Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e83983, doi:10.12957/epp.2024.83983
ISSN 1808-4281 (online version)
DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE
Relato de Experiência das Relações Antagônicas entre a Psicologia e o Direito na Prisão
Experience Report on Antagonistic Relations between Psychology and Law in Prison
Informe de Experiencia sobre Relaciones Antagónicas entre Psicología y Derecho en Prisión
Arlindo da Silva Lourenço a, Ellen Taline de Ramos b
, Gustavo Martineli Massola c
a Universidade do Estado de Minas Gerais, Frutal, MG, Brasil
b Universidade Municipal de São Caetano do Sul, São Caetano do Sul, SP, Brasil
c Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Pretende-se refletir neste artigo sobre as relações, muitas vezes antagônicas, entre a ciência psicológica e o Direito, especialmente no campo das prisões. Defende-se a interface entre a Psicologia e o Direito como fundamental, inclusive como possibilidade de superação desses antagonismos que, em sua reprodução pura e simples, minam as possibilidades de desenvolvimento, seja de uma como da outra ciência. Também se reflete sobre o fato de que, não sendo neutra, a ciência e suas práticas estão ou a serviço da transformação da sociedade, levando-a a indicadores de saúde, bem-estar e superação das iniquidades, ou a serviço da manutenção das injustiças que as assolam, em especial no Brasil, território de inúmeras delas. A partir da experiência profissional dos autores no cárcere, o objetivo do texto é refletir sobre os desafios inerentes à construção de uma Psicologia que promova os direitos universais da humanidade, inclusive atrás das grades, ao mesmo tempo, que esteja comprometida com a superação das desigualdades e a criação de uma sociedade justa, baseada nos princípios éticos fundamentais da profissão.
Palavras-chave: Psicologia, prisões, direito penal, crítica, relato de experiência.
ABSTRACT
This article aims to reflect on the often-antagonistic relationship between psychological science and the Law, especially in prisons. It argues that the interface between Psychology and the Law is fundamental, including as a possibility of overcoming the antagonisms that, in their simple reproduction, undermine the possibilities for the development of both sciences. It also reflects on the fact that, since science and its practices are not neutral, they are either at the service of transforming society, leading it to indicators of health, well-being and overcoming inequalities, or at the service of maintaining the injustices that affect it, especially in Brazil, which is home to many of these injustices. Based on the authors' professional or academic experience in prison, the aim is to reflect on the challenges inherent in building a psychology that promotes the universal rights of humanity, including from behind bars; at the same time, that is committed to overcoming inequalities and creating a just society, based on the fundamental ethical principles of the profession.
Keywords: Psychology, prisons, criminal law, critical, experience report.
RESUMEN
Este artículo pretende reflexionar sobre la relación, a menudo antagónica, entre la ciencia psicológica y el Derecho, especialmente en las prisiones. La interfaz entre la Psicología y el Derecho se defiende como fundamental, incluso como posibilidad de superar estos antagonismos que, en su reproducción pura y simple, minan las posibilidades de desarrollo tanto de una ciencia como de la otra. También reflexiona sobre el hecho de que, como la ciencia y sus prácticas no son neutrales, o están al servicio de la transformación de la sociedad, conduciéndola hacia indicadores de salud, bienestar y superación de las desigualdades, o al servicio del mantenimiento de las injusticias que la asolan, especialmente en Brasil, que alberga innumerables de ellas. A partir de la experiencia profesional o académica de los autores en prisión, el objetivo es reflexionar sobre los desafíos inherentes a la construcción de una psicología que promueva los derechos universales de la humanidad, incluso de aquellos que están tras las rejas; al mismo tiempo, que esté alineada con la superación de las desigualdades y la creación de una sociedad justa, basada en los principios éticos fundamentales de la profesión.
Palabras clave: Psicología, prisiones, derecho penal, crítica, informe de experiencia.
Psicologia Jurídica é a denominação que se dá, no Brasil, a uma importante interface da ciência psicológica com o campo do direito e sua aplicação nas instituições de justiça (França, 2006; Lago et al, 2009; Brito, 2012; Moreira & Soares, 2019). É reconhecida como especialidade pelo órgão regulador da profissão, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), conforme item IV, do art. 4º, da Resolução nº 23, de outubro de 2022, compreendendo a "atuação profissional da psicologia no âmbito do Sistema de Justiça e em serviços que compõem o Sistema de Segurança Pública e o Sistema de Garantia de Direitos que executam sentenças judiciais, como o Sistema Prisional e o Sistema Socioeducativo" (Resolução nº 23/2022, p. 161).
As atribuições da/o profissional nesta especialidade estão descritas em um conjunto de 17 itens em consonância com os princípios fundamentais do Código de Ética Profissional do Psicólogo - CEPP (Resolução CFP nº 10/2005), que garantem a atuação profissional vinculada à garantia de direitos, promoção de saúde e contribuição para a eliminação de quaisquer tipos de violências; além disso, o CEPP ressalta a importância do posicionamento crítico da/o profissional da psicologia diante sua atuação e inserção nos espaços de trabalho, considerando os contextos histórico, políticos, econômicos e sociais.
Neste sentido, a psicologia, no âmbito da interface com o direito, deveria, a partir das resoluções do CFP, garantir uma atuação profissional pautada em bases teóricas, técnicas e metodológicas com a finalidade de atenção integral aos indivíduos, grupos e/ou instituições atendidos (Mello & Patto, 2008). Ainda mais porque, em face do litígio e dos conflitos que atravessam as diferentes situações que se apresentam aos profissionais que atuam nessa interface, pode-se pensar em um conjunto maior de vulnerabilidades e de sofrimentos pessoais, familiares e grupais a se levar em consideração.
Ao pensarmos nas prisões, um dos locais onde a Psicologia Jurídica historicamente vem desenvolvendo ações específicas, estas são entendidas como fenômenos sociais complexos, além de ambivalentes, pois, ao mesmo tempo em que se definem como locais de extrema vigilância e punição, também se colocam como baluartes da "recuperação" e da "reabilitação" dos internos (Foucault, 1979/2003)).
Neste sentido, as prisões podem ter muitos significados ao mesmo tempo: "[...] instituições que representam o poder e a autoridade do Estado; [...] poderosos símbolos da modernidade (ou a ausência dela); [...] espaços onde amplos segmentos da população vivem parte de suas vidas, formam suas visões de mundo" (Aguirre, 2017, p. 36).
Este artigo apoia-se, em parte, na experiência de seus autores, docentes universitários que desenvolvem e orientam pesquisas e projetos de extensão em instituições prisionais, sendo que um deles trabalhou como psicólogo por mais de 20 anos na Administração Penitenciária de São Paulo e busca refletir sobre dois elementos, a nosso ver, essenciais ao desenvolvimento da crítica da ciência psicológica, pautada pelos princípios fundamentais dos direitos humanos, como previsto no CEPP.
Em primeiro lugar, parte de uma crítica às contraditórias prisões, criadas e desenvolvidas como um dos dispositivos elementares do biopoder e da governamentalidade na sociedade moderna e às suas tecnologias de disciplinarização e controle (Foucault, 1979/2003); em segundo lugar, parte de outra crítica a uma parcela do campo do direito, de concepção punitivista e essencialmente prescritivo: o direito convertido em racionalidade tecnológica, tal qual já refletia Oliveira Vianna (1987), mencionado por Sass (2012, p. 185): "[...] um conhecimento sistemático aplicado à produção e normalização da vida social, antes que um conhecimento fundamentado nas aquisições da ciência".
Esta reflexão parte também da percepção de que as/os profissionais da psicologia se encontram, em sua atuação cotidiana nas prisões, em tensão constante com ao menos três campos institucionais: i) com o campo dos órgãos reguladores da profissão no Brasil; ii) com a administração penitenciária e iii) com o campo do direito (Jacinto et al, 2016; Moreira & Soares, 2019).
Quanto ao primeiro campo, após a redemocratização formal do país, marcada pela promulgação da Constituição de 1988, muitos grupos organizados procuraram desenvolver um olhar crítico sobre a atuação profissional do campo psicológico no país, o que levou a uma reavaliação das práticas colaboracionistas entre psicólogas/os e um Estado brasileiro opressor e antipopular, especialmente durante o período da ditadura civil-militar. Essa crítica encontra expressão em trabalhos como Carpigiani (2009) e Mello e Patto (2008).
Neste sentido e já naquele momento, as normativas elaboradas pelos órgãos de classe, seguindo normativas internacionais que questionavam os modelos políticos e econômicos vigentes até ali, visavam proteger os direitos humanos e tomá-los como fundamento das práticas profissionais; entretanto, e em larga medida, algumas dessas normativas acabam por colocar as/os psicólogas/os que atuam na prisão sob constante dilema, como, por exemplo, em relação à realização do exame criminológico (Reishoffer & Bicalho, 2017).
Para se ter uma ideia da longa controvérsia que é a prática do exame criminológico, oficialmente introduzido na legislação brasileira em 1984 com a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), quando também foram criadas as Comissões Técnicas de Classificação (art. 6º, p. 1) e os Centros de Observação Criminológica (art. 96, p. 19), citamos uma audiência pública realizada no Senado brasileiro em outubro de 2023, com a presença do Conselho Federal de Psicologia que, dentre outras questões, assim se pronunciou:
O exame criminológico está permeado pela crença por meio da qual se busca analisar o ser humano a fim de definir, a partir da verificação da sua essência como boa ou má, se estará apto ao convívio à sociedade - o que é um equívoco em termos técnicos e científicos (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2013).
Pesquisadoras/es mais recentes do campo da prisão e de suas tecnologias de controle e de disciplinarização vêm, sistematicamente, apontando os impasses oriundos desse instrumento (exame criminológico), bem como de sua realização pelas/os profissionais da psicologia (Bandeira et al, 2011; Reishoffer & Bicalho, 2017; Vicente, 2023). Ao mesmo tempo que se apresenta como controvertido e sujeito a críticas éticas, também pode sujeitar aquele/a que se nega a fazê-lo a uma punição administrativo-legal:
Muitas vezes, o profissional encontra-se em uma situação de delicada escolha: atender aos princípios fundamentais de seu código de ética, baseando-se no respeito à dignidade humana e à promoção dos direitos humanos, respeitando os limites de sua formação ou, ou por outro lado, cumprir uma "ordem judicial" cuja negativa pode gerar conflitos institucionais e problemas para o próprio (até ameaças de prisão por desrespeito à ordem judicial) (Reishoffer & Bicalho, 2017, p. 39).
Quanto ao segundo campo de nossa análise, o da administração penitenciária, vemos a prevalência das preocupações com a segurança em detrimento de políticas, ações ou práticas de reintegração social nas unidades prisionais. Os profissionais inseridos neste campo da política pública, incluindo as/os da psicologia, estão sujeitos a um conflito constante contra o aparato de segurança das unidades (Ramos, 2019) a fim de desempenharem funções às vezes simples ou realizarem atividades de cuidado à saúde e atendimento psicológico que deveriam ser admitidas com naturalidade por uma instituição que desejasse, de fato, promover o retorno de seus internos ao convívio social mais amplo.
Sobre este ponto, podemos ainda salientar o papel fundamental da disciplina nestas instituições, como aponta Foucault (1979/2003), uma vez que ela teria como objetivo contribuir para a docilidade e utilidade destes sujeitos implicados em uma determinada estratégia de poder estatal e institucional, a fim de adequá-los ao (im)posto pela sociedade como certo ou errado, normal ou anormal, justo ou injusto. Neste sentido, ainda que a/o profissional da psicologia tente construir um trabalho disruptivo em relação ao que é intrínseco a um sistema punitivo, encontra-se aprisionado à hegemonia da lógica disciplinar, pois é esta que, ao final, se sobrepõe a toda e qualquer proposta humanizante e promotora de saúde das pessoas privadas de liberdade.
Quanto ao terceiro campo, o da relação da psicologia com o direito, as prisões são instituições cujo funcionamento cotidiano se dá em íntima relação com o sistema jurídico-legal do país, e sua lógica, bem como suas necessidades, demandas e exigências, impõem-se sobre as/os profissionais da psicologia em suas práticas cotidianas. Nem sempre profissionais do direito compreendem bem os limites e potencialidades da atuação psicológica, o que implica um constante choque de expectativas a respeito do que a Psicologia pode ou não oferecer (Vicente, 2023; Sass, 2021; Shine, 2009).
O Direito, além disso, opera no ambiente prisional por uma lógica conflitiva, na qual a pessoa presa encontra-se em oposição à sociedade e é acompanhada pelos órgãos criados para, supostamente, proteger essa sociedade, como o Ministério Público, as Varas de Execução Penal e os Tribunais de Justiça (França et al., 2016). Quando profissionais da psicologia, neste contexto, prestam assistência, acolhem e/ou orientam uma pessoa, devem pautar-se pela busca da promoção da saúde - neste caso, especialmente, da saúde mental - e lhes compete profissionalmente apoiar as pessoas que atendem, independentemente da gravidade dos atos delitivos que tenham cometido (Rauter, 2016). As diferenças entre essas duas lógicas podem resultar no dilema ético para profissionais que tenham atendido uma pessoa presa a avaliarem-na, posteriormente, em um pedido judicial de exame criminológico, caso isso seja necessário no curso de seu cumprimento de pena, uma vez que isso encontraria impasses conforme previsto nas alíneas "j" e "k", do artigo 2º do CEPP (Resolução CFP nº 10/2005, p. 10), das vedações:
[...] j. Estabelecer com a pessoa atendida, familiar ou terceiro, que tenha vínculo com o atendido, relação que possa interferir negativamente nos objetivos do serviço prestado;
k.) Ser perito, avaliador ou parecerista em situações nas quais seus vínculos pessoais ou profissionais, atuais ou anteriores, possam afetar a qualidade do trabalho a ser realizado ou a fidelidade aos resultados da avaliação.
Os conflitos na relação com o campo do direito marcam parte importante do trabalho cotidiano dessas/es profissionais da psicologia (Sass, 2021), e por isso parecem merecer atenção e reflexão, se quisermos que se realizem os ideais democráticos que vêm orientando a atuação profissional nas últimas décadas. Os conflitos mencionados, alguns dos quais serão tratados com mais detalhes neste artigo, não podem ser superados apenas no campo das ideias - por mais que isto seja fundamental - mas também por meio da análise detida de situações concretas do cotidiano de nossa atuação profissional (Sass, 2021; Rauter, 2016; Shine, 2009; Mello & Patto, 2008).
O ponto de partida para nossa análise e reflexão crítica são alguns documentos que circularam entre nós naqueles anos de atuação profissional no interior do cárcere e que, dado seu teor, minimamente ambíguo, gerou-nos a necessidade de copiá-los, guardando-os para, eventualmente, uma utilização posterior. A intenção, neste momento, depois de resgatar dois deles é, além de analisá-los à luz de uma crítica necessária, demonstrar: i) uma inconsistência peculiar no cerne do próprio direito, que demonstra uma atuação ideologicamente instrumental e produtivista, além de muito formal; ii) a dificuldade de articulação e diálogo justamente nessa interface que se almeja construir entre a ciência psicológica e o campo do direito, muitas vezes antagonistas; e iii) a dura labuta para corresponder eticamente aos anseios das instâncias formuladoras e reguladoras da profissão em função, justamente, da interface bastante conflituosa com o Direito.
As impressões do que vivemos e as lembranças dos fatos passados tal qual nos foi possível resgatar neste momento, juntamente com observações que fazemos das nossas atividades no interior do cárcere, como pesquisadores ou servidores da administração penitenciária, também compõem elementos para as análises que fazemos neste artigo.
Itinerário de Experiência: Da Prática à Crítica
No ano de 2009, em um estabelecimento de regime semiaberto para homens em São Paulo, uma pessoa que cumpria sentença de prisão naquele estabelecimento nos procurou a fim de restabelecer contato com seus filhos, naquele momento, de três e seis anos. Segundo ele, os filhos estariam abrigados temporariamente em uma instituição de acolhimento de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. A sua sentença atual em regime mais brando de cumprimento de pena lhe daria condições de visitá-los aos finais de semana, desde que com autorização judicial. Esta pessoa tinha consigo o nome, endereço e telefone da instituição de acolhimento e nos passou esses dados.
Poucas informações tivemos das crianças, tanto na instituição de acolhimento quanto no Juizado da Criança e da Juventude ao qual recorremos tentando entender a situação em que se encontravam e se seria possível uma visita do pai. Soubemos, no entanto, que uma intimação acabara de ser enviada ao presídio, em nome do interessado. Os termos da intimação não nos foram passados naquele momento, mas tão logo retornamos noutra feita à prisão, tivemos acesso ao seu teor. Era uma Ação de Destituição do Poder Familiar, emitida em 26 de maio de 2009 pela Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de São Miguel Paulista, do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), com elementos que nos pareceram muito frágeis, para não dizer ambivalentes e confusos. Segundo esse documento, a partir de visitas familiares feitas na residência da família, era possível afirmar que havia uma situação de "grande instabilidade na relação entre a requerida e sua mãe [itálico nosso]", dependendo do "auxílio do pai para garantir sua subsistência e de seus filhos e, portanto, de mudanças significativas em suas condições para assumir sua responsabilidade de maneira adequada". Logo no início do documento (p. 3) sabe-se que a requerida é a mãe das duas crianças e que vive em situação de dependência dos seus pais para o cuidado dos filhos (netos destes últimos).
A avaliação social realizada pelos profissionais do poder Judiciário revelava que os genitores não possuíam "condições de exercer as atribuições decorrentes do poder familiar em que são investidos, uma vez que a requerida é, aparentemente, usuária de drogas e o requerido se encontra recolhido em estabelecimento prisional [itálicos nossos]", como se o fato de ser usuária de drogas, do lado materno, e recolhido na prisão, do lado paterno, fossem, por si, motivos para se solicitar a perda do poder familiar de ambos. Aqui, vale ressaltar que o inciso 2º do artigo 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) explicita que
A condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso sujeito à pena de reclusão contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente" (Lei nº 8.069/1990, p. 8).
A sequência do documento nos parece mais ambígua e confusa. O profissional do Ministério Público que assina o documento, juntamente com uma estagiária, argumenta que o pai "não presta nenhuma assistência à filha [já que o menino era seu enteado], descurando por completo de seus basilares deveres com a prole". Ora, se o sujeito da ação judicial está preso - e o representante do Ministério Público reconhecia isso - é óbvio que, em alguma medida, a relação dele com sua família restará vulnerável. O contato interpessoal entre os entes familiares restará limitado, muito mais na situação descrita aqui, em que os filhos se encontram, também, em uma condição de recolhimento. Ademais, o que sabíamos é que o pai das crianças desejava visitá-los, mas não tinha nenhuma ideia de como conseguir isso, a não ser que precisava de ajuda técnica. Não descurava, portanto, de seu dever paterno, contrariamente ao que afirmava o membro do MPSP que ainda buscava definir assim o futuro das crianças:
Como se vê, inequívoca a situação de abandono material e afetivo impingido aos menores pelos genitores ora réus, que, com suas condutas, faltaram com seus deveres de propiciar um lar com as mínimas condições para o salutar crescimento dos filhos [itálicos nossos], descurando dos deveres de criação e educação inerentes ao poder familiar (Transcrição de trecho de cópia de documento do MPSP, do ano de 2009, de posse de um dos autores).
Tendo citado os réus e, dentre estes, o pai das crianças, naquele momento atendido por nós, o MPSP registra que estes podem, "querendo [itálico nosso], oferecer defesa no prazo legal, sob pena de serem presumidos como verdadeiros os fatos aqui alegados, acompanhando os demais atos processuais".
Em 9 de outubro do mesmo ano de 2009, a pessoa que atendemos neste caso específico foi notificada, via cartório, de audiência agendada em razão da ação judicial de perda do poder familiar e, na sequência, tendo constituído defensor depois de contatos que fizemos com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP), compareceu em juízo. Não tendo, nesta ocasião, testemunha de acusação contra si, entendeu o juiz da infância e adolescência que ele poderia visitar seus filhos nos finais de semana, autorizando-o para tanto. Lembramos, para efeito da consistência da ação profissional do/a psicólogo/a no interior da prisão, das competências para a especialidade da Psicologia Jurídica, dispostos nos itens "a" a "q", da Resolução nº 23, de 13 de outubro de 2022 e mencionamos as que acreditamos estarem vinculadas à prática da psicologia neste caso específico:
[...]
c) realiza procedimentos técnicos de acolhimento, orientação, avaliação e encaminhamento a todos os indivíduos ligados ao fenômeno da violência, inclusive com objetivos preventivos;
[...]
l) intermedeia conflitos cíveis relacionados à convivência, guarda, adoção, interdição, de acordo com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente;
m) realiza intervenções psicossociais vinculadas à justiça na rede de proteção, em colaboração e articulação com os serviços, sem substituição e sobreposição de atuações das diferentes instituições e políticas públicas (Resolução CFP nº 23/2022, pp. 8-9).
Em atendimento subsequente ao restabelecimento dos seus vínculos afetivos com ambos os filhos e por um período de alguns meses, enquanto ainda permanecemos naquela unidade prisional, pudemos perceber, também, o quanto o fato de ter conseguido finalmente restabelecer laços de paternidade o fortaleceram como sujeito e cidadão, apesar da situação de privação de liberdade, possibilitando, inclusive, projetar-se para realidades diferentes da que vivia até ali, quando tivesse restabelecida, também, sua liberdade. O que se iniciou como ação de destituição do poder familiar se converteu na nova realidade para o pai: a possibilidade de manter vínculos de proximidade afetiva com os filhos.
A respeito da atuação profissional diante de situações como esta, nota-se que o CEPP é claro, em seu segundo princípio fundamental, ao explicitar que a/o profissional "trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (Resolução CFP nº 10/2005, p. 7), o que também é ressaltado, principalmente nos incisos "a" e "e" do artigo 2º, que discorre sobre o que é vedado à/ao profissional da psicologia:
a. Praticar ou ser conivente com quaisquer atos que caracterizem negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão.
[...]
e. Ser conivente com erros, faltas éticas, violação de direitos, crimes ou contravenções penais praticados por psicólogos na prestação de serviços profissionais (Resolução CFP nº 10/2005, p. 9).
Inevitável para nós a reflexão sobre a excessiva formalidade dos documentos no campo do direito (também na psicologia) e a busca pela objetividade que, no limite, pode escamotear uma excessiva "[...] fragmentação do objeto e do conhecimento que não é somente uma derivação regressiva da especialização [nas duas ciências], antes é antagônica a ela" (Sass, 2021, p. 212).
Ou seja, ao reduzir de maneira a-histórica e apolítica a pessoa a um episódio, marca pessoal ou característica sem considerar todos os condicionantes que a fazem ser o que é, seguindo por vezes as formalidades de forma rígida e irrefletida, tanto a Psicologia quanto o Direito permanecerão na qualidade de dispositivos mantenedores do status quo; aliados qualificados do convencionado na sociedade, ideologicamente orientados segundo o ideário das classes no poder, representam o que há de mais retrógrado no pretenso progresso da condição humana. Pretenso porque só se pode pensar em progresso quando este envolver a pessoa e, não, apenas a técnica ou a tecnologia (Sass, 2021).
Um outro ponto importante da relação entre esses dois campos de saber, que abordaremos na sequência, é a verdade dos fatos, perseguida pelo Direito, e a dificuldade de a Psicologia atender a esse preceito, o que produz tensões consideráveis. Trata-se de um debate técnico, ético e político extremamente relevante, que por mais que apresente controvérsias, dificuldades, tensões, limites, precisa ser enfrentado séria e profundamente.
Objetividade versus Objetivismo nas Práticas Psicojurídicas: Tensões Inevitáveis?
Jacinto et al. (2016), ao se debruçarem sobre uma das atividades que envolvem questões prementes no campo da ciência psicológica, a escrita de documentos a partir das atuações profissionais, dizem que "a Psicologia Jurídica é uma das áreas mais complexas a se trabalhar, uma vez que lida em conjunto [itálicos nossos] com o Direito" (p. 113).
A problemática dos documentos emitidos pelos/as psicólogos, que resultam de ações profissionais nos diversos campos da sua prática, é de tamanha grandeza e complexidade que fez com que o Conselho Federal de Psicologia normatizasse o tema desde 2001, por meio de resolução específica. A Resolução nº 30 (2001), que "institui o Manual de Elaboração de Documentos produzidos por psicólogos, decorrentes de avaliação psicológica" passou por necessárias atualizações com as Resoluções nº 07/2003 e nº 017/2002 e chegou, mais recentemente, à Resolução CFP nº 06 (2019), que "institui regras para a elaboração de documentos escritos produzidos pela(o) psicóloga(o) no exercício profissional".
Dez anos antes da edição da última resolução mencionada acima, Shine (2009) alertava para o que ele denominou "o fio da navalha", ou seja, os riscos e armadilhas na confecção de laudos psicológicos para a Justiça. Partindo de sua prática como profissional da psicologia no poder judiciário paulista, atuando em Vara de Família, Shine (2009) analisou representações éticas em razão de problemas identificados na elaboração de documentos oriundos de atividades técnicas (avaliação, perícia, atendimento psicológico em situações que envolviam disputas judiciais ou litígios).
Um documento profissional, que poderia ser identificado como parecer, laudo, relatório ou declaração, era produzido a fim de embasar decisões da justiça: o seu conteúdo, sua forma e, eventualmente, suas conclusões ou considerações eram tidas como bastante emblemáticas, já que dele derivariam posicionamentos judiciais que teriam o poder de afetar, de maneira implacável, pessoas ou famílias, incluindo crianças e adolescentes, sujeitos de direitos à proteção integral pelo Estado.
Considerando-se: i) os entraves que surgem da interface entre as solicitações advindas do campo do direito, muitas vezes marcadas por seu caráter conservador e pela busca por uma objetividade acrítica e a-histórica, como discutido anteriormente; ii) as demandas normativas do Sistema Conselhos de Psicologia, que vem estabelecendo de maneira mais clara as diretrizes para produção dos diversos documentos que podem ser emitidos por profissionais da psicologia, bem como estimulando entre os profissionais uma ação transformadora, autonomia intelectual e percepção crítica da realidade (Resolução CFP nº 6/2019) e iii) as representações individuais e coletivas de uma parcela dos profissionais da psicologia sobre quem é o sujeito de sua intervenção, que aderem a concepções superficiais sobre sua própria atuação, atribuindo à psicologia um caráter neutro e objetivo que ela mesma não tem (Mello & Patto, 2008), cabe refletirmos a respeito das implicações históricas, políticas e sociais com as quais a psicologia como ciência e profissão vem lidando, com muitos embates, desde sua regulamentação no Brasil em 1962.
Ao olharmos historicamente para a ciência psicológica, reconhecemos que o percurso da psicologia se pautou, principalmente pós-reforma universitária que ocorreu na Ditadura Militar, na hegemonia dos processos clínicos individuais e privados (Carpigiani, 2009), fato que se constitui como um espectro até hoje, como apontam os dados do Censo da Psicologia ao indicar que a área de maior atuação e de início de carreira segue sendo o consultório. No entanto, os dados apontam também que há reconhecimento por parte da categoria da implicação da profissão com as desigualdades e a interface da psicologia com os Direitos Humanos (CFP, 2022).
Porém, embora aparentemente haja uma mudança no olhar da psicologia e de importantes setores da sociedade, cabe questionarmos se a compreensão faz intersecção com a prática, pois pode ocorrer a reprodução das lógicas dominantes e um trabalho voltado à manutenção do status quo, como apontado acima ao discutirmos a qualidade dos documentos produzidos por profissionais da psicologia.
Um exemplo dos graves problemas que podem advir de documentos desse tipo pode ser encontrado em Mello e Patto (2008). Depois de analisarem um caso com desfecho bastante triste, ocorrido num município da Grande São Paulo, em que dois meninos foram mortos por seus pais após estes receberem de volta a guarda das crianças, contrariamente ao desejo manifesto pelos meninos e com apoio, entre outros documentos, de um laudo psicológico, as autoras afirmaram que
Sem o entendimento rigoroso e bem fundamentado do que se passa na subjetividade e nas relações intersubjetivas numa sociedade concreta, e sem a consciência da imensa responsabilidade dessas práticas, esses profissionais podem lesar direitos fundamentais das pessoas e, no limite, colaborar para a negação de seu direito à vida." (Mello & Patto, 2008, p. 594).
As autoras ainda reiteram, de maneira bastante incisiva, que ao descuidar da formação continuada de nossos afazeres profissionais ou da possibilidade de reflexão da prática, corre-se o sério risco de "lesar direitos fundamentais das pessoas e, no limite, colaborar para a negação de seu direito à vida, somando-se insciente, com o preconceito delirante, a opressão, o genocídio e a tortura" (Mello & Patto, 2008, p. 594). A atuação profissional, nestes casos, estará, infelizmente, ideologicamente orientada segundo os valores das classes no poder e representarão a continuidade das injustiças estruturalmente fincadas na formação do Brasil, colonial e escravocrata e materializadas, ainda hoje, no racismo, machismo, misoginia, dentre outras marcas de nossas desigualdades.
Há uma relação bastante particular entre os dois campos, o da Psicologia e o do Direito, pela qual uma solicitação das instâncias do poder judiciário dirigida ao profissional da psicologia traz como produto um documento, fruto das técnicas, métodos e estratégias da ciência psicológica, no qual o que ali é narrado tem o poder de alterar profunda e permanentemente pessoas e grupos. Ao mesmo tempo, esse documento pode contribuir para a manutenção do status quo e a perpetuação de inúmeras injustiças e iniquidades, o que acentua o caráter extra-científico de boa parte do próprio campo da psicologia. De fato, a adesão do campo da psicologia ao campo do direito pode ser explicada pelo desejo de muitos profissionais de consolidar e exercer "[...] o poder de dizer (itálicos nossos) sobre o íntimo das pessoas que lhes é socialmente outorgado e considerado como o único discurso competente para esse fim" (Mello & Patto, 2008, p. 593).
Para Sass (2021), "[...] o problema dos documentos jurídicos é suscitado devido à sua pertinência e relevância para a relação entre as duas disciplinas" (p. 236), o Direito e a Psicologia. Ainda para esse autor, que tem um olhar crítico sobre a sociedade e questiona os pressupostos positivistas que norteiam as práticas das duas disciplinas, deve-se, no que se refere à psicologia:
[...] rever extensiva e profundamente os instrumentos psicológicos utilizados na esfera jurídica, muitos dos quais elaborados de acordo com a ideologia da defesa social, especialmente, naquela do Direito Penal, com o objetivo de verificar a consistência, validade, parcimônia e resultados que proporcionaram para aqueles a que foram submetidos (Sass, 2021, pp. 236-237).
Mesmo que individualmente tenha seus questionamentos aos laudos e ao exercício de futurologia implícito neles quando se pede à/ao psicóloga/o a chamada "prognose de reincidência", por exemplo, numa clara concepção etiológica e reducionista do crime, ela/e se vê obrigada/o a agir nesse sentido pragmático e, desse modo, se torna apenas um dente na complexa engrenagem carcerária, em alusão a Hannah Arendt (1963/1999), fazendo-a movimentar-se apenas, sem ver nenhum sentido em sua atuação (Rauter, 2016, p. 44).
Frente a tal situação, pode a/o profissional da Psicologia trabalhar para a garantia de direitos para além da ação burocrática demandada pelo Direito? Ou o trabalho se instrumentaliza de tal forma que só agimos de forma tecnicista, ou seja, sem vinculação humana e respondendo meramente ao aparato disciplinar?
No Brasil se encontram 1.345 psicólogas/os atuando em 1.387 unidades prisionais, com 642.491 mil pessoas privadas de liberdade em celas físicas, segundo o último Relatório de Informações Penais (Relipen), da Secretaria Nacional de Políticas Penais, referente aos dados consolidados das administrações prisionais estaduais e das cinco unidades de gestão federal (Secretaria Nacional de Políticas Penais, 2024). A escassez de profissionais da Psicologia, expressa por esses números, permite inferir que eles estejam sofrendo intensa demanda, o que talvez torne mais difíceis as oportunidades para processos reflexivos e críticos em relação à sua prática. Além disso, a complexidade da relação com o campo do Direito, como já mencionado, acarretará processos de enfrentamento intensos no cotidiano de trabalho, que pode ser violento e arbitrário.
Esse tensionamento pode tornar-se ainda mais intenso devido às características das normativas do Sistema Conselhos de Psicologia, que fomentam a busca tanto por uma atuação que preze pelo reconhecimento das condicionantes que permitem a cada um/a ser o que é, quanto pela eliminação das violências, de toda a forma de opressão e dos preconceitos, e que promovam, fundamentalmente, a justiça.
Reiterando princípios das instâncias reguladoras da profissão, mas buscando superar uma trincheira há muito tempo colocada nas prisões para os/as profissionais técnicos/as, não faz sentido que se continue a exigir dos/as psicólogos/as que realizem avaliações com a finalidade precípua de instruir processos de exame criminológico para fins de progressão de regime de cumprimento de pena. Em primeiro lugar, seremos mais úteis se nos atermos aos elementos da saúde mental da população reclusa e em contribuir, com outros profissionais, em procedimentos atinentes aos programas de reintegração social dessas pessoas.
Em segundo lugar, também devemos nos afastar criticamente de atitudes diagnósticas e prognósticas de criminalidade, periculosidade, reincidência criminal ou de agressividade, por exemplo, conforme exigido em quesito de intimação apresentada certa vez pelo Juízo de Execução, no segundo documento resgatado para análise: "Considerando-se a personalidade do sentenciado, seus antecedentes, os motivos e circunstâncias do(s) crime(s) pelo(s) qual (is) cumpre pena e pelo tempo de pena cumprida, há a presunção de que em liberdade voltará a delinquir?". Ou, ainda: "Por toda a avaliação feita, é possível afirmar que o sentenciado é pessoa dotada de periculosidade?" (quesitos formulados por juiz de execução em documento em posse dos autores).
Apesar das "[...] interconexões conflitivas, que [itálico nosso] acabam por se chocar e configurar um lugar de saberes e fazeres no qual fica evidente um estranhamento e distanciamento mesmo que este profissional empenhe-se em realizar seu trabalho da melhor forma possível" (Lopes, 2016, pp. 81-82), é desejável que tanto a Psicologia quanto o Direito enfrentem, com dedicação, os enigmas trazidos com o advento da sociedade capitalista (individualismo, consumismo, ensimesmamento, alienação) e, superando adversidades oriundas de seus próprios desenvolvimentos, contribuam para a consolidação dos elementos democráticos, de justiça e de igualdade que tanto ansiamos no Brasil. Finalizamos com Sass (2021), quando defende que:
[...] Nem a ciência nem a técnica e a tecnologia, são neutras, visto que as prioridades estabelecidas bem como os conhecimentos científicos e técnicos resultantes são determinados pelo sistema social vigente; não há pesquisa científica inocente ou sem intenção. [...] portanto, a aquisição de conhecimentos científicos pode ao mesmo tempo ser considerada como um modo de resistência ao progresso regressivo contemporâneo, à medida que continue a promover o esclarecimento e a buscar a verdade sobre os acontecimentos, fenômenos e eventos de que se ocupa (Sass, 2021, p. 211).
Considerações Finais
Neste artigo, discutiu-se sobre as complexas relações entre a ciência psicológica e o Direito a partir de elementos das práticas profissionais no interior das prisões, bem como as nuances existentes na interrelação ou interface entre estes dois campos naquilo que se nomeia psicologia jurídica. Por meio de documentos, relatos, memórias e lembranças da prática profissional na administração penitenciária do estado de São Paulo por longo período, ou da entrada nesses locais como pesquisador ou propositor de projetos de extensão, procurou-se mostrar o quanto restam questões importantes a serem compartilhadas, refletidas e, finalmente, elaboradas para que se consiga, efetivamente, uma transformação social oriunda da crítica à forma constituída das duas ciências.
Buscou-se ecoar a voz de profissionais da Psicologia nesses espaços complexos e repletos de paradoxos, que são as prisões, por meio da reflexão sobre as orientações das instâncias de regulação (CFP e Conselhos Regionais de Psicologia - CRP). Embora essas orientações proponham novos elementos para uma atuação mais crítica, muitas vezes deixam os profissionais em uma situação ambígua, embaraçosa e conflituosa, especialmente ao lidar com as exigências da justiça.
Defende-se uma outra Psicologia que, a partir da necessidade de refletir sobre si mesma, sobre sua história, seu desenvolvimento, seus limites e possibilidades, possa, efetivamente, olhar para as ações humanas, mesmo as mais emblemáticas (o crime, por exemplo), como possibilidades de existir histórica, política e socialmente, auxiliando na superação das iniquidades e das diferenças de classe numa sociedade dividida por estas. Enfim, espera-se que a psicologia, como ciência e profissão, possa servir aos propósitos de uma sociedade distinta desta que presenciamos e, portanto, justa, solidária e horizontal.
Do Direito, espera-se que possa fazer ele mesmo suas reflexões e, junto com a Psicologia e outras ciências, vise "[...] à formação de um sistema social não repressivo que promova a pacificação da existência humana no planeta, única forma de superar a sociedade administrada atual e o sistema repressivo fundamentado na justiça punitiva" (Sass, 2021, p. 238).
Referências
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Endereço para correspondência
Arlindo da Silva Lourenço - arlindo.lourenco@uemg.br
Recebido em: 30/04/2024
Aceito em: 26/09/2024
Agradecimento: À Rosana Cathya Ragazzoni Mangini, psicóloga e colega de trabalho de tantos anos no interior das prisões e com quem trocamos criticamente muitas informações no decorrer de nossas experiências profissionais.
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