Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e84024, doi:10.12957/epp.2024.84024
ISSN 1808-4281 (online version)
DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE
Cartografias de Relações Familiares de Pessoas LGBTQIA+ em Cárcere
Cartographies of incarcerated LGBTQIA+ Family Relationships
Cartografías de Relaciones Familiares de Personas LGBTQIA+ en la Cárcel
Mateus Soares de Sousa a, Jésio Zamboni a
, Isabella de Almeida Constantino Venturoti a
, Rhânya Maria Silva Cruz a
, Júlio César Florencio de Almeida a
a Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Este artigo tem o objetivo de discutir relações familiares de pessoas presas LGBTQIA+. É vital analisar as relações que configuram identidades de gênero e sexualidade de pessoas consideradas fora da cisheteronormatividade, para que seja possível compreender suas experiências no contexto prisional. O estudo investiga relações familiares numa penitenciária pretendida de referência e exclusiva para população LGBTQIA+, bem como os processos de subjetivação envolvidos. Utilizando a metodologia de cartografias, faz-se possível explorar objetivações e subjetivações como efeitos de práticas, permitindo ao/à pesquisador/a participar na produção de novos territórios político-existenciais. Para isso, foram realizados grupos clínicos institucionais semanais na penitenciária. As análises destacam a complexidade das relações familiares, marcadas por desafios logísticos, violência institucional e normas de gênero. Contudo, o apoio entre os/as internos/as é crucial para a produção de saúde mental no cárcere. As instituições prisionais reforçam normas hegemônicas de gênero e sexualidade, exigindo uma abordagem crítica e clínica na luta por direitos e humanização para pessoas encarceradas, especialmente aquelas enfrentando múltiplas opressões.
Palavras-chave: relações familiares, sexualidade, diversidade de gênero, cisheteronormatividade, sistema prisional.
ABSTRACT
This paper aims to discuss family relationships of LGBTQIA+ prisoners. It is crucial to analyze the relations that configure gender and sexuality identities of individuals considered outside of cisheteronormativity to understand their experiences in the prison context. The study investigates family relationships within a penitentiary intended as a reference to and exclusive for the LGBTQIA+ population, as well as the subjectivation processes involved. Utilizing the cartography as a method of study, it enables the exploration of objectification and subjectification as effects of practices, allowing the researcher to participate in the production of new political-existential territories. To achieve this, weekly institutional clinical groups were conducted in the penitentiary. The analyses highlight the complexity of family relationships, marked by logistical challenges, institutional violence, and gender norms. However, support among inmates is crucial for developing mental health in incarceration. Prison institutions reinforce hegemonic norms of gender and sexuality, demanding a critical and clinical approach in the fight for rights and humanization for incarcerated individuals, especially those facing multiple oppressions.
Keywords: family relationships, sexuality, gender diversity, cisheteronormativity, prison system.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo discutir relaciones familiares de personas LGBTQIA+ encarceladas. Es crucial analizar las relaciones que configuran identidades de género y sexualidad de personas consideradas fuera de la cisheteronormatividad, para comprender sus experiencias en el contexto penitenciario. El estudio investiga las relaciones familiares dentro de una prisión destinada como de referencia y exclusiva para la población LGBTQIA+, así como los procesos de subjetivación involucrados. Utilizando la metodología de cartografías, es posible explorar objetivaciones y subjetivaciones como efectos de prácticas, lo que permite al investigador o la investigadora a participar en la producción de nuevos territorios político-existenciales. Para ello, se realizaron grupos clínicos institucionales semanales en la prisión. Los análisis destacan la complejidad de las relaciones familiares, marcadas por desafíos logísticos, violencia institucional y normas de género. Sin embargo, el apoyo entre los/las internos/as es crucial para la salud mental en la cárcel. Las instituciones penitenciarias refuerzan normas hegemónicas de género y sexualidad, exigiendo un enfoque crítico y clínico en la lucha por derechos y humanización para las personas encarceladas, especialmente aquellas que enfrentan múltiples opresiones.
Palabras clave: relaciones familiares, sexualidad, diversidad de género, cisheteronormatividad, sistema penitenciario.
As dinâmicas familiares das pessoas LGBTQIA+ destacam uma série de desafios desde a descoberta até a revelação da identidade dissidente, geralmente caracterizadas por angústias e isolamento. Atravessadas pela hegemonia da cisheteronormatividade, que estabelece normas sociais baseadas na ideia de que a cisheterossexualidade é natural, essas experiências são moldadas por um conjunto de diretrizes que ditam o comportamento para se enquadrar na norma cisheterossexual. A identidade dissidente é relativa a um sujeito, que tem um corpo que desvia daquilo que se é esperado no âmbito da constituição do gênero e da sexualidade para a cisheteronormatividade. Práticas familiares reforçam essa hegemonia, funcionando como um dispositivo regulatório da sexualidade (Miskolci, 2009; Toledo & Teixeira Filho, 2013).
A presente pesquisa tem o objetivo de perpassar as dinâmicas das relações familiares de sujeitos LGBTQIA+ que se encontram em situação de cárcere; mais especificamente, numa unidade prisional pretendida de referência e exclusiva para a população LGBTQIA+. O material aqui apresentado é fruto da articulação entre uma pesquisa de iniciação científica, executada no ano de 2023, e um projeto de extensão desenvolvido desde 2021 no referido presídio. A nossa premissa será de entender a família enquanto uma produção histórico-cultural, buscando compreender como a diversidade sexual e de gênero permeia as relações familiares, sobretudo quando se compõem com corpos dissidentes em cárcere. Assim, indagamos quais vínculos estes sujeitos conseguem realizar a partir da vida no cárcere.
Jurandir Costa (1979), em "Ordem Médica e Norma Familiar", traça uma narrativa histórica sobre como a medicina se entrelaça com os modos de vida da população brasileira, desde o Brasil colônia até o surgimento da família moderna. Além disso, ele examina as transformações causadas pela higienização das famílias. Desse modo, as contribuições permitem explorar o período colonial a fim de compreender como os conceitos de sexualidade e família foram se entrelaçando ao longo do tempo no país, proporcionando uma visão histórica da concepção da família brasileira.
Durante o período colonial, as famílias brasileiras tinham umas organizações peculiares. As famílias de origem europeia, colonizadoras, cisgêneras e latifundiárias, expandiam suas terras gradualmente; enquanto os homens destas famílias passavam a maior parte do tempo na cidade, as mulheres assumiam o comando das tarefas domésticas, incluindo o cuidado das pessoas escravizadas. Com pouca participação social, estas mulheres realizavam trabalhos manuais, concentrando-se principalmente na varanda para suas atividades. A falta de afeto entre marido e mulher, do ponto de vista contemporâneo da família cisgênera nuclear, era uma característica marcante desse contexto. (Costa, 1979).
Dessarte, a compreensão da família na configuração do Estado moderno se dá através das ações da medicina doméstica burguesa e das campanhas de moralização e higienização da coletividade. Nesse sentido, as contribuições realizadas por Foucault (1979; 1998; 2001; 2005) sobre o final do século XVIII colocam em perspectiva as relações de poder e os dispositivos disciplinares e regulatórios que serão desenvolvidos em torno desse período. A descrição do Brasil colonial na obra de Costa (1979) destaca a interligação entre a medicina e a estrutura familiar, embora, neste momento histórico, se diferencie do que é apresentado por Foucault (1998; 2001) na Europa.
Ademais, a campanha contra a masturbação, que visava as crianças e adolescentes da família burguesa europeia, ao final do século XVIII, surge dessa necessidade médica de interrogar a sexualidade com a intenção de conseguir explicar aquilo que, de certa forma, não era explicável. Nesse sentido, a causalidade da masturbação foi apontada enquanto aquilo que se colocava entre a virtude dos pais e mães e a inocência das crianças. Ora, nesta época, a família burguesa era acompanhada por diversas figuras que habitavam em suas moradias, como babás, governantas, tios/as e primos/as. Devido a essa grande circulação, as famílias não tinham muito controle do que podia acontecer dentro do ambiente familiar. Daí surgem as críticas a essa família estendida: os pais não deviam deixar a responsabilidade de criação de seus filhos para as babás e outras/os criadas/os. Exemplo disto se encontra na preocupação com as "cócegas perversas" das babás; dessa forma, as babás acabavam por masturbar as crianças em momentos oportunos, já que havia um maior tempo de contato com as crianças, e elas eram as responsáveis por estas. (Foucault, 2001).
As famílias, que eram formadas por um conjunto relacional de parentesco e repartição de bens, agora caminhavam para a estrutura de família célula, um espaço corporal, afetivo e sexual baseado na relação direta entre pais/mães e filhos. Desta maneira, as mães e os pais eram instruídos a espiar seus filhos e filhas, procurar por manchas em lençóis, chegar nas pontas dos pés no meio da noite, levantar as cobertas, etc. Assim, começa a se formar um certo controle e regulação das crianças. Os pais vão começando a ter direito sobre o corpo da criança, uma vez que são instruídos a ficarem "em cima" de seus corpos. Nesse sentido, a relação com os pais e as mães fica marcada por práticas de regulação no corpo, torna-se um problema justamente pela formação do direito sobre o corpo do outro, até mesmo deixando brechas para as práticas incestuosas. Posteriormente, algumas medidas mais drásticas apareciam numa forma de controlar jovens masturbadores/as; assim, amarrava-se as mãos das crianças na hora de dormir, pais e mães dormiam nas mesmas camas que as filhas e os filhos, utilizavam-se dos camisolões e do cinto de castidade. (Foucault, 2001).
Foucault (2001) aborda o papel da família como um elo entre a medicina e a sexualidade, destacando como a educação e o cuidado dos/as filhos/as eram moldados pelos preceitos tanto da ciência médica quanto da pedagogia. A repressão e a proibição do que se começava a perceber como expressão sexual infantil desempenharam um papel central na configuração dessa família restrita e privada, na qual se destacavam as relações conjugais e parentais. Além disso, a campanha contra a masturbação desempenhou um papel significativo no controle e na regulação impostos pelo conhecimento médico sobre as famílias: "a família é que vai ser o princípio de determinação, de discriminação da sexualidade, e também o princípio de correção do anormal" (Foucault, 2001, p. 322, grifo nosso).
Retomando Costa (1979), a primeira estratégia foi se livrar das pessoas negras escravizadas que habitavam a casa; daí nasce a noção da/o negra/o enquanto não higiênica/o, de um corpo doente que corrompia moralmente o sujeito branco. Assim, o/a negro/a escravizado/a, agora liberto/a, se depara com a necessidade de ter abrigo e comida, direitos que lhe foram negados uma vez que não possuíam bens. A casa da burguesia, composta somente pela mãe, pai e filhos/as, alcançava os dogmas necessários para a nova organização celular de família. Os pais, as mães e os/as filhos/as agora valorizavam um convívio que se torna cada vez mais privado e íntimo, bem como passa a existir um forte interesse dos/as pais/mães no desenvolvimento físico e sentimental de seus/suas filhos/as. (Costa, 1979).
Além disso, a família influenciada pelo discurso médico, se transforma em um espaço que busca atender aos ideais de doçura, encanto e afeto promovidos pela lógica higienista (Costa, 1979). Assim, a concepção de família como um ambiente onde são estabelecidos e mantidos vínculos afetivos entre os membros, juntamente com cuidados relativos à higiene, saúde e educação, é o resultado de um processo histórico. Portanto, não há uma essência fixa para a família. Em vez disso, sua definição é compreendida aqui a partir das relações de poder que permeiam tanto o ambiente familiar quanto o restante da sociedade (Foucault, 2001).
Véras (2001) destaca que um discurso higienista das vias públicas, ainda presente na sociedade contemporânea, serve de justificativa para a geração de gentrificação nos centros urbanos. Essa gentrificação ocorre quando o planejamento urbano é direcionado para a urbanização capitalista, visando tornar o território lucrativo e atrativo para camadas sociais mais ricas, resultando na exclusão das camadas mais pobres e sua subsequente expulsão do território. Isso força esses indivíduos a abandonarem suas moradias e buscarem novos lares, frequentemente sem apoio e enfrentando múltiplas formas de violência. Posteriormente, muitos/as encontram refúgio nos morros, que mais tarde se transformam em favelas.
As fatalidades do processo de urbanização possuem alvos certeiros das camadas sociais mais pobres. Como aponta Cecília Coimbra (2001) em "Operação Rio: o mito das classes perigosas", as classes perigosas existem no sentido de um conjunto social que vai se formar às margens da sociedade, isto é, aqueles expulsos no processo de gentrificação serão aqueles entendidos enquanto classes perigosas. O perfil destas pessoas é traçado não somente de uma perspectiva econômica: sua cor da pele é vista antes de qualquer outra coisa. Portanto, o modelo socioeconômico tem sua estrutura baseada na racialidade e territorialidade.
Foucault (2001) analisa que, a partir da segunda metade do século XIX, os discursos médicos e jurídicos passam por uma dupla qualificação, introduzindo a noção de "perversidade". Este discurso atua enfatizando a punição apenas quando há intenção de causar dano. Ideias médicas como "imaturidade" e "debilidade do Eu" são incorporadas ao discurso judiciário, associadas à categoria da perversidade, estabelecendo uma interligação entre os domínios jurídico e médico. Esse linguajar, agora utilizado em conjunto pelo médico e pelo jurista, reativa o discurso parental-infantil, um discurso moralizador baseado em valores culturais. Além disso, o discurso reafirma a perversidade como um elemento de perigo social, promovendo um pânico moral que busca identificar inimigos/as e criar oposições.
Nesse contexto, ao considerar a interação entre as lógicas médica e jurídica, é importante destacar a ideia de Instituição Total conforme proposta por Goffman (1974). A partir disso, levar em consideração o caráter histórico que perpassa tais instituições, bem como sua instrumentalização de controle, faz-se pertinente para dialogar com as práticas destas instituições (Goffman, 1974).
Por conseguinte, as atividades são realizadas enquanto obrigações, por todos, em forma de submissão pessoal; portanto, todos os indivíduos são tratados da mesma forma e são obrigados a realizar as atividades em conjunto, deixando os/as internos/as sujeitados/as à equipe dirigente da instituição. Goffman (1974) propõe críticas ao modelo de instituição total, uma vez que representaria espaços de violência institucional. Dessa forma, pensar as tecnologias do controle propostas por Foucault, no contexto institucional da Instituição Total de Goffman, é evidenciar as práticas institucionais de controle ali presentificadas. A prisão se configura enquanto uma instituição total. Os/as internos/as, ou presos/as, são aqueles/as que estão sujeitados/as a conviver todos/as num mesmo plano, com uma mesma rotina, devendo obediência a um grupo dirigente (os/as policiais penais e a direção). Ademais, o contexto prisional também faz emergir questões de gênero e diversidade sexual, sobretudo na unidade prisional onde foi realizada a pesquisa.
A partir da segunda metade do século XVIII, na Europa, surgem duas tecnologias de poder na sociedade, inseparáveis e sobrepostas: a tecnologia reguladora da vida e a tecnologia disciplinar do corpo. A tecnologia disciplinar concentra-se no corpo, produzindo efeitos de individualização para tornar os corpos úteis e dóceis, enfocando a vigilância, o treinamento, o uso e, frequentemente, a punição desses corpos individuais. Por outro lado, a regulação concentra-se na vida da espécie, na multiplicidade dos seres humanos, em uma massa global, para controlar os eventos que podem ocorrer na população. É importante destacar que esses dois poderes não estão no mesmo nível, permitindo sua articulação; assim, os mecanismos reguladores e os mecanismos disciplinares não se excluem, mas se complementam. (Foucault, 2005).
Consequentemente, a tecnologia disciplinar do corpo e a regulação da população se tornam as duas extremidades da organização do poder sobre a vida. Se antes o poder soberano conferia o direito de vida e morte, assim como o pai da família romana tinha o direito de vida sobre seus/uas filhos/as e escravizados/as, pois lhes concedera a vida, o foco agora é diferente: investir na vida. (Foucault, 1998).
A sexualidade é composta pelo controle disciplinar, operando de forma individualizada através da vigilância constante. Além disso, ela está inserida nos amplos processos biológicos de uma população; por exemplo, nos efeitos procriadores que demandam sua regulamentação. Portanto, a sexualidade não apenas depende da disciplina, mas também da regulação. Esse aspecto que transita entre o poder disciplinar e o poder regulatório é a norma, que pode ser definida como algo que "pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar" (Foucault, 2005, p. 302).
Ademais, a norma não é definida como uma "lei natural", mas se distingue por seu papel de exigência e coerção nos domínios em que é aplicada. Isso inclui as técnicas de poder que permeiam o corpo social, bem como instituições tal qual a família, o exército, a escola e a polícia, entre outras. A norma existe justamente pela implicação de indivíduos que escapam do modelo de ideal hegemônico; dessa forma, a mesma funcionará de forma reguladora. Assim, o poder normalizador, enquanto funcionamento da norma, regula quem escapa, em função do ideal.
A norma também opera como uma reivindicação de poder, sendo o elemento no qual o exercício do poder encontra legitimidade e base, constituindo-se como um conceito político. Além disso, a norma implica um princípio de qualificação e correção, não se limitando à função de exclusão e rejeição absolutas, mas sim associada a uma técnica positiva de intervenção e transformação (Foucault, 1998; 2001).
De acordo com Foucault (1979), a partir do século XVIII, a família burguesa assumiu o papel de vigilante da sexualidade infantil, preocupada com o incesto e a masturbação. Portanto, a família adquiriu o poder de questionar e julgar a maneira como seus/uas filhos/as experimentavam o erotismo, tornando-se guardiã da sexualidade. Isso ocorreu devido à proliferação da produção de verdades sobre o sexo, resultando na sexualidade como um dispositivo regulatório.
Nesse sentido, a pesquisa articula o tema da sexualidade no eixo familiar a fim de compreender a formação subjetiva das pessoas LGBTQIA+. Assim, ao pensar a dinâmica familiar de pessoas LGBTQIA+ em cárcere é evidenciar os vínculos de parentescos formados por estes sujeitos. Como revelado por Butler (2003), a partir de novas configurações familiares, não apenas o gênero será performado, mas também as posições na organização e estrutura de parentesco. Butler (2003) define a performatividade como atos, gestos e representações geralmente construídos em relação ao gênero. Assim, a performatividade opera "no sentido de que a essência ou identidade [...] são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos" (Butler, 2003, p. 194). Isso significa que ser mãe, ser pai, ser irmão… todas essas relações serão produzidas de maneira performática. A reiteração deslocada por dissidentes da norma familiar, inventa novos tipos de parentesco, permitindo que homens desempenhem papéis maternais para outros homens, travestis atuem como mães para um grupo de crianças ou assumam o papel paterno na vida das crianças (Cardozo, 2007).
Segundo Butler (1993), as famílias dissidentes da cisheteronormatividade vão adotar termos familiares como uma construção social da comunidade, que se encarrega de cuidar, ensinar e abrigar; isso não passa de uma reconfiguração cultural da parentalidade cisheteronormativa. Colocar em pauta as relações de gênero e de sexualidade dentro do sistema prisional, ao falar-se de pessoas que fogem da cisheteronorma, é de extrema importância para que se entenda a vivência destas pessoas ao chegarem e habitarem as prisões. Existe um ideal de masculinidade que é valorizado dentro do crime, o cisheteronormativo (Zamboni, 2017). Visto isso, as cadeias dos coisas (pessoas que não se encaixam nesse ideal de masculinidade) são formadas e, dentro destas unidades prisionais, têm-se os barracos das monas (celas que são conhecidas por abrigar estes indivíduos). (Zamboni, 2017).
Metodologia
A utilização da cartografia como método de investigação oferece uma abordagem que demanda que o/a pesquisador/a se desloque através de diferentes territórios, a fim de transformar para conhecer, permitindo, assim, a compreensão. Nesse contexto, a cartografia não apenas desenha a realidade, mas também a engendra, conferindo assim um caráter de intervenção à pesquisa. Este processo de transformação visa a compreender a realidade ao mesmo tempo em que a modifica. Essa abordagem é marcada por um cuidadoso acompanhamento dos processos que moldam as experiências e subjetividades. (Cintra et al., 2017; Passos & Eirado, 2009).
Na abordagem cartográfica, é entendido que "o sujeito e o objeto compartilham a mesma experiência, onde o conhecimento é concebido como uma forma de criação e a pesquisa é sempre vista como uma forma de intervenção" (Cintra et al., 2017, p. 47). Através da cartografia, é possível explorar e questionar os diferentes modos de existir e agir, além de reconhecer como a subjetividade é produzida (Cintra et al., 2017). De acordo com Cavagnoli e Maheirie (2020), quando usada por pesquisadores/as no campo da psicologia, a cartografia permite o desenvolvimento de estratégias investigativas que questionam a subjetividade enquanto algo centralizado na suposta interioridade do sujeito.
Barros e Amador (2021) destacam a proposta de Foucault de uma perspectiva arqueogenealógica para compreender os fenômenos sociais. Segundo Foucault (1979), a arqueologia analisa as discursividades locais, enquanto a genealogia considera as relações de poder sustentadas pelos discursos. Essa abordagem visa entender as relações de poder em práticas e as condições que as possibilitaram, considerando constantemente fatores históricos e culturais. Adotar essa perspectiva implica enfrentar as situações presentes considerando sua temporalidade histórica, o que abre espaço para novas abordagens e uma contínua reinvenção da Análise Institucional dentro de seu contexto histórico-conceitual.
Portanto, a utilização da cartografia como método de pesquisa intervencionista, de natureza qualitativa, enriquece a exploração da produção de subjetividade, a qual emerge das narrativas dos sujeitos em análise, especificamente os/as detentos/as do sistema prisional. Ao questionar a distinção entre sujeito e objeto, a cartografia se atenta aos diagramas das relações que constituem modos de saber, considerando que se trata de relações de força (Deleuze, 2005). Dessa maneira, não há objeto ou sujeito de pesquisa dados de antemão, pois estes constituem-se em produtos de processos de subjetivação operados por práticas discursivas e não-discursivas em ação no território pesquisado (Deleuze, 2005; Foucault, 1979; 1998). Sendo assim, as instituições família, LGBTQIA+, prisão, dentre outras, são acompanhadas em nossa cartografia como forças em constante tensionamento e reinvenção performática em meio a relações de poder tensionadas entre práticas de dominação, ou violência, e práticas de liberdade, ou invenção de novos modos de vida. O que nos interessa, afinal, são essas práticas, relacionadas a esse objeto historicamente construído, que é chamado família, e como ele se atualiza e se desloca nas experiências da prisão LGBTQIA+.
Nesse sentido, o território visitado foi uma penitenciária do Sistema Prisional do Espírito Santo - ES. Especificamente, a Penitenciária de Segurança Média 2 (PSME II), primeiro presídio de referência à população LGBTQIA+ no Brasil, gerenciado pela Secretaria de Justiça (SEJUS), inaugurado em 26 de maio de 2021. Assim, a entrada no campo do presídio, permitindo a realização da pesquisa, foi possível através da atuação em conjunto ao Projeto de Extensão "Afetação" - Clínica Transdisciplinar das Violações de Direitos Humanos em Diversidade Sexual e de Gênero, ofertado pelo Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
O projeto de extensão compõe-se integrando extensão e pesquisa. É importante ressaltar que a dimensão de extensão é anterior à pesquisa, tendo a primeira iniciado ao fim do ano de 2021, enquanto a última é datada do primeiro semestre do ano de 2023. Sendo assim, desde então, existe um trabalho respaldado nas experiências da Análise Institucional acontecendo nessa unidade penitenciária. Dessa maneira, as análises aqui retratadas derivam do trabalho coletivo de intervenção institucional, sobre as práticas que constituem o território em questão.
O grupo clínico da extensão, no qual foi realizado a pesquisa, era composto por internos/as selecionados/as pela direção e pela equipe psicossocial do presídio. A participação dos/as internos/as era voluntária; porém, devido a obrigações na escola e questões internas do presídio, a presença nem sempre era possível, o que às vezes afetava a realização do grupo. Os grupos, que aconteceram semanalmente durante o primeiro semestre de 2023, às quartas-feiras pela manhã, variavam em sua composição de 3 a 10 internos/as.
A decisão da entrada da pesquisa na extensão permite uma constante intervenção, uma vez que, na análise das instituições, as análises propriamente ditas, ocorrem durante o próprio processo de intervenção (Zamboni, 2022). Nesse sentido, a pesquisa possui um compromisso ético e analítico, uma vez que coloca os seus próprios processos em análise. Isto é, o trabalho coletivo de pesquisa, atuando junto a extensão, permite o exercício coletivo do pensamento, não somente nas elaborações feitas nos grupos clínicos, mas também nas reuniões de supervisão com o grupo de extensão e as orientações coletivas do grupo de pesquisa. Ainda que o texto tenha sido redigido por uma das partes, a pesquisa é coletiva, sendo capaz de colocar em questão e analisar as suas implicações durante todo processo, justamente pelo auxílio coletivo nas análises e discussões realizadas.
Resultados e Discussão
A primeira encomenda que chega ao grupo de extensão, antes mesmo do projeto se firmar de fato na unidade prisional, acompanha uma série de problemas presentes na criação de um "presídio LGBTQIA+". O primeiro deles: como identificar as pessoas LGBTQIA+? Não obstante, a fim de colocar a encomenda em questão, propôs-se a implementação de uma clínica transdisciplinar no presídio.
No entanto, uma das primeiras questões a se analisar refere-se ao entendimento judiciário brasileiro relativo às questões de gênero e diversidade sexual. O presídio referência LGBTQIA+ conta com a premissa de garantir e assegurar os direitos de seu público-alvo, isto devido ao alto número de violências sofridas por pessoas dissidentes da cisheteronorma em presídios masculinos (Alves, 2021). Contudo, na efetuação das orientações jurídicas, o público-alvo se torna os homens gays e bissexuais, as mulheres trans e travestis. Quanto às mulheres lésbicas e aos homens trans, estas/es geralmente são colocados/as em presídios femininos. Por isso, a própria fachada de um público LGBTQIA+, acaba se reduzindo a uma parcela nichada dessa população. Os internos e as internas da unidade prisional em análise fazem parte deste grupo mais nichado, com demandas específicas para estes. Dessa maneira, os corpos que adentram a unidade penitenciária são aqueles identificados enquanto "biologicamente masculinos" - seguindo uma lógica binária e naturalista para a demarcação de gênero e o controle dos corpos ali presentes. Essa lógica se torna uma sentença: só aceitamos quem tem/teve pau.
Sendo assim, a literatura construída até então é referentes a alas e/ou celas em presídios masculinos que são separadas para o público LGBTQIA+ (Zamboni, 2017). A proposta de um presídio referência a esta população carrega demandas muito distintas, inaugura um campo pouco explorado, um campo que vem se construindo - daí a proposta da pesquisa-intervenção, possibilitar a análise das práticas que compõem o contexto prisional, num contexto completamente inédito. Tendo isso em vista, a lógica na gestão da unidade não pode ser a mesma de uma penitenciária masculina.
Portanto, é crucial a discussão sobre o emprego da sigla LGBTQIA+, especialmente nesta obra. A normatividade heterossexual (Miskolci, 2009) desempenha um papel fundamental na perpetuação dessas concepções biológicas relacionadas à diversidade de gênero. Consequentemente, um presídio rotulado como LGBTQIA+ não é capaz de abarcar toda essa população, uma vez que o sistema cisnormativo tende a julgar os corpos com base em suas genitálias. Berenice Bento (2006) ilustra como o corpo é reduzido à genitália, considerando o órgão genital como o elemento mais relevante, pois, dentro dessa perspectiva, ele determina o sexo do sujeito, conferindo-lhe uma verdade inquestionável. Assim, em uma lógica cisheteronormativa, o genital se torna o definidor do sexo, enfatizando o discurso biológico.
Tais considerações devem levar em conta o contexto prisional. Para isso, Foucault (2001). demonstra a novidade do discurso jurídico-médico, por meio do exame-médico legal que aponta para o conhecimento daquilo que é perigoso. Dessa maneira, o cerne se torna a noção de periculosidade, identificar quem perturba a ordem social, nomeado de indivíduo perigoso. Entretanto, a noção de periculosidade se aproxima, política e epistemologicamente, da noção de perversão. Por isso, o exame médico legal não deriva nem do direito e nem da medicina, apresenta-se com outras regras e outras normas e assegura a junção da medicina e do direito. Não somente isso, o indivíduo perigoso é apontado enquanto aquelas figuras que desviam da norma.
Por consequência, tanto a entrada quanto a saída dos internos e internas da unidade prisional são supervisionadas com base no critério de pertencimento ao público-alvo. No entanto, essa lógica apresenta falhas evidentes, destacadas pelo surgimento de um dispositivo chamado "carta de hétero". Este documento autodeclaratório permite que aqueles que desejem se identificar perante a justiça como homens cisheterossexuais o façam mesmo após terem se declarado parte da população LGBTQIA+. Tal estratégia começou a ser implementada uma vez que entendeu-se que houveram transferências para o presídio de pessoas que não eram parte do público - dessa maneira, a "carta de hétero" concederia uma transferência para penitenciárias consideradas masculinas.
Assim, alguns internos, ainda em penitenciárias masculinas, assumiam participar da comunidade LGBTQIA+, uma vez que receberiam a transferência para a unidade prisional. Porém, o motivo para tal ação sustenta outras demandas - fuga do controle de gangues e facções em presídios, a suposta ideia de que a penitenciária não se enquadra como um presídio violento, dentre outros. Contudo, os/as internos/as do presídio, pertencentes ao público-alvo, também passaram a utilizar tal declaração a fim de sair da penitenciária. Os motivos para isso foram diversos, desde tratamento recebido no presídio, querer voltar para outra unidade devido à existência de parceiros ou, até mesmo, por não suportarem mais a série de violências e violações de direitos enfrentadas no atual presídio.
Além disso, na unidade prisional são observadas práticas que destacam o poder biopolítico exercido sobre os corpos em relação ao gênero. Um exemplo dessas práticas é a regulamentação dos produtos capilares, como os cremes para cabelo, e dos acessórios, como os elásticos para prender os cabelos, conhecidos como "xuxinhas". Dentro do contexto das considerações sobre diversidade de gênero no ambiente prisional, essa regulamentação é aplicada de modo a permitir que apenas pessoas LGBTQIA+ que assumam, e sejam reconhecidas pela equipe dirigente enquanto tais, identidades femininas, ou seja, as travestis e as mulheres trans, tenham acesso a esses produtos disponibilizados pela administração penitenciária.
Dessa maneira, um dos internos - que se coloca enquanto um homem gay e, por isso, acaba por não ter acesso aos cremes e à xuxinha para amarrar o cabelo - se queixa de tal norma aplicada. Entretanto, este interno, ainda que se enxergue enquanto homem gay cis, adota vulgo feminino e possui cabelos longos, que necessitam de maior zelo e cuidado. Durante um dos encontros do grupo, este interno dispara: "eu deveria ter o direito de manter e cuidar do meu cabelo grande, mesmo sem me afirmar travesti, isso é algo básico". Para ele, o cabelo tem um sentido importante nos processos de subjetivação, que ultrapassam as definições identitárias reconhecidas pelos Estado, sendo estes infligidos com a impossibilidade de acesso aos produtos.
Um outro exemplo desse controle está no acesso a certos programas e projetos que acontecem dentro do presídio. Numa das visitas, poucos/as internos/as compareceram ao grupo devido a uma atividade de salão de beleza no ginásio para as internas com identidades femininas, ou seja, as mulheres trans e as travestis. Rapidamente uma das internas no grupo mostra suas unhas das mãos e dos pés pintadas de vermelho, um vermelho forte e vívido. Somente duas delas haviam participado da atividade, uma vez que o outro participante não se considera uma mulher trans, mas sim um homem bissexual. Entretanto, é incômodo perceber que o "dia de beleza", visto enquanto uma atividade de autocuidado e de socialização entre os presos e as presas, ocorre somente para as identidades entendidas enquanto "femininas".
Esta prática demarca como o gênero tem sido entendido na unidade. Trabalha-se, assim, com a mesma lógica de um presídio masculino/feminino dividindo a população LGBTQIA+ da penitenciária por uma lógica binária, por identidades de gênero feminina e masculina. A crítica que se faz ao modelo binarista advém dos impedimentos colocados na pluralidade encontrada nas formas de experienciar a diversidade sexual e de gênero. Nesse sentido, o gênero demarca o acesso a itens de higiene pessoal - creme de cabelo, xuxinhas -, bem como a roupa íntima como a calcinha e o sutiã, elementos que são associados na representação do gênero feminino.
Embora essas questões apresentadas até aqui sejam cruciais para entender a dinâmica institucional do presídio LGBTQIA+, o foco desta pesquisa é o desafio enfrentado na unidade prisional em relação às famílias dos/as detentos/as fora do presídio. Embora as visitas familiares sejam agendadas aos sábados no Complexo Penitenciário em Viana/ES, a penitenciária recebe quase nenhum familiar durante essas visitas. A grande maioria das pessoas que visitam o complexo direciona-se para outras unidades ali presentes, todas masculinas. A escassez de visitas íntimas e familiares recebidas pela comunidade LGBTQIA+ encarcerada é destacada por Novais e Ferreira (2019), revelando o abandono enfrentado por esse grupo. Além disso, a transferência de detentos/as LGBTIQIA+ de todo o estado para esta única unidade prisional referência torna difícil para os familiares, que residem em cidades distantes, realizarem visitas regulares.
De maneira geral, as relações familiares dos internos e das internas têm algumas complicações. Todas as histórias pessoais, contadas durante as sessões do grupo, tomavam forma a partir do contexto familiar e social a qual estavam inseridos durante sua trajetória. Uma das internas começa a se implicar dentro do grupo e toma uma posição de liderança, a partir da qual conta sua história. Em seu relato, enfatiza a relação com o pai, que é muito difícil, uma vez que ele não a compreende e a trata com desdém em concernente à sua sexualidade e transgeneridade. Ademais, traz em seu relato uma frase muito marcante, que seu pai outrora havia lhe dito: "Você só será um homem quando eu morrer". Assim, ao ser perguntada sobre esta frase, revela que seu pai ainda é vivo e, por isso, ela não era um homem, que só o seria ao receber a notícia do falecimento do pai. Dessa maneira, os conflitos com o pai se dão a partir dessa relação já demarcada numa posição de afirmação do gênero masculino, pela parte do pai, para a interna. A frase proferida pelo pai, por sua vez, demarca o campo de assumir uma identidade para si, tarefa que foi fortemente impactante para ela, uma vez que vivencia sua transgeneridade num ambiente familiar hostil. Nesse sentido, a dificuldade da relação provoca um afastamento da família, acentuado, agora ainda mais, pela vida no cárcere.
Outras detentas também contam que sofrem com falta de materiais de higiene e itens pessoais, como o shampoo, o sabonete, o sabão em pó, o chinelo e as xuxinhas. Tais materiais, quando não ofertados pelo presídio, acabam sendo acessados graças ao apoio familiar externo (Novais & Ferreira, 2019). Contudo, poucos/as familiares realizam as visitas e/ou levam itens de higiene para os presos e presas da unidade prisional. Com isso, urge a necessidade de conseguir acessar os itens de outras maneiras, seja negociando com colegas de cela ou participando de uma rede de apoio entre os/as internos/as.
Mas, não somente as relações envoltas de dificuldade fazem parte desse acervo de relatos. Uma das internas relata preocupações com a família que se encontra fora do presídio, pois teve notícias da mãe, de sua irmã e sobrinhos recentemente. Alega que estar lá fora possibilitaria estar próxima à sua família, bem como ajudá-la nas tarefas e ajudar a prover, oferecer uma vida confortável a estes com quem se preocupa. Outra detenta relata o estado de saúde de sua mãe, que vem se agravado, impossibilitando suas visitas e tornando-as cada vez menos frequentes; além do contato telefônico com ela, que também vem diminuindo. Ainda assim, conta sobre sua relação com a mãe, que é muito agradável e o quanto o cárcere provoca sentimentos de saudades em relação aos entes queridos.
Do ponto de vista analítico, a série de violências no sistema prisional brasileiro não apenas priva os indivíduos de conviverem na sociedade, mas também afeta diretamente sua saúde mental. Embora o sistema prisional busque eliminar o contato dos/as detentos/as com a sociedade, há dispositivos como as visitas e cumprimento de pena em liberdade; entretanto, o contato com a família muitas vezes é escasso e precário (Novais & Ferreira, 2019). Para as/os internas/os da penitenciária, lidar com a realidade do presídio tem se tornado cada vez mais difícil, pois se sentem abandonadas/os, longe de seus entes queridos, e enfrentam dificuldades e violações no ambiente prisional. Nesse contexto, o trabalho de extensão busca oferecer suporte por meio da clínica transdisciplinar, buscando promover ampliação da autonomia das/os internas/os, permitindo que expressem seus sentimentos, desejos e sonhos, e oferecendo um cuidado centrado na escuta.
Durante as trocas nos grupos, vários são os relatos do funcionamento do presídio, interações com outros internos, dinâmica da instituição. Nisso, é possível compreender e analisar diversas práticas utilizadas por essa equipe, efetuando determinado controle, assim como pelos internos e internas, criando estratégias para lidar com a vida em cárcere.
No entanto, uma grande parte dos relatos nos grupos tratava de seus relacionamentos e afetos nos presídios. Assim, os relatos sobre escapadas sexuais, momentos de afeto e prazer com seus/suas companheiros/as eram sempre presentes. Como afirma Sander (2021), as relações sexuais e amorosas vividas no cárcere são significativas para a dinâmica institucional do presídio. Daí surgem, também, os relatos das relações que existem dentro do presídio; afinal, estão restritos/as somente ao contato com os/as outros/as internos/as e a equipe dirigente. A partir destas relações, são possíveis performances de parentesco dissidente. Da mesma forma que a parentalidade é performada pelas relações cisheterossexuais, através da performance de determinado gênero, emergem novas modalidades de família dissidentes da cisheteronorma (Butler, 2003).
Dessa maneira, o parentesco proposto em Paris is Burning (Livingston, 1990) permite a construção social de uma comunidade, como reelaboração do que seria a parentalidade da cisheteronorma (Butler, 1993). No filme, é introduzida a cultura do Ballroom, onde as casas competem em diferentes categorias que dão visibilidade a corpos queers e negros -- corpos marcados pela sociedade, sujeitados a condições de vulnerabilidade e preconceito. Assim, as casas são compostas por dissidentes das normas de gênero e sexualidade. Estes se ajuntam através da necessidade de moradia, alimentação e rede de apoio, e acabam por encontrar nestas relações o que lhe foi negado como condições básicas de existência. Ademais, vivenciar uma experiência de vida fora das amarras da cisheteronorma frequentemente leva a consequências como um relacionamento conflituoso com a família, a expulsão de casa e o abandono familiar. Daí a necessidade de formar as casas, abrigando as famílias formadas através da performance do parentesco; assim, por exemplo, mulheres trans tornam-se mães de homens gays que, por sua vez, têm outros/as irmãos/ãs para conviver.
Sendo assim, tal ideia, proposta na película e articulada por Butler (1993), adentra o meio prisional de formas diferentes. Foi possível extrair, nos relatos das internas e internos, fragmentos das relações que se constituem para além dos grupos clínicos. As internas se organizam em grupos mais próximos, em torno de uma, no papel de liderança, aponta enquanto de confiança. Dessa maneira, organizam-se a fim de se proteger e nutrir relações.
O contexto prisional acaba por intensificar as situações vivenciadas ali. A PSME II é um presídio recente, por isso, ainda não existe a formação de gangues ou presença de facções. Sendo assim, as lideranças aparecem na medida em que encontram ali pessoas próximas e de confiança, numa reelaboração da função materna: a que cuida, no contexto prisional, a que impõe respeito, protege os seus. Portanto, estes grupos podem ser encarados como uma performance de parentesco, possibilitando novas relações, novas estratégias, conforto e uma rede de apoio. Pensar tais acontecimentos no cárcere é evidenciar a importância dos vínculos na preservação de subjetividades.
Ademais, as relações conjugais, as relações românticas e as relações sexuais compõem a rede de trocas entre as internas e os internos dos presídios; sobretudo, na penitenciária pesquisada. Dessa maneira, muitos dos sujeitos ali presentes arranjam namorados ou namoradas dentro de uma mesma cela ou galeria. É imprescindível o valor dos vínculos formados a partir destes encontros.
Contudo, embora as relações aconteçam ali, não significa que não enfrentem dificuldades. Os/as policiais penais têm utilizado estratégias a fim de separar alguns casais da mesma cela ou galeria. Assim, as transferências são realizadas com o objetivo de prevenir conflitos e resistências. Este acontecimento demarca mais uma das práticas a fim de regulamentar e controlar a sexualidade (Foucault, 2005). Esta normatização é implementada também para tentar evitar as relações sexuais entre os/as internos/as. Além disso, são inúmeros os relatos de violências homofóbicas e transfóbicas praticadas pelos/as policiais penais. Agressões que vão de xingamentos à violência física. As punições, então, se agravam ainda mais a partir de práticas respaldas em preconceitos, quando se tem seus direitos violados.
Considerações Finais
A pesquisa realizada teve como principal objetivo investigar a produção de subjetividade em um presídio LGBTQIA+, utilizando o método da cartografia como instrumento. Através da análise das dinâmicas internas da instituição prisional, observou-se que a noção de identidade de gênero e orientação sexual é profundamente marcada pelas normas cisheteronormativas.
A literatura revisada dialoga diretamente com os resultados observados na pesquisa, destacando a complexidade e desafios de implementar um sistema penitenciário voltado para a população LGBTQIA+. Assim, revelam que a lógica binária da cisheteronormatividade, baseada em características biológicas, predomina na gestão das unidades prisionais, restringindo o acesso a direitos e perpetuando a marginalização de certas identidades.
Os relatos dos internos/as revelam violências físicas e verbais por parte dos/as policiais penais, além de práticas discriminatórias e de controle sobre a sexualidade e a expressão de gênero. Essas violações impactam diretamente na saúde mental dos/as detentos/as, tornando a vida no presídio cada vez mais desafiadora. O trabalho de extensão busca oferecer apoio por meio de uma clínica transdisciplinar, proporcionando um espaço de ampliação do grau de autonomia dos internos.
As relações familiares dos/as detentos/as também são marcadas por dificuldades, refletindo histórias pessoais complexas e muitas vezes conflituosas. A falta de apoio financeiro e emocional por parte das famílias agrava o sentimento de isolamento. Ademais, as relações estabelecidas dentro do presídio, incluindo vínculos conjugais e afetivos, são entendidas como invenção de novos modos de vida.
A principal limitação da pesquisa cartográfica em uma prisão reside no controle rígido e na restrição da fluidez, características do ambiente prisional. O cárcere é organizado para manter a segregação e o controle das pessoas. Ainda assim, a pesquisa cartográfica torna-se viável, pois viver é conhecer, e cartografar é uma maneira de fazer isso. Portanto, onde há vida, a cartografia é possível. As ferramentas cartográficas permitem circular e criar, mesmo diante de barreiras e hierarquias, possibilitando que a exploração e a invenção ocorram apesar das restrições impostas. (Leite, 2014).
Essas dificuldades, no entanto, revelam desdobramentos importantes para futuras pesquisas: o estudo destaca a necessidade urgente de políticas mais inclusivas e sensíveis à diversidade dentro do sistema prisional, visando garantir o respeito aos direitos humanos e promover condições dignas de vida para todos os detentos, principalmente quando se trata de um público que enfrenta violências adicionais devido à sua identidade sexual e de gênero.
Referências
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Endereço para correspondência
Mateus Soares de Sousa - mateusoares00@hotmail.com
Recebido em: 30/04/2024
Aceito em: 10/10/2024
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