Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e83927, doi:10.12957/epp.2024.83927
ISSN 1808-4281 (online version)
DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE
A Conversa Como Caminho: A Vida e o Tempo Como Temas para a Medida Socioeducativa
The Conversation as a Path: Life and Time as Themes for Socio-educational Measure
La Conversación como Camino: La Vida y el Tiempo como Temas para la Medida Socioeducativa
Beatriz Saks Hahne a, Rosa Soares Nunes b
a Universidade Paulista, São Paulo, SP, Brasil
b Universidade do Porto, Porto, Portugal
Endereço para correspondência
RESUMO
Este trabalho foi escrito no âmbito do estágio doutoral realizado por uma das autoras em Portugal no percurso de produção da pesquisa conduzida no Brasil, cujo objeto foi o acesso às singularidades das experiências de jovens que receberam medida socioeducativa por cometimento de ato infracional. A partir das produções da pesquisa, discutimos a violência constituída no interior do contexto social que a produz como possibilidade e, para grande parte dos adolescentes brasileiros, um modo de sobrevivência. Debatemos como, idealizando alterar a personalidade do autor e querendo seu arrependimento, questões que contribuem para o ilícito são negligenciadas dentro da medida socioeducativa, escutando-se mais a infração do que aquilo que a teria ocasionado. O trabalho com histórias de vida mostra efeitos políticos e institucionais sobre as trajetórias de vida, sendo um deles a duração da medida socioeducativa de internação, produzida como indeterminada ao não ser tomada como tema junto aos adolescentes que a cumprem, de forma que permanece sendo pensada como questão individual, enfraquecendo as possibilidades de resistências. O objetivo deste artigo é colocar sob questão o dispositivo da conversa e o tempo como forma de controle sobre a vida, utilizando, para isso, narrativas construídas com adolescentes no Brasil e em Portugal.
Palavras-chave: medidas socioeducativas, privação da liberdade, tempo indeterminado, narrativa.
ABSTRACT
This work was written as part of the doctoral internship carried out by one of the authors in Portugal during the production of the research carried out in Brazil, the object of which was access to the singularities of the experiences of young people who received socio-educational measures for committing an infraction. Based on the research productions, we discuss the violence that exists within the social context that produces it as a possibility and, for the majority of brazilian adolescents, a way of survival. We debate how, with the idea of altering the author's personality and wanting revenge, issues that are relevant to the offense are neglected within the socio-educational measure, with more attention being paid to the infraction than to what would have caused it. The work with life stories shows political and institutional effects on life trajectories, one of them being the duration of the socio-educational measure of hospitalization, produced as indeterminate as it is not taken as a topic among the adolescents who comply with it, in a way that remains being thought about as an individual issue, weakening the possibilities of resistance. The objective of this article is to raise the issue of the conversation device and time as a form of control over life, using, for this, narratives constructed with adolescents in Brazil and Portugal.
Keywords: socio-educational measures, deprivation of liberty, indefinite time, narrative.
RESUMEN
Este trabajo fue escrito en el marco de la pasantía doctoral realizada por uno de los autores en Portugal durante la producción de la investigación realizada en Brasil, cuyo objetivo fue el acceso a las singularidades de las experiencias de los jóvenes que recibieron medidas socioeducativas por haber cometido una infracción. A partir de las producciones de la investigación, discutimos la violencia que existe en el contexto social que la produce como una posibilidad y, para la mayoría de los adolescentes brasileños, como una forma de supervivencia. Debatimos cómo, con la idea de alterar la personalidad del autor y de querer venganza, se descuidan dentro de la medida socioeducativa, cuestiones relevantes para la infracción, prestándose más atención a la infracción que a lo que la habría provocado. El trabajo con historias de vida muestra efectos políticos e institucionales en las trayectorias de vida, uno de ellos es la duración de la medida socioeducativa de hospitalización, producida como indeterminada, al no ser tomada como tema entre los adolescentes que la cumplen, en una manera que sigue siendo pensada como una cuestión individual, debilitando las posibilidades de resistencia. El objetivo de este artículo es plantear la cuestión del dispositivo de conversación y del tiempo como forma de control sobre la vida, utilizando para ello narrativas construidas con adolescentes en Brasil y Portugal.
Palabras clave: medidas socioeducativas, privación de libertad, tiempo indefinido, narrativa.
Uma Abertura (ou Sobre Colocar a Conversa como Tema)
Não pretendo propor uma utopia propriamente dita, mas antes uma heterotopia. Em vez da invenção de um lugar situado algures ou nenhures, proponho uma deslocação radical dentro do mesmo lugar: o nosso.
(Santos, 2000, p. 48)
O psicólogo do centro de internação para jovens considerados infratores preparou seu próximo atendimento propondo uma abordagem que levasse aquele jovem com o qual se encontraria em instantes a perceber que ele "não expressava suas emoções" - ou que não sabia quais eram elas nas diferentes situações de sua vida -, numa aposta de que, ao reconhecer seus afetos, poderia controlá-los e, controlando-os, não se colocaria novamente em situação de praticar a ação que o levara até ali: agredir fisicamente um colega da escola. Para a pesquisadora que observava o atendimento do psicólogo pela primeira vez (aquele jovem e o profissional se encontravam há mais de um ano), havia a impressão de que, no intento de ensinar o autocontrole, algumas questões ficavam de fora: como se produzia, externamente, a vontade de agredir outro jovem? No interior de quais contextos aquela prática se dava? Tais perguntas se tornaram tema de conversa entre a pesquisadora e o profissional nas ocasiões posteriores em que colocaram em pauta suas estratégias para a produção de conversas com jovens que cumprem medida socioeducativa em seus países de atividade - ela, o Brasil, e ele, Portugal.
O atendimento que inaugurou este texto foi acompanhado por ocasião do período de estudos de uma das autoras do artigo, em Portugal, sob orientação de sua parceira nesta escrita, enquanto produzia sua tese de doutorado. A jornada, no Brasil, de 14 anos de pesquisas e trabalhos junto à temática das medidas socioeducativas propiciou uma série de questões a respeito do campo de estudos sobre juventudes, ilegalidade e práticas discursivas acerca daquilo que ambicionariam aqueles que atribuem e executam sanções aplicadas aos jovens. Portugal foi ocasião para fazer novas visitas a perguntas que vinham sendo formuladas, além de outras que puderam ser articuladas ali a respeito de temas acessados nas experiências vividas no Brasil.
No Brasil, de acordo com a Lei Federal n.º 8.069 (1990), Estatuto da Criança e do Adolescente, as medidas socioeducativas são aplicadas a pessoas em idades entre 12 e 18 anos que tenham cometido ato infracional, conforme o Art. 112., são elas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional. Em Portugal, jovens entre 12 e 16 anos que sejam apreendidos pelo cometimento de ilegalidades são responsabilizados pelas medidas educativas, conforme a Lei n.º 166 (1999), Lei Tutelar Educativa, que trata das medidas de internamento em centro educativo, seja em regime aberto ou em regime semiaberto. Conforme as legislações de ambos os países, o jovem, tomado como sujeito em desenvolvimento, deve ser protegido e prevenido da estigmatização que o período de privação de sua liberdade implica. Por isso, a internação precisa ser evitada ao máximo ou, quando atribuída, ser cumprida no menor tempo possível. Em função de nossos estudos acerca de efeitos da medida sobre a vida, tema da tese que dá ensejo a este texto, ele se debruçará sobre aspectos acionados, sobretudo, pela medida de internação.
Brasil e Portugal, em diferentes dimensões, não se tocam. Sua extensão territorial e a quantidade de habitantes são algumas das discrepâncias óbvias; também o são as questões sociais que atravessam os países e que produzem os contextos nos quais se dão as práticas infracionais. Em Portugal, os levantamentos estatísticos sobre jovens em medida de internamento, incluindo informações sobre gênero, idade e infração, são feitos mensalmente; Portugal não faz levantamento que considere cor/raça. O levantamento mais recente, publicado em agosto de 2024, aponta que os crimes contra a propriedade e a integridade física têm relevância, dominando em termos das práticas que conduzem jovens às medidas tutelares. O número de jovens internados nos centros educativos era de 145; destes, 84,14% eram meninos e 70,34% tinham entre 16 e 19 anos de idade. Oito estavam em internamento por envolvimento com tráfico de drogas (Ministério da Justiça, 2024). No Brasil, o último levantamento nacional, com dados de 2023, aponta a presença de 17.811 jovens apenas na medida de internação, sendo 17.168 do sexo masculino, e a maior proporção na faixa etária entre 16 e 17 anos (56%). No caso dos meninos, o ato infracional dominante foi o de roubo qualificado (4.504), seguido pelo tráfico de drogas (3.601), havendo uma variação de dominância entre estes atos nas diferentes regiões do país (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 2023).
Para muitos, inserções na ilegalidade conferem, com frequência, e mesmo que a preços altos (no limite, o de suas vidas), algum ganho financeiro e simbólico que caminhos fora da criminalidade não permitem (Galdeano & Almeida, 2018; Hirata & Telles, 2007). O tráfico de drogas, que já foi reconhecido no Brasil como uma das piores formas de trabalho infantil (Galdeano & Almeida, 2018), é um dos atos que mais conduz jovens brasileiros ao cumprimento de alguma medida socioeducativa. O envolvimento com o comércio de entorpecentes produz efeitos importantes nas vidas, marcando uma emergência que as equipes socioeducativas não passam ao largo, pois há uma radical entrada no cotidiano dos trabalhadores do tráfico, que precisam cumprir jornadas extensas e exigentes desde a produção à venda das substâncias, arriscando-se cotidianamente a diferentes violências em meio a uma dinâmica tão paradoxalmente pouco disputada no campo dos direitos.
Soma-se a esse cenário de precarização da vida e das escolhas possíveis certa lógica que se assenta na crença de que sofrendo privações (de sua liberdade, do contato com seus amigos e familiares) reconduziriam suas biografias para outros caminhos (Almeida, 2016). Ou seja, de que esses jovens teriam de sentir o que perderam para não arriscarem perder novamente. Enquanto vivem a cotidiana incerteza de que (não) voltarão à casa ao fim do dia, cometer ou não ilicitudes significa experimentar a mesma experiência social, pois quem são (ou quem parecem ser) justifica humilhações e violências cometidas contra eles, com frequência, pelo Estado que deveria protegê-los (Arruda, 2021).
O Brasil, na contramão da proteção social e de sua legislação, conduz boa parcela de jovens à medida de internação, inclusive quando uma menos gravosa poderia ser aplicada, conservando a institucionalização dos sujeitos pobres e negros, que constituem a maior parcela daqueles em privação da liberdade (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 2023). A condição social precarizada, com frequência, leva os operadores das medidas a desconsiderarem que há condições subjetivas que também precisam ser resguardadas a fim de que os jovens possam construir sua existência no mundo e que, sem atenção para elas, estar fora da prisão pode não ser vivido como uma vida em liberdade (Hahne, 2022). Nesse contexto, afirmar que a mudança depende apenas do jovem e/ou de sua família produz uma cegueira incapaz de interromper a recorrência de ações ilícitas ao individualizar uma questão social multidimensional.
A existência de práticas coercitivas em um contexto que seria educativo perfaz uma conjuntura complexa na qual as intervenções das equipes profissionais se realizam, e produz algo que interessa às autoras: investigar efeitos nas biografias de adolescentes e jovens a partir do encontro entre a lei e a realidade experimentada no contexto em que o atendimento é realizado. Diferentes noções acerca da razão das medidas socioeducativas têm feito com que sejam compreendidas como aquilo que deveria produzir mudanças comportamentais, perfazendo um contexto em que o jovem deve demonstrar arrependimento e adaptação a condições de vida social que o impele à condição indigna. Tal ênfase desafia a interlocução com ele por parte de quem o atende no percurso da medida socioeducativa, pois, quando há um caminho suposto de antemão, construções colaborativas não se fazem imprescindíveis. No interior dessa ideia de atendimento, o que se direciona são palavras de ordem (Deleuze & Parnet, 1998) e, se o jovem não faz ou diz aquilo que se espera dele, ele não faz e não diz nada. Se a (re)criação de sentidos depende de interlocução, pois "um significado apenas revela a sua profundidade quando encontra um outro significado 'estrangeiro'" (Nunes, 2005, p. 228), a palavra de ordem não produz deslocamentos no pensar, mas a necessidade de o jovem demonstrar aquilo que se espera dele. Não há conversa.
O estágio doutoral realizado em Portugal entre 2021 e 2022 permitiu acessar certa paisagem que colocava em discussão a conversação, esse ato que sustenta uma espécie de incerteza necessária para que algo diferente e imprevisto possa ser produzido. A investigadora brasileira esteve presente em dois centros educativos de Portugal. Em um deles, o aceite para um período de estágio a permitiu estar em contato com profissionais e jovens ao longo de cinco meses, período em que acompanhou atendimentos, rodas de conversa e outras atividades ali promovidas. Os elementos trazidos neste artigo foram colecionados nessas situações e são componentes singulares e plurais, pois dizem respeito àquilo que se pôde ver, escutar e assimilar de atividades previstas na rotina regular do centro educativo; são, por isso, o que se passou e a forma como foram apreendidos pela investigadora.
Vivendo um deslocamento que aquele tempo de estudos permitia - uma incursão investigativa -, era possível dar atenção para outras questões também pensadas, no Brasil, como, além da conversa, o tempo da medida socioeducativa produzindo efeitos na vida - a existência medida por um tempo ao qual se está completamente subjugado, uma vez que medida socioeducativa, exceto pela de prestação de serviços à comunidade, não possui tempo determinado para além do prazo máximo de três anos 1.
Esse artigo se debruça sobre essas questões; por meio de experiências de trabalho e de estudos das autoras, depreende-se alguns pontos temáticos que emergem da relação comparatista. A base conceitual se apoia em autores que as têm auxiliado a pensar as problemáticas por meio de conceitos que fazem aliança com a vida e com formas não homogeneizantes de existir.
A Medida Socioeducativa e a Contramão da Existência
No Brasil, a primeira lei para a infância e juventude, e que é a que mais tempo vigorou, era nomeada Código de Menores (Decreto n.º 17.943-a, 1927; Lei n.º 6.697, 1979), marcada por uma perspectiva tutelar que não promovia ações que viabilizassem a alteração das condições que haviam conduzido crianças e adolescentes à figura judiciária; "Em comum, ambos os Códigos elegiam a internação enquanto prática de intervenção privilegiada para integrá-las socialmente, por meio do ajustamento de suas condutas desviantes" (Paula, 2017, p. 97). O problema, localizado não na pobreza, mas no pobre, permitiu o exercício do controle biopolítico (Foucault, 2010) que se mantém em diferentes roupagens ao longo da história. Leis e práticas permanecem operando sobre pessoas, não destinadas a solucionar as condições que produzem vidas em meio à pobreza material ou mesmo às consequências individuais e sociais de existências que se constroem na (e apesar) da precariedade (Kowarick, 2019).
Tal marca percorre os dias atuais, fazendo ver uma das heranças coloniais na legislação brasileira: o exercício da regulação judiciária sobre certas biografias. As histórias de vida não existem, desse ponto de vista, em sua própria trajetória, já que são tomadas por um olhar que desconsidera as singularidades nos modos de existir por meio de relações pautadas numa lógica representacional do sujeito (Das, 2020). Sendo a proposta de correção das experiências de vida vislumbrada a partir de certa concepção de um viver correto, inexiste a necessidade de que esses jovens opinem a respeito dos planos feitos para eles, muitas vezes, sem eles.
As medidas socioeducativas, posteriormente à sua aplicação pelo poder judiciário, ou seja, na fase de execução, são cumpridas por meio do atendimento prestado por profissionais de diversas áreas, como Psicologia, Sociologia, Pedagogia, Direito e Serviço Social. Conforme dito acima, exceto pela medida de prestação de serviços à comunidade, as demais não são atribuídas por tempo delimitado; assim, também na internação, entre o começo e o fim da medida, a quantidade de dias em que a pessoa estará impedida do direito de ir e vir é imprecisa. Os registros produzidos pelos profissionais envolvidos no processo socioeducativo subsidiam a decisão judiciária acerca do término ou da continuidade da medida e, de maneira geral, não são construídos junto com os jovens sobre os quais tratam (Hahne, 2022).
Ao longo desses mais de trinta anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, permanece marcante a indefinição a respeito do que conduz um jovem ao fim da medida socioeducativa e dos critérios acerca do que seria levar alguém à responsabilização ou de como essa mudança seria demonstrada por parte de quem, supostamente, a viveu. Ademais, a própria finalidade da medida socioeducativa segue sendo, de certa maneira, um enigma, e há apontamentos que indicam a permanência de uma lógica segundo a qual, para que a medida socioeducativa seja considerada extinta, o jovem precisa se mostrar arrependido do ato praticado (Almeida, 2016), numa personalização do ato infracional que o compreende como um "desvio" que nenhuma relação teria com as condições sociais que atravessam a existência da maior parte dos jovens que recebem alguma medida socioeducativa.
A atenção para o ato infracional permanece dominando em detrimento de que se possa considerar outros aspectos, tais como o racismo e outros marcadores de desigualdades sociais constituindo o tratamento dispensado aos jovens (Arruda, 2021). Outro elemento desconsiderado como questão é a duração (ou a indeterminação) da medida, frequentemente utilizada como uma nova punição, uma vez que sua extinção fica sendo assimilada como tarefa exclusivamente do jovem, e não como resultado do empenho de uma rede de instituições que deveriam se ocupar de acompanhá-lo na tessitura de novas perspectivas e na viabilização do acesso e da garantia aos seus direitos sociais (Marcondes & Hahne, 2020).
Nessa seara em que a infração importa mais do que a vida, a produção histórico-social da ação ilícita fica fora da elaboração da prática socioeducativa, que arrisca, assim, a reproduzir com o jovem o assujeitamento 2 vivido em outros espaços, já que impedido de realizar um mínimo de sociabilidade nas suas relações. Esse é um tema para nós, pois, no que compreendemos com Frantz Fanon (2008, p. 180), um sujeito, enquanto "não é efetivamente reconhecido pelo outro, é este outro que permanece o tema de sua ação". Se questões da medida socioeducativa continuam precisando ser colocadas não é em razão do jovem ou da infração, mas em função da própria medida socioeducativa e do que tem sido engendrado em seu nome. Não dando conta da dimensão subjetiva, ou seja, daquilo que cada vida necessita para viver (na acepção de que subsistir não significa o mesmo que existir), fica excluída do campo da medida socioeducativa a palavra, instrumento elementar para que se possa vislumbrar novos horizontes para as trajetórias biográficas dos jovens fora de um campo procedimental (Marcondes & Hahne, 2020).
O que se investiga aqui não é a infração, portanto, mas a escuta impedida. A palavra, enquanto contexto criador de novos saberes e relações, atravessa os estudos sobre as medidas socioeducativas, pois a produção de realidades passa necessariamente pelas relações que se dão no mundo social: é sempre nos campos da palavra e do público que nasce o avassalador enrijecimento identitário (Nunes, 2005); todavia, é aí também que saídas precisam ser inventadas. A conversa tem sido o dispositivo que permite tal discussão, eixo orientador da investigação aqui apresentada em alguns recortes.
Um Percurso Investigativo: A Palavra como Acesso à Singularidade em Meio à Massificação da Vida
Em trabalho recente (Hahne, 2022), escrevemos acerca da pesquisa de campo desenvolvida ao longo de 2019 com cinco jovens em idades entre 17 e 19 anos moradores da cidade de São Paulo que haviam recebido alguma medida socioeducativa em meio aberto; três deles haviam cumprido anteriormente, também, medida socioeducativa de internação 3. O acesso a eles se deu por meio de experiências em trabalhos anteriores junto a uma instituição que os atendia e que intermediou a aproximação, ocorrida em uma festa de Natal promovida por aquele serviço. Na ocasião, após as apresentações e uma breve conversa sobre as medidas socioeducativas, os jovens foram convidados para conversar pelo número de vezes que cada um deles entendesse ser viável ou até onde compreendessem que aquilo que desejavam falar fosse dito. O único pedido delimitado era para que houvesse, ao menos, dois encontros, e esse pedido tinha relação com a investigação, que se daria por meio da construção de textos a partir das conversas que viessem a ocorrer. Com alguns, houve dois ou três encontros; com outros, os contatos duraram meses e, eventualmente, ainda acontecem.
As conversas operadas nos encontros posteriores à festa de Natal foram iniciadas com a mesma pergunta: o que são as medidas socioeducativas? Tal questão carregou cada um para memórias distintas acerca de experiências que os haviam atravessado enquanto as cumpriam, como lembranças do tempo vivido na unidade de internação, a distância em relação à família, a violência, o racismo, a solidão. Era solicitado que falassem sobre as memórias que lhes ocorressem, na aposta de que elas, em seu próprio encadeamento, fariam notar o encontro da sanção com a vida.
Em um segundo movimento do método, a pesquisadora, sem o jovem, escrevia um texto em primeira versão no qual registrava aquilo que havia sido relatado por ele e também suas próprias evocações sobre aquela narrativa, compondo uma história já sem autoria - ou um relato de um autor outro, de uma terceira pessoa formada pelo jovem e sua memória e a investigadora e suas lembranças, atravessada por suas próprias impressões acerca do que havia escutado. Esse movimento em que o que era registrado não era o mesmo que havia sido dito, mas a escuta daquilo, passou a interessar, ao nos depararmos com as reflexões geradas pelas experiências vividas e o desencontro que a escuta sobre a vida pode produzir no interlocutor, inclusive quando se pensa estar atento e aberto:
Certa vez, o ouvido da escutadora não quis entender o que Alemão 4 disse, escrevendo: Na cena do roubo, se a polícia chegar, melhor não ter arma na mão pra não correr o risco de usar. No encontro seguinte, mostrando o texto ao menino, ele fez uma correção: "Não foi isso que eu disse. Eu disse que, se a polícia chegar, é melhor ter uma arma na mão, porque antes atirar ou morrer do que ir praquele inferno que é a cadeia". Pedindo para que mudássemos o que estava escrito, revelava mais do que a arma na mão: a morte como possibilidade diante da probabilidade de ser preso e a minha dificuldade em escutar aquilo. (Hahne, 2022, p. 61)
O encontro com Alemão mostrava a pesquisadora em seu querer escutar certa coisa - a mão do menino se afastando da arma que mata -, e que o texto que fazia já era uma (re)criação de sentidos. A pesquisadora, querendo a vida do menino (numa suposição do que deveria ser a sua realidade), negligenciava que ele havia dito que, para ele, viver poderia implicar em matar e em arriscar ser morto. Tal alteração ressaltava a produção daqueles escritos, necessariamente, como uma produção coletiva e apontava cuidados necessários à pesquisa. A interlocutora alterava o sentido que seu colaborador dava ao seu relato e ela, ao acessar tal constatação, percebia que a interlocução produzia efeitos nela mesma, que era impelida a pensar sua própria escuta e sua presença no texto que produzia a partir do relato de outra pessoa. É necessário considerarmos a radicalidade da presença de nosso interlocutor em nós, conforme Favret-Saada (2005) aponta:
Nesses momentos, se for capaz de esquecer que estou em campo, que estou trabalhando, se for capaz de esquecer que tenho meu estoque de questões a fazer... se for capaz de dizer-me que a comunicação (etnográfica ou não, pois não é mais esse o problema) está precisamente se dando, assim, desse modo insuportável e incompreensível, então estou direcionada para uma variedade particular de experiência humana [...] porque por ela estou afetada. [...] Aceitar ser afetado supõe [...] que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada (Favret-Saada, 2005, pp. 159-160).
Então, no encontro seguinte era lido com o jovem o texto que estava se produzindo, e que não era mais da pesquisadora e nem deles; cada um, tal como Alemão, opinava e reivindicava alterações de palavras ou frases a fim de destacar ideias que considerava relevantes. As correções ou as proposições que faziam diante do escrito que lhes era apresentado alargavam as questões levantadas inicialmente por eles, fazendo ver o que dizia respeito às suas vidas e às batalhas com as quais se havia cotidianamente, mas que não apareciam dentro de uma escuta pautada na concepção da sanção como representação da lei, e da lei como garantia da ordem, apenas.
Dentre as questões com as quais se debatiam, uma específica mostrava o que, para eles, era vivido como a maior dificuldade no cumprimento da medida de internação: o tempo indefinido. Com outro jovem, Curió, foi construída a seguinte passagem:
Dentre aquilo que não se sabe, está o tempo da internação. Dela, só se sabe quando começa. É difícil não saber quando a liberdade vai voltar, principalmente, porque não dá pra saber o que vão levar em conta pra que a medida acabe. Se for o comportamento, é muito difícil, porque mesmo um menino bom, lá dentro, demora pra sair. É que a liberdade também depende da história da unidade e dos outros meninos: se eles se comportam ou não. [Na internação, a saída de um tem a ver com todos os outros]. (Hahne, 2022, pp. 106-107)
O controle do tempo sobre a vida aparecia nas conversas sempre que falavam do que havia sido a internação. Se, no Brasil, falavam de uma forma de violência pela indeterminação do tempo da medida socioeducativa, em Portugal, como será exposto mais à frente, o tempo que não passava e a sensação de um tempo parado que a vida reclusa produzia era um elemento constituindo o mais difícil da internação. No trabalho de campo, a palavra e as histórias de vida foram pensadas como construções relacionais que produziam saberes articulados à valorização das trajetórias biográficas, vislumbrando a variação das experiências. Desta feita, conquistar conversa com os jovens requeria da pesquisadora sustentar uma indeterminação que guiava cada encontro encadeado por conversações sobre a vida. Naquele convite intencionalmente expandido em possibilidades temáticas, falava-se, também, do cigarro que fumavam, da praia, dos pais e mães e filhos, de ser filho de alguém, de bebida de amigos, das casas e das namoradas. Eles partilharam lembranças da infância, medos e sobre dinheiro; também do calor, da chuva, dos atrasos, do cinema e das músicas que escutavam.
A produção narrativa acontecia em um contexto que precisava ser refletido para ser ocasionado. Histórias de vida permitem ver o que fica de fora quando a medida socioeducativa destitui o pensamento, guiada por uma prática que não se relaciona com o jovem senão a partir de uma lógica representativa. Ocorre que ter acesso às narrativas, fazendo da reflexão um campo de ação, é o desafio primeiro daqueles que trabalham na intersecção vida-lei, em que o aspecto sancionatório é o mais essencial (e, talvez, intransponível) limite.
Portugal, um Ensejo para Pensar a Conversa enquanto Produção
No curso da pesquisa de doutorado realizada no Brasil, ir para outro território geográfico foi uma aposta de que, ao colocar-se como estrangeira em sua investigação, a pesquisadora poderia acionar discussões que alargariam o debate de seu tema de exame, afinal, "não estamos no campo porque fomos para um lugar distante [...]. Estamos no campo porque estamos no campo-tema como matriz de questionamento e argumento, de ação e narração" (Spink, 2008, p. 73). Portugal adveio como território de investigação em função das aproximações em que o que havia em comum permitia um estrangeiramento num terreno que abeirava o objeto de estudo.
Na medida tutelar de internamento executada em Portugal, o acompanhamento requer a organização do Projeto Educativo Pessoal (PEP), com objetivos individualizados que auxiliem a desenhar as ações necessárias ao processo educativo. Esta proposição assemelha-se à direção brasileira afirmada pela Lei Federal n.º 12.594 (2014), Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Lei n.º 12.594, 2012), que faz exigência do Plano Individual de Atendimento (PIA), em que também os jovens têm para si um projeto de ações que deverão ser realizadas durante a medida socioeducativa. Em ambos os contextos, a interpretação das informações colecionadas pelos profissionais precisa ser feita com o jovem, pois não servem para falar sobre ele, mas para, com ele, pensar o que deve acontecer sob responsabilidade de diferentes atores e instituições que precisam ser envolvidos. Esse trabalho coletivo, espera-se, conduz à elaboração dos planos de intervenção para o acompanhamento realizado tanto nas medidas tutelares (Portugal) quanto nas medidas socioeducativas (Brasil), colocando um desafio semelhante: sustentar, dentro de um sistema que uniformiza, uma perspectiva singular que permita a produção de planos de acompanhamento atentos às singularidades de cada pessoa.
Na imersão no centro de internamento em Portugal, foi questão que apareceu nas trocas ocorridas entre a pesquisadora e os profissionais com quem se encontrou problematizar a conversa como estratégia de acesso ao singular. Como produção, a conversa não existe apenas porque duas pessoas se colocam uma diante da outra, mas é uma ocasião que produz certa qualidade de estar junto. Tratar os jovens que passam pelas medidas socioeducativas como pessoas que podem falar não para justificar, mas para pensar um caminho e para projetar um futuro em companhia significa tomá-los em sua condição humana de devir - tornar-se diferente de si 5. É potência de acontecer, diferindo de si sem jamais confundir-se com o estado resultante dessa mudança e, por isso, potencialmente construtora de outros itinerários de vida. Entretanto, seria tal caminho possível de se fazer coletivamente se forem desconsiderados elementos que, ainda que invisíveis, estão ali, constituindo a experiência mais cotidiana, como não saber o prazo da medida ou ter de aguentar o tempo que não passa e que, ao não passar, se configura como a mais dura medida imposta à vida?
Na medida socioeducativa, a palavra tende a perder valor de compartilhamento, tornando-se algo empobrecida quando funcional (Foucault, 2016). Nela, não faltam espaços de fala, mas que o próprio ato de falar, além do escutar, seja colocado em questão. Há uma forma-limite que produz que os jovens aprendam que precisam realizar certas coisas, tarefas generalistas e inespecíficas para suas existências que nem sempre são vividas por eles como algo que os fortalece diante de suas trajetórias, confirmando a proposição de que as opressões são terríveis por formatarem o que é vivo e atrapalharem os seus movimentos (Deleuze, 2013).
Forma diferente disto solicita certo deslocamento desde um lugar em que se supõe saber tudo para habitar um esvaziamento que pode ser vivido como bastante desafiador quando um atendimento socioeducativo que tem operado em uma chave tecnicista que não dá espaço para dúvidas, "dificultando a possibilidade de [os jovens] existirem de formas não submetidas à posição de meros/as cumpridores/as de regras, podendo vislumbrar e realizar outros destinos" (Marcondes & Hahne, 2020, p. 129). Tomando a palavra como meio para chegar à experiência pessoal, escuta-se o sujeito cujos saberes nunca são tomados como relevantes (Santos, 2007), dando passagem para que novos elementos sejam colocados em relação com o pensamento, ampliando as formas de olhar e perceber tanto a infração quanto o momento biográfico e histórico que a constitui. O jogo de forças considerado desde múltiplas possibilidades permite novas entradas em um território há muito conhecido e que, todavia, tem tanto por ser percorrido.
Deslocar o Crime, Escutar o Jovem
O mundo conforme cada pessoa o vive, na perspectiva tão comum na medida socioeducativa de que as coisas que têm de ser vistas estão previamente definidas, tende a ser desconsiderado, não havendo nada que possa ser visto com o outro. Certa potência transformadora que há nos encontros exige uma atenção à cotidianidade diante da qual nunca se é mero observador imparcial, pois estar em um contexto significa ser um elemento que o altera (Spink, 2008). Quando o cotidiano é tomado como o espaço em que territorialidades existenciais se encontram e não cessam de se refazer, não se fala para um outro, mas com um outro em uma circunstância ocasionada em que não há fora, já que cada ser constitui para seu interlocutor a possibilidade de um dizer e a conjuntura desde onde se fala (Butler, 2015).
Uma das profissionais entrevistadas em Portugal verbalizou que as medidas tutelares são "uma oportunidade para os jovens pararem para pensar". Esta mesma oportunidade é o que se colocou em causa na pesquisa que deu ensejo a este artigo, uma vez que aquilo que operadores da sanção percebem como oportunidade para o pensamento, não raro, conecta-se mais à vontade do adulto do que ao encontro possível. Estando do outro lado da linha do saber, onde não deteria conhecimentos que interessam, o jovem "torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível [...] ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro" (Santos, 2007). Como considerar as suas forças no interior de uma racionalidade em que o jovem, visto como mero receptáculo dos saberes alheios, nenhum conhecimento teria para aportar?
A prática da profissional com a qual se deu a conversa estava centrada em ampliar os espaços de diálogo. Atividades em grupo, como jogar e cozinhar com os jovens, eram estratégias utilizadas por ela para produzir situações em que conversas poderiam acontecer; depois, nos momentos nomeados de tutoria, ela comentava individualmente com quem atendia questões que haviam sido faladas nos espaços de grupo. Percebia que essas situações, que não eram configuradas como de atendimento regular (em que se colocam perguntas previamente preparadas), faziam diferentes assuntos surgirem: "nesses momentos, aparecem as memórias deles, que são uma outra forma de intervir, e, além disso, é mais interessante para o jovem do que estar a falar em um gabinete". Descrevendo sua prática na execução da medida tutelar, mostrava a preocupação em interrogar a normatividade dos procedimentos tradicionais, fazendo uso dos "pequenos momentos do fluxo diário, abertos às possibilidades da convivência cotidiana; [e que] são fragmentos, às vezes de conversas, às vezes de acontecimentos, às vezes de pedaços de materialidade, às vezes de documentos que nos chegam às mãos" (Spink, 2008, pp. 72-73).
Não sendo interesse deste artigo avaliar as práticas profissionais, mas colocar no campo de atenção o fato de que não se realiza conversa simplesmente porque dois ou mais se colocam um diante do outro, as falas daquela profissional são emprestadas por permitirem interrogar a naturalização de certos procedimentos que organizam o atendimento socioeducativo. O fato de que outras questões para além do delito sejam tomadas como tema serve a um acompanhamento que age, mesmo que por breves instantes, pretendendo se diferenciar de uma prática de governo da vida (Scheinvar, 2019) e que acolhe uma noção ampliada de direitos dentro da qual eles inexistem se não forem percebidos enquanto tal pelo próprio sujeito - portanto, numa lógica não generalizante dos direitos (Coimbra, 1999; Scheinvar, 2019).
A proposta de mobilizar forças que coloquem em possibilidade de acontecimento outras experiências com os jovens se manteve viva ao longo da pesquisa; a conversa enquanto fabrico e eixo central do trabalho socioeducativo foi nomeada como estratégia de acesso às questões que cada um carregava, às suas histórias e aos percursos de vida. Nas trocas com os profissionais, essa artesania de colocar-se em diálogo durou como questão. Pensada como produção relacional e compreendida como algo que não existe como determinação, mas que precisa ser sempre forjada, a conversa foi considerada oportunidade em que não apenas o jovem pode alcançar algo novo, mas também o profissional com quem fala, fazendo do encontro não um contexto para capturar qualquer coisa do outro, mas para fazer descobertas da própria implicação nos processos - se fracassam, tal fracasso já não pode mais dizer apenas sobre o jovem.
Outro profissional em Portugal deu uma pista acerca do que o ajuda a conhecer:"quando tenho um jovem diante de mim pela primeira vez, é preciso não saber quem ele é, tomá-lo como a única verdade que naquele momento existe, ou seja, que não posso saber o que o fez chegar até ali". O desconhecimento sobre quem é o jovem o permite ir ao seu encontro menos carregado de uma ideia explicativa sobre aquele que cometeu infrações, viabilizando que conversem, pois não saber amplia a curiosidade em relação ao interlocutor.
Para ele, havia nos relatos dos jovens sempre muito por conhecer também para aquele que narrava; nem sempre estava claro o que mobilizava certa cena que contavam e nem por que expunham certas coisas, e esse não saber precisava ser sustentado para que produzissem juntos algum novo conhecimento, alguma coisa nova. Com um jovem, por exemplo, chegaram à ideia de que seria importante que mudasse de bairro quando o tempo de internação findasse e, junto com a família, construíram a possibilidade de irem para outra localidade. Numa diferença discursiva acerca da ação ilegal e de quem a pratica, o jovem era tomado como alguém cuja condição de desproteção tendia a conduzi-lo a certas estratégias (violentas) diante do outro. As perguntas, agindo como mediadoras da conversa e não tendo como centro a infração, mas a descoberta do que o jovem necessita para ensaiar outras coisas, permitia ver o menino, implicando quem o acompanhava a ver a si próprio, também.
Assim, há que se apontar para o que fica de fora de certa conversa que vê no objetivo da medida socioeducativa a transformação do outro e que, tendo tal horizonte, não pode pensar os enredamentos que produz. Nas ocasiões em que a pesquisadora conversou com jovens em unidade de internação em Portugal, foi possível acessar o estranhamento em relação à operacionalização de regras que aqui se dão e que também haviam sido apontadas no trabalho de campo feito no Brasil, inicialmente. Conversando com alguns jovens durante o tempo de estágio, perguntaram à pesquisadora como era internação no Brasil. Entre outras informações, foi relatado para eles que, no Brasil, os jovens entram nas unidades de internação sem saber quando sairiam; desta conversa, registramos a seguinte passagem:
Isso os espantou: "como assim? Um dia ele está lá e o chamam para ir embora? Pá, isso é enlouquecedor. Eu não podia com isso". Para eles, mais duro que o confinamento era não saber quanto tempo ele duraria, pois não saber a duração da restrição da liberdade retiraria qualquer horizonte: "eu sei que vou ficar cá três anos, então, eu vou fazer coisas para ocupar o meu tempo, a minha cabeça". Saber a duração da medida o ajudava a organizar seu tempo para que não ficasse tudo tão insuportável que nem o dia entre os demais compensasse a solidão vivida à noite (Hahne, 2022, p. 137).
Saber o tempo de duração da internação foi ali afirmado como algo que permitia ao jovem "preparar-se", com a comparação de não saber tal duração com embarcar em uma viagem sem destino certo. O prazo impreciso era sentido como infinito, um momento parado, uma espera lacerante que suspende a existência (Pál Pelbart, 2021). Para eles, a indeterminação os colocaria à deriva numa história própria que não podia ser vivida como sua, já que é um outro - profissional impelido a dizer sobre as condições para uma certa liberdade que não estar preso significa - quem decide sobre aquele navegar sem fim em um mar desconhecido.
De toda forma, sabendo ou não o tempo da medida, tanto no Brasil quanto em Portugal, os jovens falavam de um quase impossível na sobrevivência à privação da liberdade e de um sem sentido nela, que em nada dialogava com suas vidas fora da internação, a não ser pela produção de marcas das quais jamais se veriam livres mesmo depois, já que "nesse contexto onde se mistura disciplinamento, submissão e tortura, o futuro desaparece, mas não em favor da experiência do presente, já que o presente foi justamente esvaziado de qualquer experiência" (Pál Pelbart, 2021, p. 111).
A medida socioeducativa de internação perfaz um contexto de escassez de experiências e de abundância de interdições, sendo o impedimento da construção do tempo, numa composição da qual o jovem participaria, a dimensão que buscamos articular neste trabalho. No empenho de descer ao cotidiano das histórias biográficas, inclusive quando certa forma de violência insiste em apagar os rastros de uma existência em sua singularidade, a conversação pode ser mais do que a troca de dizeres, podendo produzir relações de participação, de saber, de indignação partilhada e de construção "afetada", sobretudo, por parte de quem acompanha as pessoas perpassadas pela privação de sua liberdade, podendo se desfazer de suas certezas em nome de que alguma coisa nova aconteça.
Considerações Finais
O processo de conversação com os jovens expunha o duplo desafio de aprender a prestar atenção ao cotidiano, reconhecendo que nele são produzidos os impossíveis - um deles, o sufocante que pode ser para um jovem ser mantido em internação em função de quem, supostamente, é e de uma representação que dele se cria e que produz como efeito que jamais a própria internação seja colocada em questão. A conversação como método pretendeu mobilizar a produção do inédito no encontro, nas relações e nas circunstâncias, de forma a permitir que se descobrisse, em relação, o que não cabe mais. Na conversa implicada nessa perspectiva, o pensamento está sempre em possível reconstrução, pois não há uma identidade (por exemplo, infratora), mas momentos de passagem em que a infração se deu. Um jovem cometeu uma infração - não é o infrator e nem a infração.
Estar ali, observando o atendimento operado em um país tão distante dos jovens com os quais construímos narrativas anos atrás, serviria pouco dentro de uma lógica comparativa acerca de como são os atendimentos em ambos os territórios. Conhecer outros modos de pensar uma problemática serve mais quando permite a produção de novas perguntas. Ao colocar atenção no diálogo e na sua construção partilhada, a conversa faz aliança com a vida, e não com a burocracia que, para existir, depõe exatamente a existência, numa espécie de radicalidade que nos abre para outra existência ao inventar possibilidades desde o interior de um contexto que parece ser um lugar impossível para a invenção. Na afirmação sobre a vida, a existência e a invenção de modos outros de relação, a conversa, quando mobilizada pelo interesse pela biografia daquele com quem se fala, permite, potencialmente, certa esquiva em relação ao assujeitamento não apenas do jovem, mas também para aquele que o acompanha, já que pensar as questões que os atravessam implicaria também os profissionais colocarem sob análise aquilo que constitui seu fazer cotidiano - as amarras e os respiros -, encontrando em um trabalho constituído por muitos desafios a possibilidade de enfrentar práticas assujeitadoras de si, que são aquelas acionadas sem reflexão ou crítica, feitas solitariamente, sem discussão entre pares e, certamente, sem discuti-las com aqueles que, por algum tempo, deverão acompanhar.
Conversando, produz-se um descolamento significativo para o que acontece dentro da medida socioeducativa; quando a insuficiência move uma qualidade de estar junto, possibilidades se expandem e, conversando, criam-se direções que podem, ao menos por certo tempo, acomodar as experiências atravessadas e dar para elas algum (novo) lugar menos insuportável que briga, por exemplo, contra a produção de uma relação que não pode ser conhecida - o tempo e sua duração na medida de internação -, que tem servido, apenas, para controlar.
Referências
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Endereço para correspondência
Beatriz Saks Hahne - beatrizsaks@gmail.com
Recebido em: 28/04/2024
Aceito em: 22/10/2024
Notas
1 Lei n.º 8.069 (1990), Estatuto da Criança e do Adolescente: Art. 117: A prestação de serviços comunitários consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente a seis meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como em programas comunitários ou governamentais; Art. 118: § 2º A liberdade assistida será fixada pelo prazo mínimo de seis meses, podendo a qualquer tempo ser prorrogada, revogada ou substituída por outra medida, ouvido o orientador, o Ministério Público e o defensor; Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. § 2º A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses. § 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.
2 A noção de assujeitamento aqui se apoia em Fanon (2008), que colocará o racismo em uma operacionalização relacional: o homem negro negado em sua humanidade pelo branco, que coloca (inventa) tal relação, impedindo ao primeiro a vivência de suas experiências mais cotidianas, ou relegando a ele certas experiências.
3 Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e suas identidades foram preservadas neste trabalho. Ainda, a pesquisa foi autorizada por Comitê de Ética, número de aprovação 05170818.1.0000.5390.
4 Os nomes dos colaboradores da pesquisa foram omitidos a fim de preservarmos suas identidades; os apelidos que aparecem no texto foram decididos com cada um deles durante o trabalho de campo.
5 Luis Fuganti assim define o termo: "Devir é tornar-se diferente de si. É́ potência de acontecer, diferindo de si sem jamais confundir-se com o estado resultante dessa mudança." (Fuganti, 2012, p. 73).
Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de doutorado sanduíche da primeira autora (Processo 88887.577400/2020-00 CAPES/PRINT - Edital nº 41/2017).
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