Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e84002, doi:10.12957/epp.2024.84002
ISSN 1808-4281 (online version)
DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE
Possibilidades e Impasses de uma Conversação em uma Instituição Prisional: Um Relato de Experiência
Possibilities and Impasses of a Conversation in a Prison Institution: An Experience Report
Posibilidades e Impases de una Conversación en una Institución Penitenciaria: Un Informe de una Experiencia
Talita Martins Ferreira a, Magali Milene Silva a
a Universidade Federal de São João Del Rei - UFSJ, São João Del Rei, MG, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
O artigo visa discorrer sobre as possibilidades e os impasses em relação à escuta psicanalítica coletivizada, viabilizada pela Conversação na experiência do projeto de extensão em uma unidade prisional muito específica: uma Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) de Minas Gerais. Essa instituição é uma entidade civil de direito privado, que auxilia o sistema judiciário na execução das penas por meio de métodos alternativos aos do regime penal comum. Discute-se a Conversação a partir das ideias de associação livre coletivizada, aposta na palavra, busca por um ponto de real do sujeito, diferença de uma simples conversa e manejo transferencial que se faz dela. Tais pontos são dialogados com exemplos da prática do projeto dentro da instituição apaqueana. Parte-se da aposta da escuta coletivizada como possibilidade de se ouvir mal-estar e de se construir um trabalho em torno dele para além da repetição sintomática, possibilitando avanços não apenas para cada sujeito institucionalizado, mas também para a instituição.
Palavras-chave: conversação, psicanálise, extensão, prisão, APAC.
ABSTRACT
The article aims to discuss the possibilities and impasses in relation to collectivized psychoanalytic listening, made possible by Conversation in the experience of the extension project in a very specific prison unit: an Association for the Protection and Assistance of Convicts (APAC) in Minas Gerais. This institution is a civil entity under private law that assists the judicial system in the execution of sentences through alternative methods to those of the common penal regime. The Conversation is discussed based on the ideas of collectivized free association, betting on the word, the search for a point of reality for the subject, the difference between a simple conversation and the transferential handling of it. These points are dialogued with examples of the project's practice within the APAC institution. We start from the idea of collectivized listening as a possibility of hearing the malaise and building a work around it that goes beyond symptomatic repetition, enabling progress not only for each institutionalized subject, but also for the institution.
Keywords: conversation, psychoanalysis, outreach, prison, APAC.
RESUMEN
El artículo pretende discutir las posibilidades e impases en relación a la escucha psicoanalítica colectivizada, posibilitada por la Conversación en la experiencia del proyecto de extensión en una unidad carcelaria muy específica: una Asociación de Protección y Asistencia a los Condenados (APAC) en Minas Gerais. Esta institución es una entidad civil de derecho privado que auxilia al sistema judicial en la ejecución de las penas a través de métodos alternativos a los del régimen penal ordinario. La Conversación se discute a partir de las ideas de la libre asociación colectivizada, la apuesta por la palabra, la búsqueda de un punto de realidad para el sujeto, la diferencia entre una simple conversación y el manejo transferencial de la misma. Estos puntos dialogan con ejemplos de la práctica del proyecto en la institución APAC. El punto de partida es la escucha colectivizada como forma de escuchar el malestar y construir en torno a él un trabajo que vaya más allá de la repetición sintomática, permitiendo el progreso no sólo de cada sujeto institucionalizado, sino también de la institución.
Palabras clave: conversación, psicoanálisis, extensión, prisión, APAC.
O presente artigo objetiva caracterizar e problematizar a escuta clínica psicanalítica coletivizada em uma instituição prisional, possibilitada pela Conversação, dialogando com exemplos práticos advindos da experiência do projeto de extensão Outro-Papo - A psicanálise e as possibilidades de escuta na Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), efetivado por extensionistas da Universidade Federal de São João del-Rei durante três semestres.
Inicialmente, cabe ressaltar que a problemática dos presídios brasileiros está longe de ser uma discussão recente e simples. Nesse sentido, Jesus (2023) analisa a situação do cárcere no país, abordando desde a história das prisões no Brasil até as causas subjacentes dos seus problemas. Para o autor, as problemáticas mais críticas do sistema envolvem: a superlotação; a violência; os conflitos que vão da relação entre os detentos até relatos de abusos físicos e psicológicos por parte de funcionários do sistema; a incapacidade de ressocialização dos detentos; a falta de programas de educação; o treinamento profissional e o apoio psicológico, que deixam os apenados em um estado de vulnerabilidade e sem perspectivas de futuro, o que pode levá-los de volta ao crime.
Nesse contexto, a APAC surgiu como uma resposta à crise do sistema carcerário em 1972, na cidade de São José dos Campos - SP, sendo idealizada por um grupo de voluntários cristãos, sob a liderança do advogado e jornalista Dr. Mário Ottoboni. Segundo Ottoboni (2006), a APAC pretende oferecer "uma metodologia que rompe com o sistema penal vigente, cruel em todos os aspectos" (p. 29), e que não tem desenvolvido o que seria o objetivo principal da prisão: ressocializar. Assim, ao adentrar em uma das unidades da APAC, o preso recebe a denominação de recuperando, "enfatizando, assim, o propósito de recuperar e curar" (p. 29).
A APAC é uma entidade civil de direito privado, que auxilia o sistema judiciário na execução das penas por meio de métodos alternativos aos do regime penal comum. Tais métodos incluem a inserção dos recuperandos em atividades laborais, educacionais e profissionalizantes, todas realizadas sob rígida disciplina, sendo muitas delas de caráter obrigatório, já que, para a entidade, o elemento trabalho é essencial na ressocialização dos apenados. Além disso, os recuperandos também são inseridos em atividades de cunho religioso, as quais, de acordo com a instituição, são de participação voluntária e contribuem para a sensibilização dos apenados (APAC, s.d). Acerca da questão da religiosidade importa destacar que ela se mostra controversa, pois, embora o discurso apaqueano seja de que as diferenças religiosas são respeitadas, diversas publicações advindas de trabalhos realizados nas unidades apaqueanas apontam que a predominância é da religião cristã. Tal problemática é discutida por Rodrigues et al. (2023).
Atualmente, existem 68 unidades da APAC em funcionamento no Brasil, sendo que 49 se encontram no estado de Minas Gerais (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais [TJMG], 2023). Nesse sentido, é relevante questionar as razões para a quantidade de unidades no estado mineiro. Na perspectiva de Miranda e Teixeira (2021), a metodologia se desenvolveu de tal forma em Minas Gerais, pois foi o estado "que mais demonstrou interesse em desenvolver mecanismos para a aplicação do método e que, por conta disso, o tem efetivamente empregado" (p. 549). Os autores pontuam que o estado mineiro "conferiu ao método a condição de órgão parceiro da justiça, fato que possibilitou à metodologia contar com amparo legal e auxílio do judiciário para que sua aplicação seja contínua ao longo do tempo" (p. 549).
Diante disso, é imprescindível questionar as motivações para tal parceria: seria o baixo custo para o estado? Além disso, por que a proposta atenderia aos interesses de Minas Gerais mais do que de outros estados brasileiros? Embora Miranda e Teixeira (2021) não apontem outras razões para o sucesso da implementação das APACs em Minas Gerais, é interessante destacar, novamente, que a metodologia tem um importante vínculo com a religião cristã, a qual, por sua vez, tem muitos adeptos no estado mineiro. Assim, importante questionar: a instituição poderia estar se beneficiando mais no estado de Minas Gerais, já que nele existe maior possibilidade do uso do trabalho dos voluntários vinculados à religião cristã?
A instituição estudada possui diferentes prédios de cumprimento de pena para homens e mulheres, os quais são divididos em regimes fechado, semiaberto, aberto e provisório. De acordo com dados divulgados por ela própria, a unidade masculina contava, no momento da pesquisa, com cerca de 300 internos e a feminina, com cerca de 65 internas, possuindo um quadro com 20 funcionários, tendo somente uma psicóloga.
É importante destacar que na referida instituição há a existência inédita de um regime feminino provisório, isto é, um regime formado por mulheres que ainda não foram julgadas. Tal singularidade é justificada em razão de não se ter um presídio feminino nas proximidades onde se encontra essa unidade apaqueana. Assim, todas as mulheres, que são autuadas, são imediatamente levadas para esse regime "singular".
No entanto, a APAC, enquanto entidade, não possui prescrição para o funcionamento de regimes provisórios. Assim, teoricamente, só deveriam ser encaminhados para a instituição, apenados que já foram condenados e que apresentaram bom comportamento nos presídios tradicionais. Nesse sentido, cabe pôr em questão: a existência desse regime não seria um desvio do que a APAC se propõe? Como as mulheres são tratadas nesse espaço aparentemente "improvisado"? Ademais, é válido questionar: qual o tempo médio que as mulheres ficam nesse regime? Esse último questionamento parte da escuta do projeto de extensão Outro Papo, que ouviu diversas mulheres se queixarem de estarem a meses no regime provisório aguardando julgamento sem saberem se estariam na instituição no dia seguinte ou se receberiam uma sentença de anos de prisão.
As Conversações para esta pesquisa aconteceram nos quatro regimes de cumprimento de pena existentes: fechado masculino, fechado feminino, semiaberto feminino e provisório feminino. Os regimes fechados, tanto feminino quanto masculino, são os mais restritivos, em que os apenados cumprem a maior parte de suas penas. Nesses regimes, os recuperandos não têm direito de saírem dos muros da instituição para trabalhar e não têm o benefício da saída temporária nos feriados. Conforme o APAC (s.d.), o regime fechado é "o tempo de recuperação". Já o regime semiaberto é caracterizado por maior liberdade dos recuperandos. Nesse regime, apenados podem sair para trabalhar e têm direito a saídas temporárias. A APAC (s.d.) define tal regime como "tempo para a profissionalização". Por fim, o regime provisório, como já problematizado anteriormente, é o local onde as mulheres aguardam julgamento, sendo um regime inédito no histórico apaqueano. Desse modo, cada um desses regimes possui dinâmicas muito particulares, as quais tiveram impactos nas Conversações, que aconteceram em seus espaços.
Diante disso, pretende-se discutir como ocorreram as Conversações na citada instituição e como as experiências vividas pelos extensionistas do projeto puderam contribuir para um aprofundamento da caracterização dessa metodologia. Além disso, parte-se da aposta da escuta coletivizada, viabilizada pela Conversação, como possibilidade de deixar aparecer discursivamente o mal-estar e de se construir um trabalho em torno dele para além da repetição sintomática, possibilitando avanços não apenas para cada sujeito, mas também para a instituição.
Alguns Apontamentos Metodológicos
A intervenção do projeto de extensão propôs a realização de Conversações nos quatro regimes anteriormente descritos. Essas Conversações variavam em duração e contaram com a participação voluntária dos apenados. Os temas discutidos eram livres, sem que os mediadores escolhessem assuntos específicos. Em vez disso, os mediadores faziam intervenções que buscavam ampliar as possibilidades a partir das questões e temas trazidos pelos participantes.
Em termos quantitativos, cada regime teve, em média, 10 encontros por semestre, o que variou em razão de questões institucionais, que, às vezes, impediam que a Conversação em determinado regime acontecesse em algumas ocasiões, totalizando em torno de 30 encontros por regime. Cada Conversação teve dois mediadores, os quais produziam, ao final de cada encontro, diários de campo, que seguiam o princípio psicanalítico de escuta equiflutuante; ou seja, não eram anotações que tinham um foco central, mas sim expressões, brechas e palavras, que poderiam construir e reconstruir sentidos possíveis. Foram utilizados, na presente análise, esses registros e as discussões em supervisão.
A análise da experiência foi conduzida conforme o conceito de leitura dirigida pela escuta e transferência instrumentalizada propostos por Iribarry (2003). O primeiro diz respeito ao método pelo qual o pesquisador identifica contribuições singulares a partir da literatura existente, buscando identificar significantes cujos sentidos servem como subsídios para o problema de pesquisa norteador da investigação. Já a transferência instrumentalizada é o processo pelo qual o pesquisador interage com os dados de pesquisa relacionando-os com a literatura relevante e desenvolvendo impressões que refletem as suas expectativas em relação ao problema de pesquisa. Ou seja, trata-se de um modo de investigação que leva em consideração os pressupostos psicanalíticos sobre o sujeito, o desejo e a transferência, integrando essas dimensões na análise dos dados.
Importa destacar que a Conversação é uma prática que foi formulada no Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Infância [CIEN], na França, em julho de 1996, com o objetivo de ampliar as pesquisas que conversam a psicanálise com outros discursos, que têm aplicação sobre a criança (Miranda et al. 2006). Tal dispositivo foi elaborado por Jacques-Allain Miller, que partiu da possibilidade do exercício da psicanálise em extensão.
Por sua vez, a psicanálise em extensão foi definida por Lacan (2003) como tudo aquilo que presentifica a psicanálise no mundo. Portanto, é toda presentificação da psicanálise na mídia, nos livros, na universidade, na pesquisa em psicanálise, etc. É a partir dela que se daria o direcionamento para a psicanálise em intenção, que seria a parte responsável por preparar, por meio da didática, os operadores para a extensão, ou seja, o que conota a singularidade da experiência (clínica) psicanalítica. Como ressalta Rosa (2016), enquanto a psicanálise em intensão se trata da doutrina e do corpo teórico, a psicanálise em extensão é a prática, sendo composta pela articulação da clínica com ciências afins.
A Conversação parte dessa noção lacaniana e de sua possibilidade de ser um operador político, que possui a finalidade de ampliar a área de atuação psicanalítica para além da clínica privada, colocando-a em espaços públicos e disseminando-a na cultura. A Conversação dentro de uma instituição de cumprimento de pena deve ser considerada como psicanálise em extensão, dado que ela é uma aposta na contingência do encontro como um possível gerador de consequências.
Nesse sentido, o presente artigo irá caracterizar e colocar questões sobre a metodologia da Conversação a partir das conceituações levantadas por Miranda et al. (2006), sendo elas: associação livre coletivizada, aposta na palavra, busca por um ponto de real do sujeito, diferença de uma simples conversa e manejo transferencial que se faz na Conversação. Tais pontos serão exemplificados com situações presenciadas dentro do projeto de extensão Outro Papo.
Conversação: Uma Associação Livre Coletivizada
É possível ofertar uma escuta psicanalítica coletivizada sem perder os princípios orientadores da psicanálise? Miller (2003), por meio do seu entendimento em relação à Conversação, diria que sim. De acordo com ele, a Conversação seria:
(...) uma situação de associação livre, se ela é exitosa. A associação livre pode ser coletivizada na medida em que não somos donos dos significantes. Um significante chama outro significante, não sendo tão importante quem o produz em um momento dado. Se confiamos na cadeia de significantes, vários participam do mesmo (..). Quando as coisas me tocam, os significantes de outros me dão idéias, me ajudam e, finalmente, resulta — às vezes — algo novo, um ângulo novo, perspectivas inéditas (Miller, 2003, pp. 15-16) 1.
Nesse sentido, um aspecto primordial da Conversação é a livre associação coletivizada e seus efeitos de saber. Diferentemente da experiência clínica individual - em que o ato de fazer associações livremente constitui a regra fundamental solicitada pelo analista ao analisante -, na Conversação, a associação livre ocorre de forma espontânea, movida pelo voto de confiança que cada um dos participantes deposita nesse dispositivo de escuta (Zeldin, 1999).
A experiência do projeto de extensão Outro Papo demonstrou que ganhar esse voto de confiança dos participantes não é um trabalho simples. Quando a Conversação teve início num dos regimes em que foi ofertada, a desconfiança pelo projeto se fazia notar na falta de implicação das falas depositadas no grupo. Os recuperandos pareciam apenas reproduzir o discurso apaqueano, ressaltando gratidão pelas oportunidades oferecidas pela APAC e comprometimento com a mudança de vida no pós-cárcere. Ou seja, os participantes pareciam ver nos mediadores do projeto apenas mais alguns dos representantes da instituição e seguiam falando o que supunham que os extensionistas queriam ouvir. Diante disso, foi necessário tempo e que os mediadores se recusassem o papel que os recuperandos lhes atribuíram para que as inquietações acerca do discurso institucional perfeito começassem a aparecer, gerando questões significativas para a reflexão e análise.
Em relação ao tempo, é válido dizer que a constância do projeto foi vista como algo novo e positivo dentro da instituição, uma vez que tanto os funcionários quanto os recuperandos disseram haver uma grande diversidade de trabalhos que se já se iniciam na unidade, porém não tiveram continuidade. Os recuperandos, inclusive, chegaram a relatar que se sentem como "cobaias"de algumas iniciativas, como, por exemplo, das consultas médicas gratuitas oferecidas. Nessas consultas, diversos alunos da medicina os observavam, porém sem criarem nenhuma relação com eles. Também relataram casos de estudantes que vão à instituição para fazerem alguma pesquisa e não dão nenhum tipo de retorno aos envolvidos, o que aponta que as estruturas de exclusão se repetem mesmo em iniciativas que visam ultrapassá-las. Assim, a continuidade do projeto de extensão Outro Papo por um longo período de tempo foi bem recebida, o que contribuir para a criação de um vínculo de confiança.
Já em relação à recusa da posição inicial de representantes da instituição dada pelos recuperandos, uma estratégia adotada pelos mediadores do projeto foi manter a Conversação como uma atividade aberta e não obrigatória. Tal postura foi significativa, pois os recuperandos não tinham opção de recusar a participação na maior parte das atividades oferecidas dentro da APAC. Dessa forma, a consideração pelo desejo dos recuperandos de estarem ou não na Conversação assim como de falarem ou não durante os encontros. Além disso, o fato de os mediadores não escolherem os assuntos da Conversação e não cercearem temas, foi propiciando a construção de outro espaço de circulação de palavra, diferente dos espaços ofertados no cotidiano da instituição. Nessa direção, outra conduta adotada pelos mediadores foi não julgar o que os recuperandos diziam, conduzindo questionamentos diante dos julgamentos que apareciam e fazendo escutar as diferentes posições trazidas pelos participantes.
Os primeiros indícios de que uma confiança estava sendo construída surgiram quando os recuperandos passaram a colocar em palavras algumas contrariedades em relação ao cotidiano na APAC em frases como: "A vida no presídio era melhor que a vida na APAC" e "No presídio, eu tinha mais liberdade". A partir disso, os recuperandos deram um novo lugar para os mediadores: eles não mais eram vistos como representantes da instituição, mas como forasteiros dispostos a escutar o que, de fato, eles queriam dizer, mesmo que fosse discrepante do que era esperado pela instituição. O significante eleito pelos recuperandos para nomear os novos forasteiros foi "galera da psicanálise". Provavelmente, tal significante tenha aparecido, inicialmente, na fala de um dos funcionários da instituição. De todo modo, atualmente o projeto é conhecido dessa forma e, desde então, muitas coisas inéditas surgiram nas Conversações. Uma delas é que para demarcar essa nova posição que o projeto ganhou, a equipe criou crachás para serem usados pelos mediadores durantes os encontros. Tal elemento contribuiu para que o projeto continue sendo visto como algo além da instituição.
Nesse sentido, é importante lembrar que Klautau (2023) discute a ideia da livre associação coletivizada a partir da experiência de um projeto de extensão, que propõe escuta grupal em um curso de pré-vestibular comunitário. Na visão da autora, a escuta psicanalítica no âmbito coletivo pode ser vista como uma forma de cuidado e, também, como um ato político. Ao promover a associação livre coletivizada, faz-se possível alcançar uma dimensão singular e desencadear processos de subjetivação. Portanto, a livre associação coletivizada pode ser crucial para enfrentar o silenciamento gerado pela naturalização das injustiças sociais, abrindo espaço para questionar posições cristalizadas na sociedade.
Para Miranda et al. (2006), a associação livre coletivizada gira em função do que não vai bem - um ponto de sofrimento ou um impasse diante de um real insuportável, que causa mal-estar - e permite a cada sujeito nela envolvido sair da paralisação, que o impede de tomar a palavra e de agir de acordo com seu próprio desejo. Assim como na análise individual, em que o trabalho se baseia no mal-estar do analisante e visa produzir novos encaminhamentos, a escuta analítica coletivizada orienta o grupo na construção de novas direções.
Um movimento que pôde ser presenciado na prática do projeto de extensão Outro Papo, e exemplifica o que Miranda et al. (2006) argumentam, parte de um mal-estar que estava presente nas Conversações, as quais aconteciam em um dos regimes. Inicia-se com uma queixa de um dos recuperandos: "O que mais me incomoda na APAC é ter que conviver no mesmo ambiente que os Jack". "Jack" é o nome que os apenados dão para os condenados por estupro, os quais, em presídios tradicionais, são colocados em celas especiais por causa do ódio que geram nos outros detentos. A partir dessa primeira queixa, vários recuperandos começaram a relatar o quanto também se identificam com a fala e o que acham que deveria ser feito com "os Jack".
Seriam precisos tempo de trabalho, angústia e travessia de pontos de impasse para que pudessem escutar a pergunta da mediadora sobre as questões subjetivas subjacentes a esses afetos tão intensos que o crime de estupro despertava em cada um. Falaram em defesa das mães e irmãs, de hierarquias dos crimes e erros, da qualificação de pessoas, de possibilidades e impossibilidades de mudança. Repetiram as justificativas comuns. Poderiam, de fato, se questionarem onde eram subjetivamente tocados pelo estupro? O mal-estar da Conversação se intensificou quando, uma semana depois, a equipe do projeto foi convidada a ter uma conversa com representantes da instituição, que ressaltaram que na APAC é proibido que se fale sobre os crimes, já que o lema da instituição é "Aqui entra o homem, o delito fica lá fora" (APAC, s.d).
Falar do tema abertamente mobilizou conversas entre eles, queixas de quem se identificava com o estuprador e com o ódio ao estuprador. Agitação e mal-estar passaram a fazer parte do funcionamento cotidiano, o trabalho dos funcionários, a convivência entre eles. Toda a situação gerou muitos questionamentos para a equipe do projeto de extensão Outro Papo: como colocar a trabalho o mal-estar causado pelo crime de estupro sem que se fale sobre ele? Como questionar o ódio sobre esse crime sem poder elaborar o que cada sujeito sente em relação a ele?
O tema não voltou nas Conversações seguintes, mas uma mobilização para garantir a possibilidade de fala nas Conversações foi conduzida pelos participantes. Eles temeram que os encontros fossem proibidos e decidiram se organizar coletivamente para fazerem valer o desejo de manter o grupo, recorrendo a acordos que permitiam a continuidade do projeto. Dentre os acordos, estava a mudança do espaço destinado à Conversação para um local que permitia maior privacidade e um combinado entre os participantes de que os temas que causassem desconforto deveriam ser tratados dentro do próprio grupo, respeitando o sigilo do que fosse ali falado e não colocando a instituição como responsável por decidir o que poderia ou não ser dito.
Por outro lado, é relevante dizer que o lugar do projeto não é o de culpabilizar a instituição e se colocar contra ela. O mal-estar que emerge pode, então, causar transtornos ao funcionamento institucional. Inclusive, durante a conversa que os extensionistas tiveram com os membros da instituição, eles se queixaram que é muito difícil quando pessoas de fora da APAC irrompem temas sensíveis e depois saem, deixando que os funcionários lidem com a situação conflituosa gerada, fato que, segundo eles acontece com certa frequência. Nesse cenário, a proposta do Outro Papo não é somente permitir que se fale, mas sim o modo como essa fala pode ser tomada e os seus efeitos de trabalho.
Em vista disso, é importante que o trabalho do projeto seja ampliado futuramente, buscando contemplar a instituição como um todo. É essencial que recuperandos e funcionários sejam ouvidos para que sejam colhidos efeitos da dimensão de sujeito. Mas, são válidos os questionamentos: poderia uma instituição total, como um presídio, acolher manifestações do sujeito do inconsciente? Poderia escutar aquilo que tropeça, que não vai bem, sem correr para enquadrar no funcionamento normal?
Uma Aposta Inédita na Palavra
Para Miranda et al. (2006) na Conversação, é a palavra que está em evidência por se estar suscetível à "subversão do sujeito". Isso aponta uma mudança relevante: não mais dizer sobre os participantes, mas dizer com eles, ou seja, concebê-los como "sujeitos desejantes capazes de sustentar uma experiência de palavra, que torne possível o reconhecimento da particularidade dos participantes" (2006, s.p.). Nesse sentido, durante as Conversações, foi notório que os apenados estavam habituados a reconhecer o saber como vindo de fora, principalmente por meio de frequentes palestras oferecidas na instituição. Nesse contexto, um palestrante normalmente se apresenta como o detentor do saber, enquanto os ouvintes são colocados no lugar daqueles que nada sabem e nada têm a dizer, aos quais só cabe absorver o saber transmitido. Tal procedimento é contrário ao que a Conversação propõe ao colocar a palavra em evidência e deixar com que os apenados falem, isto é, tornem-se os responsáveis por construir um saber.
Assim, no período inicial da Conversação, era comum que os recuperandos buscassem respostas sobre como eles deviam agir para viverem bem, trazendo questões como: "Como eu faço para lidar com a ansiedade?" ou "Como eu devo agir para sentir menos raiva?"Pode-se pensar que alguns psicólogos assim como outros profissionais que palestraram para os recuperandos, de bom grado e com boas intenções, responderiam a tais questionamentos. Porém, a psicanálise propõe que o saber está do lado de quem fala. Dessa forma, o psicanalista se abstém de dar direcionamento ao que o sujeito deve ou não fazer. Nas Conversações, foi preciso que os mediadores se recusassem a responder às demandas dos recuperandos, para que, assim, eles mesmos elaborassem soluções para seus questionamentos. Desse modo, eles próprios deveriam construir um saber sobre aquilo que demandavam, que se implicassem no processo e se dispusessem a escutar os efeitos.
Inicialmente, alguns apenados tomavam a palavra para falarem em nome de outros participantes. Exemplo disso foi que, em um determinado encontro de Conversação, uma apenada fez uso do seu momento de fala para apontar quais seriam as questões de cada um dos outros participantes do grupo, sem dizer, no entanto, quais eram as suas próprias questões. Diante disso, os mediadores fizeram uma intervenção perguntando qual era a posição dela acerca do que apontava dos demais, possibilitando que ela assumisse a palavra a partir da posição subjetiva dela, não mais falando como se nada tivesse a ver com o que dizia dos outros. Os outros participantes também foram convocados a assumirem a palavra, concordando ou discordando daquilo que a colega de regime tinha dito sobre eles. A aposta da Conversação é que todos os sujeitos são capazes de sustentar a palavra e fazer valerem as suas posições diante daquilo que é falado. Para além disso, essa abordagem também valoriza o processo de escuta durante a análise, em que o analista estimula o analisando a ouvir a si próprio. Na Conversação essa escuta não se restringe ao que é verbalizado individualmente, mas também ao que emerge do discurso coletivo.
Lacadée e Monier (2000 apud Miranda et al., 2006) destaca o aspecto político da Conversação. Na perspectiva do autor, a metodologia pode fazer operar "uma prática inédita da palavra" (Miranda et al., 2006). O que as Conversações propõem é "destravar as identificações" (Miranda et al., 2006); isto é, no exercício em progresso, a palavra pode mostrar aos sujeitos que ali se apresentam aquilo pelo qual estão fixados e, quem sabe, apostar que podem se livrar do gozo em que estão detidos. Dentro da prática da Conversação no contexto de cumprimento de pena, era comum que os apenados estivessem fixados em identificações como: violentos, fracassados e vagabundos, entre outros, e, a partir da Conversação, puderam se desidentificar com tais posições cristalizadas e apostar que podiam ser outra coisa.
Um exemplo relevante é o caso de um apenado que dizia ter entrado para o crime, porque gostava da "vida fácil"que ele proporcionava. Porém, diante dos questionamentos dos mediadores da Conversação sobre o que seria essa "vida fácil",o sujeito foi mudando de posição em relação a essa identificação e começou a se perguntar se, de fato, a vida que vivera no crime teria sido fácil. Ao narrar ocasiões em que correu perigo de morte e ocasiões em que não conseguiu dormir por medo da polícia o encontrar, entre outras situações, o apenado se sentiu em dúvida, o que a desidentificação com a posição que estava cristalizada.
Essa reflexão individual do sujeito foi acompanhada de comentários e narrativas de situações semelhantes vivenciadas por outros integrantes do grupo de forma que, coletivamente, foram colocadas questões que abalavam a significação fixada na expressão "vida fácil".
A aposta na palavra como algo que visa ir além, na tentativa de se deparar com aquilo que não faz sentido, abre uma via de acesso ao singular de cada um. Não objetiva o consenso ou o simples alívio pela fala, contudo abre espaço para que algo da posição de cada um possa ser deslocada. Todavia, aqui, é essencial destacar que a Conversação dentro de uma instituição prisional não estará livre de atravessamentos, incluindo questões que envolvem o próprio desejo dos indivíduos em fazerem ou não uso da palavra.
A prática de Conversação do projeto de extensão Outro Papo passou por um entrave em relação à participação voluntária, pois devido a questões de organização interna, a instituição determinou que os participantes que declarassem desejo de participar da Conversação não poderiam desistir ao longo do percurso do projeto, sendo, portanto, uma participação voluntária somente a princípio. A partir disso, para contornar a obrigatoriedade imposta pela instituição, os mediadores da Conversação buscavam respeitar os participantes que não tomavam frequentemente a palavra para si, tentando garantir que, quando falassem, fosse pelo próprio desejo, e não por uma imposição.
Uma Busca pelo Ponto de Real do Sujeito
Outro aspecto crucial da conversação é a busca pelo "ponto de real do sujeito" (Miranda et al., 2006), indagando o ilógico que gera espanto, mas que pode fazer repercutir para algum dos participantes, fazendo surgir algo de inédito. A ideia é fazer repercutir o real que ressoa em cada um, o qual pode ser simbolizado por meio das palavras. O espanto aponta que algo novo foi tocado. A diferença é um princípio fundamental na Conversação, pois cada pessoa possui um real único e singular, o qual não pode ser totalmente compreendido com um sentido total, banal e acordado. Assim, esse real opera de forma individual, gerando diferentes respostas em cada sujeito (Miranda et al., 2006).
Os mediadores da Conversação encontram, "a partir dos mal-entendidos da linguagem, nesses pontos em que aparecem os tropeços e o inédito" (Santigo et al., 2006, s.p.), o material que poderá submeter à análise. Ademais, trata-se de explorar a movimentação dos sujeitos em direção ao registro daquilo que não é simbolizável. Na expressão do mal-estar, brota o inconsciente, que expressa o conflito intrapsíquico. Nesse viés, pondera Lacadée (2006):
Nós consideramos, com efeito, que o desfalecimento de um sentido, seus tropeços e até o sem-sentido produzem como efeito de significante - o aliciamento de nosso exemplo -, deixando existir um real que faz efração e reenvia o sujeito que fala ao que se lhe revela por surpresa. Para nós, esse fora-do-sentido não é absolutamente o que vai fazer disparar o real, mas, ao contrário, ele abre a via de acesso para cada um. (p. 375) 2
Tendo em vista que a Conversação tem sua origem ligada ao trabalho do CIEN, é válido exemplificar que, no campo da educação, o impossível se expressa por meio do elevado índice do fracasso escolar, que se vem mantendo por décadas a fio. Milner e Miller (2004) discorreram a esse respeito, afirmando que a frustração na transmissão de saberes situa o ato de educar na ordem do impossível, já que o educador é desafiado a preencher, com todo o seu conhecimento, as lacunas da ignorância do aluno. No entanto, segundo Freud, não importa como se eduque, uma vez que sempre haverá algo que não pode ser completamente substituído (Milner & Miller, 2004). Desse modo, o simbólico não recobre inteiramente o real, que se manifesta, muitas vezes, como insucesso.
Em contrapartida, não é somente o campo da educação que evidencia o impossível de se representar do real, mas sim todas as instituições que, de alguma forma, tentam controlar e enclausurar as subjetividades. Portanto, o que não é representado acaba retornando como aquilo que não vai bem nas instituições. Escutou-se algo disso quando os participantes da Conversação, em diversas ocasiões, relataram imposições da instituição que eles consideravam injustas e que, por isso, acabavam tomando atitudes extremas para se fazerem ouvidos.
Isso foi constatado na seguinte experiência do projeto: em uma manhã, quando se realizavam Conversações concomitantes nos diferentes regimes da unidade feminina, um alvoroço chamou atenção. Uma mulher de um dos grupos, no auge do seu desespero, gritou e esmurrou repetidamente os vidros de uma porta. A reação das demais recuperandas foi de pura indiferença:"Deixa pra lá. Isso acontece sempre por aqui.", uma delas relatou. Já a reação das mediadoras do projeto foi de espanto: "Como assim isso acontece sempre?" As recuperandas explicaram que esmurrar os vidros é uma maneira que muitas encontram para chamar a atenção e dar vazão às frustrações ali dentro, sendo algo que ocorria com muita frequência. Os murros, entretanto, continuaram. Os grupos de Conversação, tanto do regime no qual a mulher em desespero estava quanto os demais, lentamente, foram diminuindo, porque as participantes começaram a sair do local para verem melhor o que estava acontecendo com a mulher que esmurrou os vidros. Um tempo depois, os funcionários da instituição surgiram e a Conversação que acontecia no regime em que a mulher estava teve que ser encerrada às pressas. A mulher que esmurrava os vidros acabou se cortando e logo uma confusão emergiu: funcionários sem saber o que fazerem com o sangramento da recuperanda; colegas de regime gritando que, se a instituição ouvisse mais as mulheres, aquilo não aconteceria; outras apenadas observavam com curiosidade, mas sem a surpresa que era vista somente nas mediadoras.
Mais tarde, com a retirada da mulher que se machucou para atendimento, a situação se "acalmou" e os mediadores, que realizavam a Conversação no regime semiaberto, propuseram que as mulheres voltassem para o grupo e falassem sobre o que tinha acontecido. Todavia, como falar sobre algo impossível de se representar? O acontecimento havia tocado em um ponto do real da experiência coletiva de se estar em aprisionamento naquela instituição. As apenadas não tinham como colocar em palavras o que aquilo tinha significado. Diante disso, silenciaram-se sobre o fato e seguiram falando sobre outros assuntos. Esse movimento foi apontado pelas mediadoras. O assunto dos atos de se ferir como forma de aliviar uma tensão excessiva da vida cotidiana retornou em algumas conversações seguintes, sendo tratado como legítimo e necessário. Tratava-se de algo que não se colocavam como capazes de construir outras possibilidades.
Viabilizar que as recuperandas sejam ouvidas é possibilitar a via das palavras, e não a do ato. Foi possível analisar, durante a experiência do projeto, que quando alguns membros da instituição se dispuseram a ouvir as demandas de um dos regimes, o simples fato de se sentirem ouvidos pela instituição já viabilizou grandes efeitos no posicionamento daqueles sujeitos, que passaram a se comprometer mais com as atividades coletivas do regime.
Conversação: Diferente de Uma Conversa e de um Grupo Focal
A Conversação se diferencia de forma drástica de uma conversa, uma vez que é orientada pela relação estrutural que a linguagem estabelece com o corpo diante dos impasses da civilização. Nesse viés, o corpo se mostra suporte daquilo que excede e que a palavra não alcança. Se as palavras podem fluir, tecendo infindáveis redes de sentido, o corpo, em sua dimensão real, é o local do silêncio da palavra, do limite do sentido, por onde ecoa a pulsão.
Para Lima e Santos (2016), o corpo não se apreende pelo sentido, mas faz ressoar. Ele é a testemunha da presença de um gozo opaco, estranho, um vazio ou furo de significação, o íntimo e que não faz laço social. Assim, o ato de fala concerne natureza e cultura ao mesmo tempo ao dotar o aparelho da linguagem de um ordenamento do gozo, que condiciona os corpos a um aprendizado de convivência no laço social (Miller, 2001). Nesse viés, Guerra et al. (2018, p. 47) afirmam que existe grande diferença:
(...) entre uma falação vazia, na qual proliferam os arranjos imaginários, recobertos por assertivas genéricas, da conversação. Nesta, a responsabilidade pelo ato de fala é recolhida pelo psicanalista, a partir do ponto em que cada sujeito é tocado pelas palavras que ali circulam, visando a quebra da identificação dos elementos mestres que organizam o discurso em torno dos impasses identificados.
No projeto de extensão Outro Papo as mediadoras estavam atentas para evitar essas "falações vazias". Assim, durante o percurso, constatou-se que a disposição dos participantes durante a Conversação interferia no aparecimento de bate-papos. Foi verificado que se organizar em volta de uma mesa contribuiu para que eles ficassem dispersos e iniciassem conversas paralelas, dificultando a circulação da palavra. Por outro lado, foi possível observar que, quando os participantes foram organizados em roda, sem mesa ao redor, e com um pequeno espaço entre eles, participavam mais da Conversação e dificilmente iniciavam conversas paralelas com outras pessoas. Dessa forma, essa segunda configuração permitiu que a circulação da palavra acontecesse e, consequentemente, favoreceu o processo da livre associação coletivizada.
Outros impasses com os quais o projeto esbarrou nesse sentido foram em relação a alguns recuperandos, que monopolizavam para si a palavra ou que faziam do grupo uma espécie de sessão individual de forma que os mediadores tivessem que interromper suas falas para que a Conversação prosseguisse. Embora o trabalho da mediação nesses casos fosse mais complicado, era essencial que cortes fossem feitos para impedir que falas individuais e, por vezes, blá-blá-blá, tomassem todo o tempo da Conversação, já que o objetivo, nesse caso, é uma escuta coletiva, sendo importante que a palavra circule entre os participantes.
As Conversações se diferenciam também dos grupos focais. Nesse segundo, o ponto principal é observar, de forma detalhada, como os participantes interagem entre si, buscando, através do seguimento de falas, entender o efeito das experiências compartilhas no grupo pelos participantes, não sendo, portanto, uma associação coletiva como se pretende na Conversação (Gatti, 2005).
Considerações sobre o Manejo Transferencial
Algo mais a se salientar quanto às Conversações é a transferência e o seu manejo. A transferência, para a psicanálise, está relacionada com a repetição na situação psicanalítica; ou seja, o analisando projeta afetos na figura do analista. De acordo com Maurano (2006), é justamente por ser uma "via de atualização de motivações inconscientes" (p. 18) que a transferência "funciona como instrumento com o qual o analista vai poder intervir" (p. 18). Por meio desse recurso, o analisando pode resolver conflitos e mudar sua posição de sujeito.
Abreu (2008) discorre a respeito da prática analítica dentro de instituições de saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Entre outras questões, ele trabalha com a questão transferencial. Segundo o autor, "o uso da transferência e o processo inventivo exigem muitas vezes a subversão da instituição em suas regras pré-estabelecidas" (p. 78). O contexto do qual ele trata é o atendimento de usuários psicóticos, os quais podem encontrar no CAPS um lugar de acolhimento para suas invenções que o estabilizam. No entanto, para isso, a instituição tem que estar aberta a se constituir como um espaço diferente para cada sujeito que ali se insere. Assim, ao se subverterem regras institucionais para acolher as criações, também se subverte o Outro, que, muitas vezes, invade o sujeito psicótico.
A reflexão desse artigo sobre a questão transferencial dentro de instituições de saúde mental pode ser interessante para se pensar como fica a transferência em uma instituição de cumprimento de pena como a APAC. O sujeito psicótico precisa diluir esse Outro que o invade e a instituição do CAPS pode ajudá-lo nesse sentido. Porém, pensando nas instituições prisionais, elas são esse Outro, que podem invadir os sujeitos que cumprem pena em seu espaço. Dessa maneira, pensar a questão transferencial dentro da APAC deve passar por essas reflexões. A Conversação talvez possa se constituir como um furo nesse Outro institucional que invade o sujeito apenado, ou ainda um espaço em que os sujeitos possam se separar desse Outro que quer dar conta de tudo.
Na Conversação, a situação transferencial acontece no contexto coletivo. Os mediadores da Conversação são aqueles que se oferecem como suporte daquilo que os integrantes do grupo lhe adjudicam. Isto é, são os sujeitos que se disponibilizam à escuta do outro, manejando as diferentes transferências que emergem no espaço compartilhado, a fim de que possam advir as singularidades de cada um. Mais do que falar, a função do mediador é manter viva a função do enigma, sustentando perguntas que possam provocar o movimento de trabalho.
Nas Conversações do projeto Outro Papo, algumas questões transferenciais foram analisadas. Primeiramente, no que diz respeito ao número de mediadores das Conversações, verificou-se que ter muitos interferia na situação transferencial. Foi analisado que, com um total de quatro, os mediadores ficavam confusos em relação a quem faria as pontuações em momentos oportunos, perdendo, muitas vezes, a possibilidade de destacar algo do inédito que tenha aparecido na fala dos recuperandos.
Além disso, verificou-se que ter apenas um mediador também não foi interessante, isso porque quando havia apenas um, a Conversação passava a girar muito em torno do que ele achava, ao invés de ser em torno de uma livre associação coletivizada para favorecer demandas dos recuperandos direcionadas ao mediador. Dessa forma, a experiência do projeto demonstrou que a Conversação funcionou melhor tendo dois mediadores, pois, nesse formato, eles conseguiam pontuar quando necessário e, ao mesmo tempo, a fala não ficava direcionada a eles, favorecendo a circulação da palavra, uma vez que não tinham mais uma pessoa específica para fazerem suas demandas.
Outra questão foi em relação ao número de participantes. Verificou-se que nos grupos com um menor número de pessoas, como duas ou três, o processo de circulação da palavra não ocorria como deveria, pois esses participantes acabavam por direcionar suas demandas pessoais para um dos mediadores, o qual tinha maior transferência. Consequentemente, a Conversação ganhava um caráter de atendimento individual, o que não era a proposta.
Considerações Finais
Em suma, a experiência de escuta coletivizada do projeto de extensão Outro Papo em uma instituição prisional possibilitou refletir sobre importantes pontos da prática da Conversação psicanalítica, alguns pontos em que foi possível avançar e outros que ficam como questão para futuros trabalhos.
Primeiramente, no que diz respeito à livre associação coletivizada e à relevância da confiança que os participantes devem depositar no grupo para que ela seja viabilizada, foi notório como o tempo e a recusa por parte dos mediadores de ocupar o lugar que os recuperandos tinham dado inicialmente a eles foram essenciais para o processo. Nesse sentido, é preciso pontuar que muitos projetos, mesmo tendo objetivos válidos, não levam em consideração a necessidade da continuação de suas propostas, o que gera desconforto para os internos, que acabam se sentindo meros objetos de pesquisa. Além disso, recusar os lugares preestabelecidos possibilitou a criação de um espaço de escuta que leva em consideração a dimensão do sujeito, diferentemente dos ofertados no cotidiano da instituição.
Outra questão foi que, ao propor uma prática inédita da palavra, a Conversação possibilitou que os participantes da Conversação (agora, desaconselha-se chamá-los de recuperandos, evitando repetir esse significante institucional) tornassem-se, em alguns pontos, coletivamente responsáveis pela construção de um saber, o que já é muito válido já que estão dentro de uma instituição que visa responder tudo para os indivíduos. Foi necessário que os mediadores não respondessem às demandas, a fim de que, assim, eles mesmos elaborassem soluções para seus questionamentos, implicassem-se a si próprios no processo e se dispusessem a escutar os efeitos.
Indo um pouco adiante, a Conversação e seu encontro com os pontos do real que perpassam os sujeitos também tiveram grande relevância na experiência do projeto, sendo que aquilo que não foi representado acabou retornando como o que não ia bem dentro da instituição. Portanto, a oferta da escuta possibilita que os sujeitos permaneçam no campo da palavra, e não no dos atos.
A questão transferencial também marcou a experiência de Conversação do projeto de extensão, e alguns questionamentos sobre como o número de mediadores e o número de participantes influenciavam na transferência dentro do grupo. Além disso, uma pergunta foi essencial para o trabalho: como manejar a transferência dentro de um ambiente prisional? Abordou-se que, talvez, a Conversação possa se constituir como um furo no Outro institucional, que invade os sujeitos que se encontram aprisionados.
Por último, algumas questões que ficam para futuros trabalhos são: como podem os sujeitos se associarem livremente nas Conversações se existem assuntos proibidos dentro da instituição? Poderia uma instituição total, como um presídio, acolher manifestações do sujeito do inconsciente? É possível que a instituição escute aquilo que tropeça, que não vai bem, sem correr para enquadrar no funcionamento normal? Como fica o desejo dos sujeitos em uma instituição que não permite que a falta apareça?
Para finalizar, é importante dizer que o trabalho do projeto Outro Papo foi marcado por alguns impasses em relação à instituição. Por exemplo, muitos encontros foram cancelados sem aviso prévio, o que demonstrava indiferença com o projeto. Em contrapartida, a mesma instituição também queria que as Conversações se tornassem uma atividade obrigatória, o que faria com que o trabalho, de certa forma, se inserisse no quadro institucional, porém esse não era o propósito. Dessa maneira, questiona-se: seria possível realizar um trabalho também com a equipe da instituição? Escutá-los seria essencial para que todos os atores institucionais pudessem se reposicionar frente aos seus retornos sintomáticos.
Referências
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Endereço para correspondência
Talita Martins Ferreira - talitaferreiraifmg@gmail.com
Recebido em: 30/04/2024
Aceito em: 08/10/2024
Notas
1 Tradução de Miranda et al. (2006)
2 Tradução de Miranda et al. (2006)
Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito recebeu apoio do Programa Institucional de Bolsas de Extensão da UFSJ - PIBEX 2023. Edital N° 007/UFSJ/PROEX, de 16 de agosto de 2022.
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