Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e83855, doi:10.12957/epp.2024.83855
ISSN 1808-4281 (online version)

 

DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE

 

Cabelo e Subjetividade da Mulher Negra Privada de Liberdade

 

Hair and Subjectivity of Black Women Deprived of Freedom

 

Cabello y Subjetividad de las Mujeres Negras Privadas de Libertad

 

Helaine Silva Borges a, Larissa Medeiros Marinho dos Santos b

a Universidade Federal de São João Del Rei, São João Del Rei, MG, Brasil
b Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Esta pesquisa objetivou analisar como a negação da beleza negra, no contexto das relações raciais, é parte estruturante do racismo que desumaniza suas vítimas. Além disso, busca-se compreender o cabelo afro, símbolo da negritude, enquanto potência da população negra. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que teve como procedimentos metodológicos: a observação participante, conversas no cotidiano, entrevistas semiestruturadas e intervenção psicossocial com mulheres negras em contexto de privação de liberdade. A análise dos dados produzidos foi realizada à luz da produção teórica metodológica foucaultiana e de intelectuais negras. Os resultados evidenciam que o discurso racista é naturalizado e perpetuado em nosso cotidiano. Nesse sentido, o racismo não é uma particularidade do sistema prisional brasileiro, porém este intensifica e perpetua as experiências históricas de exclusão social e política a partir dos marcadores sociais de gênero, raça e classe, que tendem a confinar mulheres negras ao patamar inferior do sistema de dominação/exploração. No entanto, intervenções em grupo demonstram ter potencial para exercer mudanças na subjetividade de mulheres negras e na transformação da sociedade. Esse trabalho justifica-se, pois, pelo fato de, historicamente, o corpo negro ser o alvo principal de processo de construção social racista em vários países e, em especial, no Brasil.

Palavras-chave: subjetividade, racismo, cabelo, pesquisa qualitativa.


ABSTRACT

This research aimed to analyze how the denial of black beauty, in the context of racial relations, is a structural part of the racism that dehumanizes its victims. In addition, it seeks to understand Afro hair, a symbol of blackness, as a power of the black population. This is a qualitative research that used the following methodological procedures: participant observation, everyday conversations, semi-structured interviews and psychosocial intervention with black women in the context of deprivation of liberty. The analysis of the data produced was carried out in light of the theoretical methodological production of Foucault and black intellectuals. The results show that racist discourse is naturalized and perpetuated in our daily lives. In this sense, racism is not a particularity of the Brazilian prison system, but it intensifies and perpetuates the historical experiences of social and political exclusion based on the social markers of gender, race and class, which tend to confine black women to the lower rung of the system of domination/exploitation. However, group interventions demonstrate the potential to change the subjectivity of black women and transform society. This work is justified by the fact that, historically, the black body has been the main target of the racist social construction process in several countries and, especially, in Brazil.

Keywords: subjectivity, racism, hair, qualitative research.


RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo analizar cómo la negación de la belleza negra, en el contexto de las relaciones raciales, es parte estructurante del racismo que deshumaniza a sus víctimas. Además, buscamos entender el cabello afro, símbolo de la negritud, como un poder de la población negra. Se trata de una investigación cualitativa que utilizó como procedimientos metodológicos la observación participante, conversaciones cotidianas, entrevistas semiestructuradas e intervención psicosocial con mujeres negras en contexto de privación de libertad. El análisis de los datos producidos se realizó a la luz de la producción teórico-metodológica foucaultiana y de intelectuales negras. Los resultados mostraron que el discurso racista se naturaliza y se perpetúa en nuestra vida cotidiana. En este sentido, el racismo no es una particularidad del sistema penitenciario brasileño, pero intensifica y perpetúa las experiencias históricas de exclusión social y política basadas en marcadores sociales de género, raza y clase, que tienden a confinar a las mujeres negras al nivel inferior del sistema. de dominación/explotación. La intervención grupal demostró potencial para provocar cambios en la subjetividad de las mujeres negras y la transformación de la sociedad. Este trabajo se justifica por el hecho de que históricamente el cuerpo negro es el principal blanco del proceso de construcción social racista en diversos países, pero especialmente en Brasil.

Palabras clave: subjetividad, racismo, cabello, investigación cualitativa.


 

 

O estudo teve como objetivo analisar o processo de construção subjetiva de mulheres negras encarceradas reclusas no Método APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) de execução Penal em uma cidade do interior do estado de Minas Gerais. Em busca de compreender aspectos das especificidades da tripla discriminação, de raça, gênero e classe que não se desenvolve de maneira isolada, mas de forma articulada formando uma potencial situação de vulnerabilidade (Gonzalez & Hasenbaig, 1982).

A subjetividade da mulher encarcerada foi analisada à luz da produção teórica e metodológica de Foucault (1995) que aborda a constituição desse aspecto como um produto histórico das relações entre saber, poder e verdade. Conforme o filósofo, o termo subjetividade designa um processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito ou uma subjetividade denominada "processos de subjetivação" do ser humano, que é construída historicamente por meio de práticas discursivas.

Gênero é um conceito associado ao estudo que objetiva analisar o papel da mulher como expressão de uma forma de dominação própria das sociedades divididas em classes, um sistema baseado na exploração do ser humano pelo ser humano, em suas diversas faces históricas (Saffioti, 1987). As relações de gênero são baseadas em hierarquias sociais que distinguem os sexos feminino e masculino, transformando as relações sociais em relações de poder. O gênero pode "...ser redefinido e reestruturado em conjunção com a visão de igualdade política e social que inclui não só o sexo, mas também a classe e a raça" (Scott, 1995, p. 29). Neste sentido, a interseccionalidade entre gênero, raça e classe se apresenta enquanto categoria teórica para compreender os contextos de múltiplas opressões vivenciadas por mulheres negras.

De acordo com Gonzalez (1984) e Saffioti (1987), a mulher negra carrega consigo uma tripla discriminação, sendo ela a de gênero, classe e raça. Uma herança do nosso passado colonial que se retroalimenta nas práticas cotidianas atuais, gerando e reforçando opressões. Ao analisar esses processos, é importante não pensar as discriminações separadamente, mas sim pensar como estas interagem, uma vez que apesar de não ter como individualizá-las é possível perceber quais se sobrepõem e comprometem o acesso aos direitos das mulheres. Mediante essa constatação iremos analisar os marcadores de raça, classe e gênero como eixos de poder, este enquanto uma relação que produz novos sujeitos, a partir das considerações foucaultianas (Foucault, 1995).

De acordo com Rosa (2014) é preciso pensar as relações raciais no que se refere às relações de trabalho, no qual existe uma competição desigual entre brancos e não brancos desde o período colonial e pós-abolição. Para Rosa (2014), as práticas discriminatórias sutis e mecanismos racistas fomentam maiores oportunidades e ganhos ocupacionais e de rendas superiores para os brancos. Dessa maneira, pensar as desigualdades sociais é necessário e urgente, visto que ainda existem abismos a serem transpostos em uma sociedade que tem a percepção de que existe igualdade racial em contexto brasileiro. Entre estes abismos estão sistema carcerário, cujos dados indicam que o encarceramento é para pretos e pobres (Nascimento & Vasconcelos, 2023).

A Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC) é uma destas instituições do sistema carcerário brasileiro, surgiu em 18 de novembro de 1972, na cidade de São José dos Campos/SP, uma iniciativa da Pastoral Penitenciária sob a liderança de Mário Ottoboni, com o objetivo de evangelizar e oferecer suporte moral aos apenados. O objetivo do Método APAC é garantir a reintegração de egressos à sociedade por meio da evangelização (Rodrigues, 2018).

A metodologia APAC é composta por 12 elementos obrigatórios, sendo a religiosidade o ponto alto, visto que proclama a necessidade imperiosa do recuperando fazer a experiência com Deus, ter uma religião independente do credo. O objetivo central do método é "matar o criminoso e salvar o homem" (Ottoboni, 2001, p. 45), abrindo margem para a interpretação do crime cometido como uma motivação demoníaca, o que pode acarretar sérias implicações psíquicas no tocante à construção da subjetividade do sujeito (Rodrigues, 2018).

Para a ideologia cristã da religião católica e para a sociedade o 'diabo é negro' e 'Jesus é loiro', com 'cachinhos dourados e olhos azuis'. Isso, segundo Vergne (2013), reflete na subjetividade de mulheres negras encarceradas, uma vez que a imagem branca é a personificação da criação à imagem e semelhança de Deus, enquanto os demônios são caracterizados com cabelos crespos e pele escura. O negro ocupa o lugar de objeto e está associado ao que simboliza o mal e suas tradições culturais ao demoníaco, impuro, sujo e feio. A imagem do negro infrator como criminoso é evocada em diversos lugares da cultura brasileira, podendo ser evidente nos meios de comunicação de massa, que os apontam como "monstros", animalizando o sujeito.

Convém salientar que a imagem da mulher negra é escassa nas mídias sobre beleza, mas é quase exclusividade nas páginas policiais devido à violência sofrida por ela. À mulher negra é ensinado que seu rosto é feio, sua cor é suja, sua família foi escravizada e que o abuso sofrido pelas suas antepassadas ocorreu porque elas eram sedutoras e atraentes aos olhos dos senhores (Vergne, 2013). Assim, culpavam-se as mulheres negras pelos abusos sofridos, inclusive pela situação de abandono, tendo em vista que não eram mulheres para se casar, fato retratado na tese de Pacheco (2008), cujo título é: "Branca para casar, mulata para f..., negra para trabalhar" e na obra de Freyre (2000).

Dessa maneira, a mulher negra representaria a figura do exótico, recaindo sobre ela o estereótipo do pecado, o que significa que ela deveria ser tratada sob normas e condutas médicas e religiosas.

Identificou-se na origem das prisões femininas brasileiras uma estreita relação com as instituições religiosas, o que aproxima a noção de crime e pecado, ressocialização e evangelização. Nessa perspectiva se preconizou o modelo de mulher cristã, devotada ao lar e à família, como o ideal de uma mulher "recuperada". Algo intimamente presente no Método APAC de execução penal desde a sua criação aos dias atuais.

Ante o exposto, é possível fazer uma leitura da APAC a partir das contribuições de Foucault (2013), visto que a instituição apaqueana carrega elementos característicos de uma sociedade disciplinar que tem como objetivo produzir corpos dóceis. A APAC feminina pode ser compreendida como um dispositivo voltado para as mulheres negras que romperam com o papel social submisso imposto pela sociedade machista e racista, tendo em vista que o funcionamento prisional sob o Método APAC assegura o controle dos internos fundamentado na ideologia da disciplina e dos mecanismos e dispositivos de vigilância, a fim de torná-los dóceis e úteis para o retorno ao convívio social (Silva, 2018).

Ao analisar as prisões foi considerado importante acrescentar as análises de Goffman (2003), sobre manicômios, prisões e conventos. Suas observações sobre as 'instituições totais' permitem alguns diálogos com a instituição apaqueana, em especial, no tocante ao processo de 'mortificação do Eu', uma vez que, no caso específico das APACs, existem duas instituições totais em seu interior, uma prisão e um convento. As instituições apaqueanas têm como finalidade ressocializar as mulheres por meio da expiação do pecado por terem cometido crimes. Nesse sentido, o crime é considerado pecado e o arrependimento e a submissão a Deus são confundidos com as funções da pena.

Adiante, iremos analisar, no contexto das relações raciais, como a negação da beleza negra é parte estruturante do racismo. Ao analisarmos narrativas bíblicas, constatamos que o cabelo foi elemento central em algumas delas, símbolo de força e poder. Atualmente, é símbolo de afirmação étnica, política, de resistência, liberdade, praticidade, beleza e moda. O corpo negro é um campo simbólico atravessado e marcado pelo tempo histórico, pela dimensão sociopolítica, pelo discurso e pela cultura. Para Carneiro (2011), o dispositivo racial busca demarcar a humanidade como sinônimo de brancura, o que redefine as dimensões humanas a partir da hierarquização conforme a proximidade ou o distanciamento do padrão eurocêntrico.

Isso significa que a negação da beleza negra é parte estruturante do racismo que desumaniza suas vítimas. A beleza é parte da humanidade, pois ser considerado belo no discurso racista é ser considerado gente. Elemento presente na animalização de negros, que eram comparados a macacos, e não vistos como seres humanos.

Na concepção de Carneiro (2011), o racismo é um processo, portanto, não existe uma forma específica de racismo, pois não é um ato. Nesse sentido, todo racismo é estrutural, pois as condições e organizações da sociedade (re) produzem a subalternização de determinado grupo racionalizado, o corpo negro.

Esse trabalho justifica-se, pois, pelo fato de vivermos em um sistema punitivista que seleciona mulheres negras a partir de critérios subjetivos, fruto de um processo de construção social racista. Trata-se, portanto, de grande relevância acadêmica, social e política, presente fortemente no cárcere brasileiro. Percebe-se que os problemas cíclicos do sistema carcerário brasileiro só podem ser superados com a implantação de políticas públicas sociais que englobem as questões de gênero, raça e classe.

 

Método

A pesquisa foi pautada na metodologia de pesquisa no cotidiano, caracterizada como uma modalidade de pesquisa em profundidade e não estruturada, investigação qualitativa por meio de narrativas produzidas no cotidiano (Spink & Menegon, 2004), que se apresentou como um potente meio de acesso às experiências vivenciadas por mulheres negras em contexto de privação de liberdade. O estudo foi realizado em três diferentes momentos. No primeiro, a pesquisadora realizou um processo de observação participante acompanhada de conversas no cotidiano. Na segunda ocorreram novas observações acompanhadas de intervenção psicossocial, sendo descrita aqui uma que ocorreu com cabeleireiras indo ao local. No terceiro foram conduzidas entrevistas semiestruturadas com vinte mulheres em situação de privação de liberdade.

Participantes

Participaram da pesquisa 20 mulheres reclusas em uma instituição apaqueana feminina. A participação no estudo foi de caráter voluntário e os dados foram registrados em diário de campo. Com o objetivo de preservar a identidade das participantes, foram utilizados nomes fictícios. A faixa etária das participantes variou entre 20 a 57 anos, e elas se autodeclararam brancas, negras ou pardas. Quatorze delas são mães. A maioria declarou ter concluído o Ensino Médio. As orientações religiosas citadas foram a evangélica, cristã e católica. E, apesar de não ser um item da entrevista, algumas mencionaram o delito que as levaram à prisão: 17 participantes do total de 20 cumprem pena de prisão devido ao tráfico de drogas.

Coleta de Informações

As observações aconteceram diariamente, de segunda a segunda, das 08h às 18h, contemplando diferentes espaços de circulação das pessoas no ambiente apaqueano, durante aproximadamente quatro meses. A pedido das participantes, as observações e entrevistas, posteriores, ocorreram sem gravador de voz, apenas com anotações no diário de campo, o que foi de extrema importância para que se sentissem mais livres para colaborar com a pesquisa. Assim, foi se desvelando o valor do respeito às mínimas possibilidades de escolha dentro de uma instituição prisional.

Durante as observações tivemos a oportunidade de conversar com as participantes. Segundo Spink e Menegon (2004), conversar é uma das maneiras por meio das quais as pessoas se posicionam nas relações que estabelecem no cotidiano. As conversas são compreendidas como linguagem em uso, em ação dialógica, isto é, as práticas discursivas encontram-se na linguagem do cotidiano das pessoas, são espaço privilegiado de produção de sentidos.

Uma das intervenções surgiu com o intuito de atender à solicitação das participantes do estudo para fazer alguma atividade prática relacionada a cabelos afro. Foram convidadas algumas cabelereiras especialistas em cabelos afro-étnicos para ministrarem uma oficina na instituição. Dentre as pautas desse encontro, retomamos a explicação sobre a pesquisa e seus objetivos. Na sequência, as convidamos para participarem das entrevistas individuais. Com base no acordo firmado nesse encontro, entrevistamos as mulheres que se dispuseram a conceder a entrevista. Utilizamos a entrevista semiestruturada por ser uma ferramenta com um planejamento aberto, o que contribuiu para que as falas das entrevistadas ocorressem de forma livre.

Análise das Informações

A análise do material produzido foi ancorada no referencial das práticas discursivas de Spink e Menegon (2004) que entende a linguagem como um caminho privilegiado para compreender a produção de sentidos em relação ao cotidiano e aos fatos sociais (Spink & Menegon, 2004). A análise dos dados visou compreender o sentido dos fenômenos sociais a partir do conjunto de informações coletadas nas entrevistas, conversas informais e observações participantes. Partimos do pressuposto de que as narrativas das participantes ofereciam elementos capazes de posicioná-las historicamente como produtoras ativas de suas próprias experiências (Scott, 1995). Desse modo, mais do que ter acesso a elas, buscou-se analisar como as participantes são constituídas por essas experiências.

Quanto às considerações éticas, este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São João del Rei CAAE nº11699219.0.0000.5151. Dessa maneira, o trabalho foi realizado em consonância com as resoluções nº 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde. A coleta de dados foi realizada mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, com o objetivo de manter a privacidade e o anonimato das participantes da pesquisa, todos os nomes utilizados são fictícios.

 

Resultados e Discussão

Cenas das práticas cotidianas de viver, resistir e fazer das mulheres negras em uma unidade APAC feminina

Teceremos adiante uma análise sobre gênero, raça e classe envolvendo seus desdobramentos no cotidiano de uma unidade apaqueana feminina. A partir dos relatos, evidencia-se que a mulher negra enfrenta diversas formas de preconceitos e discriminações, o que causa efeitos em sua subjetividade. Dessa forma, adotam-se diferentes estratégias, como negar ou atenuar a sua ancestralidade, ou ainda assumi-la na luta antirracista.

O discurso racista tem a função de inferiorizar o outro, de modo a fixá-lo na posição de subalternidade. Um discurso que produz sofrimento físico e psíquico e modos de subjetivação que assujeitam e homogeneízam (Bento, 2012). As condutas discriminatórias relatadas referem-se a ofensas verbais e, em muitos momentos, as mulheres negras assumiram a experiência como um processo natural e intrínseco ao próprio sujeito: "o racismo começa com o próprio negro que se acha inferior e não sabe se valorizar, aí ele alisa os cabelos. O próprio negro se acha feio. O sonho de alguns negros é ser branco (Informação verbal, entrevista, Sarah, regime fechado).

Compreendemos que o conceito de raça está relacionado à forma como a pessoa vê a si mesmo e se posiciona nos espaços sociais dos quais faz parte, portanto, uma relação dialética entre sujeito e sociedade. Nessa direção, Silva (2004) afirma que as manifestações de preconceito, discriminação e estereótipos são marcas do racismo e do sexismo presentes no inconsciente coletivo que geram violência física e simbólica que incidem sobre as vítimas na construção de uma autoimagem que faz o sujeito desvalorizar a si mesmo, o que produz humilhação social e dificuldades nos relacionamentos, sobretudo, em mulheres negras.

Conseguimos identificar as marcas psíquicas do racismo no relato abaixo, proferido por uma mulher autodeclarada parda. A distorção da autoimagem se expressa na negação, consciente ou inconsciente, da negritude em direção ao embranquecimento, no qual, parda indica uma interiorização do padrão europeu. Além disso, cabe destacar que a participante da pesquisa asseverou se relacionar amorosamente somente com pessoas brancas, segundo ela, "Não é racismo, é uma questão de gosto e eu gosto de homem branco. Acho eles mais bonitos e atraentes" (Informação verbal, entrevista, Sarah, regime fechado).

A partir das teorias sobre o discurso da democracia racial e o racismo, discutimos o processo de formação do colorismo em uma sociedade que nega o racismo, sendo o colorismo um mecanismo empregado para segregar pessoas negras, portanto, elementos estruturantes da sociedade brasileira que impõem aos sujeitos os espaços que devem ocupar (Carneiro, 2011). Dessa maneira, seus desdobramentos são alvos de intensas discussões no Brasil, país que adotou o "mito da democracia racial" como prática de negação do racismo sob a justificativa de que a miscigenação corrigiu as desigualdades sociais e raciais, criando uma harmonia étnica e cultural. No entanto, Borges (2018) aponta que pessoas consideradas negras possuem mais dificuldade para se inserirem no mercado de trabalho, no qual ocupam postos que exigem baixa escolaridade e qualificação.

Nesse processo, identifica-se um aumento de pessoas autodeclaradas pardas, mas, de acordo com Carneiro (2011), o fato de a pessoa possuir um tom de pele mais claro, cabelos mais próximos do liso ou olhos claros, agrega elementos suficientes para fazer descendentes de negros se autoafirmarem como pardos ou brancos, o que atua como "carta de alforria do estigma da negritude" (Carneiro, 2011, p. 64). De acordo com a autora, negro de pele clara, desde a escravidão, é tido como um ideal humano que os demais negros devem atingir por meio de diferentes meios de embranquecimento.

Observa-se que apesar de o negro de pele clara ser considerado superior aos demais negros, no período colonial este era colocado no meio do caminho entre a casa grande e a senzala. Tornando-se, posteriormente, o símbolo e a cor da democracia racial brasileira, o que demarcou relações de poder entre os negros. Poder que caracteriza negros e brancos nas práticas de pequenos e grandes crimes.

Oliveira e Siqueira (2016) realizaram uma pesquisa nos principais portais de notícias online no Brasil e constataram que os crimes praticados possuem uma classificação gramatical diferenciada entre pardos, brancos e pretos. Os primeiros são classificados como jovens de classe média que praticaram crimes, estudantes para os brancos, e termos como traficantes e bandidos para sujeitos de pele preta que cometeram os mesmos tipos de delitos. Carneiro (2011) afirma que as mídias sociais aprisionam imagens fixas e estereotipadas de pessoas negras, enquanto preservam o privilégio dos racialmente hegemônicos. Sendo, portanto, umas das características do racismo à brasileira. Um racismo negado, porém, presente no discurso brasileiro em todas as esferas políticas.

No decorrer das reuniões as mulheres negras partilharam suas experiências com o grupo de forma que desconstruíram o mito da democracia racial que afirma "somos todos iguais".

É dolorido parar para pensar nas discriminações que a gente sofre na pele. Até para trabalhar o povo discrimina nossa cor. Nunca vi nenhuma pretinha trabalhando em loja, eu acho que é por causa da discriminação. A gente só vê preto na cadeia ou trabalhando de faxineira/camareira, enquanto as loiras de olhos azuis e cabelos lisos estão trabalhando nas lojas" (Informação verbal informal, Lilian, diário de campo).

Em discussão sobre beleza com mulheres negras, bell hooks (2005) confirma informações presentes no discurso das participantes de que o artifício do alisamento dos cabelos facilitava inserção no mercado de trabalho, principalmente, no momento de procurar um emprego, visto que cabelos lisos e/ou alisados aumentavam as chances de contratação. Ao se aprofundar na discussão, a autora constatou a relação entre cabelo crespo natural e inferioridade de beleza.

A imersão no campo nos revelou que o local de subalternidade ocupado pela mulher negra a silencia. Nesse caso, um silêncio construído pelas próprias mulheres a partir das diferenças étnicas e de classe social. Ou seja, apesar de todas as mulheres serem submetidas à condição de subalternidade, observamos que, na qualidade de subalternas, elas se organizam em níveis diferenciados, subjugando umas às outras.

O colorismo/pigmentocracia foi consagrado por Walker em 1982 (Francisco, 2018) para definir "um sistema de distinção social ou de classe baseado na cor da pele" (Francisco, 2018, p. 6). O colorismo é baseado na ideia de que o fenótipo europeu é superior, portanto, mais valorizado socialmente. O que tem implicações de cunho social, econômico e político, pois aqueles que possuem um tom de pele mais claro são frequente e estereotipicamente vistos a partir de uma percepção de competência e beleza, ao contrário das pessoas negras com peles escuras, geralmente vistas como feias e de menor valor (Harris, 2008). Dessa forma, o colorismo é um mecanismo que estrutura poder entre os negros mais claros e escuros, o que enfraquece o sentimento de solidariedade entre eles. Para Moore (2007) "É o fenótipo que serve de linha de demarcação entre os grupos raciais, e como ponto de referência em torno do qual se organizam as discriminações "raciais" (Moore, 2007, p, 11).

Segundo Bento (2012), a violência racial causa impactos negativos nas subjetividades das pessoas excluídas, o que se evidenciou nas falas de algumas das participantes ao denunciarem sofrer racismo em relação às colegas reclusas. "Já ouvi aqui dentro que sangue de negro é podre. Que preto fede, que preto não tem alma. Isso me doeu muito, me dói até hoje!" (Informação verbal, entrevista, Sarah, regime fechado). Constatarmos que a ofensa foi emitida por uma pessoa autodeclarada parda nos direciona a analisar as ponderações de Moore (2007) que afirma não existir racismo entre negros, pois estes não podem reinventar a história, sendo a discriminação um processo de absolvição da cultura hegemônica de maneira consciente e/ou inconsciente.

Fanon (2008) assevera que o branco dominador reforça seu próprio privilégio ao privilegiar o fenótipo branco e, em seguida, aqueles que se aproximam desse padrão. Nesse sentido, o cabelo alisado geralmente apresenta vantagens em relação aos cabelos crespos e a mulher negra que opta por resistir, decerto enfrenta obstáculos maiores para alcançar sucesso profissional e pessoal. O autor considera essa relação como uma imposição do colonizador versus tentativa de provação do colonizado, pois é fato que as pessoas brancas se consideram superiores aos negros. Mas o alisamento pode indicar que o negro almeja se igualar ao branco como meio de provar seu valor que lhe foi tirado ao ser submetido à escravidão sob o argumento de que os homens brancos eram padrões universais de beleza, inteligência e cultura. Isso influenciou o comportamento dos negros em alisar os cabelos, clarear suas peles, afinar seus narizes, na tentativa de se igualarem ao padrão imposto.

Por intermédio das reuniões grupais, o que era habitualmente silenciado, começa a surgir enquanto discurso de denúncia:

A gente desde criança já estamos acostumadas a sofrer com o racismo, às vezes a discriminação começa dentro de casa, depois vai para escola quando chama a gente de macaca, faz piadinhas do nosso cabelo. Eu faço chapinha no cabelo desde criança, depois fui para progressiva, alisantes. A gente se acostuma... Mas a gente sofre na pele" (Informação verbal informal, Sarah, anotação em diário de campo).

Santos (2000) afirma que desde a formação do Brasil como nação, a imagem do cabelo crespo natural é referenciada como aquela que se contrapõe ao cabelo liso, sendo assim, a valorização do cabelo liso em detrimento do cabelo crespo fez emergir inúmeros instrumentos com vistas a alisar os cabelos, como as escovas progressivas citada pela participante. Uma das técnicas faz referência ao "Cabelisador", que em seu slogan informava que alisava os cabelos crespos sem dor. Instrumento ainda utilizado nos dias atuais, conhecido como chapinhas e pranchas.

Entendemos que alisamentos dos cabelos fazem parte da construção de corpos negros, transformando-se em marcadores de gênero e raça. Portanto, são construções políticas e sociais que reafirmam hierarquias e disputas de poder, apesar de não serem validadas biologicamente. Nesse sentido, não se trata apenas de beleza ou cosmético, mas de movimentação política e social contra um padrão hegemônico vigente em nossa sociedade brasileira. Nossas intervenções psicossociais buscaram ouvir as vozes das mulheres negras de forma a fazer o caminho inverso e, aos poucos, a beleza negra foi acolhida como símbolo da resistência negra dentro de uma unidade apaqueana feminina.

Nessa ocasião, o cabelo crespo foi o símbolo da aceitação de seus traços originais, uma vez que tem um papel importante na relação da mulher com a vaidade, portanto, um fortalecedor da negritude e um dispositivo significativo na luta contra o racismo. Confrontamos nas intervenções o que é ser mulher negra na sociedade atual, de forma a agenciar outros modos de viver a vida, não apenas individual, como grupal. Nesse processo, o primeiro movimento foi romper o silêncio a partir de trocas de experiências de discriminação, submissão e resistência.

A fim de promover um conhecimento a respeito da importância do negro em nossa sociedade, refletiu-se a respeito dos papéis das mulheres negras nas telenovelas brasileiras. Neles é possível constatar que as mulheres negras de peles mais claras são apresentadas como dóceis e educadas, ao contrário das mulheres negras de peles retintas, apresentadas em trabalhos que exigem baixa escolaridade e são pouco valorizadas socialmente. As participantes relataram que as mulheres pardas se inserem mais facilmente no mercado de trabalho, em função de possuírem uma beleza mais próxima do padrão desejável na sociedade. Elas enfatizaram que o problema financeiro poderia ser resolvido através da beleza, pois tanto o comércio, quanto homens ricos, preferem as mulheres claras de cabelos lisos e nariz fininho.

O raciocínio acerca da beleza constitui-se como uma estratégia política que clama pela valorização da diversidade étnico- racial. Nesse sentido, percebe-se que o mito da democracia racial que circula no imaginário social da sociedade brasileira situa o corpo negro em posições marginalizadas e subjugadas materializando uma série de estigmas sociais e raciais. Lilian diz: "O negro nas novelas só serve para fazer papéis de escravo" (Informação verbal, entrevista, Sarah, regime fechado).

Sobre isso, fizeram uma reflexão a respeito da dicotomia SER versus TER:

Nós mesmos achamos que para ser alguém é preciso ter dinheiro, carro, coisas de luxo. Mas, quando a gente chega aqui dentro, percebemos que o ser é diferente de ter, hoje eu não tenho muita coisa, e ao mesmo tempo percebi que tenho tudo, pois damos valor depois que perde, e eu perdi o bem mais precioso, que é a minha liberdade e essa não tem dinheiro no mundo que pague. (Informação verbal informal, Lilian, anotação em diário de campo).

Ao falar em liberdade, refletiu-se a respeito do processo de libertação do povo negro, discursou-se sobre suas lutas e conquistas. Ao ponto que, ao final, as mulheres compartilharam da mesma fala ao dizer: "Eu tenho orgulho do meu cabelo crespo e de ser negra, pois sei que o negro construiu nossas riquezas e lutou muito para sobreviver" (Lilian, Kamyla e Sarah. informação verbal informal, anotação em diário de campo). Além disso, a fala que encerrou a atividade proferiu "somos todas iguais aos olhos de Deus, pois para ele não existe cor" (Informação verbal, entrevista, Sarah e Dandara, regime fechado).

Para as mulheres negras, romper com o assujeitamento implica a ativação de poderes, o que inclui o reconhecimento do pertencimento racial, sua valorização e o exercício pleno de sua cidadania. Isso significa sair da passividade, tornando-se protagonista da própria vida. "Agora sou empoderada, pois descobri meus poderes" (Informação verbal, entrevista, Sarah, regime fechado).

Segundo Spink e Menegon (2004), os relatos são dispositivos fundamentais na ressignificação das experiências de vida na produção de sentidos para as situações de injustiça. Por meio dos relatos, as mulheres puderam estabelecer estratégias de enfretamentos para as discriminações raciais, o que rompeu com a posição de assujeitamento e passividade. Estratégias que compreendeu ações individuais e coletivas. "A gente precisa resgatar as raízes que a gente tem, começando pelos cabelos" (Informação verbal, entrevista, Sarah, regime fechado).

Convém salientar que esta fala foi proferida no plural por uma mulher autodeclarada parda, o que nos direciona a compreender que as mulheres se solidarizaram e se aliaram às demandas das mulheres autodeclaradas pretas. Assim, o pessoal tornou-se político, visto que o pessoal se constituiu como dispositivo de politização e transformação social. Ao discutirem sobre a experiência de denúncia e enfretamento à discriminação racial, as mulheres questionaram o discurso dominante sobre padrão de beleza a partir de um discurso de resistência. Nesse sentido, as mulheres ironizaram o estereotipo que lhes atribui padrão de beleza dominante "Prenda seu preconceito, pois eu quero soltar meus cabelos" (Informação verbal, entrevista, Sarah, regime fechado).

As mulheres negras participantes do estudo relataram várias experiências de violência racial que causaram mal-estar físico, emocional e cultural. No entanto, dar-se conta da violência sofrida fez romper com o silencio em direção ao enfretamento e à denúncia. Nesse processo, os cabelos das mulheres negras são entendidos como marcadores pensados a partir de ideologias e não como fatores biológicos, uma vez que seus corpos são construídos por meio de discursos, práticas e normas sociais (Foucault, 1985).

Muitas vezes, recuperandas, por ter um tom de pele mais claro e a gente com tom de pele mais escuro, chama a gente de nego fedido, essas coisas. Ah! Mas pra mim não faz diferença nenhuma não, porque eu gosto de ser negra, porque eu sou linda, então pode falar à vontade que eu sou negra, sou mesmo, fedida eu sei que eu não sou... (Informação verbal, Sarah, entrevista, regime fechado).

Por intermédio dessa fala, constatamos que o movimento estético é político. Quando a participante se identifica e se percebe como mulher negra e linda, ela automaticamente apresenta uma postura política e começa a não aceitar o racismo como algo natural. No entanto, é importante destacar que essa mulher autodeclarada negra afirmou cotidianamente que seu cabelo "é ruim", portanto, precisa ser modificado mediante alisamento, seja com secador ou chapinha, ou produtos químicos para deixá-lo liso. Portanto, mais próximo do padrão europeu. Outra estratégia adotada é deixar o cabelo sempre preso, pois segundo ela, não gosta dele solto quando ele está natural. Diante das observações e entrevista, compreendemos que para ela o cabelo é motivo de vergonha e até mesmo de preconceitos e discriminações.

Com o intuito de atender à solicitação das participantes do estudo para trabalhar cabelos afros, convidamos algumas cabeleireiras especialistas em cabelos afro-étnicos para ministrarem uma oficina na instituição. Para tanto, buscou-se fazer um levantamento a respeito das mulheres que gostariam de participar. A demanda foi aumentando gradativamente até a véspera da oficina, e no final a adesão foi quase total, sendo aplicada em todos os regimes da instituição. Um elemento importante a ser avaliado é que grande maioria terminou a oficina com tranças afro em seus cabelos, sendo elas mulheres autodeclaradas brancas, pardas e negras.

Cabelo Meu! Se Você Não Fosse Meu, Eu Não Seria Tão Eu

O cabelo crespo é um elemento do corpo negro que indica o pertencimento étnico-racial de um grupo historicamente submetido ao racismo. O padrão de beleza universal compartilhado na sociedade brasileira é o europeu. Assim, os cabelos das mulheres negras materializam uma rede de conflitos raciais que são históricos. Nesse sentido, o cabelo crespo, socialmente inferiorizado, é símbolo de luta, resistência e ressignificação para a população negra (Gomes, 2012).

No regime escravista, dentre às várias formas de violência impingida sobre o corpo negro, tinha-se a raspagem do cabelo. Para o escravizado, esse ato tinha um significado singular de mutilação, pois o cabelo em muitas etnias africanas era considerado como uma marca de identidade e dignidade humana. Um significado que atravessou o tempo, ganhou novos sentidos ao longo dos anos e na atualidade são utilizados como elementos de poder que são constituídos culturalmente e constituem sujeitos, em especial, pessoas negras. Nesse processo, o cabelo crespo no Brasil é uma linguagem e, enquanto tal comunica e informa sobre as relações raciais na sociedade brasileira (Gomes, 2012).

Nesse contexto, as mulheres negras são historicamente colocadas em situação de inferioridade social, política e econômica. O cabelo e o sentido a ele atribuído podem encobrir o pertencimento étnico/racial, como também, podem representar um processo de reconhecimento das raízes africanas, assim como de resistência, reação e denúncia contra o racismo (Gomes, 2012).

Iremos apresentar relatos das mulheres negras reclusas na APAC a respeito dos cuidados e apresentação de seus cabelos desde a infância, nos quais emergem experiências atravessadas por episódios explícitos e sutis de racismo. No decorrer das observações, as mulheres negras apresentaram queixas relacionadas aos materiais de higiene pessoal, como shampoo e condicionador, sob a alegação de que cabelos crespos consumiam maior quantidade do produto, o que nem sempre era atendido pela direção, em razão da escassez de recursos materiais.

Uma das estratégias utilizadas pelas participantes refere-se ao uso de secador e chapinha disponibilizado pela instituição quinzenalmente, aos sábados, intitulado como "Dia da Beleza" no quadro de rotina da instituição. Segundo elas, o uso dessas mercadorias (chapinha/secador) prolongava a lavagem dos cabelos em até uma semana. Ao contrário dos cabelos crespos, que embaraçavam com mais facilidade, portanto, exigiam maiores quantidades de lavagens durante a semana. O discurso que se propaga para diferenciar os cabelos é o de que cabelo crespo é "ruim" e "duro", uma expressão racista que afeta sobremaneira a subjetividade e autoestima da mulher negra.

Segundo Gomes (2012, p. 3) "O cabelo do negro, visto como "ruim", é expressão do racismo e da desigualdade racial que recai sobre esse sujeito". O cabelo do negro como "ruim" e do branco como "bom" faz com que a mudança do cabelo signifique a tentativa do negro de sair do lugar de inferioridade ou da introjeção desse lugar. Assim, o cabelo como marca da estética negra é mais do que uma questão de vaidade, é identitária e um movimento estético-político.

É nesse contexto que identificamos o controle sobre os corpos das mulheres negras a partir de discursos racistas que produzem experiências violentas. Por sua vez, a decisão de assumir os cabelos naturais a partir de cuidados que incluem trançá-los e enfeitá-los com adereços que remetem à cultura negra foram demandas das mulheres negras custodiadas nesta unidade apaqueana, como um processo de autonomia e ressignificação de suas subjetividades.

Compreende-se que o uso dos cabelos naturalmente crespos inverte a lógica do branqueamento histórica e socialmente imposto, podendo ser as tranças uma técnica e/ou tecnologia que atua em direção a um movimento estético-político de afirmação da identidade negra. O uso de tranças (des) constrói marcadores de gênero, raça e classe. Portanto, tranças é uma estratégia de aceitação e resistência de uma estética culturalmente oprimida em toda história. Como dizia Foucault (1995), onde existem relações de poder, existem resistências.

De acordo com bell hooks (2005) as mulheres negras desde criança percebem seus cabelos como um inimigo, como uma parte do corpo que deve ser controlada. Uma imagem distorcida de si mesmo construída no próprio seio familiar. De acordo com Gomes (2012), as famílias negras e mestiças têm enorme dificuldade em cuidar dos cabelos crespos das filhas/filhos. Ao analisar os relatos das mulheres negras, identificamos experiências de sofrimento em relação aos próprios cabelos na infância, no âmbito familiar e escolar.

Quando eu era criança eu não gostava de pentear os cabelos porque doía. Sabe?! Minha mãe não tinha muita paciência e passava o pente com força. Aí, eu chorava muito. Eu gostava de quando ela fazia trança, pois além de ficar dias sem ter que pentear, ainda ficava bonito" (Informação verbal informal, Dandara, anotação em diário de campo).

"Quando eu era criança eu queria ter o cabelo igual da minha irmã, que é lisinho. Não queria ter cabelo ruim, pois na escola até chamavam a gente de macaca" (Informação verbal informal, Lilian, anotação em diário de campo).

Para Bento (2012), as experiências racistas vivenciadas por crianças negras a partir de seus cabelos produzem sofrimento e marcam profundamente as vivências das mulheres negras e sua relação com o próprio corpo. Ao realizarmos uma oficina psicossocial de tranças afro, identificamos que as participantes tocaram os cabelos umas das outras e desconstruíram, através do tato, o estereótipo de que cabelo crespo é ruim ou duro. Ao tocar os cabelos umas das outras, perceberam que todos os cabelos eram macios e, diante disso, se surpreenderam. "Meu cabelo não é ruim, meu cabelo é crespo e ele não é duro, pelo contrário é super macio" ((Informação verbal, entrevista, Sarah, regime fechado). Assim, repercutiu a ideia, junto às participantes, de que o cabelo crespo é belo e macio independente de alisamentos, e que existem diversas formas de cuidado como, por exemplo, o uso de tranças.

Ante o exposto, podemos dizer que houve empoderamento dessas mulheres por intermédio da valorização da estética negra, e a partir daí conseguiram ressignificar e enfrentar o racismo. Ribeiro (2018) afirma que o empoderamento carrega consigo um significado coletivo de luta pela equidade em relação às escolhas relacionadas aos seus corpos e sexualidade. Conforme a autora, o empoderamento acontece mediante uma perspectiva antirracista, antissexista e antielitista através de transformações sociais e individuais. Assim, destacamos a importância de espaços que valorizem a negritude de forma a modificar a maneira como as mulheres negras vivenciam as experiências a partir de seus cabelos.

 

Considerações Finais

Nesta pesquisa identificamos elementos que apontam para a necessidade de pensarmos a negação da beleza negra como elemento estruturante do campo social e constituição do sujeito e subjetividade brasileira, produzindo sofrimento psíquico na população negra. Ao lado disso, evidenciamos o autocuidado como ferramenta e estratégia de enfretamento às dores subjetivas produzidas pelo racismo. Nesse sentido, buscamos sublinhar a importância de políticas públicas que englobem a centralidade racial, social e de gênero na organização social e política da sociedade e na produção de subjetividades com alternativas, soluções e enfrentamento ao racismo estrutural.

Nossa história é marcada pelo silenciamento, mas também pelos gritos. Marcada pela opressão, como também pela rebeldia. De violência, mas também de união e mobilização. Feridas psíquicas e físicas abertas, mas também de cura. Nessa perspectiva, sublinhamos que embora o racismo nos coloque em posição de objeto, a história nos mostra que também ocupamos a posição de sujeitos.

Ao analisar os relatos das mulheres que cumprem pena privativa de liberdade, constata-se que o racismo é resultado da estrutura social desigual e o sistema prisional é um grande reflexo. Na medida em que o Estado legaliza a desigualdade, ele corrobora as irradiações do racismo estrutural.  Ao analisarmos os dados, constatamos que apenas somos iguais perante a lei, não se concretiza a aplicação do direito a uma vida digna, com pelo menos o essencial para sobreviver: saúde, educação, habitação, cuidados médicos e serviços sociais, não são garantidos para todas às pessoas. Algumas têm pouco ou nenhum acesso aos direitos civis e muito acesso ao sistema penal. O encarceramento é caracterizado pelo racismo histórico que persiste até os dias atuais.

O movimento feminista considera a organização de grupos de reflexão como um caminho para a construção de estratégias coletivas de resistências, o que certamente também se aplica ao racismo. Assim, o grupo se apresenta como uma perspectiva metodológica aberta à inovação que não se reduz a um método ou técnica de pesquisa. O processo grupal vivenciado permitiu problematizar as questões presentes entre as mulheres participantes e questionar aspectos da ideologia patriarcal, tendo como questão primordial combater a opressão que atingecada uma delas. A experiência trouxe reflexão e ação por meio da intervenção psicossocial. Compreender esta organização significou assumir as participantes do estudo como capazes de transformar suas próprias histórias.

Por fim, vivemos em uma sociedade estruturada e organizada pelo racismo onde se faz necessário refletir criticamente categorias analíticas como raça, gênero, classe e padrões de beleza. Destaca-se que a subjetividade das mulheres negras, ainda que oprimidas pelas estruturas racista, sexista e capitalista, constroem-se em contextos de resistência. Na atualidade, a circulação do discurso a respeito do corpo aparece principalmente ligado à estética, cujos padrões aproximam-se do europeu, evidenciando que o corpo "perfeito" é marcado por questões de raça/etnia, classe, entre outras categorias. Nesse sentido, evidencia-se a importância de se promover discursos contra hegemônicos que valorizam a raça negra, sua cultura e beleza.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Helaine Silva Borges - helaineborgesufsj@gmail.com

Recebido em: 26/04/2024
Aceito em: 24/09/2024

 

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) a partir da disponibilização de bolsa de mestrado.

Agradecimentos: Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa (CAPES), pela concessão da bolsa de estudos, às participantes e a APAC Feminina que tornaram possível a realização deste estudo.

 

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