamentais para cobrir toda a trajetória de Geraldo Servo. Não obstante, mantém-se a possibilidade de que novas investigações possam ser empreendidas mediante a análise de documentos ainda não conhecidos.

Os Primeiros Contatos com Disciplinas Psicológicas em Institutos Católicos Brasileiros e Italianos (1947-1958)

Os contatos iniciais de Geraldo Servo com a psicologia aconteceram em instituições salesianas de São João del-Rei 1 nos últimos anos da década de 1940. A pedido de seus pais, ele residia na cidade histórica mineira desde os onze anos de idade para completar seus estudos secundários no Colégio São João. Ali, interessou-se pela vida religiosa e, depois de frequentar o Ginásio São Joaquim, em Lorena (SP), e o Ginásio São Manoel, em Lavrinhas (SP), iniciou o aspirantado nessa congregação. Em 1946, ele acompanhou o curso propedêutico para noviços no Instituto do Sagrado Coração, em Pindamonhangaba (SP).

Em virtude de sua proposta educativa, os salesianos deveriam cursar, além de Filosofia e Teologia (exigidas pela preparação religiosa tradicional), Pedagogia. Dessa maneira, garantia-se tanto "uma formação seminarística densa de cultura clássica e científica" (Servo, 2000, p. 1) quanto "um programa de estudos de nível universitário, no qual […] se estudava, de modo especial, pedagogia e outras ciências da educação" (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras [FDB], 1959). Desejava-se uma capacitação científica em perspectiva neoescolástica, valorizada pelo magistério pontifício a partir do final do século XIX, a fim de que o professor pudesse conhecer integralmente o estudante. Depois de passar pelos colégios salesianos no interior paulista, Geraldo Servo estudou Filosofia entre 1947 e 1949 no Instituto de Filosofia e Pedagogia, em São João del-Rei, quando se aproximou de diferentes disciplinas psicológicas: Psicologia Experimental Geral e Psicologia Filosófica (1º ano); Psicologia da Aprendizagem, Psicologia Evolutiva e Psicologia da Adolescência (4º ano).

Como a formação obtida no Instituto de Filosofia e Pedagogia não era reconhecida formalmente como grau universitário pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), Geraldo Servo obteve sua habilitação profissional junto à Universidade de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Essa validação lhe permitiu lecionar Física e Química em escolas secundárias entre 1950 e 1952, cumprindo três anos de exigência para seu tirocínio prático.

De 1953 a 1956, Geraldo Servo se graduou simultaneamente em Teologia pelo Instituto Teológico Pio XI, em São Paulo, e em Pedagogia pela Faculdade Salesiana de Lorena, sendo que a formação pedagógica lhe permitiu ampliar seus conhecimentos em psicologia científica. A recém-instalada instituição de ensino mantinha um laboratório experimental 2 onde aconteciam cursos sobre teorias da personalidade, caracterologia, psicologia aplicada e testes mentais (Ferraz, 2014). Nesse ambiente de difusão da psicologia, ele acompanhou aulas de Psicologia Experimental Geral, Psicologia Filosófica, Psicologia Evolutiva e Psicologia da Educação, oferecidas no curso de Pedagogia (Brandão, 2006). Nesse período, ele também participou de aulas de caracteriologia no Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 3 (Ippuc), em 1955.

Depois de concluir a formação seminarística, ele foi ordenado padre em agosto de 1956. Em resposta ao pedido de que salesianos obtivessem titulação acadêmica em âmbito internacional, Carlos Leôncio da Silva o encaminhou para realizar o Mestrado em Pedagogia, no Pontifício Ateneu Salesiano (PAS), entre 1957 e 1958. Em um dos documentos analisados, Geraldo Servo conta que:

[…] o patrocínio do conceituado mestre e pedagogo […] lhe permitiu, concomitantemente ao mestrado, frequentar o Laboratório de Psicologia Experimental com […] Giacomo Lorenzini e o centro de atendimento médico-psicopedagógico com o professor Emanuel Gutiérrez, assim como o centro de aperfeiçoamento didático em Psicologia com o professor Pier Giovanni Grasso (Servo, 2000, pp. 1-2).

De acordo com Vojtas (2021), essa instituição turinesa era o mais importante centro de difusão de princípios educativos salesianos, onde se procurava sintetizar os fundamentos pedagógicos católicos e as contribuições das ciências modernas. A partir dali, difundiam-se alguns postulados da escola ativa (e.g., a importância do método científico e do conhecimento psicológico como garantidores da promoção do desenvolvimento integral do educando). No entanto, alguns posicionamentos teóricos do movimento da Escola Ativa também eram criticados em razão de seus ditos princípios materialistas e naturalistas (Vojtas, 2021).

O mestrado cursado por Geraldo Servo era composto de disciplinas, estágios práticos e um trabalho final. Em primeiro lugar, foram acompanhadas aulas de disciplinas fundamentais (Psicologia Experimental, Psicologia da Idade Evolutiva e Psicologia Diferencial) e de conteúdos aplicados à resolução de problemas educativos (Metodologia dos mental tests, Pedagogia Curativa, Problemas bio-pedagógicos do adolescente e Psicologia Pedagógica). Assim, ele se aproximava do "modelo físico [que] continuava sendo respeitado como protótipo de qualquer ciência" e de unidades curriculares que ofereciam subsídios para intervenções em problemas de âmbito educacional (Servo, 2000, p. 2). Desse modo, ele avaliava que "dentre os conteúdos cursados, destaca-se o de Pedagogia Curativa, no qual eram estudadas as causas e classificações das deficiências que acometiam estudantes, bem como as técnicas psicológicas para tratá-las adequadamente" (Servo, 1964, p. 84).

Os estágios reuniam exercícios e práticas em laboratórios experimentais; estudo do desenvolvimento infanto-juvenil e intervenções em ambiente escolar mediante a aplicação de testes mentais e de outros instrumentos. Servo realizou "estágios de quatro meses junto ao Servizio di Consulenza Medico-Psicopedagogica e Centro di Orientamento Scolastico e Professionale" e no Instituto de Psicologia Experimental do Ateneu Salesiano, sob a supervisão de Giacomo Lorenzini (Servo, 1964, p. 1). Ele ainda passou por curtos períodos de treinamento em laboratórios de psicologia na Universidade do Sagrado Coração, em Milão, e na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, que eram contados entre os principais centros especializados católicos (Misiak & Staudt, 1954). Para a obtenção do título, ele escreveu um estudo monográfico em que articulava os conhecimentos teóricos adquiridos e sua atuação como professor no ensino secundário. Em A percepção de causalidade no ensino de Física, ele usou um instrumento criado por Albert Michotte (1881-1965), professor de psicologia na Universidade Católica de Louvain, para observar e medir características da personalidade juvenil mobilizadas para a aprendizagem de conteúdos físicos (Servo, 1958).

Depois de dois anos estudos em países europeus, Geraldo Servo regressou ao Brasil, participando da institucionalização profissional da psicologia no interior do país. Desse modo, ele interveio para a aplicação da psicologia em práticas de orientação ao longo dos anos 1960.

As Práticas Psicológicas no Instituto de Psicologia e Pedagogia, o Registro Profissional e Novos Períodos de Capacitação na Europa (1958-1969)

De volta a São João del-Rei, Geraldo Servo se tornou diretor do laboratório de psicologia experimental e da biblioteca especializada, instalados na Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras em 1955 (Batista, 2015). Para dinamizar o funcionamento desse laboratório, ele inicialmente criou um serviço de atendimento clínico e pesquisas psicológicas semelhante ao de institutos europeus. Em fevereiro de 1958, abriu "para o público, um dos primeiros, se não o primeiro, consultório de psicologia [da cidade] tendo como primeira cliente uma criança excepcional e, na sua equipe, uma assistente social" (Servo, 1997, p. 1). Além disso, ele passou a lecionar diferentes disciplinas psicológicas nos cursos de graduação oferecidos pela faculdade, uma vez que "na falta de curso de Psicologia, [ele] vinha procurando dar ao curso de Pedagogia, muito procurado pelas professoras dos grupos escolares, uma concentração maior das disciplinas, dos conteúdos, dos experimentos da Psicologia da Aprendizagem, Psicologia do Desenvolvimento e da própria Psicometria" (p. 2).

Com a colaboração de Ralfy Mendes de Oliveira (1917-2008), também passou a coordenar o Serviço de Orientação Educacional e Profissional (Soep), que era um centro de psicologia aplicada a demandas educativo-laborais da cidade e região (Batista, 2022). A partir desse serviço, eram realizadas atividades de orientação educacional e de seleção e orientação profissionais mesmo antes da regulamentação da psicologia pela Lei n° 4.119.

Ora, aproximar-se da orientação educacional se constituiu como uma das principais estratégias para a atuação psicológica de Geraldo Servo, pois a promoção desses temas junto a escolas era incentivada pela Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (Cades). Dentre as ações dessa política do MEC, estavam a criação e o aprimoramento de serviços de orientação educacional (SOEs) e o financiamento de atividades para o desenvolvimento de estudantes em escolas públicas. Para Geraldo Servo, a Cades abria

[…] mais campo para a psicologia e estabelecendo os limites entre esta e o SOE. […] Com o patrocínio da Cades, […] Geraldo Servo chefiou 25 Missões Pedagógicas, instaladas em cidades grandes, quando uma equipe de oito psicólogos e orientadores, hospedados na cidade durante quinze dias, realizava curso para pais, curso para professores, atendimento de casos e principalmente orientação, sempre precedida da necessária informação profissional (Servo, 1997, p. 2).

O excerto elenca práticas profissionais empreendidas em SOEs que atendiam a finalidades psicológicas diversas, tais como "preventiva, escolar, clínica, emendativa, familiar e vocacional" (Servo, 1997, p. 2). A atuação do biografado nessas missões pedagógicas se estendeu pela década de 1960, quando também lecionou no curso de especialização em Orientação Educacional da faculdade são-joanense. Nesse curso, ele ministrou aulas de Psicologia da Criança e do Adolescente, Psicologia Dinâmica, Técnicas do Exame Psicopedagógico e Métodos de Orientação Educacional. Esse interesse também foi tema de sua participação no 2º Simpósio de Orientação Educacional em Porto Alegre, em julho de 1958. Nesse evento, ele relatou práticas de orientação educacional desenvolvidas na Itália e o modelo de dossier psicopedagógico criado para acompanhamento de casos atendidos na instituição são-joanense. Ele ainda debateu o papel do sistema preventivo salesiano no acompanhamento de escolares.

Ao longo de 1959, Geraldo Servo empenhou-se pela criação de um instituto que reunisse as atividades de ensino, pesquisa e serviços psicológicos prestados no laboratório experimental, no Soep e no Centro de Estudos Pedagógicos (Servo, 1964). A pedido dos dirigentes da FDB, tornou-se o primeiro diretor do recém-criado IPP em março de 1960, conduzindo a institucionalização da psicologia em São João del-Rei por quase uma década.

Entre 1963 e 1967, ele promoveu a expansão das atividades do IPP, consolidando-o como um centro de prestação de serviços de orientação (educacional e profissional) e de atendimentos clínicos. Deu-se também a criação de uma "escolinha para deficientes", precursora da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de São João del-Rei (Servo, 1964, p. 81). Dessa maneira, o crescimento do IPP representou a ampliação de sua equipe, composta de pedagogas e orientadoras educacionais reconhecidas como psicotécnicas, em razão de seus conhecimentos acerca da aplicação e correção de testes mentais e de outras técnicas psicológicas, e a reorganização desse centro especializado, que:

[…] teve que ser dividido em sete setores: curativo ou de psicologia emendativa, que cuidava dos menores abandonados, grande parte deles recolhidas à Escola Padre Sacramento; excepcional, para as crianças cuidadas dentro da Escolinha da Apae como outras atendidas em sistema ambulatorial; infantil, para atender à casuística encaminhada pelos médicos, principalmente pediatras e neurologistas ou até pelos próprios pais e professores; juvenil, para atendimento também de encaminhamentos médicos e escolares ou familiares; vocacional, que dedicou principalmente à área vocacional e profissional, atendendo a pedido de muitos colégios de Minas ou fora de Minas; escolar, intimamente associado à orientação educacional para problemas de aprendizagem ou ajustamento à escola; finalmente, o setor de adultos com orientação vital, orientação de casal e psicoterapia (Servo, 2000, p. 5).

A citação mostra o predomínio de serviços voltados a crianças, adolescentes e jovens, que, por vezes, eram submetidos a atividades de caráter emendativo e de ajustamento. Ao reverberarem uma psicologia classificatória e corretiva, a equipe especializada do IPP acolhia demandas formuladas por pais e professores que enfocavam o desenvolvimento - anormal ou patológico -, deficiências e problemas escolares do público atendido. Assim, destacavam-se as práticas de aconselhamento e orientação no cotidiano desse instituto.

Ao longo dos anos 1960, o IPP possibilitou a Geraldo Servo estabelecer relações com destacados intelectuais da época, tais como Antonius Benkö, Gildásio Amado, Halley Bessa, Helena Antipoff, Henrique Justo, Isaías Alves, Pedro Parafita de Bessa e Pierre Weil, além dos já citados Enzo Azzi e Lourenço Filho. Esses contatos exemplificam sua circulação entre personagens do campo educacional e psicológico, assim como de integrantes de governos no período. Ele ampliou igualmente sua rede de contatos internacionais por meio de curtas temporadas em países europeus. Por exemplo, ele estudou psicodinâmica da personalidade e psicologia da motivação com Joseph Nuttin (1909-1988) na Universidade Católica de Louvain entre outubro de 1961 e março de 1962, quando também percorreu os:

[…] principais centros europeus de Psicologia e, finalmente […] estágio e vivência no Centre International d'Études Pédagogiques, em Sèvres, Paris, com Mme. Hattinguais. O trabalho em Louvain se concentrou no curso de psicodinâmica da personalidade normal, mais tarde traduzido para português pelo próprio Geraldo Servo com o nome de Psicanálise & Personalidade (Servo, 2000, p. 4).

De julho a outubro de 1967, Geraldo Servo visitou centros de pesquisa em Budapeste, Haia, Londres, Viena, Paris, Praga e Roma e participou de um congresso internacional de psicologia aplicada (Servo, 2000). Em 1968, recusou o convite do canadense Paul Daunay, com quem tinha realizado "uma pesquisa sobre a motivação consciente com respostas dos sujeitos a trinta frases introdutórias indicativas das grandes expectativas que alimentam o psiquismo humano", para trabalhar na Universidade de Montréal, uma vez que já planejava se transferir para Brasília (Servo, 2000, p. 4).

A Participação Política em Entidades Profissionais e a Atuação como Profissional Liberal (1969-1999)

As tratativas para a transferência de Geraldo Servo para Brasília parecem ter começado no final da década de 1950. Em 1959, Ernesto Silva (1914-2010), diretor da Companhia Urbanizadora da Nova Capital, visitou o IPP para conhecer suas atividades, a convite do diretor do Colégio Dom Bosco brasiliense, padre Raimundo Nascimento Teixeira (1922-1998). Na ocasião, Ernesto Silva "pensou logo nas possibilidades de transferir para Brasília o que viu em São João del-Rei. Pelo menos, criar e dinamizar na capital federal um avançado campo de aplicação [da psicologia]", o que passou a acontecer com o envio de psicotécnicas para atuarem em escolas do Distrito Federal e a prestação de serviços psicológicos e de orientação em curtos períodos em 1963, 1965 e 1968 (Servo, 1997, p. 3).

Em 1963, Geraldo Servo esteve algumas vezes no MEC para acompanhar a tramitação do pedido de registro profissional de psicólogo, que lhe foi oficialmente concedido em agosto de 1965 (Ministério da Educação e Cultura, 1965). Ele também aprofundou sua relação com os primeiros psicólogos sediados em Brasília e encabeçou a criação da Sociedade de Psicologia do Distrito Federal (SPDF). Instituída em dezembro de 1967, a entidade "congregou psicólogos provenientes de várias regiões do Brasil com formação diversificada e procurou sempre divulgar a boa imagem do profissional do comportamento humano, defender seus direitos e impedir a invasão do campo por paraquedistas". Dentre suas pautas, a SPDF defendia a privatividade para aplicação de testes psicológicos para a habilitação a motoristas e a autonomia profissional em relação a médicos para o exercício de psicoterapia (Servo, 1997, p. 3). Essa entidade atuou politicamente junto a parlamentares para a aprovação da criação do conselho profissional da categoria.

A década de 1960 também foi decisiva para que Geraldo Servo optasse por deixar a vida religiosa, tendo sido autorizado a sair da comunidade salesiana em novembro de 1969 4. No mesmo ano, instalou-se definitivamente em Brasília, a fim de ocupar-se do magistério e trabalhar como psicólogo clínico. Inspirando-se no instituto são-joanense e nas atividades empreendidas no colégio salesiano da capital federal, deu início a trabalhos de orientação educacional, seleção profissional, treinamento e acompanhamento de pessoal em seu Instituto de Psicologia, Seleção e Orientação (Ipso), inaugurado em abril de 1970.

No início da década de 1970, Geraldo Servo lecionou na Universidade do Distrito Federal e no Centro Universitário de Brasília 5 em cursos de psicologia bastante influenciados pela disseminação do behaviorismo a partir da Universidade de Brasília (UnB) (Cândido, 2017). Diante disso, ele criticava o predomínio desse aporte teórico em detrimento de outras perspectivas e defendia uma formação de caráter generalista, em que o estudante pudesse entrar em contato com diferentes perspectivas psicológicas. Para ele, era fundamental "apresentar um curso […] estabelecendo experimentos, observando comportamentos, fazendo seus lançamentos de ocorrência para concluir pela mudança de comportamento da pessoa. Nós achávamos que era preciso que o aluno também tivesse a formação psicanalítica, a formação gestáltica, a formação não-diretiva" (Servo, 2000, p. 6). Assim, ele mostra sua preocupação relativa a riscos do ensino de apenas uma teoria psicológica em cursos de graduação, exemplificando as disputas teóricas concernentes a implementação do currículo mínimo para a graduação em Psicologia.

Em um curto período durante o ano de 1969, foi professor-visitante na UnB, onde também atuou como psicólogo concursado encarregado pela assistência psicopedagógica a estudantes. Essa rápida passagem se deveu ao "forte preconceito em relação à psicologia", pois "as autoridades temiam que se fizesse a cabeça dos jovens contra o regime [ditadura militar]. Os jovens, por sua vez, temiam que os psicólogos estivessem ali a mando do sistema" (Servo, 2000, p. 8).

Enquanto presidente da SPDF, Geraldo Servo participou de encontros preparatórios para a criação do CFP. Sobre esse processo, ele lembra que:

[…] foram realizadas três reuniões e programada uma quarta: a primeira, na Universidade de São Paulo, em julho de 1972; a segunda, na PUC do Rio de Janeiro, organizada pelos cariocas em dezembro de 1972; a terceira em Barbacena, no Hotel Grogotó por conta dos mineiros em julho de 1973. A quarta reunião seria em Brasília, bancada pela Sociedade de Psicologia do Distrito Federal e prevista para os dias 15 e 16 de dezembro de 1973. Esta, porém não aconteceu. Ou melhor, aconteceu, mas já efetivamente para eleger o Conselho Federal [de Psicologia] (Servo, 2000, p. 8).

Essas reuniões visavam "manter aceso o empenho de todos os psicólogos do Brasil, estudar estratégias e formar um espírito de corpo e de união em torno de um ideal comum" (Servo, 2000, p. 8). Conforme Soares (2010), os debates concerniam à redação de anteprojeto de decreto de regulamentação da Lei n° 5.766, que criou o CFP e os CRPs, e outras questões relativas ao exercício da profissão. O mesmo autor registra que as negociações junto a parlamentares e órgãos federais foi coordenada pela SPDF, que, no encontro de Barbacena, solicitou que se registrasse em ata um voto de louvor a alguns parlamentares, dentre os quais Clóvis Stenzel 6 (1924-2014), pelo comprometimento pela aprovação dessa lei (Soares, 2010).

Em 1972, os associados da SPDF escolheram Ady Álvares Correia Dias e Jansy Berndt de Souza Mello para representar a entidade na eleição do primeiro plenário do CFP, mas a participação dessas psicólogas foi proibida pela ditadura militar. Em documento confidencial, o Serviço Nacional de Informações (SNI) assegurou que as profissionais tinham sido escolhidas por orientação de Mariana Agostini de Villalba Alvim (1909-2001), que era tida como "um elemento com antecedentes ideológicos" danosos ao regime em razão de seu "forte comprometimento com o movimento comunista" (Serviço Nacional de Informações, 1972, p. 2). A militância política de Mariana Alvim já havia justificado seu afastamento do Serviço de Seleção e Orientação da UnB, em 1965 (Souza, 2021). Mais tarde, em meio aos preparativos para a eleição do CFP, o SNI afirmava que "quase todos os membros inscritos na Sociedade [SPDF], em Brasília, trabalha[va]m sob a supervisão de Mariana Alvim no Serviço de Psicologia do Distrito Federal" (SNI, 1972, p. 1), tornando-a um contato "prejudicial ao Conselho em formação" por estar intimamente ligada a "tentativas das esquerdas em dominarem as Sociedades de Psicologia e o Conselho Nacional de Psicologia" (p. 2).

A perseguição sofrida por Ady Álvares Correia Dias e Jansy Berndt de Souza Mello foi orquestrada pelo deputado Clóvis Stenzel, que havia ficado em terceiro lugar na lista de representantes da entidade brasiliense. Na reunião em que as delegadas foram escolhidas,

[…] inconformado com a não escolha de seu nome, CLÓVIS STENZEL externou que iria envidar esforços no sentido de impedir que os delegados de Brasília tivessem assento no Conselho em formação, uma vez que representavam uma ala esquerdista da Sociedade de Psicologia do Distrito Federal, cuja líder seria MARIANA AGOSTINI DE VILLALBA ALVIM (Serviço Nacional de Informações, 1974, p. 2).

Essa citação deixa evidente que as ações de Clóvis Stenzel repercutiam os valores do regime totalitário e sustentavam o clima de desconfiança em relação à profissão de psicólogo. Entretanto, a interferência militar sobre a composição do CFP não se sustentava em bases concretas nem mesmo para a própria ditadura: em outro relatório de circulação restrita, lê-se que, depois de buscas junto a agências do SNI e do Departamento de Ordem Política e Social, não foram encontrados registros negativos ou informações que, aos olhos da ditadura militar, impossibilitassem a participação das psicólogas no pleito (Serviço Nacional de Informações, 1973).

Em suas palavras, Geraldo Servo atuou como "parte e testemunha dessa pressão" exercida pela ditadura sobre a entidade brasiliense que presidia (Servo, 2000, p. 9). Ele relata que, na sexta-feira, 7 de dezembro de 1973:

[…] foi convocado por telefone ao Ministério do Trabalho para encontrar-se com o Dr. Waldir Menezes, delegado do ministério, e General Luiz Vieira, chefe do Serviço Nacional de Informações. Bastante lacônicos, as duas autoridades fizeram Geraldo Servo saber que fora dado o "sinal verde" para a eleição do Conselho, que poderia ser convocada para o dia 20 de dezembro, mas o SNI exigia que fossem trocados seis delegados por razões de segurança. […] se algum dos ‘excluídos' ousasse comparecer, seria retirado à força da sala de eleição e esta ficaria suspensa (Servo, 2000, p. 9).

Os agentes do regime determinaram que fossem substituídos delegados de entidades de Ribeirão Preto, do estado da Guanabara e do Distrito Federal. Em outro trecho, Servo conta que lhes solicitou um documento escrito que pudesse ser endereçado aos representantes que seriam suspensos, o que "foi-lhe terminantemente recusado […] não havia como medir forças com o SNI e os colegas ‘excluídos' haveriam de entender aquela ‘perda necessária dos poderes delegados' que seriam transferidos para outros colegas […]" (Servo, 2000, p. 9).

Diante da proibição de que participassem da eleição do primeiro plenário, Ady Álvares Correia Dias e Jansy Berndt de Souza Mello encaminharam cartas de protesto a órgãos ministeriais em 18 e 19 de dezembro de 1973, bem como redigiram um ofício para informar os associados da SPDF acerca do acontecido. Na mesma oportunidade, elas solicitaram acesso aos documentos emitidos pela SPDF que lhes autorizava exercer o cargo de delegadas na eleição do CFP e solicitavam reunião extraordinária da entidade brasiliense, que não chegou a acontecer. Elas ainda acusavam a cumplicidade de Geraldo Servo com o regime, afirmando que "seu comportamento frustrou a sociedade [SPDF] da qual é presidente de uma participação no pleito que se realizará amanhã [20 de dezembro de 1973]" (Divisão de Segurança e Informações, 1973, p. 15). Essas manifestações não alcançaram seus objetivos.

Em 20 de dezembro de 1973, deu-se a eleição "em clima de total unanimidade e no tempo recorde de 1h30 tomado mais para cumprimento de formalidades, discursos e assinaturas" (Servo, 2000, p. 10), tendo sido escolhidos como membros efetivos Arrigo Leonardo Angelini (1924-2024), presidente; Virgínia Leone Bicudo (1910-2003), vice-presidente; Geraldo Servo, secretário, e Halley Alves Bessa, tesoureiro (Conselho Federal de Psicologia, 1973) Nesse pleito, Clóvis Stenzel foi eleito como secretário suplente, cargo que ocupou entre 17 de agosto de 1975 e 20 de dezembro de 1976. Nessa direção, Geraldo Servo detalha que:

Essa eleição […] foi preparada com entendimento entre os delegados para ser chapa única e assim nós conseguimos fazer uma reunião relâmpago dentro do Ministério do Trabalho, presidida pelo Dr. Waldir Menezes, representante do Ministério, com a presença de agentes do SNI para ver o que acontecia. Havia, naquele dia, a ameaça de ser preso e retirado do local algum delegado que comparecesse e não tivesse seu nome aprovado pelo Governo. Naquela época, a ditadura tinha muito preconceito com psicólogo e sociólogo. Nessa eleição, pelo fato de morar aqui, ter aqui o meu Instituto e aqui exercer essa liderança, eu fiz parte não só da chapa dos membros efetivos, como também acabei sendo da primeira diretoria na condição de secretário, mesmo porque o Conselho quando começou não tinha numerário e precisava de apoio logístico que meu Instituto tinha condições de dar (Servo, 2000, p. 6).

A citação registra o clima de suspeição que recaía sobre os psicólogos e o órgão da categoria que avançava em sua formalização, haja vista os acordos prévios para a composição da chapa eleita e a rapidez com que os procedimentos eleitorais foram encaminhados. Neste caso, destaca-se o papel exercido por Waldir Menezes, que interveio sobre o processo desde a exclusão de delegados, passando pela composição de chapa até a eleição. Percebe-se também a precariedade do funcionamento inicial do CFP, que ocupou provisoriamente algumas salas do Ipso, até que fosse instalado em sede própria adquirida durante a primeira gestão (Angelini et al., 2012). Ainda que o pleito tenha ocorrido em ambiente bastante inapropriado, "Dr. Waldir Menezes referiu-se elogiosamente ao fato. Fomos todos comemorar num restaurante, almoçando juntos, pagando cada um próprio do seu próprio bolso" (Servo, 2000, p. 10).

A partir da segunda metade da década de 1970, Geraldo Servo se afastou de atividades junto ao CFP e do magistério, passando a ocupar-se exclusivamente de seu instituto. Auxiliado pela psicóloga Hélia Ribeiro de Sá (1926-2023), ele prestava diferentes atividades de caráter psicológico, tais como seleção e orientação profissional, psicodiagnóstico, psicoterapia e aconselhamento psicológico, para a iniciativa privada e a órgãos públicos e eclesiásticos. A atuação de Geraldo Servo como profissional liberal não está amplamente registrada nos documentos pesquisados.

Geraldo Servo se aposentou em 1999 após mais de 30 anos de exercício profissional ininterrupto como psicólogo. Em 23 de janeiro de 2001, ele faleceu em Brasília.

 

Considerações Finais

Em retrospectiva, esta biografia de Geraldo Servo mostra que a profissionalização da psicologia no Brasil ocorreu em um contexto engendrado por distintos fatores e caminhos pessoais vividos pelos primeiros psicólogos reconhecidos pela legislação do país.

Na década de 1940, seus primeiros contatos com a psicologia científica aconteceram em institutos salesianos brasileiros e italianos e demonstram o papel de instituições e personagens ligados à Igreja católica na primeira metade do século passado. Em consonância com a alusão de Lourenço Filho (1955/2014) ao papel de Carlos Leôncio da Silva e de outros líderes católicos para a institucionalização da psicologia no país, esta biografia assinala a importância da rede de sociabilidade existente entre esses intelectuais para que Geraldo Servo pudesse cursar o mestrado no Pontifício Ateneu Salesiano. Esses personagens intervieram sobre as trajetórias de outros homens (e.g., João Modesti e Alfredo Carrara de Melo) e mulheres (Maria Lygia Rodrigues Leão, Hélia Ribeiro de Sá, Balduína Senra Delgado e outras), cujas biografias, quando devidamente analisadas, poderão contribuir para compreender os meandros da profissionalização da psicologia no interior brasileiro.

Em sua primeira estada europeia, o biografado entrou em contato com debates a respeito do objeto de estudo da psicologia, procurando alinhar-se ao pensamento eclesiástico. Nessa época, ele estudou teorias psicológicas - psicologia filosófica, psicologia experimental e psicologia aplicada - formuladas desde o final do século XIX, procurando conhecer suas contribuições para a educação integral de crianças, adolescentes e jovens. Ao retornar ao Brasil, atuou como mediador dessas perspectivas teóricas ao recorrer a seus princípios científicos para investigar e intervir sobre problemas locais. Em São João del-Rei, lecionou disciplinas psicológicas em cursos de formação de pedagogas e orientadoras educacionais e participou ativamente da criação e direção de institutos especializados. Nesse sentido, ele reconheceu o papel do Instituto de Psicologia Experimental do Ateneu Salesiano e de outros centros europeus para a organização do Instituto de Psicologia e Pedagogia e a delimitação de crianças e adolescentes como seu público prioritário (Servo, 1964).

A mudança de Geraldo Servo para Brasília mostra o processo de interiorização da psicologia pelo país durante a década de 1970. A literatura mais recente considera que a criação de estabelecimentos de ensino superior e de centros especializados e as publicações da mídia impressa favoreceram a consolidação da psicologia no centro-oeste do país. De um lado, a psicologia era reconhecida como uma profissão liberal, moderna e urbana, destinada prioritariamente ao público feminino e à classe média; de outro, era vista com desconfiança e enfrentava embates ideológicos em relação aos valores disseminados pela ditadura militar. Dessa maneira, a atividade docente e o curto período em que Geraldo Servo trabalhou no serviço de assistência psicopedagógica da UnB assinalam a importância das práticas profissionais e do ensino universitário de disciplinas psicológicas para o reconhecimento social da psicologia como uma profissão. Ainda sobre o ensino universitário de psicologia, percebe-se que, se nas décadas de 1940 e 1950, os debates entre a psicologia experimental e a psicologia aplicada a temas educacionais se evidenciavam como tema de interesse. Nos anos 1960 e 1970, a disseminação da psicologia clínica e de teorias ligadas ao behaviorismo se consolidavam no cenário brasileiro.

Em Brasília, Geraldo Servo também assumiu sua faceta política, encarregando-se da criação de uma das mais antigas entidades profissionais do país (a SPDF), que ainda não foi devidamente investigada pela historiografia da psicologia brasileira. Essa entidade reuniu os primeiros psicólogos residentes e formados na capital federal e esteve representada nas reuniões que antecederam à implantação do CFP. Sua liderança junto à principal entidade da categoria sediada na capital federal colocou-o como personagem da intervenção da ditadura militar na eleição do primeiro plenário do CFP. Esse evento exemplifica as contradições a que os primeiros dirigentes dessa autarquia estavam expostos, uma vez que, sob risco pessoal, submeteram-se a ação de representantes do regime ditatorial na implantação do conselho profissional. Indica-se a necessidade de que outros estudos possam elucidar as redes de sociabilidades e as relações - formais e informais - existentes entre a psicologia e o regime militar brasileiro durante a década de 1970 (Souza, 2023).

É evidente que a trajetória biográfica de um personagem, mesmo que apenas em seus aspectos acadêmicos e profissionais, não pode ser apresentada plenamente em um breve artigo científico. Ainda assim, espera-se que esta pesquisa tenha permitido "conhecer os muitos eventos que afetaram […] vidas e, de tal modo, que continuam presentes na agenda atual" (Schwarcz & Starling, 2015, p. 19), tais como o papel de intelectuais ligados - diretamente ou indiretamente - à Igreja Católica para a consolidação da psicologia e a importância do campo educacional para seu reconhecimento como ciência e profissão no Brasil. Espera-se que novas contribuições se juntem ao esforço historiográfico desta investigação de modo a narrar a trajetória de profissionais da psicologia brasileira e documentar as especificidades de suas histórias de vida e trabalho.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rodolfo Luís Leite Batista - rodolforllb@ufjf.br

Recebido em: 07/07/2024
Aceito em: 26/09/2024

 

 

Notas

1 Desde sua instalação em São João del-Rei em dezembro de 1939, os salesianos criaram algumas instituições de ensino, quais sejam: (a) o Colégio São João para a escolarização de meninos e rapazes interessados pela vida religiosa, inaugurado em janeiro de 1940; e, (b) o Instituto de Filosofia e Pedagogia, que passou a funcionar em fevereiro de 1948 para a formação superior de salesianos. Esse instituto deu origem à (c) Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, oficializada pelo Decreto n° 34.392, de 27 de outubro de 1953.
2 De acordo com Ferraz (2014), Giacomo Lorenzini (1909-2001) e João Modesti (1919-2005) conduziram a aquisição de um laboratório experimental para a Faculdade Salesiana de Lorena entre 1952 e 1954. É bastante provável que o padre Carlos Leôncio da Silva (1887-1969) também tenha participado dessas negociações, pois havia se tornado diretor dessa instituição depois de dirigir o Instituto Superior de Pedagogia do Pontifício Ateneu Salesiano, em Turim, por quase uma década. Ele era então o principal responsável pela indicação de salesianos brasileiros que estudariam no ateneu italiano e outras universidades europeias. Em outubro de 1954, o laboratório experimental foi inaugurado com uma conferência de Lourenço Filho (1897-1970), uma aula prática de Enzo Azzi (1921-1986) e uma palestra de João Modesti (Ferraz, 2014).
3 Inaugurado em agosto de 1951, esse instituto era dirigido pelo médico italiano Enzo Azzi (1921-1986), que havia se transferido para o Brasil por indicação de Giacomo Lorenzini (Brandão, 2006). Dentre as diversas atividades do Ippuc, destacavam-se: o ensino de psicologia experimental, de psicologia educacional, de caracterologia e outras disciplinas psicológicas; as pesquisas de psicologia da criança e do adolescente; e a aplicação de técnicas psicológicas para estudar o desenvolvimento infanto-juvenil e suas implicações educacionais.
4 Os documentos consultados não explicitam os motivos pelos quais Geraldo Servo deixou a vida religiosa, registrando apenas que sua saída da congregação salesiana foi oficializada em maio de 1972.
5 Nessas instituições, lecionou diferentes disciplinas, quais sejam: Psicologia Geral, Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia da Personalidade, Dinâmica de Grupo, Técnicas de Exame Psicológico e Teorias e Técnicas Psicoterápicas.
6 Psicólogo graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em 1965, Clóvis Stenzel então exercia seu segundo mandato como deputado federal pela Aliança Renovadora Nacional (Arena), ocupando a vice-liderança do partido de sustentação da ditadura na Câmara dos Deputados.

 

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