Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e84027, doi:10.12957/epp.2024.84027
ISSN 1808-4281 (online version)

 

DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE

 

Acolhimento Psicossocial nas Filas de Unidades Prisionais: Relato de Experiência de Extensão Universitária

 

Psychosocial Support in Prison Rows: University Extension Experience Report

 

Acogida Psicosocial en las Filas de la Cárcel: Relato de Experiencia de Extensión Universitaria

 

Carolyne Reis Barros a, Guilherme dos Santos Azevedo Cardoso a, Gabriel Lucas Baessa Dias a

a Universidade Federal de Minas Gerais, MG, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O objetivo deste relato de experiência é, em diálogo com as produções em Psicologia, apresentar as dinâmicas de atenção psicossocial de um programa de extensão no contexto das filas, em dias de visitação, em seis unidades prisionais na Região Metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais, no período pós-pandemia de Covid-19. A partir da breve exposição sobre o programa, são relatados, por meio de análise de diários de campo, alguns elementos que orientam o acolhimento psicossocial nesses espaços, tais como a análise da implicação no projeto e a escuta engajada. Por fim, a partir dessas experiências, levantamos algumas questões que interrogam a atuação da Psicologia, sua produção acadêmica e os dispositivos de intervenção dos quais ela se serve na relação com o cárcere, propondo, como horizonte ético, a filiação do campo psi aos ideais abolicionistas penais e anticapitalistas, que, de forma mais ampla, visam a emancipação humana diante das opressões e da exploração.

Palavras-chave: atenção psicossocial, familiares de pessoas presas, extensão universitária, cárcere.


ABSTRACT

The aim of this experience report is, in dialogue with Psychology productions, to present the dynamics of psychosocial care in an extension program in the context of prison rows on visiting days in prison units in the Metropolitan Region of Belo Horizonte, in Minas Gerais, in the post-Covid-19 pandemic period. From the brief exposition about the extension program, some elements that guide psychosocial care in these spaces are reported by analyzing field diaries, such as involvement in the project and engaged listening. Finally, based on these experiences, we raise some questions that interrogate the performance of Psychology, its academic production and the intervention devices it uses in its relationship with prison, proposing as an ethical horizon the affiliation of the psy field to penal abolitionist and anti-capitalist ideals, that, more broadly, aim for human emancipation in the face of oppression and exploitation.

Keywords: psychosocial care, relatives of prisoners, university extension, prison.


RESUMEN

El objetivo de este relato de experiencia es, en diálogo con producciones de Psicología, presentar la dinámica de la atención psicosocial de un programa de extensión en el contexto de las filas en los días de visita en las unidades penitenciarias de la Región Metropolitana de Belo Horizonte, en Minas Gerais, en el período posterior a la pandemia de Covid-19. Tras una breve presentación del programa, se describen, por medio de análisis de diarios de campo, algunos elementos que orientan la acogida psicosocial en estos espacios, como el análisis de implicación en el proyecto y la escucha comprometida. Finalmente, a partir de estas experiencias, se plantean algunas cuestiones que interrogan el quehacer de la psicología, su producción académica y los dispositivos de intervención que utiliza en su relación con las prisiones, proponiendo como horizonte ético la filiación del campo de la psicología con ideales abolicionistas penales y anticapitalistas, que, más ampliamente, apuntan a la emancipación humana de la opresión y la explotación.

Palabras clave: atención psicosocial, familiares de personas en privación de libertad, extensión universitaria, prisión.


 

 

Apesar das prisões serem instituições de privação de liberdade, há diversas situações que constituem vasos comunicantes entre o dentro e o fora do cárcere (Godoi, 2015). As filas que se constroem no entorno das prisões em dias de visita e de entrega de itens de necessidade básica por parte de familiares de pessoas presas são uma das formas que explicitam as porosidades nessa relação dentro-fora (Pádua, 2021). Esse momento em que familiares vão até as unidades prisionais se converte em um instante em que elas são expostas ao vocabulário e às regras do ambiente prisional, além de constituir um espaço que proporciona a construção de sociabilidades, de disputas e de cooperação entre elas (Lago, 2019).

No Brasil, temos a terceira maior população carcerária do mundo e o cárcere é marcado pelas violações sistemáticas de direitos (Barros & Barros 2020), pelas práticas estruturais de tortura (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, 2022; Instituto DH, 2023) e pela seletividade do sistema, que se volta para a classe trabalhadora, e tem atingido de forma desproporcional a população jovem e negra (Silva et al., 2022).

O cárcere produz ainda impactos na vida dos(as) trabalhadores(as) do sistema, seja dos(as) policiais penais (Silva, 2019) ou da equipe técnica (Nascimento & Bandeira, 2018), e se volta para pessoas que não estão diretamente submetidas ao espaço físico das prisões, como familiares de pessoas presas (Pádua, 2021; Santos, 2021) e sobreviventes do cárcere (Barbalho, 2012; Lhuilier et al., 2023). Apesar de não termos dados oficiais sobre quem são as familiares de pessoas presas no Brasil, compreendemos que elas são, em sua maioria, mulheres, principalmente mães e esposas ou companheiras (Tannuss et al., 2018). Por isso, neste relato de experiência, optamos por nos referir às familiares no feminino.

As filas em unidades prisionais se dão nesse contexto de produção de impactos psicossociais na vida de familiares de pessoas presas e não se constituem necessariamente enquanto um ordenamento de pessoas uma atrás da outra, mas diz desse espaço-tempo no qual a família aguarda do lado de fora das prisões, antes de entrar. Elas ocorrem em duas situações: quando familiares vão visitar o ente preso ou quando vão entregar itens de necessidade básica. Em Minas Gerais, convencionou-se chamar esses itens de kits. Cabe destacar que os pertences entregues pelas familiares consistem em itens básicos, como produtos de higiene, roupas e alimentação, que deveriam ser garantidos pelo Estado. Ao ser presa, a pessoa perde o seu direito de ir e vir, e passa a ser tutelada pelo Estado. Isso significa dizer que, por lei, todos os outros direitos, como acesso à alimentação, à educação, à saúde e à higiene, dentre outros, devem ser assegurados. No entanto, o Estado falha sistematicamente em cumprir com essa responsabilidade e, por consequência, familiares são convocadas a cumprirem essas obrigações.

O objetivo deste relato de experiência é, em diálogo com as produções em Psicologia, apresentar as dinâmicas do acolhimento psicossocial de um programa de extensão no contexto das filas em unidades prisionais na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), Minas Gerais, no período pós-pandemia de Covid-19. Para tal, partimos da análise dos diários de campo que os extensionistas elaboraram nas idas às filas ao longo de 2022. Tomamos as discussões que situam os diários de campo enquanto instrumentos dinâmicos de pesquisa (Medrado et al., 2014), que não o limitam a um texto meramente descritivo de uma realidade dada. Dessa forma, não obstante a elaboração do diário envolver a descrição de falas, do espaço e das dinâmicas, envolve também um esforço interpretativo por parte de quem o elabora, fazendo dele um aliado potente para a análise de sua implicação na atividade.

Em um primeiro momento deste texto, apresentaremos o CULTHIS: espaço de atenção psicossocial à pessoa presa, ao sobrevivente do cárcere e seus familiares, seus eixos de atuação e referenciais teórico-metodológicos utilizados. Seguiremos com a apresentação do que foi acumulado por meio da experiência de extensão durante os dias de filas e as possibilidades de realização de acolhimento nesse contexto. Por fim, levantaremos algumas questões que interrogam a atuação da Psicologia, sua produção acadêmica e os dispositivos de intervenção acionados na relação com o cárcere, propondo como horizonte ético a filiação do campo psi aos ideais abolicionistas penais e anticapitalistas.

O Eixo de Atenção Psicossocial do CULTHIS

O CULTHIS é um programa de extensão vinculado ao Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Cárcere e Direitos Humanos (LABTRAB), da Universidade Federal de Minas Gerais. Surgiu em 2008 como desdobramento de atividades de um estágio curricular do curso de graduação em Psicologia, no qual os(as) estudantes recolhiam histórias de vida de pessoas presas na Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) de Santa Luzia, Minas Gerais (Carreteiro & Barros, 2014). Mesmo com o fim do tempo do estágio, as pessoas que saíam da prisão procuravam os(as) estudantes com demandas relacionadas aos impactos do cárcere em suas vidas, em especial, demandas relacionadas ao acesso ao trabalho e às demais políticas públicas. Ademais, o grupo era procurado por familiares de pessoas presas com demandas relacionadas, principalmente, ao acompanhamento de processos criminais e de execução penal, a dúvidas sobre os procedimentos de visita e de entrega de kits e com demanda por um espaço de escuta. Embora haja muitas produções a respeito do papel da Psicologia dentro do sistema prisional (Barros & Amaral, 2016; Nascimento & Bandeira, 2018), ainda são incipientes as iniciativas de práticas de extensão e pesquisa nos espaços das filas no entorno das prisões. Assim, à época, estudantes e professora propuseram pensar em uma atuação também desde o lado de fora da prisão e, a partir de demandas da realidade, construíram um projeto de extensão com o objetivo de oferecer acolhimento psicossocial para familiares de pessoas presas e sobreviventes do cárcere.

Atualmente, como embasamento para nossa atuação, partimos dos seguintes referenciais teórico-metodológicos: i) a clínica política como uma experiência de reparação destinada a pessoas vítimas de violência de Estado (Kolker, 2018) e o conceito de sofrimento ético-político, que define que em uma sociedade capitalista, marcada pela luta de classes, há sofrimentos que não são da ordem individual, mas determinados pela situação de precariedade a qual o sujeito é submetido (Sawaia, 1999); ii) a ergologia e a psicossociologia do trabalho, clínicas do trabalho que partem de uma abordagem transdisciplinar sobre o trabalho como uma atividade humana, que nos ajuda a refletir sobre o encontro dos saberes envolvidos em nossas práticas extensionistas, prezando pela horizontalidade entre eles (Cunha, 2014); e iii) a criminologia crítica e o abolicionismo penal, teorias e práticas radicalmente críticas ao sistema penal, entendendo-o ineficaz em suas funções declaradas de ressocialização e prevenção ao crime, além de ser produtor de mais violências (Baratta, 2002; Hulsman & Celis, 2019).

Atualmente, dividimos nossas atividades de extensão em três eixos. Além do eixo de atenção psicossocial, objeto deste relato, temos o eixo de articulações políticas, no qual recebemos e de encaminhamos denúncias por meio da Plataforma Desencarcera! 1, e sustentamos parcerias com outros grupos, além de compormos espaços públicos e/ou da sociedade civil para discussão sobre o sistema prisional 2. O terceiro eixo é o de formação, por meio do qual organizamos atividades para reflexão e discussão sobre temáticas relacionadas à nossa atuação de acolhimento psicossocial no contexto prisional 3.

Organizamos essas atividades a partir do que nos é apresentado no eixo de atenção psicossocial, que é a construção de uma metodologia de acolhimento psicossocial para pessoas afetadas pelo cárcere, em especial familiares e sobreviventes. Pensamos em atenção psicossocial a partir das contribuições da luta antimanicomial e na sua contribuição para a construção de autonomia do sujeito em relação a construir suas normas de vida (Lobosque, 2001), e conforme discutido por Paiva (2013) no sentido de que "afirmar a dimensão psicossocial é integrar domínios por muito tempo tratados de modo separados na formação profissional - o social do individual, a sociedade da pessoa" (Paiva, 2013, p. 534). A atenção psicossocial, então, deve ser pensada em cada caso, a partir das suas particularidades, pois "(...) não se trata de conduzir o sujeito violentado por um caminho determinado de reparação psíquica, mas sim de mobilizar a potência que lhe possibilitará lutar por seus direitos sem sucumbir ao sofrimento e buscando formas de proteção no coletivo" (Kolker, 2018, p. 187).

O acolhimento psicossocial do CULTHIS, engloba alguns elementos, em especial a escuta engajada, as orientações jurídicas e a articulação com políticas públicas. Além disso, quando necessário, é possível o encaminhamento para a rede de psicólogas voluntárias do Programa (intitulada Rede Psi). Adiante, trataremos desses elementos. Priorizamos um acolhimento psicossocial a longo prazo, tendo em vista a importância da construção de vínculos entre extensionistas e pessoas atendidas.

Sobre a forma como os casos chegam até nós, há algumas possibilidades, como o uso de aplicativos de comunicação e rede social, o e-maildo CULTHIS, pelo encaminhamento de grupos parceiros, por meio de cartas enviadas pelas pessoas presas e nas próprias filas das prisões.

As filas acontecem nos dias em que as familiares vão até as prisões para visitar o ente preso ou para entregar os kits. Nesses dias, elas chegam com antecedência no espaço externo às prisões e se organizam nesse espaço-tempo que se convencionou chamar de filas. Nas filas, além do marcador social de gênero, vemos que a raça também é estruturante: são mulheres negras que circulam nas filas. Há a presença de companheiras e esposas, em geral mais jovens e mães e avós, incluindo pessoas idosas. É nesse contexto que os(as) extensionistas atuam. Sobre a proposta de estar na realidade, Kolker avalia que

experimentar um corpo a corpo com essas pessoas e ouvir seus relatos, conhecendo seus nomes, histórias e dores, em vez de ter acesso a esse contexto de violência por abstratos dados estatísticos, ou pela narrativa criminalizadora das mídias, poderia descortinar uma outra realidade, até então mascarada. (Kolker, 2018, p. 165)

Nas filas, as familiares aguardam ao relento, sob sol e sob chuva, e sob a tensão dos policiais penais sua vez de adentrarem no espaço físico das prisões. Assim, no tempo da espera, ofertamos um acolhimento de seus sofrimentos advindos do cárcere: a incerteza se entrará na prisão; se está com o vestuário solicitado pela unidade prisional; se o scanner corporal (body scan) vai detectar alguma mancha; a ansiedade em saber sobre as condições das pessoas presas. Nas filas, também ouvimos relatos do que familiares tiveram que fazer para chegar até aquele espaço, o planejamento, os gastos com transporte e alimentação, a organização da vida cotidiana em função dos dias de visita no cárcere.

Dessa forma, os atendimentos são realizados nesse contexto e o acolhimento do sofrimento ocorre concomitantemente a uma explicação do motivo de estarmos ali, a partir da universidade pública, por meio de um programa de extensão, oferecendo acolhimento. Ainda, ressaltamos que há a possibilidade de acompanhamento após aquela ocasião. Apesar de não haver uma prescrição sobre a abordagem, utilizamos estratégias acumuladas pelas experiências: priorizamos nos apresentar em duplas, momento no qual, além de explicar o que é a extensão universitária, perguntamos sobre a situação da unidade prisional e como é a dinâmica daquela fila - quais os dias de visita, se o critério de entrada é a ordem de chegada, quais itens são permitidos nos kits, quais alimentos podem entrar etc. Não obstante, isso pode variar entre as filas. Por exemplo, nas unidades prisionais femininas, cujo histórico é de abandono por parte das famílias (Santos & Silva, 2019), é comum formar-se um grupo de até, aproximadamente, dez familiares, então a abordagem dos(as) extensionistas é conversar diretamente com esse grupo. Tal estratégia difere-se da divisão em duplas ao abordar as várias mulheres presentes nas filas de presídios masculinos. Ainda, ressaltamos que o tempo que ficamos nas filas é determinado pela sua dinâmica: em regra, as familiares entram na unidade prisional para a vista às 8h, então chegamos nos lugares por volta de 7h e ficamos ao longo de uma hora conversando. Não obstante, em unidades prisionais maiores, o tempo de espera para entrar na unidade é maior, portanto estendemos nossa permanência naquele espaço.

Nesse contexto, ao longo de 2022, fomos às filas de seis unidades prisionais da RMBH: o Centro de Remanejamento Provisório de Betim (Ceresp de Betim), o Presídio Antônio Dutra Ladeira (Ribeirão das Neves), o Presídio Inspetor José Martinho Drumond (Ribeirão das Neves), o Complexo Penitenciário Público-Privado (Ribeirão das Neves), o Presídio Feminino de Vespasiano e o Centro de Remanejamento Provisório da Gameleira (Ceresp da Gameleira, em Belo Horizonte).

Atenção Psicossocial nas Filas das Unidades Prisionais

Apresentaremos, a seguir, uma breve síntese das mudanças nas filas das prisões em Minas Gerais durante a pandemia e descreveremos, com o apoio dos registros feitos pelos extensionistas do programa ao longo de 2022, ano de flexibilização das restrições devido à Covid-19, como realizamos as atividades de apoio psicossocial nas filas de unidades prisionais da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Entre março de 2020 e abril de 2022, por meio de normativas editadas pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp/MG), as visitas no sistema prisional e a entrega presencial dos kits foram completamente suspensas, sob a justificativa de necessidade de isolamento das pessoas presas como estratégia de prevenção à doença. Ressaltamos, no entanto, que as unidades prisionais não ficaram completamente isoladas, tendo em vista a movimentação cotidiana de trabalhadores do sistema prisional, como os agentes penitenciários e a equipe técnica.

Ao longo desse período, os acolhimentos psicossociais foram realizados virtualmente, o que trouxe desafios uma vez que, sem o contato presencial, a construção de vínculos ficou fragilizada. Assim, a principal estratégia foi priorizar as ligações telefônicas e as chamadas de vídeo, em detrimento de mensagens de texto.

As familiares ficaram sem notícias de seus entes presos e impossibilitadas de fiscalizar o sistema prisional. Uma das queixas nos atendimentos e nas denúncias da Plataforma Desencarcera! era acerca da dificuldade de conseguir contato com a unidade prisional. Como não havia um fluxo de informações, havia receio por parte delas de que seus entes presos estivessem sendo contaminados ou mortos pela Covid-19, o que, de fato, ocorreu, conforme boletins publicados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 4. Uma das formas de atuação do CULTHIS, então, foi a tentativa de contato com a unidade prisional ou articulação com a Defensoria Pública com o objetivo de, por meio de manifestações no processo judicial, exigir da unidade informações sobre a pessoa presa.

A partir de abril de 2020, a Sejusp/MG iniciou o projeto "A esperança vem de casa" 5, viabilizando, em algumas unidades prisionais, visitas virtuais por meio de chamadas de vídeo ou de telefone. No entanto, era necessário acesso à internet e a dispositivos como celular ou computador, o que não é uma realidade para muitas familiares (Duarte et al., 2020). Além disso, as conversas ocorriam na presença de policiais penais, impossibilitando que as pessoas presas pudessem fazer denúncias acerca de eventuais violências.

A partir das denúncias feitas na Plataforma Desencarcera! sobre as violações de direitos no contexto prisional relacionadas ao período pandêmico, o programa, em conjunto com outros grupos 6, elaborou o "Relatório Técnico: Covid-19 nas prisões de Minas Gerais: o que nos dizem as famílias" (Barros et al, 2020) e realizou atividades online para divulgar o material e conversar com as familiares sobre como fazer denúncias. A partir de maio de 2022, em razão do avanço na vacinação contra a Covid-19, foram editadas algumas normativas pela Sejusp/MG, flexibilizando algumas regras de isolamento social.

Foi nesse contexto de retomada das visitas e da entrega dos kits de forma presencial, que ocorreram as filas que serão analisadas neste relato de experiência a partir da análise dos diários de campo que são elaborados pelos(as) extensionistas. A seguir um trecho dos registros:

Quando desci do ônibus, caminhei durante dez minutos por uma rua estreita, por onde corriam carros velozmente, até ver um grupo de mulheres usando conjuntos de moletom em tons claros. Era por volta das sete e quarenta da manhã e os portões seriam abertos às nove horas. Se juntavam cerca de trinta pessoas em frente à porta do Ceresp, quase todas mulheres e só um homem (descobri que era o pai de um preso). Um papel corria entre as pessoas que o assinavam com o objetivo de construir uma ordem de chegada para servir na organização da entrada na unidade — ouvi que pessoas idosas tinham preferência [...] Vieram de vários lugares: uma mulher, companheira de um preso, disse para mim que havia saído de casa às quatro da manhã por conta dos três ônibus que pegaria. (Trecho do diário de fila de um extensionista numa fila de visitação no Centro de Remanejamento Provisório Gameleira. Belo Horizonte, 28 de outubro de 2022).

Em nossas idas às filas, compreendemos que elas eram muito mais do que a disposição sequencial de um corpo após o outro; as pessoas ali criavam vínculos entre si, trocavam informações e fortaleciam sua solidariedade. A ida de uma familiar à unidade prisional envolve uma série de fatores, como o cálculo feito acerca do transporte, a necessidade de planejar a roupa que usará, o preparo do kit, os cuidados com a própria alimentação, além da ansiedade por encontrar um familiar preso e o receio de algo dar errado. As filas ocorrem no espaço externo às prisões e não há um local destinado para as familiares ficarem nesse momento. Elas têm que ficar em pé, se sentar no chão ou em cima de objetos, e não há banheiros, devendo aguardar o momento de entrar na unidade ou improvisar algum espaço mais reservado. Além disso, ficam expostas ao calor, frio, vento, chuva e animais peçonhentos, dentre outros. As filas, em razão da localização das unidades prisionais, costumam acontecer em locais afastados, longe de pontos de transporte público ou de outros serviços necessários. Apontamos, então, que os processos de exclusão desse grupo ocorrem já a partir de onde são construídas as prisões.

Algumas das questões que ouvimos nos momentos em que chegamos nas filas são "vocês vão fazer pesquisa, ‘né'?", "isso daí é de graça?" e "vocês não estão aqui para visitar, né?". Ao chegarmos com camisas ou crachás da universidade, segurando materiais sobre o CULTHIS, bem como pranchetas para anotarmos alguma informação, percebíamos os olhares curiosos e o reconhecimento de que nós não pertencíamos àquele espaço. O grupo de extensionistas é heterogêneo, em geral formado por homens e mulheres brancos(as) e negros(as), jovens estudantes de graduação, majoritariamente dos cursos de Psicologia e de Direito. Os olhares curiosos se dão, principalmente, pois, além de não usarmos as vestimentas usuais de familiares - em regra, blusa e calça de moletom azul ou rosa e chinelo de dedo -, também não carregamos as sacolas dos kits. Como discutiremos ao longo deste texto, partimos das discussões sobre análise da implicação para refletir sobre a nossa presença em um espaço-tempo que não é comum a nós.

Em Betim, a questão da visita íntima apareceu nos discursos das mulheres como uma possibilidade de maior contato com a pessoa presa, mesmo se confrontando com as regras impostas pela instituição prisional e as condições precárias de higiene do lugar. As mulheres, quando diziam do "seu preso", enfatizavam os efeitos do encarceramento em suas relações ao relatarem sobre a saudade que sentiam, os planos para o futuro, a dor pelas condições precárias em que a pessoa presa se encontrava, e, em alguns casos, na dificuldade de cuidar dos filhos sozinhas. Por outro lado, também contavam de outras dinâmicas, como o desejo de romper um relacionamento impedido pelo medo da reação da pessoa presa.

Ao ouvirmos esses relatos, antes de pensarmos em quaisquer possibilidades de encaminhamentos, a primeira ação por parte dos(as) extensionistas é acolher e proporcionar um espaço seguro de escuta. Nesses momentos, ganha relevo o que temos chamado de "escuta engajada" como um dos elementos do acolhimento psicossocial no CULTHIS. Definimos como escuta engajada a escuta qualificada por nossos referenciais teórico-metodológicos e que parte da compreensão de que familiares de pessoas presas e sobreviventes do cárcere são impactados pelo cárcere.

O ponto de partida é compreender que estamos conversando com pessoas vítimas de violência de Estado, conforme discutido por Kolker (2018), em uma realidade atravessada por diversas violências. Ouvimos os relatos em uma tentativa de não culpabilizar as familiares pela situação em que estão, uma vez que muitas delas nos relatam se sentirem culpadas por seus entes terem sido presos, como se elas não tivessem cumprido com a tarefa de manter os homens da família longe da prisão.

Não obstante, com base nas contribuições da Criminologia Crítica e do Abolicionismo Penal, compreendemos que não há uma relação direta entre crime e punição, ou seja, a prisão não é a consequência incontestável de um comportamento tido como criminoso. Há, por outro lado, escolhas políticas no sentido de criminalizar determinadas pessoas e condutas, priorizando alguns grupos, como a classe trabalhadora, e, em especial, a população jovem e negra (Silva et al., 2022).

Nas filas, são muitos os relatos de familiares que, apesar de indicarem a violência e a seletividade penal do sistema, legitimam, de alguma forma, essas violências. Assim, em nosso acolhimento psicossocial, buscamos a construção de vínculos para que, ao longo do acompanhamento do caso, que poderá prosseguir para além das filas, possamos, em diálogo com as familiares, trilhar caminhos possíveis de superação e de enfrentamento ao contexto de impactos psicossociais do cárcere.

Nas filas também ouvimos relatos de familiares que estão, de alguma forma, aliviadas por terem um parente preso. Não porque estão contentes com o encarceramento de alguém, mas, por exemplo, porque dentro da prisão, o ente preso que está em uma situação de uso abusivo de álcool e outras drogas teria mais dificuldade de acesso a substâncias consideradas ilícitas - que, em liberdade, poderiam trazer complicações relacionadas ao uso abusivo dessas substâncias. Em uma conversa com uma mãe na fila do Ceresp de Betim, ela nos contou que seu filho, antes de ser preso, já havia sido internado em diversas instituições, especialmente em comunidades terapêuticas, para "tratar" de sua "dependência química". Para ela, apesar de todas as violências como a falta de alimentação saudável, ao estar encarcerado, o seu filho, pelo menos, não teria acesso às substâncias.

Nesses casos, compreendemos que a prisão compõe o que Baratta (2002) chamou de espiral de vulnerabilizações, ou seja, em um contexto capitalista, grande parte das pessoas é submetidas a diversas violências ao longo da vida e a prisão é apenas mais um desses momentos. Assim, quando nos trazem esse tipo de relato, apresentamos algumas possibilidades, como os equipamentos que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), a fim de explicitar que há a possibilidade de lidar com o sofrimento mental e com questões relacionadas ao uso problemático de álcool e outras drogas, em liberdade.

Ao longo do acompanhamento, quando o vínculo de confiança já estava mais estabelecido, conversamos com essa mãe acerca da existência do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (PAI-PJ/TJMG), dos equipamentos da RAPS, além de apresentar espaços coletivos com outras familiares, nos quais é possível a compreensão de que essas violências não são da ordem individual (Kolker, 2018).

Outro elemento do nosso acolhimento psicossocial é o encaminhamento para a Rede Psi, composta por psicólogas voluntárias que fazem acompanhamento psicoterapêutico de familiares e sobreviventes. Essas psicólogas passam por supervisões mensais embasadas nos referenciais teórico-metodológicos do programa. É importante ressaltar que, mesmo quando a pessoa atendida é encaminhada para a Rede Psi, ela não deixa de ser acompanhada pelo(a) extensionista, pois entendemos que o acompanhamento psicoterapêutico é apenas uma das estratégias de enfrentamento dos impactos psicossociais produzidos pelo cárcere, e não pode estar desarticulado das demais.

Ao longo de 2022, uma das queixas apresentadas nas filas dizia respeito à necessidade de comprovar o esquema vacinal contra a Covid-19, e, na fila do Presídio Feminino de Vespasiano, vimos familiares sendo impedidas de entrar por não apresentarem o documento. Elas relataram que, em contato prévio com a unidade prisional, não foram informadas sobre tal requisito. Em certa ocasião, uma familiar não havia levado seu cartão de vacina, mas com o apoio dos(as) extensionistas, conseguiu baixar a versão online, por meio do aplicativo "Conecte SUS".

Outra questão comumente relatada era o receio de que o body scan utilizado na revista fosse acionado por algum erro e a visitante ficasse impedida de visitar. A principal queixa era a de que os policiais penais, despreparados para lidar com o equipamento, confundiam manchas de gases estomacais com produtos cuja entrada não era permitida na prisão, então algumas familiares escolhiam não comer desde o dia anterior para não serem barradas.

Durante as idas às filas, diversas vezes escutamos denúncias sobre práticas de tortura. Fomos abordados por uma mãe no Ceresp de Betim com uma cartela de remédios nas mãos. Com lágrimas, ela nos disse que era para "depressão". Narrou uma série de episódios em que o filho foi obrigado a comer comida estragada e foi espancado pelos agentes de segurança pública. Nesse sentido, foram frequentes os relatos de familiares que utilizam diversos medicamentos para atenuar os sofrimentos provocados pelo encarceramento de um ente.

Ademais, uma reclamação feita em praticamente todas as filas que fomos em 2022 foi a respeito da exigência de escritura pública registrada em cartório ou em sentença judicial declaratória de reconhecimento da união estável para realização de visita íntima. As companheiras relataram que, antes da pandemia, era possível realizar a visita íntima sem ter oficializado o relacionamento. A exigência da escritura pública demandava gastos em razão das despesas com o registro no cartório, além da burocracia para obter algum documento assinado pela pessoa presa. Nesses casos, nosso papel, mais uma vez, é de apresentar as políticas públicas existentes que possam atendê-las. Indicamos, então, a possibilidade de oficializar a relação, casamento ou união estável, por meio de processo judicial pela Defensoria Pública, caso seja do interesse da familiar.

Nas filas, muitas demandas apresentadas pelas familiares diziam respeito a dúvidas jurídicas, especialmente no sentido de procurarem auxílio para a compreensão de termos especializados utilizados ao longo dos processos. Nas filas do Ceresp de Betim, unidade prisional voltada para pessoas que chegaram ao cárcere, em regra, por terem sido presas em flagrante, surgiam dúvidas acerca do que é a prisão em flagrante, a audiência de custódia, a prisão preventiva etc. Assim, nessas conversas, os(as) extensionistas, independentemente de serem ou não da área do Direito, orientavam-nas acerca dessas dúvidas. Para isso, os(as) estudantes passavam por formações jurídicas, nas quais discutiam conceitos relacionados à atuação do CULTHIS, e, caso, no momento das filas, não fosse possível solucionar a dúvida, seria possível fazê-lo no acompanhamento a longo prazo.

Conforme o "Covid-19 nas prisões de Minas Gerais: o que nos dizem as famílias" (Barros et al., 2020), a prisão é um espaço intrinsecamente adoecedor e possui histórico de violações de direitos na área da saúde. Um exemplo são as altas taxas de transmissão de infecções respiratórias, como a tuberculose, que têm incidência de até 100 vezes mais do que na população não encarcerada (Nascimento & Bandeira, 2018). Isso ocorre devido à impossibilidade de isolamento social no ambiente carcerário, além da ausência de estruturas e itens de higiene e de saúde, como máscaras, álcool em gel, produtos de limpeza etc. Nas idas às filas, as familiares relataram que os policiais penais frequentemente não usavam máscaras e que não havia álcool em gel suficiente nas visitas. Um dos possíveis encaminhamentos, nesse caso, diz respeito à realização de denúncias em espaços institucionalizados, como a Defensoria Pública, o Ministério Público ou a própria ouvidoria do sistema prisional.

Outra queixa constante dizia respeito ao envio dos kits pelos Correios, que era a forma principal de entrega de kits ao longo de 2022. As familiares contaram que os kits eram devolvidos quando algum item era arbitrariamente barrado. Assim, além delas terem tido os gastos com os itens, também tinha o gasto com o envio pelos Correios, sendo que, ao retornar, seria um gasto perdido. Nesses momentos, os(as) extensionistas perguntavam se elas estavam inseridas nos grupos de aplicativos de comunicação utilizado por familiares daquela unidade, pois, nesses grupos, trocam informações atualizadas acerca do que pode ou não conter nos kits, de forma a se resguardarem para evitar que a unidade prisional encontre motivos - mesmo que arbitrários - para devolver o que fora enviado pelos Correios.

É possível, então, perceber as articulações e movimentos no sentido de enfrentar os sofrimentos produzidos pelo cárcere. Uma dessas formas dizia respeito à criação de grupos no aplicativo de comunicação Whatsapp para as visitantes de cada unidade prisional. Nesses grupos, elas compartilham informações sobre os dias e os horários das filas, o que pode ou não entrar na unidade prisional nos dias de visita ou de entrega de kits etc. Nas conversas nas filas, elas contaram que só conseguiam se organizar para visitar ou entregar kits depois de entrarem nos grupos, pois, se dependessem de informações apenas por parte da unidade prisional, eram surpreendidas pelas arbitrariedades do sistema.

Nesse sentido, Kolker (2018), ao discutir as estratégias de acolhimento a partir da clínica política, frisa a importância dos espaços coletivos e de solidariedade entre pessoas vítimas de violência de Estado, uma vez que

...dispositivos grupais que ajudem a contextualizar o dano e a compartilhar a experiência com pessoas que viveram situações semelhantes pode estimular a autonomia e proporcionar recursos para a construção coletiva de estratégias para a elaboração dos acontecimentos e à superação da experiência de passividade e impotência. (Kolker, 2018, p. 183)

Dessa forma, com o intuito de enfrentar os sofrimentos impostos pelo cárcere, familiares também se articularam politicamente. Em Minas Gerais, por exemplo, há a Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade de Minas Gerais, mais conhecido como Grupo de Amigos (GAFPPL). O Grupo de Amigos é responsável por diversas estratégias de reivindicações por direitos tanto das pessoas presas quanto das familiares tais como manifestações públicas, audiências públicas, formação política etc. Assim, nas filas, sempre perguntamos às familiares se elas conhecem o Grupo de Amigos, se estão nos grupos de WhattsApp ou se estão, de alguma forma, em contato com outras familiares para que possam, de forma coletiva, enfrentar o dia a dia prisional e encontrar estratégias para lidar com as dificuldades impostas pelo cárcere.

Ao longo de 2022, a Frente Estadual pelo Desencarceramento de Minas Gerais 7 e o Grupo de Amigos mobilizaram diversas atividades de contestação nas quais o CULTHIS foi convocado a participar. Em consequência dessas mobilizações, ocorreu uma edição do Encontro Nacional pelo Desencarceramento, no interior de Minas Gerais, no qual participamos principalmente no suporte e acolhimento psicossocial de familiares e sobreviventes. Ocorreu também uma Audiência Pública na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais em que as familiares reivindicaram, principalmente, a retomada das regras de visitação anteriores à pandemia de Covid-19, e o Programa contribuiu na mobilização e no acolhimento das familiares que estiveram presentes.

Interrogações às Produções em Psicologia no Contexto Prisional

Podemos pensar em alguns elementos que se tornam balizadores a partir da prática do programa de extensão nas filas da prisão anteriormente apresentado, considerando, especialmente, a área da Psicologia. O primeiro elemento refere-se ao surgimento do projeto estar atrelado a um estágio curricular denominado "Abordagens sócio-clínicas do Trabalho" ouvindo histórias de pessoas presas, a partir do método de história de vida, no Departamento de Psicologia. Para tal, é imprescindível a construção de um vínculo de confiança entre as pessoas envolvidas (Nogueira, Barros, Araújo & Pimenta, 2017), naquele momento, no encontro da história de vida, e, atualmente, no atendimento psicossocial nas filas.  O vínculo de confiança é uma situação construída no encontro e depende de vários fatores, mas, sobretudo, da disposição para este encontro. Assim, não é possível analisar, a priori, a disposição do outro, mas no que se refere à disposição dos(as) extensionistas, a possibilidade de análise se dá via análise da implicação, ou seja, sua inserção na realidade em relação com as outras pessoas, com as instituições e consigo mesmo (Amado, 2005). De acordo com Carreteiro (2020) a implicação é a "capacidade de se abrir ao sentido, de acolhê-lo e em primeiro lugar admiti-lo onde ele nos atravessa" (Carreteiro, 2020, p. 93). Por isso a importância, mais uma vez, do registro no diário de campo e sua discussão nas supervisões.

Um segundo elemento refere-se à potência transdisciplinar do programa que se estrutura a partir das convocações da realidade prisional para um grupo de pesquisa em Psicologia, mas que não se limita a essa área. Por ser uma ciência de fronteira, a Psicologia, assim como o CULTHIS, está em constante diálogo com outras áreas como Sociologia, Direito e Terapia Ocupacional, para propor, junto aos familiares e sobreviventes, transformações imediatas e a necessária abolição do cárcere. Nessa mesma direção, o programa é convocado a pensar o cárcere nos espaços oficiais da esfera jurídica, como Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Prisional/MG, Audiências Públicas na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e no Supremo Tribunal Federal.

Assim, o terceiro elemento se articula com o anterior. O saber psicológico é convocado para transformar a realidade prisional, o que disputa com um passado e presente de práticas psis que legitimam o cárcere e suas funções reais (Nascimento & Bandeira, 2018). Apesar das orientações do Conselho Federal de Psicologia e de publicações sobre a construção de uma prática emancipatória, a Psicologia no cárcere ainda segue construindo condições para a perpetuação dessa instituição (Silva Júnior, 2017).

O quarto elemento refere-se aos aspectos do acolhimento psicossocial e seus desafios. Como construir um espaço de acolhimento nas filas das prisões? Essa questão levou-nos a construir ferramentas que auxiliem nesse espaço, tais como produção e distribuição de cartilhas, a divulgação do programa e a articulação com outros grupos, dentre outras. Essas cartilhas - que são entregues nas filas - dizem respeito aos direitos das pessoas presas, suas familiares e sobreviventes do cárcere, além de apontar as políticas públicas existentes e as formas de acessá-las.

Ao mesmo tempo, a escuta engajada baseada na desconstrução das práticas punitivas configura-se como essencial no acolhimento. Esse movimento de desconstrução possui implicação na maneira como acolhemos os sofrimentos advindos do cárcere e suas repercussões subjetivas. Ainda sobre o acolhimento, é importante compreendê-lo de maneira dinâmica, ou seja, as particularidades do cenário psicossocial. Embora a ideia do psicossocial seja articulada com a indissociabilidade de aspectos subjetivos e sociais, a maneira como é apropriada por cada pessoa será distinta, o que, por sua vez, demandará um caminho distinto no acolhimento.

 

Considerações Finais

Em nossa atuação, enquanto programa de extensão, partimos de teorias e práticas abolicionistas penais para compreender o sistema penal e, portanto, entendemos que o encarceramento é um recurso lançado como uma violência de Estado que atinge, seletivamente, uma parcela específica da população, qual seja a classe trabalhadora, especificamente pessoas negras e pobres. Outro ponto de partida importante relaciona-se à construção de um saber científico, especificamente o saber psicológico, na construção de uma sociedade emancipada e sem opressões. Diante desses pontos de partida, como atuar nas filas das prisões? E quais desafios enfrentados? E como isso reverbera na produção em Psicologia?

Ir até as filas nos dias de visita ou de entrega de kits em unidades prisionais nos ajuda a compreender as formas pelas quais o cárcere afeta não só as pessoas encarceradas, mas também suas familiares, que, embora não estejam cumprindo uma pena propriamente dita, são submetidas, a todo instante, à penalização, principalmente ao assumirem o papel do Estado na garantia de direitos das pessoas presas na entrega de kits.

Assim, a Psicologia também se faz presente nesses espaços, embora historicamente tenha contribuído para a manutenção das funções declaradas do cárcere. Ao contrário de classificar e patologizar os sujeitos a partir dos crimes que cometeram, uma das propostas do programa de extensão é justamente recentrar o olhar para a produção de subjetividades em contextos precarizados no modo de produção capitalista. A partir disso, construir resistências coletivas que possibilitem pensar um futuro com dignidade e emancipação das opressões e explorações, seja via organizações de familiares de pessoas presas, pessoas que passaram pelo cárcere, militantes da sociedade civil organizada e universidade.

Não obstante as violências e as arbitrariedades impostas pelo cárcere, nossas experiências nas filas nos mostraram que esse também é um espaço de resistências e de articulações políticas por parte das familiares. Elas se organizavam em grupos de WhatsApp a fim de compartilharem informações acerca do sistema prisional ou se articulavam em associações, com o fim de tanto dar auxílio para outras familiares quanto de pautar politicamente reivindicações de direitos. Assim, a composição dos espaços se dá não somente através do acolhimento individual, mas também no apoio diante de negociações com o Estado e em outros espaços públicos.

Sobre o desafio do acolhimento psicossocial em situações precárias, nas filas é comum um estranhamento dos corpos diferentes que estão naquele espaço. E, quando nos apresentávamos, surgiam falas que explicitavam uma vinculação da Psicologia como uma profissão envolvida "com coisa de gente doida" ou "de gente rica". Diante disso, um dos objetivos do programa é interrogar essa visão tradicional dessa área do saber a fim de oferecer um serviço de acolhimento que propicie um espaço seguro para as familiares nas filas e para os sobreviventes do cárcere. Para alcançar esse objetivo, o engajamento subjetivo no projeto mostra-se de suma importância, pois é preciso se preparar para a ida às filas, que geralmente acontecem aos finais de semana. Tal disponibilidade indica uma disposição para o acolhimento.

Por fim, entendemos que o grande desafio é pensar o cárcere e suas reverberações a partir do abolicionismo penal. Desta maneira, é preciso pensar a produção de conhecimento científico em Psicologia que parta de defesa incontestável da abolição de qualquer cárcere, o que não será possível sem a superação da ordem capitalista.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Carolyne Reis Barros - carolynereis@gmail.com

Recebido em: 30/04/2024
Aceito em: 31/08/2024

 

 

Notas

1 A Plataforma Desencarcera! é um site que recebe denúncias de forma anônima concernente às violações de direitos nos sistemas prisional e socioeducativo de Minas Gerais. Após sua criação, em 2018, a plataforma passou a integrar as atividades do CULTHIS Desde então, há um esforço em reunir as denúncias, agregar os dados, construir relatórios, divulgá-los e apresentá-los a órgãos competentes.
2 Temos parceria com a Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade em Minas Gerais (GAFPPL) e com a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPMG), além de compomos o Conselho da Comunidade da Comarca de Ribeirão das Neves, o Comitê de Monitoramento da Política Antimanicomial de Minas Gerais (Ceimpa) e o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Prisional do Sistema Carcerário (GMF), os dois últimos vinculado ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).
3 Por exemplo, organizamos Grupos de Estudos sobre Criminologia Crítica e Abolicionismo Penal e as atividades contínuas do Diálogos sobre o Cárcere, no qual exibimos algum filme e convidamos pessoas para instigarem a discussão sobre o sistema prisional.
4 Todos os boletins podem ser acessados no seguinte link: <https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/covid-19/>. Acesso em: 12 de abril de 2024.
5 Disponível em: <http://www.seguranca.mg.gov.br/pagamentos-registrados-em-2018-sesp/story/3863-visitas-virtuais-ja-sao-realizadas-em-87-dos-presidios-e-penitenciarias-de-minas-gerais>. Acesso em: 26 de junho de 2023.
6 Associação de Amigos e Familiares de Pessoas Privadas de Liberdade em Minas Gerais (GAPPL-MG), Núcleo Interdisciplinar Sociedade e Encarceramento (NISE) da Universidade Federal de Juiz de Fora, campus de Governador Valadares e Instituto de Pesquisa, Promoção e Intervenção em Direitos Humanos e Cidadania (Instituto DH).
7 Uma das decorrências da Agenda Nacional pelo Desencarceramento foi o surgimento das Frentes Estaduais, responsáveis por articular os objetivos de desencarceramento em nível estadual. Para informações sobre as 10 ações para o desencarceramento no Brasil, acessar: <https://carceraria.org.br/agenda-nacional-pelo-desencarceramento>. Acesso em: 14 de abril de 2024.

 

Financiamento: Bolsas de extensão dos autores 2 e 3, ambas pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Minas Gerais.

 

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