Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e84423, doi:10.12957/epp.2025.84423
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

Uma Interpretação Possível da Tatuagem para Alguns Adolescentes em Conflito com a Lei

 

A Possible Interpretation of Tattoos for Some Teenagers in Conflict with the Law

 

Una Posible Interpretación del Tatuaje para Algunos Adolescentes en Conflicto con la Ley

 

Pedro Teixeira Castilho a

a Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Qual é o significado das tatuagens feitas por alguns adolescentes em conflito com a Lei? A partir da observação e da escuta, pretendemos demonstrar que alguns adolescentes em conflito com a lei estabelecem sentidos importantes às tatuagens. A preferência por tatuar frases como "Amor só de mãe" e "VidaLoka" têm efeitos significativos para alguns sujeitos: construção subjetiva de um corpo, nomeação e laço social. Para darmos conta desse percurso, vamos nos dedicar à função da tatuagem para alguns adolescentes envolvidos no tráfico de drogas e às vicissitudes do ato de tatuar como modo de incorporação, utilizando os conceitos de "contingência" e "nomeação", de Jacques Lacan. A noção de imaginário para a teoria lacaniana será uma das referências para compreendermos este fenômeno em alguns casos de adolescentes. Pretendemos demonstrar que a categoria de "contingência", do último ensino de Lacan, expõe um modo de construção corporal a partir da noção de real e de político na ação de tatuar.

Palavras-chave: adolescência, adolescentes em conflito com a lei, psicanálise, tatuagem, contingência.


ABSTRACT

What is the meaning of tattoos made by some teenagers in conflict with the law? From the observation and listening to these teenagers, we intend to demonstrate that some of them establish important meanings for tattoos. They show some preference for tattooed phrases such as "No love like mother's love" and "VidaLoka". These preferences have significant effects for some of these teenagers: subjective construction of a body, naming and social bounds. In order to understand this meaning, we will investigate the function of tattooing for some adolescents involved in drug trafficking and the vicissitudes of the act of tattooing as a means of incorporation, based on the concept of "contingency" and "naming" by Jacques Lacan. The notion of the imaginary for Lacanian theory will be one of the references to understand this phenomenon in some adolescents. We intend to demonstrate that the category of "contingency", from Lacan's last teaching, exposes a way of bodily construction based on the notion of the real and the political in the action of tattooing.

Keywords: adolescence, teenagers in conflict with the law, psychoanalysis, tattoo, contingency.


RESUMEN

¿Cuál es el significado de los tatuajes que se hacen algunos adolescentes en conflicto con la ley? A partir de la observación y la escucha de estos adolescentes pretendemos demostrar que algunos de ellos establecen significados importantes para los tatuajes. Muestran cierta preferencia por frases tatuadas como "Amor solo por la madre" y "VidaLoka". Estas preferencias tienen efectos significativos para algunos de ellos: construcción subjetiva de un cuerpo, nominación y lazos sociales. Para comprender estos significados, investigaremos la función del tatuaje para algunos adolescentes involucrados en el narcotráfico y las vicisitudes del acto de tatuar como modo de incorporación, a partir del concepto de "contingencia" y "nominación" de Jacques Lacan. La noción de imaginario en la teoría lacaniana será una de las referencias para comprender este fenómeno en algunos casos de adolescentes. Pretendemos demostrar que la categoría de "contingencia", de la última enseñanza de Lacan, expone un modo de construcción corporal a partir de la noción de lo real y lo político en la acción de tatuarse.

Palabras clave: adolescencia, adolescentes en conflicto con la ley, psicoanálisis, tatuaje, contingencia.


 

 

O que há de mais profundo é a pele.
Paul Valéry, L`Idée fixe

 

A tatuagem é o tipo de mudança corporal mais utilizado e cultuado em várias culturas no mundo. Ao longo da história, podemos observar vários sentidos atribuídos à tatuagem e à sua prática. Estudos antropológicos e etnográficos demonstram que, em cada cultura e em cada época, diferentes tratamentos, leituras e interpretações existiram acerca da tatuagem, recebendo, assim, incontáveis sentidos em cada contexto. Contudo, uma definição preliminar dessa prática seria: a tatuagem é uma marca corporal.

A tatuagem é uma arte que utiliza a pele do corpo como suporte e que consiste na aplicação, por meio de agulhas, de pigmentos coloridos ou não. A etimologia da palavra "tatuagem" remete à antiga língua do Taiti, significando o ato de desenhar. A partir desse ato, o corpo passa a ser modelado e construído com as interferências vindas de outro. A mudança corporal, nessa perspectiva, passou a ser um lugar-comum. Ressalte-se, ainda, que, se nas sociedades tradicionais a tatuagem é uma forma de inscrever em si uma filiação, as marcas contemporâneas têm uma referência à individuação e à estetização (Le Breton, 2013, p. 45). Em se tratando do ato de tatuar praticado por adolescentes em conflito com a lei, temos uma conotação específica que pretendemos percorrer a partir da psicanálise e da teoria social.

A definição de adolescência é múltipla e, às vezes, contraditória. O que se pode dizer, de maneira geral, é que essa fase da vida é uma construção que considera questões biológicas (puberdade), psicológicas (adolescência) e sociológicas (juventude). Todavia, como podemos perceber a construção "ser adolescente" para os sujeitos que vivem na realidade do tráfico de drogas? Queremos nos ater aqui à adolescência e ao ato de tatuar na prática desses sujeitos. Qual é o efeito de se tatuar para os adolescentes em conflito com a lei?

Temos, assim, duas questões importantes a tratar neste artigo: a tatuagem e o adolescente em conflito com a lei. Especificamente, pretendemos abordar o que está em jogo no ato de tatuar praticado por adolescentes envolvidos no tráfico de drogas nas médias e grandes cidades do Brasil. Nossa proposta é buscar compreender o que esse ato representa para esses adolescentes no tocante às relações que eles estabelecem com seus corpos.

Para darmos conta desse percurso, vamos nos dedicar à função da tatuagem para os adolescentes envolvidos no tráfico de drogas e às vicissitudes do ato de tatuar como modo de incorporação, a partir do conceito de "contingência", de Jacques Lacan.

A questão da contingência será trabalhada na segunda parte deste artigo, para, em seguida, apresentarmos a construção sobre o Real na teoria lacaniana, que aparece a partir do modo de produção capitalista, juntamente com seus efeitos no apagamento da tradição e da cultura. Pretendemos entender a questão da tatuagem no universo desses adolescentes em conflito com a lei, numa hipótese inicial, como um modo de criar uma identidade diante de um Real sem lei, que pode ser assimilado apenas a partir da contingência, visto que vários desses sujeitos prescindem do Nome-do-Pai na sua constituição psíquica.

Adolescentes Envolvidos no Tráfico e a Função da Tatuagem

Sabemos todos que os escritos bíblicos proibiram o ato de tatuar, interpretando essa ação como invasão de um corpo que tem função sagrada: "[…] você não vê nenhuma escritura no corpo de um homem morto e você não pode se tatuar" (Lv 19, 28). Para os escritos sagrados, a superfície corporal não pode ser uma superfície de inscrição; o corpo é algo puro e sagrado, a tatuagem é uma das versões da impureza do corpo. A tatuagem é um ataque à integridade do corpo e, portanto, um ato de transgressão.

Nas sociedades originárias, os rituais de iniciação consistiam em tatuagens simbólicas, inscrevendo o corpo carnal na comunidade de referência, como se os jovens, de maneira coletiva, pudessem passar de um momento para outro. A tatuagem, para essas culturas, é um ato iniciático; o sujeito é aceito na comunidade por essa marca de identificação e de filiação. Esses rituais constroem um momento necessário e propício, que leva ao amadurecimento social, mediante uma série de etapas, determinado por hábitos (Beneti, 2012). Eles colocam em jogo a identidade social de gênero, instituindo o masculino e o feminino. Nesse sentido, muitas vezes escondem a adolescência e efetuam uma transformação da criança em homem ou mulher.

Os critérios que prenunciam a passagem para a maturidade social diferem de uma sociedade para outra. As sociedades de formação não originária ignoram, como fundamento, os ritos de iniciação. Nas sociedades tradicionais, os ritos masculinos são privilegiados se comparados aos femininos (Benedict, 1950). Em culturas ocidentalizadas, nas quais a responsabilidade é individualizada, os jovens se tatuam fora desse contexto ritualístico coletivo. Na ausência de serem iniciados e guiados por rituais, eles inventam seus próprios ritos de iniciação, e a tatuagem é um deles. Todavia, de maneira contrária, para os jovens em conflito com a lei, vê-se que estão tentando uma filiação.

Algumas tatuagens, tanto em seu grafismo quanto em sua simbologia, produzem um efeito subjetivo em alguns jovens em situação de conflito com a lei de criarem a sua própria mitologia. Dito de outra maneira, alguns jovens não estão mais operando como um rastreamento de insígnias da transmissão da geração dos pais, não mais se referindo à história da sua comunidade, a tatuagem resiste à sua função de ritual simbólico, produzindo um nome próprio que o encontro contingencial da vida desses jovens traduziu em imagem e/ou palavra. Onde a inscrição da transmissão do Nome do Pai falha, a tatuagem e/ou nomeação, em alguns casos, vem suplantar a falha simbólica por meio de um encontro contingencial.

O jovem busca uma passagem, impõe atos para encontrar indícios de sua existência, testando sinais de reconhecimento, traços de diferenciação. Mas, quando ele só pode contar com seus pares, ele tem que repetir constantemente a operação: mutilar seu corpo, da cabeça aos pés, por meio de inscrições que, embora indeléveis, persistem em não inscrever nada que lhe permita habitar seu corpo. Essa marcação no corpo equivale a uma gravura, mas a tatuagem não é uma forma de ganhar seriedade face ao sistema societário contemporâneo, que, ao se tornar mais fluido, é prontamente aliviado dos pilares fundadores, sem qualquer outra forma estável de ponderação (Lacadée, 2010). A adolescência é uma fase de grandes mudanças, mas, em se tratando de alguns poucos adolescentes envolvidos com o tráfico de drogas, a tatuagem tem uma conotação específica.

Os adolescentes das periferias das grandes cidades brasileiras são o equivalente contemporâneo dos órfãos produzidos depois das duas grandes guerras mundiais: jovens abandonados pela sociedade e que passam por graves problemas psíquicos, em decorrência de problemas sociais, culturais e familiares. No contexto brasileiro, na sua maioria, são negros e pardos que sofrem segregação social, racial e econômica, que estão inseridos em um tipo de sociedade extremamente desigual. Em 2020, segundo a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), cerca de 105 mil adolescentes estavam sob aplicação de medidas socioeducativas no país. Esse número corresponde a 0,24% do universo da população de adolescentes e jovens entre 12 e 18 anos, portanto, um índice já bastante alto.

Dessa maneira, propomos uma discussão crítica e atualizada acerca dos adolescentes envolvidos no tráfico de drogas, bem como sobre os efeitos da tatuagem para esses jovens, tomando-os sempre no espaço que ocupam, permeado de conflitos, contradições, práticas excludentes e discursos ambíguos. Essa reflexão aponta para a necessidade de compreensão do cenário de violência e das formações dos grupos que envolvem adolescentes nos grandes centros, e para as maneiras pelas quais esses jovens lançam mão do corpo para se nomearem diante de suas realidades. Nesse sentido, interessa não apenas o caráter sociológico e da teoria política, mas também os aspectos da psicanálise, juntamente às concepções de corpo dessa teoria e às marcas reais no corpo desses sujeitos.

Em se tratando do adolescente em conflito com a lei, a marca da subjetividade é a turbulência e a errância (Douville, 2008). A dificuldade de encontrar, desde o início, uma versão de si gera muita tensão. O adolescente redefine seus limites com os outros, entra em uma longa fase de oposição em que busca diferenciar-se, a começar pelo corpo, pela cor e pela raça, encarnando em sua existência uma forma de transgressão. A afirmação de uma singularidade e a inscrição em corpo próprio não são feitas sem viver tensões com o social ou com o grupo. Suas roupas, seu visual, suas tatuagens, seus piercings ocupam um lugar privilegiado.

Durante os 15 anos de experiência como psicanalista e professor pesquisador com adolescentes em conflito com a lei, o autor deste artigo, em alguns casos, vem observando e escutando (Hutz & Koller, 1999) alguns adolescentes em conflito com a lei que estabelecem sentidos importantes às tatuagens e ao ato de tatuar.

A preferência por frases como "Amor só de mãe", em geral, acompanhadas do nome da mãe escrito nos braços, assim como a expressão "VidaLoka", imperativo de um tipo de vida para esses sujeitos, produzem um efeito importante para alguns sujeitos, que pretendemos aqui descrever e compreender este fenômeno. Durante esse longo trabalho clínico com esses jovens, o autor do texto percebeu que alguns deles fizeram escolhas particulares e singulares no ato de tatuar seus corpos a partir dessas frases.

Uma das interpretações possíveis da frase "Amor só de mãe" é que ela expressa que o único laço vislumbrado com o Outro é referenciado na mãe. Os corpos parecem poder se prender apenas a esse sentido, além do fato de a frase traduzir, com eficácia, a permanência e a mutação do mito do amor materno na contemporaneidade, ao lado do discurso da mulher moderna que deixa de ser mãe. O nome da mãe escrito no braço segue o mesmo caminho. A mãe é garantia de amor, talvez o único amor que esses sujeitos receberam e pensam que receberão em suas vidas.

O termo "VidaLoka" surgiu na Califórnia (Heissler & Gurski, 2020), advindo das gangues porto-riquenhas, e, de maneira geral, representa um estilo de vida compartilhado por milhares de adolescentes brasileiros, tendo sido consagrado no título de uma música do grupo de rap, Racionais MC's, no disco Nada como um dia após o outro dia. No Brasil, quando certo número de adolescentes envolvidos com o tráfico tatua os termos "VidaLoka", "Amor só de mãe" e o nome da própria mãe, temos um significado específico para essa prática.

"VidaLoka" surge como uma gíria dos guetos, para unificar e nomear a experiência de vida desses jovens. Essa expressão permite a ligação entre o crime e a vida da periferia, mas, antes de tudo, ela carrega um signo de existência. Trazendo o linguajar da favela para o corpo, configura, ao mesmo tempo, uma subversão da linguagem comum. A escrita se apresenta como uma locução não dicionarizada. A palavra lokaaparece grafada com a letra "K", à época assimilada do inglês, e sem a letra "U", corrompendo a norma-padrão da língua portuguesa. A pronúncia, assim, se origina do espanhol "loca" (como para os porto-riquenhos), mas também transmite à escrita a marca de oralidade das ruas.

O nome "VidaLoka" é bastante utilizado na periferia, revelando um modo de vida que seria o contrário de outra nomeação corrente entre os jovens da periferia: o "Zé". Este seria aquele adolescente anônimo que prefere ter um subemprego e viver uma vida de trabalhador - como pedreiro, trocador de ônibus, garçom - para servir à classe dominante. O "VidaLoka" seria o transgressor, que denuncia as desigualdades sociais no Brasil. Aos moldes de um salvador jihadista, que prefere atentar contra do que servir à sociedade com um trabalho submisso.

O "VidaLoka", que se confunde com o traficante na favela, também ajuda a sua comunidade. Ele dá remédios a uma mãe que precisa para seu filho, oferece segurança aos moradores, financia os bailes funk, os times de futebol e as milícias, além de ser o mais desejado entre as adolescentes. Outro sentido importante para esses adolescentes seria o signo do palhaço, que, em uma tatuagem, traz a referência de que o sujeito tatuado matou um policial.

Desse modo, entendemos que, em alguns casos, no ato de tatuar há a construção de um corpo para o adolescente em conflito com a lei. A errância do adolescente contemporâneo demonstra um sujeito sem reconhecimento social e sem o registro psíquico de uma imagem corporal organizada. Assim, os vemos em situação de rua, emigrantes, pichadores e adolescentes em conflito com a lei, como sujeitos errantes, sem orientação de espaço geográfico e também de um espaço corporal. Essa errância desqualifica um elemento central no campo da identificação. Ela não é marginal ou nômade. O comportamento errante é um modo de subjetivação de um sujeito que vai de um ponto para outro, sem se fixar, este sujeito não se aliena no desejo do Outro. A tatuagem produz um território corporal que faz laço com o Outro, pleiteia um corpo que possa nomear-se na cidade e nos grupos sociais, criando uma territorialidade na perspectiva física e subjetiva.

O comportamento errante entre os adolescentes ocorre sem um movimento metonímico que se desloca constantemente. Os mecanismos de deslocamento são muito mais presentes que os de condensação e de fixação, os pontos de referência são raros para esses sujeitos. Os mecanismos de consciência corporal, juntamente às fixações, correspondentes à noção de um eu separado do grupo, praticamente desaparecem. O mal-estar atual se evidencia, sobretudo, como dor, que se inscreve nos registros do excesso, do corpo (ato de se tatuar) e da ação. Podemos pensar que, na contemporaneidade, a dor pode ser um dos caminhos da consistência corporal, pela via da fantasia masoquista de ser resto da família e da sociedade.

De forma geral, sabemos que, contemporaneamente, os adolescentes aderem a signos voláteis - signos do seu mundo - e os consagram como dignos de sua servidão. Esses jovens carregam um sofrimento que os leva a se apegarem ao seu próprio corpo para não se perderem de si. O corpo é um único lugar para onde esses sujeitos podem fugir. O ato de tatuar o próprio corpo é uma maneira de frear ou conter um gozo que é pura pulsão de morte, para que esses sujeitos não desapareçam de si. Ao marcar o seu corpo, faz a extração de uma angústia e de um gozo que poderiam estar sufocando, criando uma posição subjetiva que faz corpo para si e para o espaço social. O ato de tatuar produz, assim, certo apaziguamento porque apresenta um signo no corpo.

A Socialização pelo Sintoma em A Vizinhança do Tigre

O filme A vizinhança do Tigre, dirigido por Affonso Uchôa, apresenta um grupo de adolescentes na periferia de Contagem, cidade da Grande Belo Horizonte. Esse não é mais um filme sobre favela, com tiros e perseguições para a classe média se entreter. É um filme que tem uma marca do tempo, que passa lentamente, e não quer fazer o telespectador se divertir. Ele retrata a vida dos adolescentes nas periferias das grandes e médias cidades brasileiras. São jovens que se localizam na periferia da periferia. Poderia se tratar de qualquer lugar, pois a ausência de uma representação espacial é algo importante nessa realidade. Realidade que se apresenta como um lugar vazio e sem qualquer possibilidade de se tirar algum proveito diante do contexto em que esses sujeitos estão inseridos.

Hélène Deltombe (2010) estudou os novos sintomas articulados ao laço social e observou que eles podem se converter em fenômenos de massa e até mesmo epidemias de grupo e de toxicomania. A autora coloca na mesma série a anorexia-bulimia, a delinquência e os suicídios em série de adolescentes.

Essa socialização dos sintomas dos adolescentes nos parece importante: "a adolescência como momento em que a socialização do sujeito pode se fazer sob o modo sintomático" (Deltombe, 2010, p. 12). Para os adolescentes de A vizinhança do Tigre, o recurso à fantasia e a brincadeira são frequentemente utilizados como maneira de suportarem a realidade que nada pode oferecer para eles. As referências paternas desses sujeitos são inexistentes e as maternas são escassas. Sujeitos que se chamam por apelidos ou apenas por Zé são frequentes nas evocações: "Seu nome não está em lugar nenhum, nem em uma ‘caixa de fósforo'", diz um vizinho do adolescente Tigre.

As instituições não estão presentes como forma de laço social para esses jovens. "Eu matava aula, mas agora não mato mais, nem aula tem", diz um adolescente no filme. A ideia de que o Outro não existe é uma das razões para criar um laço social. A escola, a família ou a religião, que poderiam exercer uma forma de laço para esses adolescentes, não chegam nesses lugares e, tampouco, conseguem produzir uma demanda para esses sujeitos.

Frequentemente, a realidade da vida no tráfico se apresenta como um recurso possível na formação de grupos que se apresentam como uma possibilidade de criar laço social a partir de um eixo horizontal muito eficaz. Os ideais e as identificações com os adultos raramente ocorrem. A horizontalização das relações se faz possível porque a crença no Outro é inexistente.

No filme, cada um cria uma saída individual diante desse momento de passagem que é a adolescência. Um apresenta a fantasia de ser chefe da boca do tráfico, sem necessariamente ser verdade; outro acaba criando uma saída possível, com um grupo de skatistas e, um terceiro, resolve sair de casa e apostar na sorte e na imprevisibilidade que a vida pode oferecer. O momento que estão atravessando é semelhante - a passagem da adolescência -, mas percebemos que as saídas são individuais.

Affonso, o diretor do filme, utiliza/convida adolescentes reais para atuarem no seu filme representando suas próprias vidas. Em A vizinhança do Tigre, a vida desses sujeitos se mistura na tela, entre cenas de brincadeiras, fantasias e a realidade do tráfico, da miséria e da precariedade. Esses adolescentes, do filme e da vida real, demonstram que as angústias psíquicas se convergem cada vez mais para os registros do corpo, da ação e das intensidades, nos quais a passagem ao ato começa a imputar a dinâmica psíquica, com descargas sobre o corpo, e a ação evidencia a pobreza dos processos de simbolização.

Ao mesmo tempo, brincam de pegar abacate e mexerica no lote vago do bairro, andam de skate, cantam músicas, fumam um baseado, pintam a cara, desenham o corpo, traficam e usam armas, fazendo disso tudo uma maneira de construir um laço com outro, já que a dimensão simbólica é praticamente inexistente. Diálogos como: "Você está achando que é vida loka?", "Olha só as marcas que tenho no meu corpo" e "Meu celular é melhor do que o seu" criam um outro a partir das marcas do corpo ou das mercadorias que podem oferecer para o outro.

Nesse filme, o diretor não quer esconder que o adolescente possui um caos interior que vai sendo exteriorizado ao longo das cenas; as ações são substituídas pelas palavras, há um corpo pulsando, que se perde pelas ações e não consegue se expressar pelas palavras.

A Tatuagem como Forma de Incorporação: A Categoria de "Contingência"

O corpo, principalmente para alguns jovens que vivem uma situação de conflito com a lei, é o único e último atributo que o sujeito pode utilizar, certamente, a ferramenta mais eficaz, principalmente para o jovem desprovido de qualquer bem material. O corpo surge, sobretudo entre os jovens, como o último refúgio de uma autenticidade que, via de regra, sequer eles podem reclamar e reivindicar. Ele é o alvo de um modelamento que serve para se enviar para um outro, pela tatuagem, muitas vezes começa uma nova relação com seu corpo. A prática da tatuagem é conhecida por provocar sensações de dor. Mas, em muitos casos, a dor sentida está associada a uma certa noção de prazer: "Na tatuagem, há um prazer, assim, um pouco como um vício, alguns talvez mais do que outros", explica um jovem que cumpre medida socioeducativa. E ele continua, durante uma conversa:

Eu tenho sido razoável em me tatuar, mas acho que há alguns que acham difícil parar. Não sei explicar... Com certeza, o nível de sensação, ao nível do que você sente no momento. Quando você faz uma tatuagem, há uma dor que não é agradável nos primeiros dez ou quinze minutos. Mas então é quase agradável. Muitos dizem, de fato, que assim que a primeira tatuagem é concluída, já estavam pensando na próxima, eu me tatuo quando me sinto sozinho, quando me arrependo de ter feito alguma coisa, quando tenho algum problema... Minha tatuagem favorita é a que mais me machucou. Mas eu me diverti muito sentir isso entrando na minha pele. Para mim, a dor tem sua utilidade. Porque marca o golpe. No momento em que sentimos, tomamos bem cientes de que o que estamos fazendo, vamos guardar para toda a vida. (Fala de um adolescente em conflito com a lei em uma roda de conversa, grifo nosso).

Nesse relato, a ação de tatuar, para esse jovem que cumpre medida socioeducativa, é uma das expressões do real. Pretendemos demonstrar que a categoria de "contingência", do último ensino de Lacan, expõe um modo de construção corporal que vai além do Imaginário, proposto a partir do conceito de Estádio do Espelho, implicando a noção de real na ação de se tatuar.

Essa hipótese lacaniana se faz necessária e oportuna, por se tratar de um ensino em que se vê que o Édipo não é mais, hoje, o único instrumento para a construção da subjetividade. O adolescente, que está vinculado ao tráfico de drogas, na maioria das vezes, não tem uma referência paterna, tampouco materna (tatuar "Amor só de mãe" seria uma maneira de erigir uma mãe que se apresenta como imagem psíquica toda fragmentada). Pretendemos sugerir que o ato de tatuar seria uma maneira de o adolescente criar uma corporeidade e uma espacialidade diante de uma realidade e de um corpo fragmentado. Essa realidade se expressa no comportamento errante e metonímico em que o laço social se apresenta de maneira frágil.

A construção de um corpo se inscreve a partir da contingência, de um encontro entre o significante e o gozo, como ensina Miller, em seu Curso de Orientação Lacaniana (2010-2011), na aula de 25 de março de 2011. A partir do ato de tatuar, em uma categoria contingencial, estabelecer-se-á uma ordem, uma lei que comanda a repetição pela qual cada sujeito está capturado.

É por isso que Lacan, abandonando a causalidade, desloca-se, no final do seu ensinamento, do simbólico para a contingência. É aí que devemos pensar o ato de tatuar para esses sujeitos na contemporaneidade, como um acontecimento de corpo que se estabelece a partir de um efeito da contingência.

Desde seu seminário sobre a angústia, Lacan nos indica o lugar do não especularizável na constituição da imagem corporal, e inscreve o objeto como operador. Vale aqui trazer uma leitura do ato de tatuar como algo que se situa além da construção de um corpo no campo apenas do Imaginário, como operador e fixador de um gozo que se desdobra a partir da ação de um signo.

Eu coloquei […] o signo indicando a vocês que aqui deve se perfilar uma relação com a reserva libidinal, com algo que não se projeta, com algo que não se investe no nível da imagem especular, pela razão que ele permanece investido profundamente, irredutível no nível do corpo próprio, no nível do narcisismo primário, no nível do que se chama autoerotismo, no nível de um gozo autista, animando, em suma, permanecendo aí para animar eventualmente, o que intervirá como instrumento na relação ao outro, constituído a partir dessa imagem do meu semelhante, a esse outro que perfilará sua forma e suas normas, a imagem do corpo, na sua função sedutora sobre aquele que é seu parceiro sexual (Lacan, 1976/2005a, p. 45).

Essas questões sobre o corpo, retomadas em outro momento de teorização, em outro lugar, com outro uso dos matemas, encontram-se no título do seminário Encore, no qual Lacan faz um jogo homofônico com a construção "en-corps". Uma frase aparece desde o início: "[...] o gozo do corpo do Outro, que o simboliza, não é signo de amor" (Lacan, 1972/1975, p. 12). Não se trata simplesmente de articular uma disjunção entre o gozo e o amor, mas de delimitar um espaço, um limite estreito, no qual um sexo se estreita ao Outro sexo. Trata-se de utilizar a topologia a partir do efeito contingencial para fazer surgir o gozo opaco do um a um, a partir do ato de tatuar e de si nomear.

Com relação à tatuagem, podemos dizer, a partir de uma consistência imagética, que se fixa um signo no corpo do adolescente. Assim, as tatuagens são a marca de um corpo que se recusa a fazer uma separação do objeto. Esse signo cabe ao adolescente porque faz corpo. Ele cabe ao corpo do adolescente. O signo faz corpo, como Lacan comenta no Seminário 20: Mais, ainda, na lição "Do gozo":

Gozar de um corpo, quando ele está sem as roupas, deixa intacta a questão do que faz o Um, quer dizer, a da identificação. A periquita se identificava com Picasso vestido. O mesmo acontece com tudo que diz repeito ao amor. O hábito ama o monge, porque é por isso que eles são apenas um. Dito de outro modo, o que há sob o hábito, e que chamamos de corpo, talvez seja apenas esse resto que chamo de objeto a (Lacan, 1972-1973/1985, p. 14).

A tatuagem cobre o corpo como uma armadura. Na adolescência, o corpo tem a tarefa de alojar o gozo com o qual não se sabe o que fazer. Esse corpo tem a tarefa de recolher todas as marcas em relação ao objeto, existindo uma negociação com o Outro. Lacan, na lição "O saber e a verdade", do Seminário 20: Mais ainda, propõe a noção de "contingência corporal" articulada ao Real. Sabemos que, no encontro do contingente com o Real, teremos o signo do amor (Lacan, 1972-1973/1985). A ação de cada adolescente, ao tatuar "Amor só de mãe", "VidaLoka" e o nome próprio da mãe no corpo, assinala uma marca possível desse signo do amor. Talvez, o único amor que esses sujeitos conseguem construir e assimilar na relação com o Outro.

Um gozo mudo, opaco, é possível vislumbrar a partir do Seminário 20 de Lacan. O corpo que dá consistência ao ser. Esse gozo admite mudanças, modificações, mutações. O corpo gozante está situado mais além do narcisismo. Esse gozo do corpo, como tal, permanece como sustentação de um resto sintomático. Aqui, a tatuagem adolescente tem a função de "incorporar" um corpo e um nome, criando um sujeito no mundo. Essas características dos movimentos dos corpos como suporte são, hoje, epidêmicas, como demonstra a alta prevalência de escarificações, piercings e outras práticas de intervenção corporal.

O corpo do adolescente envolvido no tráfico precisa ser revestido. Um corpo abjeto é cortado e marcado pelo signo. O lugar social desses adolescentes é o de resto. Corpos errantes que não são reconhecidos pelo sistema capitalista são incitados a se nomear. Os escritos das tatuagens são modos de produzir uma nomeação que tem um estatuto de ser e de reconhecimento diante do desejo do Outro. A nomeação de um tipo de vida apresenta um lugar que seu corpo pode ocupar na cidade. Na carência do Nome-do-Pai, significante organizador para a fantasia fundamental do ser falante de cada um, é necessário um quarto elemento que cumpra essa função de amarração para aquilo que não se fixa. Aqui, podemos fazer alusão ao modo joyciano de fazer um nome, prescindindo do nome do pai. A referência a James Joyce permite a Lacan demonstrar que esse autor escreve um corpo sem imagem, e que, além disso, não está enganchado ao Nome-do-pai.

Há uma passagem no Seminário 23: O sinthoma, em que Lacan faz referência à concepção corporal como a de um corpo que tende, a todo instante, a "sair fora" (Lacan, 1976/2005a, p. 34), porque está prestes a evadir. Ainda que o corpo seja marcado por uma inconsistência, é possível reconhecer uma dimensão do corpo que "não se evapora". Sabemos, a partir de Lacan, que um modo de conferir consistência ao corpo se dá a partir de sua sustentação pela imagem. Trata-se do corpo como unificação de experiências fragmentadas, heterogêneas, cuja consistência seria assegurada pela sua forma. Nos corpos de alguns desses adolescentes em conflito com a lei, a tatuagem tem a função de produzir consistência corporal, assegurando uma forma a partir da imagem de um corpo, não apenas articulada à imagem, mas também articulada ao Real.

Acompanhando os argumentos de Miller (2014), em O Inconsciente e o corpo falante, pode-se inferir que não é como carne que a consistência corporal está em questão. Essa consistência só se torna possível porque é o momento em que o signo apara a carne, quando o corpo mostra-se apto a aparecer, como superfície de inscrição, o lugar do Outro do significante.

Levando em conta uma análise do episódio da surra recebida por Stephen Dedalus, em Um retrato do artista quando jovem, afirmamos que Lacan, a partir da leitura do romance de formação de Joyce, demonstra outro modo de criar uma consistência do corpo, no caso, a partir da fantasia. É o que chama a atenção de Lacan, já que essa alternativa não é funcional nesse episódio. Ali não houve um acionamento da fantasia pela vertente masoquista, o que poderia ser um modo de conferir consistência ao corpo. Nesse viés, o masoquismo, mais do que o lugar da dor, é mostração, como nas tatuagens, escarificações e outras práticas de intervenção no corpo.

O que seria considerar a consistência do corpo pela via da contingência? Que Real estaria em jogo? Podemos considerar que a consistência do corpo pela via do Real, como efeito da contingência, se manifesta como aquilo que, no corpo, é sem lei, incluindo-a em um novo arranjo a partir de uma "invenção" ou uma "gambiarra". Esse arranjo implica uma reconsideração do Imaginário, cuja função encontramos articulada ao Real pela contingência. Mas como podemos encontrar esse Real?

O registro do real não é unívoco em Lacan, não admite uma única definição. Existe um real, o da impossibilidade - outra dimensão de o real - de escrever, a impossibilidade da relação sexual, que se manifesta como não relacionamento entre registros (Lacan, 1972-1973/1985). Para vários adolescentes em conflito com a lei, o grande desafio é fazer um nome sem a filiação, transformar o nome que ele carrega em um nome próprio diante do impossível do real, um nome que o reconheça, um nome que o ligue a um Outro do discurso ao qual ele deve concordar em aderir, a fim de transmiti-lo para si e para o Outro social. Para Lacan:

o nome […] é uma marca já aberta à leitura - eis por que ela será lida da mesma forma em todas as línguas -, impressa sobre alguma coisa que pode ser um sujeito que vai falar, mas que não falará de modo algum obrigatoriamente (Lacan, 1963/2005b, p. 74).

A tatuagem, em alguns casos, é a construção desse nome. No entanto, é para esses adolescentes uma luta que eles travam para reconhecer esse nome como um nome próprio. Esse não é um nome que os adolescentes recebem do outro, ao contrário do que alguns adolescentes pensam, eles recusam se apropriar do nome que lhes foi dado, escolhendo um outro, conforme a sua subjetividade e seu modo de gozo, a partir de um efeito contingencial. O nome próprio carrega a marca ou simboliza a singularidade do sujeito e pode aparecer no ato da tatuagem. Eles querem marcar em si as suas singularidades como sujeitos.

O nome próprio pode ser um significante, ele diz o que é o sujeito, este que é um efeito de linguagem, é a tradução daquilo que lhe falta, do que falta fundamentalmente no sujeito em sua identidade. Por isso, ele está correlacionado com o real, desde que se inclua o impossível de dizer no ser do sujeito. O nome próprio é, portanto, aquele que liga o real do gozo ao semblante do significante.

O filme Cidade de Deus, dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, é um filme brasileiro lançado no início dos anos 2000, numa adaptação do livro homônimo de Paulo Lins. O filme bateu recorde de bilheteria no Brasil e teve um grande impacto internacional, por razões técnicas de direção e também de roteiro, apresentando, de maneira inovada e bem articulada, a história da comunidade de Cidade de Deus, criada na periferia do Rio de Janeiro, e tem uma trajetória semelhante a várias comunidades das periferias das cidades médias e grandes do país.

O filme conta a história de Buscapé, desde a sua infância até a vida adulta. Um dos amigos de infância de Buscapé é o Dadinho, que, na adolescência, passa por uma experiência no crime que produz um efeito contingencial de encontro com o Real. E esse encontro produz uma nomeação: ele deixa de ser Dadinho e passa a se autonomear de Zé Pequeno, tornando-se um bandido perigoso que passa a dominar todas as bocas de tráfico da região. O filme tem uma cena paradigmática para pensarmos as questões relacionadas à nomeação, quando ele diz: "Dadinho é o caralho, porra. Meu nome agora é Zé Pequeno!".

Ao criar um nome como efeito contingencial produzido pelo encontro com o Real, o sujeito produz um laço discursivo a partir da nomeação, em alguns casos, como pura pulsão de morte, como o caso de Zé Pequeno, que faz uma escolha pelo pior. A nomeação não diz nada em si, garante um nó único que confere ao sujeito a marca identitária da falta.

A fantasia, que está articulada ao nome próprio, tem função de proteger esse defeito estrutural de ser constituído no campo da fala ao opor uma tela imaginária desse buraco (tatuagem). Está ligada ao nome do sujeito para colori-lo com linhas identificatórias e anexá-lo a algum conteúdo identificável. Poderíamos dizer rapidamente que o nome próprio leva o nome de sua fantasia. Mas, na adolescência, quando a fantasia vacila e surge uma lacuna estrutural descoberta, o nome que assegura alguma identidade ao sujeito falido ressoa nesse vazio e/ou resto social, daí a dicotomia entre a condição individual e a condição social.

Esse nome próprio é para ser reconquistado, para dar endereço à sua palavra. Ele deve reconquistar um lugar de adoção, a partir do qual ele será nomeado: esse é o lugar da fala, de onde ele poderá se reconhecer como filiado. A adolescência traz a questão sobre assumir um nome que conta entre os nomes dos outros. Isso requer que o sujeito concorde em vincular sua identidade ao reconhecimento do Outro e à sua palavra.

O sujeito adolescente deve, portanto, vivenciar seu nome, colocá-lo ao teste da realidade. Seu nome próprio está no centro de sua questão de identidade: como sustentar que a identidade é baseada apenas na aparência, um significante que falha em dizer o que ele é? A adolescência é, portanto, um momento em que o sujeito tentará impor um sentido; um nome que o inscreva em uma identidade. Os modos de forçamento são múltiplos e individuais. Alguns adolescentes o marcam em todos os lugares, em todas as superfícies possíveis: paredes da cidade, muros, esquinas, viadutos, metrô, ônibus, escolas, banheiros e carteiras das escolas... e também, principalmente, na pele de seu corpo.

A formação dos grupos passa também por esse efeito de nomeação. É o mecanismo paranoide na origem das gangues e/ou comunidades sectárias que respondem a esse momento de insegurança identitária. O nome, não podendo suportar ser apenas representativo do sujeito, prevalece como insígnia de uma identidade, como Um sem Outro. Quando o nome vincula o sujeito ao real de seu gozo, se ele é o nome de seu sinthoma, ainda tem que ser apelidado através do discurso social. Dizer-se rapper, artista, poeta, inventor, cientista só será indicado se reconhecido no campo do social. Esses discursos sociais contribuem para um método de fixação, promovendo fixação sinthomática.

O Efeito Contingencial de um Nome e da Tatuagem como Reposta de um Sofrimento Sócio-Político

Tentamos demonstrar que alguns desses sujeitos adolescentes em conflito com a lei, a partir das tatuagens, criam arranjos com a linguagem e a imagem, produzindo efeitos de inscrição de novos significados para si e para os outros.

Entendemos que os adolescentes aqui mencionados são uma resposta do tipo de subjetividade que temos no século XXI. Se antes tínhamos adolescentes que se enquadravam, no momento da puberdade, em ritos de iniciação que lhes davam acesso ao registro do sagrado ou do místico, hoje, para os adolescentes ligados ao tráfico de drogas, há uma desidealização e um desenquadre em relação aos ritos de iniciação, porque não existem mais tradições (Benjamin, 1989, p. 76).

Se levarmos essa discussão sobre o fim da tradição, os efeitos dessas questões em relação ao declínio da função paterna e, também, as consequências do discurso social na formação desses sujeitos, veremos que o sistema capitalista interrompe algo que se transmite de geração para geração. Isso, de alguma maneira, já havia sido apresentado por Karl Marx (2003), em seu Manifesto Comunista, sobre os efeitos revolucionários do capitalismo na civilização.

A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, ou seja, as relações de produção, isto é, o conjunto das relações sociais […] esse constante abalo de todo o sistema social […] Todas as relações sociais, fixadas e cobertas de ferrugem, com seu cortejo de concepção e de ideias antigas e veneráveis, se dissolvem. Tudo que tinha solidez e permanência vira fumaça, tudo que era sagrado é profano (Marx, 2003, p. 65).

Dessa maneira, é importante dizer que não podemos separar a questão política e social das questões individuais presentes no comportamento dos adolescentes. Slavoj Žižek (2003) traz uma nova abordagem para pensarmos o mundo contemporâneo. A partir da queda das torres gêmeas, ele traz à luz o conceito de "Paixão pelo Real". Analisando os novos modos de patologia subjetiva dos sujeitos afetados pelos aspectos sociais, propõe pensar em novos sujeitos que ele denomina de "sujeitos pós-traumáticos". Para o filósofo-psicanalista, esses sujeitos são mortos-vivos, zumbis que sobrevivem à sua "morte". Eles são incapazes de fantasiar e se integrar ao mundo pela dimensão simbólica, a única maneira de fazer isso é a invenção de um nome que funciona como uma resposta contingencial dos efeitos traumáticos do sofrimento sociopolítico.

Como trabalhamos, os sujeitos adolescentes em conflito com a lei estão longe de se vincularem a uma tradição, como vemos em povos que tatuam símbolos que passam de uma geração para outra. Naquele caso, os corpos, quando tatuados, podem começar a fantasiar. Aqui, principalmente na contemporaneidade urbana, temos corpos individuais capturados por um signo incidindo sobre o que se configurava como corpos errantes. Esses adolescentes, por estarem em um modo de subjetivação aquém do Simbólico, podem ser considerados sujeitos pós-traumáticos.

Nesse sentido, uma ausência de afeto para compreensão do mundo é algo facilmente verificável com os adolescentes usuários de drogas. Podemos destacar a violência familiar como lugar de origem dos adolescentes infratores. Teríamos famílias extremamente fragmentadas e que trazem a agressividade como única forma de afeto.

Hoje, as vítimas de traumas sociopolíticos apresentam o mesmo perfil das vítimas das catástrofes naturais (tsunamis, terremotos, inundações) ou acidentes graves (acidentes domésticos sérios, explosões, incêndios). Começamos uma nova época de violência política, em que a política tira recursos da renúncia do sentido político da violência […] Todos os eventos traumatizantes tendem a neutralizar sua intenção e assumir a falta de motivação propriamente dita dos incidentes do acaso, característica essa que não pode ser interpretada. Hoje, o inimigo é a hermenêutica[…] Esse apagamento do sentido não só é perceptível nos países em guerra, como está presente em toda parte, como nova face do social que confirma uma patologia psíquica desconhecida, idêntica em todos os casos e em todos os contextos, globalizada (Malabou, 2008, p. 23).

É exatamente nessa perspectiva que Walter Benjamin (1989, p. 82) considera que, na era moderna, há a desvalorização de um determinado gênero literário: a narração. Para Benjamin, os fatores sociais e culturais teriam ocasionado uma pulverização da narrativa. Segundo o autor, nas sociedades modernas, teríamos o declínio da experiência (Erfahrung). Isso se deve, entre outros aspectos, à ausência de sabedoria calcada na ancestralidade e na tradição. Para Benjamin, a crescente depreciação das tradições, em decorrência de certo enfraquecimento de uma sociedade fundamentada em um tempo e uma história, se deve a um meio de produção profundamente voltado para o capital, que cria vínculos sociais "extremamente superficiais", interessados apenas pelo fácil e pelo imediato. Em "Experiência e pobreza", Benjamin continua a trabalhar essa hipótese, demonstrando que a tradição na modernidade se apresenta a partir do esquecimento dos ritos, das datas comemorativas e de suas festividades. A partir daí, o autor alemão comenta que a perda da capacidade de transmitir experiência seria o sintoma do declínio da experiência como tal.

 

Para Concluir

Esses adolescentes são o resultado do contexto social em que estamos vivendo, cuja melhor tradução seria o conceito de Real como sendo o que rompe com a cadeia simbólica da transmissão. O projeto de Estado-nação que leva às últimas consequências a frase de Wordsworth, "a criança é o pai do homem", não se aplica mais. Longe de qualquer generalização, mas, para alguns desses adolescentes, a função da tatuagem seria uma maneira de construir um corpo e de se nomear diante da ausência de um discurso que possa transmitir a tradição. A contingência é o efeito do Real, que pode, em alguns casos, construir um corpo. A possibilidade de os adolescentes em conflito com a lei se depararem com a ideia de que há um vazio em seu corpo é constante; isso lhes permite desembaraçar-se das estratégias fantasmáticas com as quais se procurava conferir consistência a esse corpo. Dessa maneira, devemos pensar em um sintoma social que se constitui por meio de atravessamentos de discursos na nossa época, manifestos a partir do corpo, pela contingência do Real, no discurso social.

 

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Endereço para correspondência
Pedro Teixeira Castilho - contatocastilho@gmail.com

Recebido em: 17/05/2024
Aceito em: 08/06/2025

 

 

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