Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e83967, doi:10.12957/epp.2025.83967
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA SOCIAL
"Fala da Minha Ideia!": Mulheres MC's em Batalhas de Hip Hop
"Speak about My Idea!": Women MCs in Hip Hop Battles
"¡Habla sobre Mi Idea!": Mujeres MC en Batallas de Hip Hop
Márcia Francisca de Oliveira Silva a, Adriano Roberto Afonso do Nascimento a
, Luciana Célia da Silva Costa a
, Lucas Eduardo Guimarães a
a Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo discutir a participação de mulheres em batalhas de MC's. As batalhas são competições de rimas improvisadas (freestyle) que fazem parte do movimento Hip Hop, sendo uma das formas de apresentação do rap. Foi conduzida pesquisa exploratória qualitativa, utilizando o YouTube como base de dados para a busca de vídeos de competições em que os/as oponentes fossem um homem e uma mulher. Foram selecionados cinco vídeos, um de cada região do país. A perspectiva de gênero foi utilizada como categoria de análise e a análise de conteúdo como método. Complementarmente, foram consideradas as imagens dos vídeos das batalhas, objetivando acompanhar as reações do público às rimas. Verificou-se o reforço de papéis estereotipados de gênero, por parte dos jovens homens e das jovens mulheres, mesmo nos momentos de enfrentamento das jovens ao machismo de seus adversários. Verificou-se ainda que, num espaço construído pela ótica masculina, a presença das mulheres configura-se como subversiva, dado que muitas delas questionam o formato da disputa e os ataques machistas direcionados a elas. Espera-se, a partir desta discussão, contribuir para a construção do conhecimento produzido sobre a participação de mulheres nos diferentes elementos da cultura Hip Hop, movimento predominantemente jovem.
Palavras-chave: batalhas de MC's, gênero, juventude, Hip Hop.
ABSTRACT
This article aims to discuss the participation of women in MC battles. Battles are improvised rhyme competitions (freestyle) that are part of the Hip Hop movement and are one of the ways in which rap is presented. Qualitative exploratory research was conducted, using YouTube as a database to search for videos of competitions in which the opponents were a man and a woman. Five videos were selected, one from each region of the country. The gender perspective was used as the category of analysis and content analysis as the method. In addition, images from the videos of the battles were considered with the objective of following the public's reactions to the rhymes. It was found that both young men and women reinforced stereotypical gender roles, even when the young women confronted the machismo of their opponents. It was also found that, in a space constructed from a male perspective, the presence of women is subversive, since many of them question the format of the competition and the sexist attacks directed at them. From this discussion, we hope to contribute to the construction of the knowledge produced about the participation of women in the different elements of Hip Hop culture, a predominantly young movement.
Keywords: MC battles, gender, youth, Hip Hop.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo analizar la participación de las mujeres en las batallas de MC. Las batallas son competencias de rimas improvisadas (freestyle) que forman parte del movimiento Hip Hop y son una de las formas de presentación del rap. Se realizó una investigación exploratoria cualitativa, utilizando YouTube como base de datos para buscar vídeos de competencias en las que los contrincantes fueran un hombre y una mujer. Se seleccionaron cinco videos, uno de cada región del país. Se utilizó la perspectiva de género como categoría de análisis y el análisis de contenido como método. Además, se analizaron las imágenes de los videos de las batallas para seguir las reacciones del público ante las rimas. Se comprobó que los jóvenes de ambos sexos reforzaban los roles de género estereotipados, incluso cuando las jóvenes enfrentaron al machismo de sus oponentes. También se constató que, en un espacio construido desde una perspectiva masculina, la presencia de las mujeres es subversiva, ya que muchas de ellas cuestionan el formato del concurso y los ataques sexistas dirigidos a ellas. A partir de esta discusión, esperamos contribuir a la construcción del conocimiento producido sobre la participación de las mujeres en los diferentes elementos de la cultura Hip Hop, un movimiento predominantemente joven.
Palabras clave: batallas de MC's, género, juventud, Hip Hop.
A cultura Hip Hop se constitui como um movimento que articula o caráter de reinvindicação política com a expressão de uma manifestação cultural. Surgido na década de 1970 nas periferias de Nova York, se expandiu para o mundo todo, com formas diferentes de assimilação em cada país. No Brasil, há registros de chegada do Hip Hop também na década de 1970, nos bailes black que aconteciam nas periferias brasileiras (Dayrell, 2002). O movimento Hip Hop é majoritariamente constituído por homens, logo, a perspectiva dominante é a masculina (Santos, 2019; Souza, 2006). Apesar desse contexto e ainda que estejam em menor número que os homens, muitas jovens mulheres se inserem no Hip Hop em busca de reconhecimento, ora como consumidoras da cultura, ora como integrantes do movimento. Esta busca de reconhecimento não se dá sem a resistência dos rapazes, que muitas vezes situam o interesse das meninas como mero modismo (Weller, 2005) ou insinuam que elas estão ali naquele espaço não em função das rimas ou da música, mas para os seduzir (Marques, 2021).
Dentre os elementos do Hip Hop está o rap, representando a música no movimento. Em encontros e eventos de Hip Hop, acontecem "batalhas de MC's" ou batalhas de freestyle 1, nas quais o freestyle, uma das possibilidades do rap, é utilizado pelos e pelas MC's numa disputa de melhor rima. É possível considerar os primeiros anos da década de 2000 como aqueles em que ocorreu a disseminação das batalhas de MC's em várias cidades brasileiras. Entendendo as limitações de demarcar tempo e espaço, além de um maior ou menor enfoque em determinadas narrativas, é possível apontar que uma das batalhas tida como pioneira no Brasil aconteceu em 2003, a chamada "Batalha do Real" (Salles, 2016), ocorrida na cidade do Rio de Janeiro e organizada por diversos MC's e DJ's, entre eles o conhecido MC Marechal. A Batalha recebeu este nome devido ao formato da competição, em que cada inscrito/a contribuía com o valor de um real. Ao final da disputa, o/a vencedor/a teria como prêmio todo o dinheiro arrecadado com as inscrições. Em batalhas de MC's de outras cidades, o procedimento é semelhante. Além disso, o/a vencedor/a costuma ter o direito de fechar o evento com um freestyle, que pode versar sobre a sua vitória no dia.
Normalmente, as inscrições para a participação nas disputas de rima se dão logo no início do evento. A quantidade de participantes depende de cada organização, sendo comum a participação de oito pessoas nas competições (Albuquerque, 2013; Veríssimo, 2015). Caso o número de inscritos/as supere a quantidade de vagas, ocorre sorteio para a definição de quem participará no dia (Albuquerque, 2013). A formação destas chaves lembra o formato de campeonatos de futebol (Teperman, 2011), também sendo realizado um sorteio dos/as participantes que irão se enfrentar.
Antes do início de cada disputa, os (as) MC 's jogam par ou ímpar. Quem vence decide quem deve começar a rimar. A pessoa que inicia a batalha deve atacar o/a oponente que, quando tiver sua vez, deverá responder e desferir seus próprios ataques. Este é costumeiramente chamado de primeiro round. No segundo round, o/a segundo/a oponente deve começar a atacar e aquele/a que iniciou a disputa deve responder.
O público presente é um dos principais responsáveis em determinar o/a vencedor/a, ainda que em algumas competições MC's convidados/as também votem, tal como um júri. São avaliados o flow do/da participante, a sua habilidade com as rimas e a destreza em "gastar" o/a adversário/a. O flow é a capacidade para rimar na cadência do beat 2. Assim, o/a MC deve rimar dentro do tempo previsto, mas também com uma rima que "flua" com o beat. Já "gastar" o/a adversário/a tem o significado de zombar, "zoar". Desta forma, aquele ou aquela que consegue executar a zombaria com maior impacto junto ao público garante a sua vitória na disputa.
De forma geral, é possível verificar a existência de três tipos de batalha: a tradicional, a bate-volta e a batalha do conhecimento. A batalha tradicional, também chamada de "batalha de sangue", tem como objetivo exclusivo "gastar" o/a adversário/a, como explicitado acima. Assim, os/as participantes devem exercer toda a sua criatividade nas rimas e ofensas, além, é claro, de ter um bom flow. A batalha bate-volta é semelhante à tradicional, com a diferença de que não há um intervalo entre os rounds. Já a batalha do conhecimento é temática e objetiva a conscientização e o desenvolvimento de algum tema, que é sorteado.
As batalhas de MC's são um evento cultural e social que tem se espalhado por todo o Brasil, sendo organizado por jovens e para a juventude. Estes e estas jovens fazem uso das mais variadas mídias sociais para o registro destes eventos. Assim, as batalhas se tornam episódios que passam do efêmero da rua para registros em vídeo disponíveis em plataformas de compartilhamento de conteúdo. Desta maneira, elas podem ser acessadas por outros/as jovens, sendo tanto um incentivo para a criação de batalhas em seus locais de moradia, como um referencial para as disputas em outros contextos/espaços.
Como nos demais elementos do Hip Hop (break, grafitti, DJ 3), as jovens mulheres estão sub representadas no rap e nas batalhas de MC's. Estudos têm mostrado que muitas jovens sentem que o julgamento sobre o desempenho delas quando estão batalhando é mais severo do que o dirigido aos meninos (Costa, 2016). Além disso, há a percepção, por parte delas, que, para se fazerem mais respeitadas, teriam que ter uma atitude mais próxima daquela que é esperada dos homens nas batalhas (Teperman, 2011). Todo esse contexto contribui para que as mulheres estejam em menor número no rap. Por exemplo, em uma batalha ocorrida na cidade de Campos dos Goytacazes (RJ), muitas mulheres MC's acabam optando por não participarem de batalhas de freestyle com homens, por receio de ofensas de cunho machista (Tavares, 2020). Em Salvador, Miranda (2019) ressalta que, ao longo de sua pesquisa de campo, apesar de serem muitas mulheres atuando no Hip Hop, apenas três MC's estavam competindo na batalha "3º round", importante evento do movimento na cidade. Segundo a mesma autora, também na capital da Bahia, uma forma das mulheres se fortalecerem para enfrentar a batalha com os rapazes foi a criação de uma batalha somente para mulheres MC's, a Batalha das Bruxas.
É interessante notar que o movimento Hip Hop tem como fortes bandeiras o enfrentamento às desigualdades raciais e de classe, mas o mesmo não se reproduz com relação ao gênero. Como destacado por Mayorga (2014), em pesquisa-intervenção realizada com jovens negros/as na cidade de Belo Horizonte, os diversos questionamentos das juventudes às hierarquias não eram tão incisivos quando o tema dizia respeito ao sexismo e à homofobia.
Como destacado anteriormente, há vários elementos que remetem a um ethos masculinizante nas batalhas. Dentre eles, pode ser ressaltada a proximidade com a lógica dos esportes, seja no formato do evento, seja na linguagem utilizada na denominação de elementos da competição. Esportes, como o futebol e o boxe, evocados no formato de chaves e no contexto de rounds utilizados nos duelos, contribuem com esse ethos (Parada & Fernandes, 2007).
Dessa maneira, a participação das jovens é um desafio à ordem masculina vigente no espaço, fazendo com que elas necessitem lidar com essa hegemonia dentro do Hip Hop.
Considerando o que foi apresentado, a pesquisa aqui relatada teve como objetivo investigar como são construídas e reconstruídas as referências de gênero nas batalhas de MC's entre homens e mulheres, com especial interesse pelos elementos relativos à participação feminina.
Um dos elementos apreendidos ao longo da pesquisa, foi que a presença das jovens mulheres nas batalhas de rima de certa forma subverte esse espaço formado predominantemente por homens. Além disso, verificou-se que, a despeito disso, as jovens tentam estabelecer o seu lugar como participantes, buscando o reconhecimento como oponentes e questionando o machismo de seus opositores.
Método
Esta pesquisa utilizou como banco de dados a plataforma de vídeos YouTube, visto a popularidade da plataforma, expressa na quantidade de vídeos compartilhados e do volume de acessos a esta rede social. O YouTube foi fundado em 2005 por Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim, ex-funcionários da empresa PayPal 4. Em 2006, a Google adquiriu o YouTube por 1,6 bilhão de dólares. O primeiro vídeo disponibilizado na plataforma foi "Me at the zoo", realizado por um dos fundadores, Jawed Karim (Carlón, 2013).
O YouTube é ao mesmo tempo uma rede social e um importante veículo de comunicação, que reúne tanto produções das mídias tradicionais quanto a de pessoas comuns. É um veículo de comunicação bastante utilizado pela juventude, que produz os mais diversos conteúdos no site. Tal situação também se repete no compartilhamento de imagens das batalhas de rima, abundantes na plataforma.
Foram selecionados cinco vídeos (cada um correspondendo a uma região do país 5), publicados entre 2015 e 2017, que tivessem como opositores na disputa um homem e uma mulher. Além disso, critérios como qualidade de imagem e som também foram observados. As batalhas analisadas são do tipo tradicional e bate-volta, uma vez que nestas categorias o ataque ao adversário ou adversária é aberto, não sendo direcionado por nenhuma temática.
O processo de construção do corpus da pesquisa ocorreu por meio de buscas sucessivas na plataforma YouTube, utilizando os seguintes descritores: "Batalha de MC's" + [estado]; "Batalha de MC's" + [cidade]; "Batalha de MC's" + [o nome da batalha]; "Batalha de MC's" + "mulheres"; "Batalha de MC's" + "minas"; "Batalha de MC's" + "meninas"; "Batalha de MC's" + [nome da MC].
É importante ressaltar que a data considerada para a seleção foi aquela de publicação dos vídeos, e não a de realização do evento ou de produção do registro. Tal escolha no processo de seleção do material ocorreu em virtude de não serem homogêneas as informações disponíveis sobre os vídeos. Em alguns canais há descrições mais completas, como o nome da batalha, o nome dos/das MC's participantes, o tipo de batalha, data da disputa e em qual edição do evento ela aconteceu. Mas em muitos casos essas informações não constam nas publicações, o que fez com que a seleção por data de compartilhamento fosse determinante.
Na etapa de análise, buscou-se a articulação entre a observação do "texto" cantado no freestyle com as imagens transmitidas em vídeo. As batalhas de MC's, para além do aspecto atinente à palavra cantada, também guardam elementos cênicos marcantes, que fazem parte da disputa de rimas (Parada & Fernandes, 2007; Teperman, 2011).
Para a análise específica do texto cantado pelos/as jovens, foi utilizada a análise de conteúdo (Bardin, 2011). O gênero, como categoria de análise (Scott, 1995), foi o norteador para a construção das unidades de significação emergentes no texto, bem como na análise das batalhas de MC's enquanto fenômeno cultural. De maneira complementar, as imagens das batalhas foram observadas a fim de verificar as interações e reações do público.
Resultados e Discussão
Ao final do processo de análise de conteúdo, foi possível chegar a quatro categorias: Aparência; Comportamento; Atributos masculinos e femininos; e Outros. Para fins de ampliação da compreensão sobre o processo de categorização, segue uma breve descrição de cada categoria encontrada neste estudo.
Na categoria Aparência foram agrupadas as respostas com conteúdos que versassem sobre a adequação ou a inadequação do/a oponente aos padrões de beleza. Assim, foram consideradas, por exemplo, as respostas que destacavam a beleza do/a oponente, ou a falta dela, ou detalhes do corpo que se relacionam a padrões estabelecidos.
A categoria Comportamento abarcou respostas relacionadas às ações, seja dos homens, seja das mulheres. Dentro desta categoria estão conteúdos que apresentam acusações, ironias ou críticas a comportamentos específicos do/a oponente. Nesta categoria também se encaixam as citações positivas ao próprio comportamento que foram emitidas por alguns/algumas MC's.
Na categoria Atributos masculinos e femininos, considerou-se as características que podem ser entendidas como pertencentes "especificamente" a homens e mulheres. Assim, temas que abordavam estereótipos tidos como característicos de um gênero ou de outro foram alocados nesta categoria.
Na categoria Outros, foram agrupados elementos que diziam sobre competências em geral ou habilidades. Tais elementos foram menos representativos em conteúdo do que aqueles agrupados nas demais subcategorias.
Foram encontradas 53 subcategorias, demonstrando uma diversidade temática dos/as jovens com relação aos ataques feitos nas batalhas. As subcategorias de maior frequência foram Avaliação negativa da aparência feminina e Avaliação da conduta sexual feminina, com 11 e 9 ocorrências respectivamente. A primeira subcategoria está enquadrada no grande grupo Aparência e a segunda no grande grupo Comportamento. Outras subcategorias contaram com uma citação apenas, como Feminização do adversário (categoria Atributos masculinos e femininos)e Sexualidade feminina inadequada (categoria Comportamento).
A categoria Comportamento foi a que teve maior diversidade de temas e maior quantidade de citações nos vídeos analisados. Foram 27 temas e 75 citações distribuídas entre eles. Em seguida, Atributos masculinos e femininos, com 18 temas e 33 citações. A categoria Aparência apresentou 4 temas, distribuídos em 21 citações. E, por último, a categoria Outros teve 5 temas, distribuídos em 21 citações.
Uma vez construídas as categorias e subcategorias, foi possível realizar a análise dos dados com foco no texto das rimas. A observação das imagens foi usada como recurso adicional, considerando as reações do público e dos/as participantes ao rimarem ou receberem a resposta da rima.
O Corpo e as Construções sobre o Masculino e o Feminino
Ao longo da pesquisa, foi possível perceber o corpo como um elemento importante nas batalhas entre mulheres e homens. Para além do corpo atuante performando nas disputas, as rimas cantadas também apresentam vários elementos relacionados aos corpos dos/as adversários/as. Nas batalhas entre mulheres e homens, foi possível perceber que muitas rimas remetiam a estereótipos (tanto positivos quanto negativos) com relação aos corpos feminino e masculino.
A discussão sobre o corpo é considerada uma das pautas marcantes do movimento feminista de segunda onda, englobando, por exemplo, a luta pela autonomia do corpo por parte das mulheres. Esta pesquisa considera, assim como Bordo (1997), que os estudos feministas e de gênero devem voltar a se debruçar sobre esta temática de maneira mais aprofundada. A realidade dos corpos se choca ou se conecta com as variadas representações a respeito deles. O debate sobre o corpo permanece atual, uma vez que os processos de sua generificação, que incluem aspectos rígidos de hierarquia, continuam acontecendo desde o nascimento dos indivíduos.
Nesta pesquisa nos deparamos com variados ataques de MC's relacionados ao corpo. Em uma das batalhas, por exemplo, a jovem adversária chama o rapaz de "nanico", entre outros adjetivos infantilizantes (Batalha do MuMA, 2015). Já em outra disputa, a adversária chama a pouca barba de seu adversário de "pentelhos" (All Inclusive Comics, 2022). Reproduzimos aqui os trechos mencionados: "Não tem disciplina, você é só um moleque, não vem me desmerecer, antes de falar merda, cresce / Nanico, […] fica ligeiro, que comigo ninguém pode", rimas feitas por Eva 6 (Batalha do MuMA, 2015); "Deixa eu te falar o seguinte aqui pra tu / Esses pentelho na tua cara parece até pentelho de cu / E é desse jeito", nas palavras de Elis (All Inclusive Comics, 2022).
Como exemplo dos ataques feitos pelos rapazes, é possível citar ofensas relacionadas à aparência das jovens, como também relacionadas ao uso do corpo, ou seja, ofensas relacionadas à atividade sexual feminina. Com relação à aparência da aversária, Otto rima: "Olha só, eu falo com certeza, eu não tenho inteligência, essa mina não tem beleza" (Batalha do Vinho, 2015). E sobre a sexualidade feminina, Caio rima: "Então se liga na resposta, mina, pelo menos eu não sou que pegou geral lá de Planaltina" (All Inclusive Comics, 2025).
Nos dois primeiros exemplos, em que as jovens atacam os rapazes, é possível perceber que estas ofensas buscam infantilizar, passivizar seus adversários. Ou seja, nos adjetivos utilizados, o que fica destacado é que os rapazes são "menos homens", ou que, no mínimo, não correspondem a um padrão de masculinidade hegemônico.
Na Batalha do MuMA (2015), ocorrida no Paraná, Eva diz que seu adversário não passa de um moleque, o manda crescer e, por fim, o chama de nanico. Com diferentes adjetivos, a jovem infantiliza o seu oponente, e sintetiza com o imperativo para que ele cresça, o que amarra duplamente os ataques - o rapaz é infantil e baixo, nanico. Ou seja, a última ofensa se relaciona a um traço corporal do rapaz, seu tamanho, a fim de concluir a imagem construída por ela.
Elis também se utiliza deste expediente, ao dizer que a barba de seu adversário se parece com "pentelhos". Ao dizer isto, o que pode ser compreendido é que o rapaz não possui um tipo de barba que é esperada que um homem adulto tenha. Dessa forma, ela também o compara a uma criança.
Teperman (2011) destacou que, nas batalhas, há a presença da categoria passividade de forma marcante. Considerando que as batalhas são um jogo predominantemente masculino, passivizar o adversário implica afirmar a própria masculinidade inferiorizando a do oponente. Uma das formas de passivização encontradas pelo autor em sua etnografia diz respeito à recorrência de rimas sugerindo a homossexualidade do adversário. Outras formas de passivização presentes nas disputas entre os rapazes são a de infantilizar o outro, bem como atribuir-lhe feminilidade. Diante disto, surge uma questão interessante: e quando os oponentes são uma moça e um rapaz?
As batalhas, como espetáculo poético-cenográfico, tratam tanto das rimas produzidas quanto da postura corporal e trejeitos dos/as participantes. Também estas rimas buscam ser gráficas nos ataques que fazem, para assim, na construção da cena, provocar o efeito desejado no público.
Considerando a ótica masculinizante do jogo, as jovens mulheres também buscam passivizar seus oponentes. Quando bem-sucedidas, o efeito provocado na plateia é quase uma catarse. Na batalha do Amazonas (All Inclusive Comics, 2022), a jovem Elis canta um conjunto de rimas em que se diz "mais macho" do que Ian, seu adversário. A plateia, predominantemente masculina, vai ao delírio. Alguns rapazes cobrem o rosto com as mãos ou com a camisa. A reação efusiva da plateia permite hipotetizar que a rima de Elis foi bem-sucedida no objetivo de "zoar" seu adversário. Entretanto, também é possível supor que a reação de alguns rapazes também expresse o constrangimento provocado pela rima da jovem, sendo que esse constrangimento pode ser definido também como "vergonha alheia" dessa situação específica.
É possível ponderar que, quando há dois rapazes na cena de passivização, está em jogo uma disputa entre "iguais". Nessa situação, ainda que ocorra a humilhação, essa se faz num âmbito de disputa cotidiana nos espaços masculinos. Já no caso das disputas com jovens mulheres, caso elas sejam bem-sucedidas nessa humilhação, o efeito para o adversário do sexo masculino pode ser mais dramático. Teperman (2011) percebeu essa mesma sensação de vergonha dos jovens rapazes em perder para uma opositora mulher. Segundo as próprias palavras deles em entrevistas, "perder de uma mina é foda" (Teperman, 2011, p. 184). Outro exemplo da inquietação dos rapazes diante da possibilidade de perder para uma mulher na disputa foi fornecido por Tavares (2020). A autora destaca uma disputa entre uma moça e um rapaz. Embora no fim da disputa ele tenha vencido, no primeiro round a oponente venceu. O rapaz, então, mostrou-se visivelmente incomodado, tal qual uma parcela do público masculino. Houve um terceiro round, em que o rapaz venceu, com ele agregando a maioria de votos de outros homens, enquanto a jovem teve mais votos do público composto por mulheres. Dessa maneira, é possível considerar que a simples possibilidade de perder para alguém sendo vinculado a estereótipos de passividade provoca bastante tensão entre os rapazes. Outra questão é que, uma vez que o convencionado é o estereótipo da passividade das mulheres, a subversão deste lugar por parte delas aumenta o impacto de sua ação ao subjugar seu oponente.
Outros elementos de passivização dos adversários dos quais ambas as jovens citadas (Elis e Eva) lançaram mão foram os de ordem diretamente sexual. No caso dos homens, a impossibilidade e/ou a inexperiência sexual são dois recursos utilizados por seu efeito confrontador das masculinidades tradicionais.
Seguem alguns trechos que fazem alusões nesse sentido, como o de Eva: "Batalhou com uma mina, vem querer falar da pepeca, mas você nunca viu, nem sabe o que é uma perereca" (Batalha do MuMA, 2015); ou o de Elis: "Na moral, eu vou mandando na improvisada / Broxou porque a tua piroca não sobe nem com Viagra" (All Inclusive Comics, 2022).
Elis e Eva, cada uma a seu turno, aludem seja à disfunção sexual do corpo, seja a uma falta de contato sexual de seu opositor. Estes dois ataques foram enquadrados na categoria Atributos masculinos e femininos justamente por abarcar certo significado compartilhado sobre a atividade sexual dos homens, referente a toda uma construção estereotípica sobre a virilidade masculina.
Espera-se que os homens iniciem a vida sexual precocemente, ainda jovens, sendo o inverso esperado para as mulheres. Assim, como parte da construção do "ser homem" passa necessariamente pelo contato sexual com mulheres, ser um sujeito no qual este contato ainda não ocorreu pode ser visto de forma negativa. É nesta perspectiva que Eva joga, pois o adversário falou do órgão sexual feminino, dizendo que ela, Eva, não honrava sua própria vagina (pepeca/perereca). Ela responde acusando-o de ter falado de algo que ele não sabe o que é, que sequer viu. Ela o diminui novamente, mas, dessa vez, se utilizando de uma rima que ressalta uma suposta inexperiência sexual do adversário.
Por sua vez, o ataque de Elis trata de um homem que falha na atividade sexual, ou seja, que não consegue mais cumprir o seu "papel de homem", como preconiza o senso comum. Podemos considerar que esta rima não se orienta a uma passivização pela via da infantilização, mas a uma retirada de um atributo visto como estereotipicamente masculino: sua virilidade ativa, potente. Em sua etnografia, voltada à dinâmica de gênero nos jogos de futebol, Damo (2007) observou que a coragem e a virilidade são aspectos importantes na construção da masculinidade dos meninos. Assim, o ataque de Elis versou sobre um ponto reconhecidamente importante na constituição do masculino. É interessante notar a coerência temática ocorrida nessa batalha: a estratégia inicial de Ian, oponente de Elis, não era de atacá-la, e sim cortejá-la. Dentre algumas rimas, é possível destacar esse recurso, por exemplo, nos versos: "Olha só, o rap também é mensagem E os cara pensam que eu tô aqui de talaricagem / Só que não, eu disse que meu rap é mensagem/ Se duvidar hoje eu vou ver o resto dessa tatuagem." (All Inclusive Comics, 2022).
A postura de corte do rapaz pode ser compreendida de, pelo menos, duas maneiras: a) a afirmação de sua virilidade diante da jovem, e; b) ela não seria levada a sério como adversária, uma vez que ele prefere passar cantadas ao invés de atacá-la, como faria com um rival masculino.
Dessa forma, é curioso notar que Elis não apenas buscou atacar seu adversário, como também rejeitá-lo. Para isso, atacou, na maior parte do tempo, a sua virilidade, ora o infantilizando, quando rimou sobre a barba do rapaz, ora pondo em dúvida sua capacidade física de satisfazer sexualmente uma mulher.
Assim, os ataques muitas vezes feitos pelas adversárias, e que de certa forma abordavam detalhes do corpo dos rapazes, tiveram por objetivo a passivização destes. Intuito este que, como já colocado, é um dos horizontes do jogo de rima improvisada.
No caso dos ataques dos rapazes às jovens mulheres, também é possível encontrar exemplos de ataques nas rimas que utilizam o corpo para remeter a outros símbolos relacionados a gênero.
Um dos ataques mais "simples" aos quais muitos jovens costumam recorrer é dirigido à aparência de suas adversárias, normalmente, acusando-as de serem feias. Veríssimo (2015) e Teperman (2011) descreveram situações em que tais ataques ocorreram. Em duas batalhas descritas pelos autores, adversárias do sexo feminino foram chamadas diretamente de feias. No caso das meninas, elas também atacam os rapazes utilizando essa forma de ofensa, tendo que se ressaltar, porém, que a exigência de responder a um padrão de beleza é maior para as mulheres.
Vejamos alguns exemplos de rimas em que a avaliação da beleza das adversárias aparece: "Olha só, eu falo sem pressa, só pra começar sua face parece a da bruxa Keka", de Otto (Batalha do Vinho, 2015); "Ah, é a filha da mulher melancia/ Só que mais gordinha e mais feia", de Leo (Batalha do MuMA, 2015); "Porque cê parece um dragão / não te contratei, cê contrata tralheira pro clipe?", de Caio (All Inclusive Comics, 2025).
Em duas dessas batalhas, as jovens também atacaram a aparência dos rapazes. Eva (Batalha do MuMA, 2015), já no início da disputa, chama o adversário de feio. Anna (Batalha do Vinho, 2015), por sua vez, inicialmente buscou ter uma postura que se distanciasse de ataques ao físico do oponente. Ela chega a dizer que não iria falar da aparência do rapaz, e sim da inteligência dele (e que ele não teria inteligência). Esse recurso retórico aparentemente não teve ressonância para alterar a forma de rimar do rapaz, que seguiu fazendo diversas pontuações negativas à aparência da jovem. Assim, ela acaba por desferir dois ataques contra a aparência do rapaz: um em que relaciona a imagem dele ao "capeta" e outra em que diz que ele se parece com o personagem Sméagol, de O Senhor dos Anéis (Tolkien, 2019). No entanto, a todo o momento, Anna tenta retomar ao tema anterior de suas rimas, em que não priorizava ataques à aparência. A jovem, que parece, em vários momentos, bastante incomodada, no fim da batalha sintetizou o seu incômodo:
Tá com medo de mim, é, pra falar da minha aparência? Fala da minha ideia, da minha competência […] Da tua ideia, sim. Tu só sabe xingar/ Porra, cara, cadê o teu conteúdo pra mostrar pra galera? Que rap é compromisso, rap é a nova era! (Batalha do Vinho, 2015).
Contudo, é necessário observar que, numa disputa que não é só baseada na fala, mas também nos corpos, há diferenças na difusão de mensagens e/ou normativas, a depender de quem as emite. As batalhas de MC's, como manifestações culturais inseridas na sociedade em que vivemos, também serão espaço da reprodução e reafirmação de determinadas normativas. Como destacam Parada e Fernandes (2007, p. 7), "os duelos cantados possuem uma rígida função de ditar regras sociais, exercitar o humor e a competência para fazer versos, atuando como uma forma de catarse para pessoas ou grupos participantes do freestyle." A beleza, por mais que venha sendo também exigida dos homens em alguns momentos e em determinados contextos, mostra-se diferente da exigência que é feita às mulheres. Frequentemente, o valor de uma mulher é relacionado ao fato de ela estar ou não adequada a padrões de beleza (Wolf, 1992). Ainda segundo Wolf (1992), a instrumentalização das imagens relacionadas à beleza tinha como objetivo ser uma outra forma de opressão das mulheres após as conquistas do feminismo de segunda onda. Um exemplo, citado também por ela e que pode ainda ser visto na atualidade, é a disseminação da imagem da "feminista feia". É possível considerar dois elementos nessa afirmação: o primeiro é que, a despeito das lutas e eventuais conquistas a que uma mulher chegue, o seu valor continua residindo na beleza que tem (ou não); o segundo é a utilização dessa valorização exacerbada da beleza para colocar em xeque a credibilidade da mulher em questão.
Dessa maneira, eventuais observações relacionadas à beleza - ou à feiura - de uma mulher possuem um peso distinto do que quando direcionadas aos homens. É possível considerar que, quando se ofende um homem com relação a este quesito, ele não é o mais importante, nem algo que o define enquanto pessoa. Já com relação às mulheres, essa relação é bastante diferente.
Muitas jovens, diante dos ataques relacionados à aparência física ou a julgamentos relacionados à sua sexualidade, deixam de batalhar de uma vez por todas, ou ao menos cogitam isso em algum momento. Uma jovem relatou a Costa (2016) que, na primeira batalha em que decidiu participar, sentiu-se humilhada por seu oponente. A jovem havia tido há pouco tempo uma filha e ainda estava amamentando a bebê. Em seus ataques, o rapaz se referiu a diversas partes do corpo da moça que, como resultado, ficou desestabilizada e não conseguiu responder seu oponente com boas rimas, perdendo a disputa. Ela chegou a cogitar jamais disputar novamente uma batalha de MC's. No período, ela havia sido a primeira e única mulher a batalhar e afastou-se do espaço, indo apenas para apresentação de músicas. A jovem conseguiu retornar após um período longo, pois havia refletido sobre a importância de se descolar pessoalmente das ofensas proferidas nas disputas. Ela também considerava que as ofensas machistas proferidas contra mulheres em geral deveriam ser respondidas pelas mulheres, no palco, na batalha de rima, e que isso poderia servir de reflexão para os organizadores/as da batalha e para o público presente (Costa, 2016).
Outro ataque proferido por alguns rapazes no material pesquisado remete ao corpo, ainda que não necessariamente à aparência dele, mas sim a seus eventuais usos por parte das mulheres. Em alguns dos vídeos estudados, os rapazes fazem ataques às adversárias com alusões diretas ou indiretas à prostituição. Podemos citar como um dos exemplos as rimas feitas por Otto, para atacar Anna: "Eu rebolo, para, falo com certeza / cê rebola igual aquelas mina que tão lá em Ponta Negra / Rola bolsa, vai pra esquininha, sei lá, pagar pruma galinha." (Batalha do Vinho, 2015). Essas rimas foram uma resposta à Anna, que no seu momento de atacar Otto, o acusou de ser funkeiro e rebolar, sendo essa uma forma de pôr em questão a masculinidade do rapaz. Dessa maneira, em seu contra-ataque, ele responde dizendo que é ela quem rebola, tal como outras moças numa parte da cidade em que há pontos de prostituição. As expressões "rola bolsa, vai pra esquininha" são bem explícitas nesse sentido.
Ainda dentro dos ataques relacionados à prostituição, podemos extrair uma rima do jovem Caio: "É desse jeito, entrou no sapatinho, os cara fala que lá tu passa de fase, só se tu der uns beijinho" (All Inlcusive Comics, 2025). Essa rima, embora não faça uma alusão tão direta à prostituição, também pode ser lida dessa maneira. O rapaz acusa sua oponente de obter favorecimento nas disputas por intermédio da afetividade/sexualidade. Segundo ele, os rapazes envolvidos no contexto das batalhas dizem que ela só conseguiria avançar nas fases da competição caso trocasse beijos com alguns deles. O julgamento moral nessa afirmação é bastante evidente, uma vez que questiona a capacidade da jovem de vencer por sua habilidade, sendo a vitória condicionada a uma troca afetivo-sexual.
Este exemplo denota como determinados ataques adquirem uma maior "generificação" a depender de quem os profere e de quem é o alvo dos mesmos. Uma mensagem, uma normativa, uma gramática são transmitidas, sendo compartilhadas entre MC's, organizadores/as e público presente. Tanto as jovens mulheres quanto os rapazes são atravessados pelo que é esperado tanto do masculino como do feminino. Além destes atravessamentos, também é importante a lembrança das batalhas de MC's como um espaço majoritariamente masculino, de ótica masculina dominante, onde as jovens mulheres teriam funções muito específicas. É possível considerar que estas, ao participarem das batalhas, contrariam essas funções específicas. Matsunaga (2008) descreve que essas funções se relacionam à dicotomia público/privado, pensada numa divisão sexual do trabalho. Assim, às mulheres cabe a esfera privada, o cuidado com os/as filhos/as, o papel de esposa/namorada e mãe. Adiciona-se a esse modelo a perspectiva de uma mulher também trabalhadora, considerando a realidade pobre de muitos dos/as participantes do movimento Hip Hop. Aos homens, continuaria a caber a esfera pública. Considerando estes elementos, Matsunaga ainda acrescenta que para o movimento Hip Hop: "não é legítimo a mulher ir para o palco, uma vez que este espaço é reservado para os homens. Se pensarmos na separação entre rua/casa, espaços públicos e privados, podemos inferir que existe uma distinção entre palco/bastidores" (Matsunaga, 2008, p. 114).
Podemos assim considerar um ato subversivo a presença das jovens em lugares de evidência no Hip Hop, como as batalhas. Também é possível considerar que, na busca destas jovens por espaço, se reconfigura toda a lógica das batalhas, em maior ou menor grau, devido a essa mesma presença subversiva.
Tem Como Ter Batalha e Não Ter Sangue?
O título acima colocado busca evidenciar um ponto de reflexão sobre o que foi exposto até o momento nesse artigo. As batalhas, caso reconfiguradas devido à presença e demandas tanto de mulheres como de outros grupos minoritários no Hip Hop, ainda poderiam ser consideradas batalhas de MC's? O quanto essa construção simbólica de caráter bélico, que aparece desde o nome da disputa, afinal, é uma batalha, consegue ser retorcida, subvertida em outras direções?
Teperman (2011) relata que as práticas dos jogos em que se utilizam ofensas apareceram em diversas sociedades ao longo dos séculos. O próprio repente, também citado pelo autor, pode ser considerado um exemplo brasileiro dos jogos de ofensa. Além disso o autor também cita os dozens e o toast, jogos de tradição afro-americana, que também têm o mesmo objetivo: a troca de ofensas entre os/as participantes. É interessante perceber que todas essas brincadeiras têm os homens como a maioria de seus integrantes. As batalhas são lidas dentro dessa chave de jogos de ofensa e jactância, sendo que alguns autores argumentam que o rap seria um desdobramento evolutivo do dozens e do toast (Teperman, 2011).
Sobre a questão do humor, Teperman (2011) descreve como as batalhas são o espaço onde se privilegia o "mau riso", pois essa forma de produzir riso prioriza o deboche do/a adversário/a. Tal como em outros jogos, nas batalhas, o exercício do mau riso deve ter uma aprovação dos/as participantes quanto ao seu uso. Caso contrário, é compreendido como um insulto. Outro fator a ser considerado é que as pessoas que participam das batalhas não devem se sentir ofendidas.
Sobre esses dois últimos pontos, é interessante considerar como eles vão se dar em um contexto em que há jovens mulheres MC's participando das batalhas. Um dos pressupostos, como já descrito, é que o uso de determinadas formas de fazer deboche e ofensa deve ter a chancela social do coletivo que participa do jogo. Se é perceptível, pela maneira como o público masculino recebe ataques machistas, que eles têm aceitação 7, o mesmo não se pode dizer com relação ao público feminino. Muitas MC's e o público feminino que frequenta os eventos de freestyle não aprovam quando os ataques lançam mão de recursos machistas e sexistas. Por exemplo, Tavares (2020) conduziu entrevista de 30 jovens que estavam participando de uma festa organizada por um coletivo de mulheres participantes do Hip Hop. A maioria respondeu que se sentiam discriminadas por serem mulheres em eventos ligados ao Hip Hop. A maioria também respondeu que o movimento político/cultural seria machista. Tal contexto contribui para que as jovens tenham receio de participar das batalhas (Tavares, 2020).
Esses exemplos podem demonstrar, portanto, que boa parte das participantes do Hip Hop e das batalhas não compartilha das noções de mau riso aplicadas quando os MC's disputam com elas. As mudanças sociais e a presença cada vez maior de mulheres nas batalhas produzem tensionamentos diversos, fazendo com que determinadas convenções sejam discutidas, aceitas ou rechaçadas pelas pessoas que participam, seja como público, seja como quem faz parte da disputa de rima. Santiago e Pereira (2020) ilustram alguns desses tensionamentos, ao descreverem duas batalhas em um evento dedicado às mulheres e alguns dos comentários vinculados a essas batalhas. Uma das características marcantes a se destacar é que em ambas as batalhas descritas pelos referidos autor e autora as oponentes não se atacaram.
Considerações Finais
Este trabalho visou apresentar e discutir algumas das construções de gênero presentes nas batalhas de MC's, com especial interesse pelos elementos relativos à participação feminina. É importante reiterar que, como expressão cultural, as batalhas espelham dinâmicas comuns das sociedades onde os/as jovens estão inseridos/as. Desta forma, também estão sujeitas a estas contradições. Portanto, não se considera aqui a juventude participante das batalhas como criadora das construções de gênero evocadas em suas rimas. Considera-se que, como são construções presentes no cotidiano dessa juventude, é previsível que elas se manifestem também na disputa de rimas improvisadas. Nessas disputas, onde objetivamente busca-se verificar quem é o/a melhor, estão presentes diversos fatores subjetivos. Assim, as batalhas também são um espaço onde determinadas prescrições podem emergir, sendo possível perceber essa ocorrência nas questões de gênero. Essas evocações demonstram as expectativas sociais para homens e mulheres no ambiente em que estes/estas jovens vivem.
Importante também ressaltar que a análise de fenômenos culturais possui suas limitações, diante do fato que a realidade abrange grande complexidade. Assim, em vez da busca por conclusões definitivas, buscou-se favorecer nesta pesquisa o debate e reflexões sobre o fenômeno das batalhas de MC's e as construções relacionadas a gênero presentes na cena.
Como um fenômeno construído pela juventude e para a juventude, uma compreensão mais amplificada destas dinâmicas pode favorecer ainda a reflexão do que vem se repetindo na construção da feminilidade e da masculinidade. E, a partir disso, torna-se possível considerar a construção e/ou acolhimento de diferentes formas de expressão de gênero.
Tanto os jovens homens quanto as jovens mulheres evocaram em seus ataques alguns significados relacionados a gênero que podemos considerar cristalizados em nossa sociedade. Um ponto interessante a ser questionado é: um movimento como o Hip Hop, que se apresenta bastante questionador com relação à dinâmicas de raça, classe e até geracional, ainda normaliza lugares estáticos de gênero?
Ainda que o Hip Hop e, por conseguinte, as batalhas tenham uma perspectiva hegemonicamente masculina, a presença de mulheres no espaço aos poucos subverte este lugar. Por mais que muitas delas, como recurso de sobrevivência, atuem de forma a legitimar essa hegemonia masculina, ao mesmo tempo a desafiam, seja através de sua presença nos palcos, seja através de questionamentos diretos sobre o direito de participarem do espaço e serem vistas como adversárias viáveis, sem que, para isso, tenham que necessariamente emular o masculino em suas participações.
Isso posto, uma indagação se faz presente: a batalha de sangue, o exemplo mais característico e mais corrente de batalha de MC's, teria de mudar? E mudando, seria ainda uma batalha? No que diz respeito à presença das jovens mulheres nas batalhas, é possível perceber a atuação delas indo em ao menos três direções. A primeira se dá numa participação que busque uma disputa com os rapazes dentro de todo o código já prescrito do funcionamento da batalha. Ou seja, as jovens farão uso dos mesmos pressupostos bélicos e agressivos dos rapazes. Isso pode ser verificado em algumas das rimas descritas nesse artigo, em que também são proferidas ofensas contra os rapazes que evocam diversos estereótipos relacionados ao gênero masculino. Por outro lado, há aquelas que buscam ataques relacionados a outros tópicos, ainda que dentro de uma disputa de batalha de sangue, como pôde ser verificado pelas tentativas de Anna em não fazer ataques que falassem do físico de seu oponente. E numa terceira direção, as jovens criam espaços exclusivamente femininos.
É interessante perceber que, em algumas das iniciativas de Batalhas feitas por e para mulheres, as disputas tem características de batalha de conhecimento. Ou seja, o ataque não é priorizado nesses espaços, ainda que algumas os utilizem para se preparar e se sentirem seguras o suficiente para participar de outras batalhas onde os oponentes serão, em sua maioria, homens.
Outra indagação que aparece é: em uma batalha de ofensas, a única maneira efetiva para o ataque a oponentes mulheres seria a utilização de estereótipos sexistas? Como as disputas de rima se dão em uma sociedade em que campeia a desigualdade de gênero, não é de se estranhar que, diante de uma oponente, rimas com esses estereótipos sejam evocadas de maneira rotineira, devido à facilidade de circulação nos imaginários. Não há uma resposta simples para essa questão, mas algumas coisas são possíveis de se considerar. Em primeiro lugar, que o humor manipulado nas batalhas pode ser prescritivo, mas também pode ser questionador. Em segundo lugar, que as batalhas seguem sendo um espaço de constante construção juvenil, em permanentes mudança e disputa.
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Endereço para correspondência
Márcia Francisca de Oliveira Silva - osilvapsicologa@gmail.com
Recebido em: 07/05/2024
Aceito em: 25/10/2024
Notas
1 "Estilo livre" em português. Diz respeito à criação de rimas de improviso, em estilo livre, no ato das disputas.
2 Batida que o DJ toca para que o/a MC possa rimar em cima.
3 Inicialmente o Hip Hop era constituído por quatro elementos, o rap, o grafite, o break e o DJ. Posteriormente, Afrika Bambaataa introduziu o elemento conhecimento, elemento esse que atravessa todos os demais, e sendo exercido por diversos meios, como palestras, grupos de discussão, e também pela modalidade de Batalhas de Conhecimento.
4 PayPal é uma empresa estadunidense de pagamentos online fundada em 1998.
5 Regiões e respectivos estados que foram selecionados: Norte (Amazonas), Nordeste (Rio Grande do Norte), Centro Oeste (Distrito Federal), Sudeste (Minas Gerais), Sul (Paraná).
6 Os nomes dos/ a jovens que aparecem no artigo são fictícios.
7 Embora seja possível também considerar que essa chancela social venha se alterando, pois as batalhas de MC's, como qualquer fenômeno sociocultural, não são desatreladas do mundo e interagem com os debates correntes na sociedade.
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