Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e83858, doi:10.12957/epp.2024.83858
ISSN 1808-4281 (online version)

 

DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE

 

Psicologia Crítica do Trabalho na Socioeducação: Atuações Possíveis em Contexto de Privação de Liberdade

 

Critical Work Psychology in Socio-education: Possible Actions in the Context of Deprivation of Liberty

 

Psicología Crítica del Trabajo en la Socioeducación: Acciones Posibles en el Contexto de Privación de Libertad

 

Carolina de Souza Walger a, Cássia Gabriela Wotekoski a, Camila Brüning a, Elaine Cristina Schmitt Ragnini a

a Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

A partir da constatação de casos de adoecimento e demanda por cura, este artigo apresenta uma proposta de atuação de Psicologia Crítica do Trabalho voltada aos trabalhadores do sistema socioeducativo, construída com base em uma pesquisa-intervenção realizada em um Centro de Socioeducação de privação de liberdade. Participaram da pesquisa gestores estaduais e 128 trabalhadores. A coleta de informações contemplou entrevistas semiestruturadas, pesquisa documental e observação participante. Os resultados indicam que: i) as condições de trabalho estão precarizadas, o ambiente é marcado por contradições e tensões, as ações da gestão são insuficientes, há sofrimento e adoecimento relacionados ao trabalho; ii) os referenciais teóricos interdisciplinares críticos favorecem uma Psicologia Crítica do Trabalho no âmbito da saúde do trabalhador; iii) coletivamente, constituíram-se os dispositivos de intervenção que favorecem a circulação da palavra, os cortes que fazem pensar e a elaboração coletiva para transformações do contexto de trabalho e da socioeducação enquanto política pública.

Palavras-chave: psicologia, trabalho, saúde mental, técnicas psicológicas, saúde ocupacional.


ABSTRACT

Based on the observation of cases of illness and demand for a cure, this article presents a proposal for the practice of Critical Psychology of Work focused on workers in the socio-educational system, built based on intervention research and conducted in a Center for Socio-education with freedom restriction. The research involved state managers and 128 workers. Data collection included semi-structured interviews, documentary research, and participant observation. The results indicate that: i) working conditions are precarious, the environment is marked by contradictions and tensions, management actions are insufficient, and there is suffering and illness related to work; ii) interdisciplinary critical theoretical frameworks favor a Critical Psychology of Work in the field of worker health; iii) collectively, intervention devices were constituted that favor the circulation of speech, incisions that prompt thinking, and collective elaboration for transformations in the work context and socio-education as a public policy.

Keywords: psychology, work, mental health, psychological techniques, occupational health.


RESUMEN

Basado en la observación de casos de enfermedad y demanda de cura, este artículo presenta una propuesta para la práctica de la psicología crítica del trabajo centrada en los trabajadores del sistema socioeducativo, construida a partir de una investigación de intervención realizada en un Centro de Socioeducación para jóvenes infractores. La investigación involucró a gestores estatales y 128 trabajadores. La recolección de datos incluyó entrevistas semiestructuradas, investigación documental y observación participante. Los resultados indican que: i) las condiciones laborales son precarias, el ambiente está marcado por contradicciones y tensiones, las acciones de gestión son insuficientes y hay sufrimiento y enfermedad relacionados con el trabajo; ii) los marcos teóricos interdisciplinarios críticos favorecen una Psicología Crítica del Trabajo en el ámbito de la salud del trabajador; iii) colectivamente, se constituyeron dispositivos de intervención que favorecen la circulación del discurso, incisiones que inducen al pensamiento y elaboración colectiva para transformaciones en el contexto laboral y en la socioeducación como política pública.

Palabras clave: psicología, trabajo, salud mental, técnicas psicológicas, salud laboral.


 

 

Este artigo apresenta uma proposta de atuação de Psicologia Crítica do Trabalho (Pulido-Martínez & Sato, 2013) voltada aos trabalhadores do sistema socioeducativo, construída a partir de uma pesquisa-intervenção realizada em um Centro de Socioeducação de privação de liberdade. Três falas figuram como eixo estruturante da proposta: i) eles estão adoecidos, fala de uma gestora em referência aos trabalhadores, que caracteriza a demanda de trabalho endereçada à psicologia; ii) nós também estamos presos, trecho de entrevista com um agente de segurança socioeducativo, a qual aponta para a percepção desses trabalhadores quanto ao contexto de trabalho; e iii) vocês atrapalham, mas é bom, porque fazem pensar, relato de um diretor de unidade em referência às intervenções realizadas.

Antes de apresentar a proposta, é necessário circunscrever o contexto em questão. A socioeducação, enquanto política pública nacional efetivada por meio de um sistema de atendimento destinado a adolescentes autores de atos infracionais, remonta à Lei nº 8.069/1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA consagra a Doutrina da Proteção Integral, que preza a fiscalização, promoção e proteção de direitos infantojuvenis. A Lei nº 8.242/1991 cria o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que dispõe em resolução específica sobre o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).

O SINASE dispõe sobre a metodologia e gestão do sistema socioeducativo e prevê como medidas aos autores de ato infracional: i) advertência; ii) obrigação de reparar o dano; iii) prestação de serviços à comunidade; iv) liberdade assistida; v) inserção em regime de semiliberdade; e vi) internação em estabelecimento educacional. Tais medidas diferenciam-se conforme a gravidade do ato, sendo estabelecido o limite máximo de três anos para as medidas privativas de liberdade (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 2006).

Dentre as diretrizes do SINASE encontram-se a estruturação das Unidades Socioeducativas, denominadas Centros de Socioeducação (CENSEs). A quantidade de unidades, o número de vagas disponíveis e o quadro de servidores do sistema deve ser definido a partir da demanda e especificidade de cada estado (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 2006).

Priorizando o atendimento interdisciplinar, a carreira dos servidores da socioeducação apresenta-se em duas categorias: (i) Agente Profissional − engloba todos os cargos de nível superior, seguido das especificações de suas funções, como Psicólogo, Assistente Social, Terapeuta Ocupacional, Médico, Enfermeiro/Técnico em Enfermagem, Pedagogo, etc.; e (ii) Agente de Execução − função de Agente de Segurança Socioeducativo (ASS), com exigência de Ensino Médio Completo. Além dos cargos ocupados por servidores públicos, com ingresso por meio de concurso público, há previsão de contratação de trabalhadores com vínculo temporário, por meio de Processo Seletivo Simplificado (PSS), além de trabalhadores com vínculo de trabalho terceirizado.

Como apontado por Costa (2014), a rotina de trabalho na socioeducação se dá em um ambiente com corriqueira existência de situações conflituosas, intensificadas pelos eventos críticos, como casos de suicídio, homicídio, tumultos, fugas e rebeliões. Os trabalhadores enfrentam condições que, por vezes, podem ser problemáticas, como ausência de capacitação adequada, número reduzido de trabalhadores e condições físicas e estruturais precárias (Costa, 2014). Isso resulta em expressões de sofrimento para esses trabalhadores, como sentimentos de insegurança, instabilidade, desconfiança, sobrecarga, pânico e medo. Para Brasil et al. (2020), são inegáveis os impactos que o trabalho exerce na subjetividade desses trabalhadores. O adoecimento e o sofrimento se expressam nos afastamentos do trabalho e no modo como o trabalho invade a vida cotidiana desses sujeitos, que se veem envoltos em ameaças e agressões constantes, assim como em uma esfera de medo permanente.

Com o intuito de identificar produções científicas brasileiras relacionadas às condições de trabalho, de saúde e subjetividade dos trabalhadores da socioeducação, Bastos et al. (2022) realizaram uma revisão da literatura que chegou aos seguintes resultados: i) as consequências do trabalho para a saúde dos trabalhadores é tema comum nas pesquisas; ii) professores relatam formas de violência, como gestos, palavras e olhares que ocasionam sentimentos de insegurança e medo, impactando no exercício de sua função e na percepção quanto à saúde física e mental; iii) a equipe técnica (psicólogos e assistentes sociais) se queixa quanto às capacitações, que são ausentes ou deficitárias, o que acarreta sentimentos de falta de preparo, desorientação e medo; e iv) há representação ambígua da figura do trabalhador da socioeducação, especificamente quanto aos ASS, o que pode ser explicado pelo fato de as funções desempenhadas por essa categoria estarem permeadas por uma "dupla dimensão", pois esses trabalhadores "são convocados a executar práticas relacionadas à socioeducação, mas também são demandados a desempenhar intervenções relacionadas à vigilância e segurança nas instituições" (Brasil et al., 2020, p. 3).

Em que pese esse contexto de trabalho, as publicações acadêmicas e os documentos oficiais sobre o sistema socioeducativo dedicam-se a debater a política pública, as condições dos adolescentes e as diretrizes e metodologias de atendimento, mas pouco se debruçam sobre os trabalhadores (Bastos et al., 2022). Ainda que seja inquestionável a importância de discutir sobre a população atendida e os princípios da socioeducação, o que se destaca aqui é a igual necessidade de debater sobre o trabalho realizado, seu contexto e efeitos para os trabalhadores, especialmente pelas já identificadas queixas quanto às condições de trabalho, de saúde e sofrimento.

Nesse sentido, no ano de 2017 uma gestora responsável pelo sistema socioeducativo de um estado brasileiro buscou auxílio de uma Universidade Federal, especificamente de professoras vinculadas ao Curso de Psicologia. O pedido inicial foi para um projeto voltado à saúde mental dos trabalhadores, que "estavam adoecidos", fala que figura como um dos eixos estruturantes deste estudo e se refere à demanda apresentada. Segundo a gestora, foi constatada situação de sofrimento e adoecimento dos trabalhadores, especificamente dos ASS. A partir desse pedido, o vínculo estabelecido entre as instituições (Secretaria Estadual e Universidade) foi de parceria, por meio de um Projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão que iniciou suas atividades no ano de 2018. Desse projeto resulta a proposta que aqui se apresenta.

O CENSE no qual o projeto é desenvolvido dispõe de capacidade máxima de 100 vagas e se caracteriza como uma unidade de internação provisória, servindo como porta de entrada para adolescentes autores de ato infracional que aguardam o sentenciamento da medida socioeducativa a ser cumprida. Possui limite máximo de tempo de internação de 45 dias, que pode se estender até 90 dias em casos de sanção.

Esse CENSE é composto por trabalhadores com diferentes vínculos empregatícios − servidores concursados, contratados por meio de PSS e com contrato de trabalho terceirizado. Os trabalhadores dividem-se nas equipes: i) de Segurança, composta pelos ASS (70 trabalhadores); ii) Administrativa (6 trabalhadores); iii) de Saúde, composta por enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, médico e terapeuta ocupacional (7 trabalhadores); iv) de Atendimento Técnico, composta por psicólogos e assistentes sociais (9 trabalhadores); e v) Pedagógica, composta por pedagogos, professores e agentes educacionais (18 trabalhadores). No total, o CENSE estudado é composto por 110 trabalhadores (concursados ou em regime PSS), além de 18 trabalhadores com vínculo de trabalho terceirizado, em atividades de apoio, como as funções de manutenção, administração, limpeza e conservação.

Dado o contexto apresentado, este artigo tem como objetivo propor metodologias de atuação em Psicologia Crítica do Trabalho a partir de uma pesquisa-intervenção em contexto socioeducativo de privação de liberdade. Para tanto, a próxima seção se dedica a expor o método de realização da investigação, para posteriormente os resultados e discussão serem explicitados.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa e intervencionista, realizada por meio de pesquisa-intervenção (Rocha, 2006), tendo a coleta de dados ocorrido entre os anos de 2018 e 2023. Esse delineamento busca promover a ativa participação dos trabalhadores na pesquisa, como coautores em diálogo e interação para a construção do conhecimento de forma colaborativa (entre trabalhadores e equipe de pesquisa). O método também visa uma intervenção crítica, pois pressupõe uma permanente crítica da intervenção, exigindo que se identifique, analise, reflita e dê direcionamento aos efeitos das ações de intervenção realizadas (Parker, 2005). Do mesmo modo, implica em transformação dos sujeitos envolvidos e das práticas estabelecidas que são constitutivas da realidade (Rocha, 2006).

Participantes

Os participantes podem, analiticamente, ser divididos em dois grupos. O primeiro é composto por gestores de diferentes divisões da secretaria estadual responsável pelo sistema socioeducativo no estado. Esse grupo participou apresentando a demanda de trabalho, autorizando a realização do estudo e por meio de reuniões, tanto iniciais, para formalização do projeto, quanto rotineiras, de planejamento do trabalho e de devolutiva ao final de cada ciclo do projeto. O segundo grupo é formado pelos trabalhadores do CENSE estudado, os quais participaram de forma direta e cotidiana da pesquisa-intervenção, conforme será descrito nos procedimentos de coleta e análise. O grupo abrange os 128 trabalhadores (independentemente do vínculo de trabalho) que participaram da pesquisa como voluntários.

Instrumentos

Como instrumentos de coleta de informações foram utilizados: i) entrevista semiestruturada; ii) pesquisa documental; e iii) observação participante no cotidiano de trabalho. No que se refere à entrevista semiestruturada, foram realizadas 67, sendo 52 com enfoque em diagnóstico institucional e 15 com foco na compreensão dos efeitos da vivência de eventos críticos no trabalho. A pesquisa documental acessou arquivos disponíveis de maneira gratuita e on-line, tais como: i) documentos de âmbito estadual; ii) documentos de âmbito nacional; iii) artigos científicos; iv) notícias veiculadas na mídia; e iv) documentos internos do CENSE estudado (de acesso restrito, cuja consulta foi facultada pela instituição).

Quanto à observação participante, foram realizadas permanências semanais durante os semestres letivos dos anos de 2018 a 2023. Nesses momentos a equipe de pesquisa teve como foco circular pela instituição, estabelecer conversas com os trabalhadores, observar a execução do trabalho enquanto estava sendo realizado, implementar as ações de intervenção planejadas e desenvolvidas por pesquisadores e trabalhadores. O objetivo era compreender e intervir nas práticas sociais e historicamente produzidas, expressas em valores e tradições, referência das ações que no cotidiano estavam naturalizadas, sendo repetidas e tomadas como verdades (Rocha, 2006). Das observações resultaram registros em Diário de Campo compartilhados entre a equipe de pesquisa.

Procedimentos (éticos, de coleta e de análise)

Dois projetos de pesquisa foram submetidos para análise do Comitê de Ética. O primeiro para o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Setor de Ciências da Saúde, da Universidade Federal do Paraná, sob o CAAE nº 15039919.2.0000.0102, aprovado sob o Parecer nº 4.710.019. O segundo para o Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais, do Setor de Ciências Humanas, da Universidade Federal do Paraná, sob o CAAE nº 73028923.7.0000.0214, aprovado sob o Parecer nº 6.286.461.

Dada a realização de uma pesquisa-intervenção, a metodologia de trabalho foi desenvolvida, de forma conjunta, entre equipe de pesquisa ligada à Universidade (3 professoras e 28 discentes de graduação e pós-graduação, na condição de estagiários, extensionistas e pesquisadores), gestores do sistema socioeducativo e trabalhadores do CENSE estudado. Portanto, não se trata de uma metodologia pronta para ser aplicada em qualquer contexto, mas, sim, construída de forma participativa, construída com os trabalhadores visando o seu movimento e o processo de autonomia e emancipação. Dessa forma, a pesquisa-intervenção tem buscado junto com os trabalhadores expor, analisar e fomentar vias de ação coletiva sobre relações entre trabalho e subjetividade, com especial atenção às relações de poder, ao sentido do trabalho, às formas de sofrimento e resistência desses trabalhadores, bem como à sua saúde. Assim, como recomenda Rocha (2006), as práticas que integram o social e os referenciais que lhe dão sentido vão sendo produzidas de modo concomitante, visto que o conhecimento e a ação sobre a realidade se constituem no curso da pesquisa a partir de análises e decisões coletivas.

Os procedimentos de coleta e análise de informações foram guiados pela proposição de Faria (2015) quanto aos três momentos de pesquisa. O primeiro momento se refere à aproximação precária do pesquisador com o fenômeno estudado, ocasião em que a equipe de pesquisa iniciou os primeiros contatos com a instituição estudada, considerando: recebimento da demanda, estabelecimento da parceria, reuniões de planejamento com gestores estaduais e com a direção do CENSE estudado, e primeiras pesquisas documentais. Tratou-se, então, de iniciar a investigação com base na análise da demanda, como sugerido por Rocha (2006). Definiu-se de forma consensuada que a entrada da equipe de pesquisa no CENSE estudado se daria por meio da realização de um Diagnóstico Institucional, executado a partir de entrevistas semiestruturadas e observação participante do cotidiano do trabalho.

No segundo momento da pesquisa, que corresponde à construção da aproximação e do conhecimento valorizado (Faria, 2015), foram mantidos os procedimentos de: i) reuniões semestrais de planejamento e devolutiva parcial do trabalho, realizadas com gestores da secretaria, diretor e trabalhadores do CENSE estudado; ii) pesquisa de documentos nacionais e estaduais, artigos científicos e notícias sobre a socioeducação, bem como acesso a documentos internos de gestão de faltas e atestados que foram cedidos pela instituição; iii) observação participante do cotidiano do trabalho. As permanências semanais passaram a incorporar a implementação de dispositivos de intervenção planejados e desenvolvidos pela equipe de pesquisa e trabalhadores. Esses dispositivos contemplam: i) presença na instituição; ii) atendimentos clínico-institucionais; iii) atividades em grupo; e iv) articulação com a gestão. Visto que o objetivo deste artigo é justamente a proposição dessas metodologias, o detalhamento de cada uma delas será apresentado na seção de Resultados e Discussão.

Após análise refinada das informações coletadas, passou-se para o terceiro momento de pesquisa, marcado pela elevação do pensamento no qual o conhecimento é produzido, a partir de métodos científicos e teorias disponíveis, para aprofundar os procedimentos de apreensão e interpretação da realidade (Faria, 2015). Desse modo, a equipe de pesquisa permaneceu e permanece imersa no campo empírico, realizando as reuniões semestrais, a pesquisa documental, a observação participante e as intervenções por meio dos dispositivos desenvolvidos. No entanto, há um avanço na elaboração das análises a fim de produzir o conhecimento científico que se cristaliza, em parte, na elaboração deste artigo.

 

Resultados e Discussão

Como indicado, este artigo apresenta uma proposta de atuação em Psicologia Crítica do Trabalho voltada aos trabalhadores do sistema socioeducativo. Contudo, em pesquisas participativas, as práticas e os referenciais se produzem concomitantemente no curso da pesquisa (Rocha, 2006). Portanto, a proposta que vem sendo construída será apresentada, por uma escolha didática (visto acontecerem ao mesmo tempo), em três grupos: i) condições de trabalho e dos trabalhadores; ii) proposição teórica; e iii) proposição metodológica. Por fim, serão explicitadas algumas repercussões quanto à proposta de atuação.

Condições de Trabalho e dos Trabalhadores

Identificou-se significativa presença de sofrimento e adoecimento relacionados ao trabalho entre os trabalhadores do CENSE estudado. Dos 52 entrevistados na etapa de diagnóstico, apenas 4 afirmaram sentirem-se bem quando questionados sobre a saúde. O relato é de alterações de sono e de humor, ansiedade, pânico, estresse, presença de pensamentos negativos, uso significativo de psicofármacos, pressão alta/hipertensão, gastrite, taquicardia, insônia, cansaço constante e tendência ao isolamento social.

Os trabalhadores estabelecem relações entre o trabalho e formas de sofrimento e adoecimento, destacando como agravantes: o tempo de serviço na instituição, a estrutura precarizada, a sobrecarga de trabalho, a lotação da unidade, o contingente insuficiente de trabalhadores, a ausência ou insuficiência de treinamentos, o desamparo quanto à assistência ofertada (ou não) pela gestão estadual, a percepção de vigilância constante sobre o trabalho, passível de denúncias infundadas, o elevado nível de culpabilização e punição dos trabalhadores, a mobilização afetiva e os processos de identificação no exercício de suas funções, a vivência de eventos críticos e outras formas de violência. Esse ambiente é permeado por tensões, imprevisibilidade, insegurança e violência. Isso faz com que os trabalhadores percebam que "nós também estamos presos", fala que figura como o segundo eixo estruturante desta investigação e aponta para o contexto de trabalho em questão.

Os trabalhadores também relatam a percepção quanto à invisibilidade do sofrimento e adoecimento dos quais padecem, indicando a necessidade de sensibilizar a gestão estadual e federal acerca do ambiente no qual estão inseridos. De fato, a investigação revela que não há sistematização de uma política ou de ações voltadas à saúde do trabalhador. Ao mapear ações relacionadas à saúde do trabalhador promovidas pela gestão estadual, foram identificados: i) controle de atestados: os trabalhadores devem apresentar eventuais atestados médicos que justifiquem ausência ao trabalho, os quais são submetidos a análise e podem impactar no fechamento da folha ponto e em possíveis descontos na remuneração, contudo não geram nenhum tipo de estudo epidemiológico sobre a condição de saúde do conjunto de trabalhadores; ii) Sistema de Assistência à Saúde: constitui-se como um benefício de saúde que oferta cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar; iii) Perícia Médica: avaliação da capacidade de trabalho dos servidores que resulta na concessão de licenças médicas requisitadas por servidores; e iv) um conjunto de ações pontuais e descontínuas: trata-se de ações decorrentes de contratação de empresas privadas ou de parceria com o Tribunal de Justiça, em que predominam a proposta de Justiça Restaurativa. Em geral, os trabalhadores percebem essas ações como insuficientes, pois são focadas ou no controle administrativo e burocrático ou na culpabilização individual dos trabalhadores, vistos como responsáveis por seu sofrimento/adoecimento e pela manutenção de sua saúde.

Outro ponto destacado pelos trabalhadores como gerador de instabilidade e tensão se refere às mudanças de secretarias estaduais e de gestores responsáveis pelo sistema socioeducativo. Isso acarreta alterações na concepção, finalidade e objetivos dessa política, bem como alterações para as práticas profissionais e diretrizes de funcionamento do sistema, indicando que a socioeducação tem se desenvolvido mais como uma política de governo do que como uma política de estado. Os trabalhadores também apontam a contradição quanto à punição e ressocialização como elemento gerador de sofrimento e conflitos. Em que pese o objetivo de ressocialização de adolescentes, a aplicação de privação de liberdade/internação não coincide com tal objetivo, uma vez que busca a correção/adaptação individual frente às desigualdades sociais.

Proposição Teórica

A partir do pedido de uma intervenção voltada à saúde dos trabalhadores, foi articulada uma investigação que partiu da análise da demanda colocada (Guirado, 2004). Para tanto, a equipe de pesquisa refletiu sobre a necessidade de desenvolver uma atuação crítica, criando um campo de problematização diante do pedido. Assim, buscou-se compreender o processo de sofrimento e adoecimento dos trabalhadores e não ofertar a remediação da questão, mas o enfrentamento das armadilhas do assistencialismo psicologizante (Rocha, 2006).

Com isso buscaram-se referenciais teóricos na Psicologia Crítica (PC) (Teo, 2015; 2006), compreendida enquanto uma perspectiva que não se encontra deslocada da realidade concreta. As proposições da PC consideram as determinantes sociais, históricas e culturais dos fenômenos, da produção do conhecimento e dos contextos de intervenção, que, em última instância, estão localizados em uma sociedade regida pelo capital.

A PC apresenta-se enquanto movimento contra-hegemônico, de enfrentamento, tendo como base de atuação a noção acerca de seu papel de contribuição quanto ao movimento de defesa do compromisso social da psicologia em promover a emancipação e a justiça social. Trata-se de uma atuação de referenciais interdisciplinares, na qual se firma o posicionamento contra uma suposta neutralidade do conhecimento dito científico, havendo a primazia do conhecimento advindo da experiência concreta, no qual se encontram atrelados pesquisador e campo estudado, na busca pela construção de um conhecimento coletivo, não se tomando um lugar de suposto saber.

Da mesma forma, uma atuação em Psicologia Crítica do Trabalho (PCT) apresenta-se antagônica aos pressupostos de uma Psicologia Organizacional e do Trabalho de base gerencialista, tradicional e hegemônica. Para tanto, considera o trabalho como elemento central tanto na constituição da sociedade quanto na constituição da subjetividade, interessando-se pela compreensão das relações entre os processos de trabalho e os processos de subjetivação. Em apertada síntese, a posição crítica diante da relação entre Psicologia e Trabalho pode assumir cinco principais perspectivas (Pulido-Martínez & Sato, 2013), destacadas à seguir.

A Crítica Instrumental apresenta críticas que visam melhorar os referenciais já existentes na psicologia, tornando-a mais precisa e objetiva para apoiar os valores liberais de eficiência e meritocracia. Essa perspectiva mantém posição gerencialista e compactua com o discurso hegemônico, portanto não figura como uma possibilidade para embasar os argumentos desta investigação. A Contrapsicologias se afasta do enfoque gerencialista, foca nas condições de trabalho e nas relações de poder, em vistas a promover transformações, dedicando-se às categorias subjetividade, identidade e significado do trabalho. A Crítica Ideológica é de base marxista, compreende a psicologia do trabalho hegemônica como uma ideologia burguesa que disfarça as relações de classe e naturaliza as condições de exploração do modo de produção capitalista. A perspectiva do Governo da Subjetividade examina a psicologia como um mecanismo de governo que contribui para a moldar subjetividades e comportamentos alinhados ao neoliberalismo. Por sua vez, a Geopolítica do Conhecimento critica a colonização intelectual na psicologia, em que a importação de conhecimentos não considera as particularidades culturais e contextuais e os problemas locais.

A orientação do presente trabalho compreende, então, que a PCT objetiva revelar as contradições inerentes ao trabalho na sociedade capitalista, por meio da construção de um conhecimento compartilhado a partir do protagonismo dos sujeitos-trabalhadores, com vistas à promoção de transformações sociais e como forma de resistência, produzindo novas práticas no campo do trabalho, baseadas no discurso desses sujeitos. Como frisa Teo (2006), uma perspectiva crítica em psicologia considera o contexto ético-político, portanto as atuações visam questionar as estruturas de poder, dominação e controle presentes no processo de gestão do trabalho. Na mesma esteira, objetivam promover espaços para a emancipação dos trabalhadores, justiça social, relações sociais dignas e humanas, almejando a transformação social.

A proposta de intervenção que se tem construído adota referenciais teóricos interdisciplinares e críticos: a Economia Política do Poder (Faria, 2004/2011; 2017), a Psicossociologia (Enriquez, 1997), a Análise Institucional (Lapassade, 1977; Lourau, 1995), a Psicologia Institucional (Guirado, 2004; 2009; Bleger, 1984) e a Psicanálise (Gurski, 2019; Broide & Broide, 2020; Rosa, 2023). Assim, se amplia o escopo de análise e atuação frente à produção de subjetividades a partir de uma compreensão crítica das relações de poder, dominação e controle no campo do trabalho.

Tendo em vista a demanda de atuação frente ao sofrimento e adoecimento dos trabalhadores, destaca-se que a relação entre saúde e trabalho desperta o interesse humano desde o período da Antiguidade, demarcando a centralidade da atividade de trabalho como fundamento na produção das "condições materiais, objetivas e subjetivas, de existência" que definem modos específicos de organização social (Faria, 2017, p. 181). Nessa dinâmica, compreende-se que a articulação entre saúde e trabalho é colocada como questão e é lida social e historicamente sob diferentes prismas, culminando em diferentes formas de operar com o saber (Ragnini & Darriba, 2017). Destacam-se, dentre essas formas, a Medicina do Trabalho e a Saúde Ocupacional, que se desenvolveram após a Revolução Industrial e vigoram até hoje como prática em organizações de trabalho. Na contramão dessas concepções, o campo da Saúde do Trabalhador se configura como uma proposta contra-hegemônica de abordagem da relação saúde-doença-trabalho, uma vez que considera como determinantes os aspectos sociais, políticos, jurídicos e ideológicos (Ragnini & Darriba, 2017).

Essa breve retomada histórico-conceitual se fez necessária para introduzir os alicerces que levam à afirmação de que a proposta aqui apresentada está circunscrita por uma atuação em Psicologia Crítica do Trabalho no âmbito da Saúde do Trabalhador, marcada, então, por uma perspectiva segundo a qual a saúde se apresenta como "recurso para a vida cotidiana, e não como um objetivo de vida a ser alcançado", e implica "recursos sociais, pessoais e a aptidão física e psicológica para o desempenho das funções pessoais e sociais, tais como o trabalho" (Ragnini & Brüning, 2021, p. 274). Portanto, em sua relação com o trabalho, a saúde é compreendida como a condição de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos de realizar suas aspirações, de satisfazer suas necessidades, bem como de transformar o contexto social (Ragnini & Brüning, 2021).

Proposição Metodológica

A proposta de intervenção organiza-se em torno dos seguintes dispositivos: i) presença na instituição; ii) atendimentos clínico-institucionais; iii) atividades em grupo; e iv) articulação com a gestão. É importante frisar que se entende por dispositivo aquilo que surge a partir de uma escuta cuidadosa da demanda, o que inclui inúmeras conversas, relação mútua de confiança e construção conjunta da tarefa, com base no princípio da circulação da palavra por toda a instituição, de modo a fazer ver e falar aquilo que até então estava encoberto (Broide & Broide, 2020).

A presença na instituição objetiva fundar e firmar um lugar para o trabalho da psicologia na instituição (Guirado, 2009). O dispositivo consiste em visitas sistemáticas à unidade para realização de permanências, momentos em que a equipe faz uso da sala destinada ao projeto, circula pelos corredores e espaços de trabalho e de convivência, estabelece conversas com os trabalhadores, realiza observações do cotidiano, constrói vínculo de trabalho com as pessoas, a fim de marcar presença e disposição à escuta dos trabalhadores (Gurski, 2019; Rosa, 2023). No bojo desse dispositivo também se encontram ações de divulgação do projeto e de favorecimento da troca entre os trabalhadores. Exemplos disso são a disponibilização da caixa de sugestões (em que os trabalhadores podem se comunicar com a equipe do projeto de forma anônima) e a organização do mural destinado a compartilhar cartazes sobre o projeto, listas de aniversariantes do mês e divulgações de interesse dos trabalhadores (vendas de produtos, etc.).

Apostando na transferência que se constrói por meio da Escuta Territorial (Broide & Broide, 2020), a proposta é que a presença viabilize a fala sobre as vivências no trabalho, bem como a possibilidade de recolhimento e análise de demandas colocadas. Essas operações permitem reflexões sobre o endereçamento dos pedidos para a psicologia, a discussão e proposição de novas intervenções que possam viabilizar os cortes que fazem pensar (Guirado, 2004) sobre as relações instituídas e a produção de subjetividades e sofrimento. Como aponta Guirado (2004), esse movimento pode permitir que o conteúdo recalcado retorne e se transforme em algo ressabido, modificando as posições dos sujeitos e, em última instância, modificando a ordem social.

Os atendimentos clínico-institucionais acontecem de forma individual, com trabalhadores que procuram a equipe de forma ativa, e configuram-se como uma estratégia clínico-política (Rosa, 2023). Esse dispositivo é sustentado na circulação da palavra, na singularidade do sujeito e na busca daquilo que ancora o sujeito com a vida (Broide & Broide, 2020). Trata-se de atendimentos orientados pela escuta comprometida com o sujeito-trabalhador, considerando os processos de subjetivação endereçados ao trabalho e seus atravessamentos. O objetivo é a construção de um campo discursivo que viabilize o sujeito e sua subjetividade, a construção de laços sociais e o questionamento das relações de saber e poder produtoras de sofrimento (Ragnini & Brüning, 2021).

Comumente a busca pelo atendimento demarca um desamparo social e discursivo que, segundo Rosa (2002, p. 8), provoca um lugar de exclusão no qual cabe à escuta transgressora "romper com o pacto de silêncio do grupo social". Portanto, nem sempre as demandas estão relacionadas diretamente ao trabalho, mas fazem parte de uma estrutura de precarização da vida dessas pessoas que revela uma dimensão sociopolítica do sofrimento psíquico (Rosa, 2023).

As atividades em grupo se subdividem em: i) palestras e reuniões sobre temas específicos; ii) grupos operativos; e iii) Projeto Memórias. Em comum, além de mobilizar espaços para a circulação da palavra, favorecem a elaboração e organização coletiva dos trabalhadores, condição necessária para o processo de emancipação.

As palestras e reuniões consistem em eventos sobre temas escolhidos pelos trabalhadores. Para ilustrar, é possível citar alguns temas já discutidos: luto, saúde mental, assédio moral, aposentadoria, depressão. Alguns desses eventos foram realizados no formato palestra dialogada, com um primeiro momento de exposição pela equipe de pesquisa, seguido de perguntas. Outros, tiveram o formato de roda de conversa, com a equipe apresentando um disparador para o debate, e outros foram chamados de "Café com a Psicologia", caracterizados como momentos mais livres de interação e café comunitário, que possibilitaram a escuta de relatos sobre o trabalho e queixas que não se apresentavam em outros espaços. Dentre os objetivos desses encontros estavam o acesso à informação, a reflexão e a discussão coletiva sobre os assuntos de interesse.

Os grupos operativos são pautados nas propostas de Pichon-Rivière (2005), Bleger (1987) e Broide e Broide (2020), com o objetivo de promover espaços de comunicação ativa e criadora entre os trabalhadores. Portanto, incluem momentos de reflexão e questionamento acerca das condições de trabalho e seus efeitos para a subjetividade e saúde, bem como momentos de construção, pelos trabalhadores, de alternativas de enfrentamento dessa realidade, seja no nível cotidiano, seja no institucional e político. Os grupos operativos se organizaram de forma aberta a todos os trabalhadores, tendo um tema como centro da tarefa, mas também fechados para as diferentes categorias profissionais, de modo que pudessem aprofundar questões específicas daquele grupo de trabalho. Nos grupos operativos, a proposta é que cada integrante possa compartilhar suas ideias e necessidades, identificando possibilidades e limites para a execução de um trabalho comum e sugerindo aberturas para que um novo modo de fazer se realize na dinâmica do cotidiano da instituição (Ragnini & Brüning, 2021).

O Projeto Memórias constituiu-se a partir da demanda de trabalhadores interessados em resgatar as histórias e memórias da socioeducação e as atividades desenvolvidas ao longo do tempo, o que inclui as mudanças estruturais, sociais, políticas e de gestão que já ocorreram. Com o objetivo de construir coletivamente um memorial da socioeducação e favorecer o reconhecimento da trajetória individual de trabalho de cada um, foram realizados levantamentos de materiais e momentos grupais para compartilhamento de experiências e elaboração de materiais concretos, como a produção da galeria de fotos e do livro de relatos. Com isso, as vivências individuais e coletivas dos trabalhadores podem constituir um fio condutor do passado para o presente, reconstruindo as rupturas com base nas narrativas.

Por fim, o dispositivo de articulação com a gestão partiu da compreensão de que as ações executadas por meio da pesquisa-intervenção em um CENSE produzem efeitos locais (para a organização do trabalho e para os trabalhadores) em um nível operacional de atuação da psicologia. Contudo, esses efeitos encontram barreiras para além daquilo que está ao alcance dos trabalhadores, pois envolvem a gestão da unidade e a gestão estadual do sistema socioeducativo. Para tanto, empreenderam-se ações consideradas em um nível integrativo da gestão do CENSE (incluindo a direção e lideranças), como as reuniões ao início e ao final de cada semestre. Essas reuniões visam a constante renovação das expectativas e interesses quanto à permanência do projeto na instituição, assim como a apresentação de devolutivas sobre as atividades desenvolvidas e sobre as condições encontradas. Ainda, executaram-se ações concebidas em um nível estratégico da gestão do sistema socioeducativo, por meio de incidências junto à gestão estadual, alocada na Secretaria de Justiça. Estas também se estruturaram em termos de reuniões para a organização dos trabalhos e para a expansão das atividades para outras unidades, assim como em termos de devolutivas sobre o trabalho realizado e as condições encontradas.

Essas articulações concentram-se na proposta de Faria (2008) sobre o planejamento participativo enquanto prática política coletiva de uma comunidade, que concebe e executa o seu fazer. Para tanto, deve envolver todas as instâncias da organização, mobilizando os níveis operacional (que define atividades ou tarefas específicas), integrativo (que busca uma coordenação entre grupos de trabalho) e estratégico (que define princípios para orientar as ações, fixa programas e objetivos). Essas ações de articulação nos diferentes níveis têm se apresentado como fundamentais para a mobilização da dinâmica institucional no sentido de viabilizar não só um olhar para os trabalhadores, mas um programa voltado à saúde e ao trabalho e a políticas públicas de atenção à saúde do trabalhador.

Repercussões da Proposta de Atuação

Para discutir as repercussões desta proposta, retoma-se a terceira fala que figura como eixo estruturante deste estudo: "vocês atrapalham, mas é bom, porque fazem pensar". Desse relato, feito por um diretor da unidade em referência às intervenções realizadas, percebe-se a relação com aquilo que Guirado (2004) aponta como objetivo do trabalho da psicologia nas instituições: viabilizar os cortes que fazem pensar.

Como indicado, os dispositivos de intervenção permitiram a construção dos vínculos de trabalho e acolhimento do sofrimento em sua dimensão sociopolítica. Também promoveram espaços para que os trabalhadores pudessem se identificar, questionar as condições impostas e construir caminhos para enfrentamento e transformação do contexto de trabalho. Ainda, favoreceram a articulação com a gestão local e estadual em busca de sensibilizar quanto às condições às quais os trabalhadores estão expostos. Dessa forma, alinhados à perspectiva da PCT, os dispositivos de intervenção priorizaram a construção conjunta tanto da compreensão das relações entre processo de trabalho e subjetividade quanto das ações de questionamento da estrutura de poder e controle que possibilitam uma direção para a emancipação dos trabalhadores e a transformação social.

Em se tratando dos trabalhadores do CENSE estudado, verificam-se repercussões de âmbito individual, grupal e organizacional. Individualmente, existem relatos positivos quanto ao encontro de espaços de acolhimento e escuta promovidos pelo projeto, indicando certo caráter terapêutico relacionado à saúde mental. Em âmbito grupal, emergem os relatos de melhorias nas relações entre os colegas e entre as equipes, com aumento de empatia e compreensão em relação ao trabalho dos demais. Quanto às repercussões organizacionais, os apontamentos sugerem que a intervenção promove espaços para os trabalhadores refletirem e dialogarem sobre a reorganização do trabalho coletivo. Evidencia-se que as ações propiciaram aberturas para o diálogo e a mobilização da dimensão subjetiva dos trabalhadores, os quais têm buscado possibilidades de transformação do contexto de trabalho de forma ativa, propositiva e protagonista.

Considerando os gestores de diferentes divisões da secretaria estadual responsável pelo sistema, destacam-se repercussões em âmbito organizacional e institucional. Houve esforço para criar ou adaptar processos a fim de que a pesquisa e as intervenções pudessem ocorrer, embora por vezes procedimentos tenham impedido ou dificultado o trabalho, dada a justificativa de regras de segurança típicas de uma instituição de privação de liberdade. Houve abertura para levantamentos de nível estadual, para além do CENSE estudado, como a identificação e sistematização de ações voltadas à saúde do trabalhador da socioeducação. Os resultados das investigações realizadas foram apresentados aos gestores e, a partir disso, foi iniciado um processo de discussão para a construção de políticas públicas voltadas à saúde dos trabalhadores, como a organização de um projeto intitulado Saúde Mental dos Servidores da Socioeducação.

Em que pese a identificação de repercussões positivas ou benéficas da proposta de atuação aqui apresentada, é importante frisar que as ações da gestão estadual voltadas à saúde dos trabalhadores da socioeducação ainda são pontuais, descontínuas e insuficientes. Essas ações, por vezes, são percebidas pelos trabalhadores como tentativas de tamponamento em relação às reivindicações e queixas por eles colocadas. Da mesma forma, o projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão relatado é insuficiente para o atendimento das demandas de intervenção sobre o sofrimento e adoecimento dos trabalhadores. Portanto, os resultados explicitados apontam para a necessidade de debates e transformações relativas ao contexto de trabalho da socioeducação, bem como de construção de uma gestão em saúde para os trabalhadores do sistema socioeducativo que possa articular diversos projetos específicos e ser composta por equipes multiprofissionais.

 

Considerações Finais

O que se pode destacar desta proposta de atuação de Psicologia Crítica do Trabalho voltada aos trabalhadores de Centros de Socioeducação de privação de liberdade? Alguns elementos se realçam: i) adoção de método de pesquisa-intervenção; ii) busca de embasamento teórico em uma perspectiva crítica da Psicologia do Trabalho; iii) construção coletiva de metodologias de intervenção; e iv) dispositivos de intervenção nos níveis operacional (individual, grupal e coletivo), integrativo (direção, gestão, organização) e estratégico (gestão estadual, institucional, da política pública). Contudo, a investigação permitiu, também: a compreensão do contexto de trabalho na socioeducação e reflexões sobre saúde e trabalho na socioeducação.

A adoção do método de pesquisa-intervenção utilizado teve como pressuposto a participação ativa dos trabalhadores na pesquisa e na construção coletiva do conhecimento sobre as condições de trabalho e sobre as metodologias de intervenção. Desse modo, a proposta apresenta rupturas com um modelo de pesquisa baseado em paradigmas teóricos predefinidos e que impõe aos sujeitos um saber sobre eles. Na mesma esteira, a busca de uma via teórica em Psicologia Crítica do Trabalho teve como princípio o compromisso com a realidade concreta, com a emancipação dos trabalhadores e com a justiça social. Portanto, a proposta manifesta rompimento com as posições hegemônicas na Psicologia Organizacional e do Trabalho, considerando as determinantes sociais e históricas em relação ao trabalho e suas repercussões psíquicas. Por esses caminhos, vislumbra-se a ampliação das capacidades de ação, individuais e coletivas, dos trabalhadores, a partir de uma atuação ética e política da psicologia comprometida com esses sujeitos.

A construção coletiva de metodologias de intervenção ensejou quatro dispositivos de intervenção, que, em conjunto, têm gerado repercussões em âmbito individual, grupal, organizacional, institucional e político. Essas repercussões, ao mesmo tempo que acarretam mudanças e eventuais benefícios, geram resistências. A presença na instituição, os atendimentos clínico-institucionais, as atividades em grupo e as ações de articulação com a gestão, de diferentes modos, sustentam-se nos princípios de: promover a circulação da palavra, estabelecer cortes que fazem pensar, favorecer a elaboração coletiva dos trabalhadores, estimular a construção coletiva de alternativas aos trabalhadores e fomentar transformações no contexto de trabalho. Considerando os trabalhadores, as intervenções têm promovido escuta e tensionamentos quanto aos relatos sobre o trabalho e as diversas formas de sofrimento que se manifestam, favorecendo a descristalização do que está naturalizado. Ponderando sobre os gestores, observa-se que as intervenções têm estimulado momentos para conhecimento/reconhecimento quanto ao contexto de trabalho e condição de saúde dos trabalhadores da socioeducação, embasando ações que podem culminar em mudanças.

A compreensão quanto ao contexto de trabalho e reflexões sobre saúde e trabalho na socioeducação revelou que há significativa presença de sofrimento e adoecimento entre os trabalhadores. Isso é agravado por: i) ambiente atravessado por contradições, tensões, conflitos, imprevisibilidades, insegurança, violências e eventos críticos; ii) condições precárias para a execução do trabalho (ausência de capacitações, baixo efetivo, condições físicas e estruturais precarizadas); iii) ações insuficientes da gestão, que geram desamparo; e iv) contradições que marcam a socioeducação, ora como sistema socioeducativo, ora como sistema de segurança. Assim, parafraseando Darcy Ribeiro (1986), a interrogação é se a crise da socioeducação pode não ser uma crise, mas um projeto, visto que a precariedade pode revelar a ausência de investimento e/ou desinteresse público e social para concretizar uma política pública efetiva.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Carolina de Souza Walger - carolina.walger@ufpr.br

Recebido em: 26/04/2024
Aceito em: 08/10/2024

 

Agradecimento: As autoras agradecem a todas as pessoas que já compuseram a equipe do projeto Psicologia e Trabalho: atuação junto a trabalhadores da socioeducação.

 

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