Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e83866, doi:10.12957/epp.2024.83866
ISSN 1808-4281 (online version)

 

DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE

 

Significados do Trabalho de Psicólogas no Sistema Prisional do Pará

 

The Meaning of Psychologists' Work in the Pará Prison System

 

El significado del trabajo de los psicólogos en el sistema penitenciario de Pará

 

Maria Izabel da Cunha Araujo a, Adelma do Socorro Gonçalves Pimentel a

a Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Este artigo consiste em um relato de pesquisa qualitativa fenomenológica objetivando compreender significados que as psicólogas que atuam no sistema prisional paraense atribuem às suas práticas cotidianas. Participaram do estudo quatro psicólogas. Na metodologia, usamos formulário eletrônico no Google Forms; em seguida, entrevista semiestruturada por videoconferência no Google Meet. Para as análises e sínteses, usamos o modelo de Amedeo Giorgi. Os resultados apontam sobre a prática do diálogo entre a psicologia e o horizonte técnico na orientação do cuidado à pessoa privada de liberdade; ressonâncias no espaço laborativo quanto à precarização do vínculo institucional, às características da escuta e compreensão clínica dos custodiados, que evidencia a fronteira entre saúde, principalmente, no seu aspecto biomédico, e o enfoque da reintegração, compreendida pelo retorno ao convívio com a sociedade após cumprimento de sentença. Concluímos com a reafirmação da relevância do trabalho de psicólogas pautado no cuidado, o que contribui para enfrentar os preconceitos da sociedade associados a população carcerária. É possível a Psicologia cooperar em equipe para concretizar uma atuação crítica no enfoque dos direitos humanos. Um sentido do trabalho é questionar a lógica do encarceramento e contribuir para a construção de um projeto político-social do trabalho de psicólogas.

Palavras-chave: fenomenologia, prisão, psicologia.


ABSTRACT

This is a report on a qualitative phenomenological study aimed at identifying and understanding the meanings that psychologists working in the prison system in Pará attribute to their daily practices. Four psychologists took part in the study. The methodology used an electronic form on Google Forms, followed by a semi-structured interview via videoconference on Google Meet. For the analysis and synthesis, we used Amedeo Giorgi's model. The results point to the practice of dialogue between psychology and the technical horizon in guiding the care of people deprived of their liberty; resonances in the work space regarding the precariousness of the institutional bond, the characteristics of listening and clinical understanding of detainees, which highlights the border between health, mainly in its biomedical aspect, and the focus on reintegration, understood as the return to living with society after serving a sentence. We conclude by reaffirming the relevance of the work of psychologists based on care, which helps to confront society's prejudices associated with the prison population. It is possible for psychology to work together as a team to implement a critical approach based on human rights. One meaning of the work is to question the logic of incarceration and contribute to the construction of a political and social project for the work of psychologists.

Keywords: phenomenology, prison, psychology.


RESUMEN

Este es un informe sobre un estudio cualitativo fenomenológico destinado a identificar y comprender los significados que los psicólogos que trabajan en el sistema penitenciario de Pará atribuyen a sus prácticas cotidianas. Participaron cuatro psicólogos. Para la metodología, utilizamos un formulario electrónico en Google Forms, seguido de una entrevista semi-estructurada a través de videoconferencia en Google Meet. Para el análisis y la síntesis se utilizó el modelo de Amedeo Giorgi. Los resultados apuntan a la práctica del diálogo entre la psicología y el horizonte técnico en la orientación de la atención a las personas privadas de libertad; resonancias en el espacio de trabajo sobre la precariedad del vínculo institucional, las características de la escucha y la comprensión clínica de los detenidos, lo que pone de relieve la frontera entre la salud, principalmente en su aspecto biomédico, y el enfoque en la reinserción, entendida como el retorno a la convivencia con la sociedad después de cumplir una condena. Concluimos reafirmando la relevancia del trabajo de los psicólogos basado en el cuidado, que ayuda a enfrentar los prejuicios de la sociedad asociados a la población carcelaria. Es posible que la psicología trabaje en equipo para implementar un enfoque crítico basado en los derechos humanos. Un sentido del trabajo es cuestionar la lógica del encarcelamiento y contribuir a la construcción de un proyecto político y social para el trabajo de los psicólogos.

Palabras clave: fenomenología, prisión, psicología.


 

 

Este artigo decorre de uma pesquisa de Mestrado que objetivou descrever e compreender fenomenologicamente a experiência de psicólogas atuantes em unidades prisionais na região norte do País. A relevância do estudo visa colaborar para pensar e articular outras concepções teóricas e práticas no sistema prisional, desvinculada da lógica que naturaliza a prisão.

De acordo com Oliveira e Borba (2019), a descrição do fenômeno visado permite desvelar relações intencionais entre os sujeitos e o sentido de suas existências, por meio da percepção, da imaginação, da escuta ativa e da observação atenta, no ensejo de facilitar acesso do fenômeno à nossa consciência.

Antes de adentrar no tema da pesquisa, convidamos o leitor a imaginar-se vivendo em uma prisão e identificar o que sente ante as restrições e a despersonalização, uma vez que é simbolizada a conjuntura prisional como o lugar de "esquecimento" e de perdas de direitos, onde as pessoas privadas de liberdade, sentenciadas ou que aguardam julgamento, "merecem" o deslembro; e que elas não têm direitos à cidadania, tendo somente o dever de cumprir "caladas" sua pena e submeter-se ao currículo oculto que circula as penitenciárias do Brasil e do Mundo, que se caracteriza por uma lógica disciplinar que se estabeleceu ao longo da história como elemento base do processo de reinserção social. O convite visa problematizar algumas tessituras que configuram o sistema prisional, bem como adentrar no âmbito das práxis da Psicologia.

Embora não seja o foco da pesquisa, destacamos que a chamada para imaginar aponta a necessidade de se pensar em modos concretos de efetivar no sistema prisional brasileiro políticas de reintegração dos apenados e futuros sentenciados. Assim sendo, não se pode deixar de mencionar o desenvolvimento das políticas públicas, movimentos sociais como direitos humanos, pastoral carcerária e ainda trabalhos científicos produzidos por psicólogas 1, antropólogas e cientistas sociais a respeito do cárcere e seus desdobramentos nas relações humanas e profissionais (Battistelli & Cruz, 2019; Uziel et al., 2018).

Segundo Davis (2018) nas prisões se instaurou um processo de naturalização da vida cotidiana dos custodiados, pois, não se questiona as imposições de rotinas que negam sua existência. Entre os resultados desta naturalização entendemos que o cárcere traduz a significação relacionada à produção de violência e segregação, com efeitos dessas articulações dirigidas prioritariamente às populações economicamente vulneráveis de homens negros e jovens (Battistelli & Cruz, 2019; Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2016).

Barros et al. (2019) e Davis (2018) analisam o desenvolvimento histórico do encarceramento e ressaltam que há uma concepção da prisão como punição, já que, desde a detenção, antes mesmo do julgamento e até da sentença, as pessoas começam a cumprir a punição. Tal perspectiva contribui para um dos agravos do sistema prisional que é a superlotação. A premissa da "pena em si", se insere nesse contexto, em virtude de se observar, como frisa Davis (2018, p. 32) "o emprego do encarceramento como principal meio de punir aqueles que violam as normas sociais".

O processo de encarceramento em que se tem cada vez mais pessoas privadas de sua liberdade e déficit de vagas diante da abertura de novos presídios corresponde a uma "[…] justiça seletiva e distante de qualquer forma de reintegração social ou responsabilização daqueles que sofrem os efeitos nefastos da pena de prisão" (CFP, 2016, p. 10).

Conforme as pesquisas de Figueiró e Dimenstein, (2018); Rangel e Bicalho (2016); Silva (2016); Torquato e Barbosa (2020), as mazelas e entraves deste cenário não são atuais e estão relacionados, principalmente, às condições de vida e saúde das pessoas privadas de liberdade no que diz respeito à superlotação, (in) disponibilização de tratamento humanizado, e falta de acesso às políticas públicas de saúde e educação.

O serviço da Psicologia nas prisões começou no período de transição do século XIX para o século XX. Importante situar que no processo histórico da inserção, havia psicólogos hegemônicos atuando ao lado do Estado para uma configuração social-histórica de seleção, categorização e patologização dos sujeitos. Sobre o assunto, o CFP (2016, p. 9) refere que atuação das (os) psicólogas (os) tem sido discutida e desconstruída ao longo dos anos, "[...] sofrendo modificações no sentido do lugar, do papel e das funções da Psicologia no âmbito da execução penal, e restritamente, das prisões". Com a participação destes profissionais foram desenvolvidas as "Referências Técnicas para a Atuação das (os) Psicólogas (os) no Sistema Prisional" (CFP, 2012).

No âmbito da redemocratização das instituições tem-se a Lei n.º 7.210 (1984), modificada pela Lei n.º 10.792 (2003). A Lei de Execução Penal (LEP) configurou uma etapa do processo de democratização das instituições em meio ao contexto político do final da ditadura militar. De forma geral, a lei visa afiançar a efetividade do cumprimento de sentença, no sentido, de proporcionar à Pessoa Privada de Liberdade (PPL), recursos para o seu processo de reintegração social. É necessário apontar ainda, que se constituiu junto à Psicologia um importante marco histórico-institucional, ao garantir o desenvolvimento legal do exercício profissional da (o) psicóloga (o) no sistema prisional (Brito, 2012; Medeiros & Silva, 2015).

 

Percurso Metodológico

Este estudo se estrutura numa perspectiva qualitativa fenomenológica. Entendemos a experiência de ser psicóloga no cárcere como um fenômeno referido à pessoa e às implicações de suas vivências em sua consciência. Sendo assim, situamos o método fenomenológico empírico, elaborado por Amedeo Giorgi (2008), como procedimento de coleta e análise de dados, tomando a atitude fenomenológica de rigor científico, em superação da atitude natural.

A pesquisa foi realizada na Secretaria de Administração Penitenciaria (SEAP), no Complexo Penitenciário do Pará, formado por dez unidades prisionais. Configura-se enquanto espaço de custódia de pessoas privadas de liberdade do sexo masculino que estão em situação provisória, ou seja, aguardando decisão judicial quanto à sentença, bem como presos que possuem determinação a cumprir pena nos regimes fechado e semiaberto.

Após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (parecer 5.514.582), a pesquisadora entrou em contato com as psicólogas convidando-as a participarem do estudo. Os critérios de inclusão foram: registro ativo no CRP10, vínculo institucional estabelecido via concurso público; mais de cinco anos de experiência; e concordar livremente em serem colaboradoras da pesquisa assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).  Os critérios de exclusão foram: psicólogas que não possuíssem vínculo institucional estabelecido via concurso público, ter menos de cinco anos de experiência profissional; que não estivessem atuando nas unidades pertencentes ao Complexo Penitenciário durante o período de coleta de dados; não concordar livremente em assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Realizamos a abordagem dos profissionais, por meio de aplicativo de mensagens - WhatsApp, em que foram expostos os objetivos do estudo. Após o aceite de 04 (quatro) psicólogas, enviamos o TCLE, bem como o formulário on-line - Google Forms composto pelas questões norteadoras "Conte sobre sua inserção nesta unidade penitenciária"; "Como é a sua prática de trabalho?"; "Descreva detalhadamente o que faz"; "O que sente pelo seu trabalho?"; "Como se sente trabalhando nesta unidade penitenciária?"; "A vivência na prisão favorece qual compreensão acerca do trabalho de psicóloga"; "Quais são suas motivações para permanecer neste trabalho?"; "Quais fatores estão contribuindo para a vivência de sentimentos de satisfação no seu trabalho?".

Após a leitura das respostas, realizamos a entrevista em profundidade para ampliar a compreensão dos processos das práticas psicológicas de cada profissional envolvida. As entrevistas ocorreram em horários alternativos ao horário de trabalho, de forma online via Google Meet, gravadas para transcrição e análise. Todo o procedimento de pesquisa foi pautado em rigorosa atitude de sigilo e respeito à privacidade dos conteúdos íntimos, afetivos e profissionais mobilizados no processo.

As análises abrangem a leitura de todos os relatos a fim de se apreender o sentido global, da experiência de ser psicóloga no sistema prisional; (ii) elaborar as unidades de significado, considerando uma perspectiva psicológica; (iii) transformar as expressões das colaboradoras em linguagem psicológica, ou seja, evidenciar o sentido psicológico diretamente e explicitamente ligado às percepções transcritas. Por fim, realizamos uma síntese das unidades de significado articulando elementos narrativos da experiência intencional do vivido das colaboradoras e a literatura científica selecionada (Giorgi, 2008; Giorgi & Sousa, 2010).

O método permitiu acessar a estrutura da experiência de ser profissional do Sistema Prisional do Pará; contudo, como ressalta Giorgi (2008, p. 402) não se pode considerar como forma determinante de um contexto de resultado da pesquisa "[...] as falas do sujeito, pois, elas foram formuladas na perspectiva da vida cotidiana, e, o mundo vivido, é pré-teórico e pré-científico".

 

Resultados e Discussão

Articulamos o procedimento de análise, assim como os resultados com os demais estudos que se aproximam da temática pesquisada. As percepções e significados da experiência foram organizadas nas categorias: Perfil das participantes da pesquisa; atividades de trabalho, desdobradas em gerais e afazer cotidiano, espaço físico; sala de atendimento; atividade de grupo; motivação e satisfação no trabalho. Salientamos que as sínteses são referentes ao universo geográfico estudado, não tomadas como verdades fixadas, e sim como subsídios oriundos das vivências das psicólogas entrevistadas.

Perfil das Participantes

Os nomes dos participantes são fictícios em razão de preservar o sigilo diante dos dados de identificação das participantes. Colaboraram com o estudo quatro psicólogas, sendo três mulheres e um homem; com idade entre 30 e 50 anos; formação na graduação em Psicologia há mais de cinco anos; todos declararam ter especialização nas áreas de saúde mental, psicologia jurídica, direito penal ou processual penal. Referiram atuar em unidades prisionais de regime fechado com população superior a 100 Pessoas Privadas de Liberdade (PPL). São servidores concursados da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Pará (SEAP) há mais de 2 anos.

Atividades Gerais de Trabalho

Os afazeres dos psicólogos são: a) atendimento individual por indicativo da direção da instituição, com triagem e acompanhamento psicológico, organizados conforme a entrada de PPL na Unidade Prisional; preenchimento de instrumento disponibilizado pela instituição; encaminhamentos  das pessoas custodiadas pelo corpo diretivo, técnico e policiais penais; b) atendimento individual por demanda espontânea; c) evolução de prontuário físico de saúde e alimentação de informações no sistema de Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN); d) atendimento individual para a produção de avaliação da Comissão Técnica de Classificação (CTC); e) parecer técnico para fundamentação do procedimento de progressão de regime ou livramento condicional, mediante Exame Criminológico solicitado pela Vara de Execução Penal.

O exercício cotidiano da Psicologia: os sentidos atribuídos à triagem são representados na Tabela 1, Procedimento de triagem.

 

Tabela 1

Procedimento de triagem

 

 

Unidade de significados

Linguagem psicológica

Letícia

A gente vai perguntando algumas coisas que tem no documento, mas outras não [...] não está perguntando se ele vai ter visita, mas a gente pergunta pra ver como é que tá o vínculo com o grupo.

O atendimento de triagem tem como objetivo avaliar a PPL quanto aos aspectos individuais e sociais. Nesse sentido, é uma entrevista.

Mônica

Ali é meu primeiro contato com o custodiado, então vou ter o meu primeiro olhar [...] A gente faz a nossa avaliação... do estado mental.

Se considera a questão da saúde mental, uso de drogas e ilicitudes. Constituindo-se um procedimento técnico de observação do comportamento verbal e não verbal.

Raquel

A triagem da psicologia assim como das outras formações dentro do cárcere, são, na verdade, já instruída. [...] é um panorama daquele preso, embora não tenhamos condições reais do acompanhamento... daquela coisa sistemática.

A triagem se realiza na investigação da condição psíquica a partir de um procedimento preestabelecido. Se percebe o desejo por estruturar uma abordagem sistemática da psicologia a partir desse recurso.

Leonardo

A triagem, ela é feita através do instrumental, inclusive, é até bem restrito o da SEAP [...] é aquele mini mental.

Embora o psicólogo aponte os elementos limitantes do instrumental, reafirmou por meio do procedimento exclusivo ser um processo de diagnóstico e investigação.

Nota. Fonte dados da pesquisa (2023)

 

Compreendemos que o processo de estabelecimento do contato inicial se dá com a apresentação do profissional de Psicologia, levantamento de informações pessoais como histórico de adoecimento psíquico; uso de drogas; aspectos que influenciaram a prática delituosa e a vinculação terapêutica. Deste modo, a triagem se desenvolve a partir de demandas formuladas em um documento específico da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Pará (SEAP) relacionado concomitante a outras áreas de saúde. Os profissionais destacaram limitações quanto a este recurso, enfatizando a necessidade de utilização de um instrumento próprio da categoria profissional que agrega outras informações além dos aspectos psíquicos elencados no prontuário de saúde.  Importante elucidar que o debate sobre as atividades que as Psicólogas desenvolvem não pode ser aqui apontado sem a participação efetiva das profissionais que atuam na área.  Na ação é possível agregar a reflexão sobre "a possibilidade de produzir uma intervenção na prisão em diferentes níveis, desde a promoção da acessibilidade a recursos para dar tratamento aos sofrimentos impostos pela experiência do cárcere, até a desconstrução das necessidades históricas, sociais e ideológicas que têm sustentado a sua existência". (CFP, 2021, p 54).

A partir dos relatos, consideramos que a triagem se mostrou como uma abordagem focal, padronizada, fixa e insuficiente para atender as demandas de cuidado da pessoa. Uma vez que está relacionada, a priori, aos diagnósticos de comportamento e investigação social. Ressaltamos as reflexões realizadas sobre as limitações do instrumento entre os profissionais, tendo em vista que a atuação é efetivada sem demanda crítica e empobrecida de sentido, diante da estruturação dos processos de trabalho. A limitação do instrumento e da atuação formam um conjunto de entraves ao cotidiano no trabalho das Psicólogas. Destarte, não foram percebidas expressões acerca do valor positivo da triagem para a perspectiva da ressocialização. Tal exercício se coaduna com os apontamentos de Monteiro (2022, p. 115), em que sinaliza sobre o papel da psicologia em relação à demanda de ressocialização dentro da prisão "ou seja, a pretensa função ressocializadora das prisões não ocorre na prática. Na verdade, os danos e as dores inerentes à prisão somente ficam ainda mais evidentes na fala dos profissionais".

Embora a triagem se constitua como atividade básica para a Psicóloga fazer um planejamento do seu trabalho, uma vez que se organiza na reunião de dados pessoais, sociais, assim como avaliação do processo de adoecimento psíquico, uso de álcool e outras drogas, integrando, de certo modo, subsídios para abordagem psicossocial, atendendo a uma lógica de clínica ampliada, de acordo com CFP (2019), também é necessário um posicionamento crítico sobre a mesma na forma como está sendo proposta e utilizada.

Exame Criminológico

Foi comum aos profissionais as interpretações de que tanto os procedimentos de classificação quanto o exame criminológico integram uma atuação imposta pelo sistema judiciário, assim como afirmam não possuir aparatos técnicos pertinentes à condução e produção de documentos que atendessem ao modelo que é solicitado. Foi percebido o sentimento de insatisfação e desamparo institucional para o desenvolvimento de tais atividades. Os profissionais se ajustam a estas atividades como mais uma possibilidade de encontro com os custodiados, e por meio das discussões dos aspectos pessoais, familiares, sociais indicam favorecer reflexões sobre o momento de encarceramento, progressão de regime e reintegração social.

Foi possível identificar nos discursos a descrição de conflitos entre a atenção psicossocial e as determinações judiciais e/ou do executivo no exercício da psicologia no sistema prisional. A promoção de saúde, conforme exposto por CFP (2021), Santana (2016) e Tannus (2017) são atividades que, ainda, caracterizam a principal ocupação destes profissionais e preenchem tão somente o tempo cronológico, sem o vislumbre de transpor lógicas estigmatizantes.

Os entrevistados não indicaram compreensões sobre o dispositivo de controle individual e social que este fazer demarca na rotina do aprisionamento; o que, conforme proposto em CFP (2021) e Monteiro (2022, p. 63), "[...] a crítica em torno da participação do psicólogo na realização do exame criminológico envolve, além de seu questionamento teórico, metodológico e ético, a própria função deste exame, enquanto mecanismo de controle social e limitação do fazer psicológico [...]."

Nesse sentido, tais considerações contemplam os achados em outras pesquisas como apresenta o CFP (2021) relacionados a realização ou não dessas avaliações específicas da área técnica. Assim, os psicólogos que atuam no sistema prisional são convocados a rever os procedimentos para diagnosticar subjetividades marginalizadas, tendo como base a clínica ampliada e estabelecimento de políticas públicas coerentes com o cenário.

Refletir, ainda, acerca das características de controle, extrema segurança, superlotação e carência de demais efetivos. Indagar-se sobre a própria demanda de responsabilidade e relação entre saber-poder, quando lhe são solicitadas as avaliações ou atendimentos psicológicos individuais. Deste modo, abre-se a perspectiva de configurar a reintegração social, durante e posterior à execução penal, bem como a revisão permanente do projeto ético-político da Psicologia.

Entendemos que as proposições são permeadas por dificuldades, conforme apontam Pimentel et al. (2018, p. 3) pois "no horizonte das instituições públicas, os profissionais vivenciam um conjunto de tensões oriundas de conflitos políticos, gerenciais e interpessoais que interferem no tratamento dos usuários das unidades". Evidenciamos esses conflitos considerando a posição da Psicologia e os apontamentos conexos do Conselho Federal de Psicologia (2021).

Consideramos entre as dificuldades no trabalho cotidiano, a ausência de articulação e de reuniões entre os profissionais, conformando práticas solitárias. Entendemos, que, diante da elaboração da era técnica e do aprisionamento em massa, as intervenções rapidamente dão conta do sujeito estranho que chega nesses espaços e passa a ser enquadrado como ajustado ou desajustado frente à experiência do encarceramento. Para Oliveira (2018, p. 89), "o mundo técnico, por meio de seus grandes empreendimentos e das suas máquinas, envolve o homem e transforma as suas necessidades em vontade de poder tudo dominar".

Espaço Físico

Acerca da estrutura física destinada aos profissionais foi descrito por apenas um colaborador que a sala do serviço de psicologia é um ambiente apropriado para atendimento individual, enquanto os demais dividem o local com outros técnicos, não possuem sala individual para atendimento; e ajustam sua rotina de trabalho para garantir, dentro do que é possível, o sigilo profissional. Também não referiram local destinado para o desenvolvimento de atividades de grupo.

Motivação e Satisfação no Trabalho

As características motivacionais para o desenvolvimento das atividades de trabalho foram: a estabilidade diante de um cargo oriundo de concurso público, assim como a remuneração; atuação na área de formação e vinculação profissional com demais colegas.

Ser Psicóloga no Sistema Prisional

Desenvolver o trabalho em uma unidade prisional é uma tarefa perigosa, difícil e com efeitos na saúde psíquica dos profissionais que nela atuam. Na Região Norte do Brasil é uma tarefa duplamente árdua devido às condições físicas, estruturais, a garantia das intervenções com a população carcerária, entre outros fatores. Para Monteiro (2022, p. 138), "os sentidos produzidos pelos psicólogos acerca de sua atividade estão fortemente vinculados à expectativa de fazer alguma diferença na vida daqueles sujeitos ou ofertar uma escuta mais qualificada e sensível neste espaço".

Nesse sentido, o trabalho pode ser considerado como experiências de sofrimento, poder e controle. Conforme Santos e Sá (2013, p. 55) há uma sensação de impotência, "ou nada depende de nós e, ante a essa alienação fatalista, é melhor aproveitar o momento, ou tudo depende exclusivamente de nós, e assim, não há tempo para viver frente à necessidade de garantir o bem-estar futuro". Por sua vez, Silva (2019) afirma que nesses espaços de institucionalização a acolhida se configura impessoalmente, devido se constituir no horizonte da técnica e histórico atual, que representa uma perspectiva de funcionalidade, controle dos corpos dos apenados e dos profissionais que estão ali, uma vez que a gestão do trabalho e do fazer perpassam pela fronteira do corpo, que é submetido a um espaço coercitivo e de vigilância. Na Tabela 2, A experiência do trabalho apresentamos uma síntese dos achados nesta categoria.

 

Tabela 2

A experiência do trabalho

 

 

Unidade de significados

Linguagem psicológica

Letícia

[...] cada um dos setores tem a sua sala. Então em termos de estrutura eu me sinto tranquila. [...] tenho frustação por algumas limitações do serviço [...].

Sentimento de tranquilidade diante da estrutura física. Embora também elenque frustração diante das limitações do serviço de psicologia.

Mônica

A gente se sente muitas das vezes desmotivada [...] não tem outras técnicas, outros recursos para ter um atendimento mais rico... uma atividade terapêutica... um filme reflexivo.

Mônica sentiu desmotivada diante da ausência de outros recursos além da escuta, estando relacionada aos aspectos estruturais.

Raquel

Amo o que eu faço, embora o reconhecimento da importância e falta de valorização sejam imensos e o preconceito presente de várias maneiras [...].

A falta de reconhecimento, valorização e preconceito são experienciados na condição de profissional do sistema prisional.

Leonardo

Eu adoro o atendimento aos presos. Nunca senti o trabalho do psicólogo tão essencial [...]. Fazer esse resgate além de ser algo essencial, acho que é até uma dívida histórica com essa população [...].

Percebeu uma perspectiva crítica do profissional acerca da execução penal no que se relaciona a política de ressocialização e saúde mental dos trabalhadores

Nota. Fonte dados da pesquisa (2023)

 

Considerações Finais

A pesquisa congregou esforços para identificar alguns dos significados atribuídos pelas Psicólogas sobre a experiência de trabalho nas unidades prisionais situadas no Complexo Penitenciário do Pará/Santa Izabel/PA, Região Norte do Brasil. A construção das sínteses e a escuta das experiências nos mostrou os suportes institucionais que estão presentes no dia a dia, identificados como os instrumentos técnicos; também a escuta desprovida de preconceitos, um subsídio pertinente ao trabalho da Psicóloga e a pesquisa científica no enfoque qualitativo fenomenológico; e a possibilidade de articular debates, na área do estudo com o Conselho Regional de Psicologia (CRP-10). Outra importante consideração foi que se faz necessário compreender os atos de cuidados profissionais, em uma perspectiva dos direitos humanos, cotidianamente reafirmados, mesmo quando são de difícil expressão na rotina do encarceramento, devido aos muitos estigmas que cercam a subjetividade do sentenciado.

Quanto à concepção usual da ciência psicológica, identificamos que, embora Psicólogas adotem uma postura profissional embasada na dignidade da pessoa humana, ainda é forte na instituição uma visão reducionista do trabalho, como se o mais importante fosse a estruturação de uma técnica classificatória, um meio para alcançar determinados fins. Nessa perspectiva, concluímos que a avaliação psicológica foi a principal demanda institucional do sistema carcerário solicitada aos profissionais que participaram do estudo; o que se fundamenta na historicidade do serviço, em sua estruturação científica, em um contexto prisional que visa prever possíveis comportamentos delituosos e indisciplinares expressos na triagem, exame criminológico e classificação. Percebemos também, de forma embrionária, um estranhamento e a meditação por alguns participantes da pesquisa sobre os sentidos das relações estabelecidas entre eles (psicólogas) e a pessoa privada de liberdade.

Finalizamos, considerando que o cárcere reproduz a estrutura social, política e econômica na qual é inserido; deste modo, é necessário, para haver ressocialização e mudanças na lógica que o sustenta, problematizar elementos estruturantes como políticas públicas, coerção, violências, negação da humanidade ao custodiado.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Maria Izabel da Cunha Araujo - izabel8484@hotmail.com

Recebido em: 26/04/2024
Aceito em: 16/10/2024

 

 

Notas

1 Neste texto usamos a linguagem no feminino como estratégia de inclusão de quem participou do estudo. Apresentar a escrita no feminino é afirmar que a linguagem transmite posicionamentos políticos, sociais, científicos e acadêmicos nos contextos em que estamos, "Parece não haver nenhuma menção à linguagem inclusiva ou neutra nas seções de normas para submissão das principais revistas científicas em Psicologia. É necessário que o uso de linguagens não tradicionais e hegemônicas seja permitido". (Hohendorff, 2024, p 3)

 

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