Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e83770, doi:10.12957/epp.2025.83770
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE
Ato, Lógica e Sexuação: Considerações sobre a Política da Psicanálise e o Inconsciente
Act, Logic and Sexuation: Considerations on the Politics of Psychoanalysis and the Unconscious
Acto, Lógica y Sexuación: Consideraciones sobre la Política del Psicoanálisis y el Inconsciente
Paula Affonso de Oliveira a, Roseane Freitas Nicolau b
a Instituto Federal do Pará, Belém, PA, Brasil
b Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
O presente artigo procura retomar o aforismo lacaniano "o inconsciente é a política" a partir do enodamento entre os conceitos de inconsciente, política e ato, ao qual procuramos encadear um quarto elemento, a sexuação - e a consequente introdução de uma oposição de duas lógicas, a do todo-fálico e a do não-todo. Compreender a sexuação para além da via dos semblantes e da significação fálica, voltando-se para o furo e à impossibilidade de um dizer tudo sobre o sexo, é o que nos permite pensar a operação de redução lógica que produz o inconsciente em sua dimensão fundamental de indeterminação, apontando para a potência de uma lógica do não-todo que resiste mesmo a qualquer tentativa de fechamento imaginário, identitário ou mesmo ontológico do sujeito. A radicalidade da experiência psicanalítica reside, enfim, nessa dimensão de não realização ontológica, de recusa à completude que, ao operar com à abertura ao impossível, à indeterminação e à falta, promove rupturas na alienação significante inerente à política do Um.
Palavras-chave: sexuação, ato, lógica, psicanálise, política.
ABSTRACT
This article aims to revisit the lacanian aphorism "the unconscious is politics" based on the interlocution between unconscious, politics and act, to which we seek to link a fourth element, sexuation - and the consequent introduction of an opposition between two logics, the all-phallic and the not-all. Understanding sexuation beyond the semblances and the phallic signification, turning to the hole and the impossibility of saying everything about sex, is what allows us to think about the logical reduction that produces the unconscious in its fundamental dimension of indeterminacy, which points to the strength of a not-all logic that resists to any imaginary, identity-based or even ontological closure of the subject. The radicality of the psychoanalytic experience resides in this dimension of ontological non-realization, of refusal of completeness, which, when operating with openness to the impossible, to indeterminacy and to lack, promotes ruptures in the significant alienation inherent to the politics of the One.
Keywords: sexuation, act, logic, psychoanalysis, politics.
RESUMEN
Este artículo busca revisitar el aforismo lacaniano "el inconsciente es la política" desde el entrelazamiento entre los conceptos de inconsciente, política y acto, al que buscamos vincular un cuarto elemento, la sexuación - y la consiguiente introducción de una oposición de dos lógicas, el del todo-fálico y el del no-todo. Comprender la sexuación más allá de los semblantes y la significación fálica, recurriendo a lo hoyo y a la imposibilidad de decirlo todo sobre el sexo. Esto es lo que permite pensar en la operación de reducción lógica que produce el inconsciente en su dimensión fundamental de indeterminación, apuntando para la fuerza de una lógica del no-todo que resiste incluso cualquier intento de cierre imaginario, identitario o incluso ontológico del sujeto. La radicalidad de la experiencia psicoanalítica reside, finalmente, en esta dimensión de no realización ontológica, de rechazo de la plenitud que, al operar como una apertura a lo imposible, a la indeterminación y a la falta, promueve rupturas en la alienación significante inherente a la política del Uno.
Palabras clave: sexuación, acto, lógica, psicoanálisis, política.
O que começa com o fim de uma análise e o que desse fim diz do começo, é uma posição paradoxal que podemos ler no Seminário 15, no qual Lacan (1967-1968) dedica-se a conceituar o ato analítico, articulando palavra e corte como fundante de um acontecimento que instaura um vazio, uma falta que fisga o sujeito e movimenta-o no Real de sua estrutura, cujo efeito só pode ser mensurado a posteriori.
A indagação que põe em movimento a leitura do ato é descrita posteriormente por Flesler (2001, p. 43) como: "[…] há analista sem analisante, assim também como há analisante sem analista?". O ato articula, então, os dois lugares da análise, o do analista e do analisando. O bom neurótico, constata Lacan (1968-1969/2008a), é movido pela necessidade de saber, é incitado a procurá-lo no campo do Outro, no suposto saber do analista. E isso está presente no primeiro momento da análise, no qual o analista é alçado a essa posição. A própria associação livre é uma incitação para que o analisando fale, mesmo sem saber exatamente o que diz, porque, assim, coloca o Outro como aquele que sabe no horizonte. É o dizer besteiras, que Lacan desvela como o discurso próprio do inconsciente.
É a partir dessa"besteira"dita em análise, que Lacan (1967-1968) concebe o ato, primeiramente, como um efeito de linguagem. Um ato inaugural de um campo, que se organiza como um dizer, mas que somente pode ser entendido enquanto tal a posteriori; um ato que transfere "[…] algo que é considerado como essencial na ordem significante" (Lacan, 1967-1968, p. 78).
O ato analítico depende, portanto, do próprio analista, não ocorre no vazio, pelo contrário, só há ato porque há analista. O ato analítico precisa ser compreendido a partir do que Lacan nomeia o desejo do analista, que se instaura ao final de uma análise. Logo, ao mesmo tempo em que depende do analista, o instaura e autoriza uma análise. Lacan (1967-1968) descreveu essa relação de forma que:
O efeito de linguagem em questão se dá em dois estágios. Ele supõe a própria Psicanálise, precisamente ela, como efeito de linguagem. Em outros termos, ele só é definível ao mínimo, se incluir o ato psicanalítico como sendo definido pela realização da própria Psicanálise. Mostramos que é necessário aqui redobrar a divisão, ou seja, que a Psicanálise não poderia se instaurar sem um ato, sem o ato daquele que autoriza sua possibilidade, sem o ato do psicanalista, e que no interior desse ato da Psicanálise, inscreve-se a tarefa psicanalisante. (Lacan 1967-1968, p. 145)
O que começa com o fim de uma análise e o que desse fim diz algo do começo. É nessa relação, um tanto paradoxal, que o ato analítico se instaura, demarcando a presença do analista por sua própria queda como sujeito suposto saber; ato que apenas poderá se confirmar como tal a partir de seus efeitos: "[…] em outros termos, para o analista, tal como o vemos agora surgir ao nível de seu ato, já há saber do de-ser do sujeito suposto saber, enquanto ele é a posição de partida necessária de toda essa lógica" (Lacan, 1967-1968, p. 103).
Só há ato então na presença do analista, mas só se torna analista a partir de um ato. É tomar o fim pelo começo. E é seguindo esse movimento aparentemente circular, mas que não se fecha, que produz descontinuidade, ruptura e subversão, que propomos retomar o famoso aforismo lacaniano o inconsciente é a política, proferido no Seminário 14, A lógica do fantasma, à luz da sexuação e da potência de indeterminação presente na lógica do não-todo:
E notadamente esta [significação], por exemplo que nos mostraria sem dúvida, mas não é hoje que darei nessa direção mesmo os primeiros passos - que se Freud escreveu em algum lugar que "a anatomia é o destino" há aí talvez um momento onde, quando se voltar a uma sã percepção do que Freud nos descobriu, se dirá não digo mesmo "política é o inconsciente", mas simplesmente, o inconsciente é a política! Quero dizer que o que liga os homens entre eles, o que lhes opõe, é precisamente a motivação do que tentamos nesse instante articular na lógica. (Lacan, 1966-1967/2008b, p. 350, grifo do autor)
Lacan (1966-1967/2008b) afirmou o inconsciente como a política, articulando inconsciente, política e lógica. Uma tríade conceitual a qual procuramos, neste artigo, encadear um quarto elemento: a sexuação, naquilo em que esta, tal como o ato, opera uma redução lógica que produz inconsciente.
Qual Anatomia é o Destino?
Se podemos introduzir a lógica da não relação como um elemento a mais aos três propostos por Lacan, é pela própria referência que seu seminário faz ao texto freudiano A dissolução do complexo de Édipo (Freud, 1924/2011), ao referir-se à frase a anatomia é o destino. Ao articular o complexo de castração e os caminhos do drama edipiano em meninos e meninas, Freud (1924/2011) afirmou a anatomia como destino, isto é, como a diferença anatômica teria efeitos em uma economia psíquica. De forma isolada, a frase parece impor um limite anatômico intransponível ao sujeito, a diferença anatômica seria uma diferença natural que marca homens e mulheres de maneira indelével.
A recepção das teses freudianas sobre o feminino e o destaque dado à anatomia, com a inveja do pênis, e à biologia, com a maternidade como o caminho "normal" da feminilidade, levaram diversas teóricas feministas - das quais podemos destacar Betty Friedan (1971), Nancy Chodorow (1990) e Teresa Brennan (1997) - a tecerem críticas à produção freudiana, levando a toda uma discussão acerca do falo na psicanálise, que foi lido sobre diversas chaves, sem nunca perder o caráter de rochedo fundamental e quiçá intransponível para a articulação da psicanálise com os feminismos e as teorias de gênero: a ideia que o falo irremediavelmente liga-se ao pênis, e consequentemente, os destinos psíquicos da mulher sofrem sempre com o peso da diferença anatômica.
No entanto, essa afirmação parece deslocada quando levamos em consideração a produção freudiana acerca da sexualidade, nas quais aponta sempre para o pulsional em detrimento do instinto, seja pela plasticidade da pulsão ou pela descolonização da sexualidade do campo da biologia.
Freud (1923/2018), ao colocar a primazia fálica como organizadora da sexualidade, não estava abordando tão somente uma distinção anatômica ou Imaginária - apesar de esta distinção ter seu devido peso na teorização -, mas uma estruturação inconsciente que marca o sujeito lá onde o sexo e o gênero não existem: o sexual. Com o retorno a Freud proposto por Lacan e o acréscimo de outros referenciais teóricos a este último, como a linguística estrutural e a lógica, a questão sexuada recebeu novos contornos, permitindo uma leitura que rompe com qualquer apoio biológico que ainda poderia ser interpretado na Psicanálise.
É certo que, ao abordamos a diferença sexual, um substrato biológico parece manter-se presente, como se ela repousasse, em última instância, sob um binarismo sexual ou uma primazia anatômica que determinaria a correspondência entre o biológico e o psíquico. Seja pela leitura freudiana da diferença anatômica produzindo consequências psíquicas nas mulheres, seja pela dificuldade de desatrelar o falo do pênis, o inconsciente estruturado pela diferença sexual parece sempre ancorado em um rochedo biológico.
Enquanto a diferença sexual permanece, entrementes, carregada de conotação anatômica, a sexuação surge como conceito disruptivo justamente por propor uma divisão dos falantes a partir de uma lógica ancorada na linguagem. No entanto, é preciso afirmar, sexo biológico e sexuação não se equivalem em Psicanálise, posto que pelo primeiro termo entendem-se fatores genéticos e hormonais que não se alinham com a anatomia, enquanto o segundo reflete a posição do sujeito em relação aos dois modos de gozo.
Se há uma concepção de sexo em Psicanálise, esta não se confunde com o genital ou biológico, pois o sexo apenas comparece como efeito de uma impossibilidade discursiva (Goldenberg, 2017). Há um Real do sexo que não alcançamos, da ordem do impossível, que não se reduz a um significado, e o que chamamos de sexo anatômico ou biológico é somente uma inscrição possível diante desse indizível.
É com Lacan (1971-1972/2012), afinal, que poderemos retornar a Freud e ler essa frase a partir de outro referencial, no qual a anatomia perpassaria necessariamente pelo campo do Outro. Ao tratar dessa constituição do sujeito como sexuado, Lacan mostrou indícios de que sua força não seria predeterminada pela biologia, ao afirmar que as crianças não se distinguem como homens e mulheres, mas são distinguidas pelos adultos: "Dentro da lógica, o importante é que eles se distinguem. Eu não o negava, mas isso é um deslizamento. O que eu não negava, justamente, não é isso. Nós os distinguimos, não são eles que se distinguem" (Lacan, 1971-1972/2012, p. 16, grifo do autor).
Isso não significa, necessariamente, que o componente biológico chega a ser ignorado. A pequena diferença existe, e é uma diferença destacada desde cedo no órgão, contudo, o órgão é significante: "[...] um órgão só é instrumento por meio disto em que todo instrumento se baseia: é que ele é um significante" (Lacan, 1971-1972/2012, p. 17). Tudo o que temos do biológico, portanto, é atravessado pelo significante. Não temos acesso à composição cromossômica ou a qualquer outro demarcador puramente biológico na distinção entre os sexos, mas, sim, a percepção de um corpo próprio marcado pela linguagem: "a-natomia " (Lacan, 1972-1973/2010, p. 189, grifo do autor).
Empregar o termo anatomia em detrimento da biologia é buscar desvencilhar-se das questões bioquímicas e genéticas, sobre a qual uma leitura da diferença sexual pode repousar para enfatizar uma leitura que pensa o corpo marcado pela linguagem, um corpo constituído pela erogeneização dos primeiros cuidados e pelas fantasias parentais. Se a anatomia tem um peso para a psicanálise é porque ela diz de um corpo já atravessado pelo significante, um corpo já recortado pelo objeto a.
A sexuação insere uma complexidade a mais nesta equação ao apontar para o furo no significante que constitui o sexual apoiado na função da castração. Como sabemos, ambos os sexos respondem de diferentes formas à função fálica, formulada por Lacan (1971-1972/2012) como ɸx, na qual o ɸ diz respeito à castração e o x é o significante que designa o sujeito sexuado:
Não se trata de marcar o significante-homem como distinto do significante-mulher e de chamar um de x e o outro de y, porque a questão é justamente essa - é como nos distinguimos. É por essa razão que coloco o x no lugar do furo que faço no significante. Coloco o x aí como variável aparente. O que quer dizer que, toda vez que eu lidar com esse significante sexual, isto é, com esse algo que se relaciona com o gozo, estarei lidando com ɸx (Lacan, 1971-1972/2012, p. 31, grifo do autor).
Não há ɸx ou ɸy, como diz Lacan, ou seja, a função é sempre fálica e não há um significante para cada sexo. Nos termos freudianos, para a bipartição feminino e masculino, atingida na genitalidade, isso implicaria em uma não superação da polaridade anterior entre masculino e castrado e mais, implicaria no fato de que mesmo o masculino continua lidando com a castração após a passagem pela fase genital. Logo, o que pautará a questão do sexo não é um corpo real, se é que podemos alcançá-lo, mas a relação com a função fálica, como operamos com a castração simbólica.
Os corpos são apenas suportes nos quais os significantes homem e mulher se apoiam e o "[…] significante como tal não se refere a nada" (Lacan, 1972-1973/2008c, p. 36), a não ser em relação a outro significante. É, portanto, com o Φ e não com o outro que os parceiros se relacionam na função sexual. Estamos aqui no campo do gozo fálico, o que faz obstáculo à completude da relação.
Sabemos que, em nenhum momento, Lacan abandonou a diferença sexual, propondo sua queda ou destituição e muito menos a substitui pelo termo sexuação. Não podemos pensar os conceitos passando por uma espécie de evolução, posto que não é disso, afinal, que se trata. No entanto, fazer esse deslizamento entre a anatomia é o destino e não há relação sexual, é, afinal, atestar o tratamento dado por Lacan em seu ensino para a castração e os (des)caminhos edípicos.
O que procuramos explicitar nessa passagem é justamente uma virada lógica. A nomenclatura da diferença sexual tornou-se bastante desgastada, inclusive, pela discussão feminista francesa. O termo diferença sexual parece apelar ainda para uma metáfora biológica, mesmo que não o seja realmente, tão criticada pelas teóricas de gênero e da desconstrução social.
A retomada da diferença sexual por um viés lógico permitiu a Lacan, portanto, construir as suas fórmulas da sexuação não somente pelo viés Simbólico e/ou Imaginário, mas considerando o registro do Real. O Real não se presta a significação, não pode ser enodado pela cadeia significante, para abordá-lo, portanto, mesmo que sempre fugidiamente, é necessário um recurso lógico.
A escrita lógica traz à cena, propriamente, a ruptura introduzida pelo Real, possibilitando a Lacan articular uma verdade sobre o sexual: o próprio inconsciente possui uma outra lógica que não a clássica, calcada no princípio da não-contradição. Em Esboço de psicanálise, Freud (1940/1996, p. 182) opõe o inconsciente à lógica clássica, classificando-o de reino do ilógico: "As regras que regem a lógica não têm peso no inconsciente; ele poderia ser chamado de Reino do Ilógico". No entanto, a empreitada de Lacan (1966-1967/2008b) pela lógica permite-nos situar melhor esta frase, compreendendo que o inconsciente é estruturado logicamente, mas esta é uma lógica outra que não a Aristotélica, ou duas, na verdade, levando em consideração as tábuas da sexuação: uma lógica fálica e uma lógica do não-todo. É uma lógica da não relação, que atesta a desrazão entre os sexos, o furo e a impossibilidade de completude.
0 + 1 Não Fazem 2: O Problema Lógico da Sexuação
É com os conceitos advindos da lógica que Lacan (1972-1973/2008c) articulou as fórmulas centrais à tábua da sexuação, e é a partir deste recurso que podemos tecer algumas considerações sobre a última sentença da citação: "Quero dizer que o que liga os homens entre eles, o que lhes opõe, é precisamente a motivação do que tentamos nesse instante articular na lógica" (Lacan, 1966-1967/2008b, p. 350).
Articular na lógica o que liga os homens e o que lhes opõe, o inconsciente e, consequentemente, a política, também pode levar a uma leitura das fórmulas da sexuação. A sexuação é indissociável de uma leitura lógica, afastando as posições masculina e feminina da dimensão de semblante para entendê-las a partir de dois modos de gozo, o fálico e o não-todo, dando ênfase aos dois regimes de existência e inexistência que os fundam.
O lado masculino é fundado pela exceção que cria a regra, pois é na existência de ao menos um que não é castrado que os homens formam conjunto. Dessa maneira, o masculino forma conjunto fechado, submetendo-se aos princípios lógicos da identidade 1 e passando a ser regido pelo Um da repetição, da completude e do sentido. Já o lado feminino surge de uma inexistência, pois não há uma que não seja castrada, logo o conjunto das mulheres não se funda tal qual o masculino; diz-se que as mulheres se constituem no uma a uma, como não-toda.
Lacan (1972-1973/2008c) deu especial atenção ao estatuto do ao menos um e ao retomar a lógica aristotélica clássica e a lógica fregeana em seus seminários, destacou a presença de duas dimensões do Um, o um da repetição, da mesmidade, e o um da diferença. No entanto não é possível pensar o Um da repetição desvinculado do Um da diferença, o que é atestado pela própria constituição da cadeia significante: no interior de cada novo elemento da cadeia não temos somente a repetição de significantes que formam um conjunto (uma sentença, por exemplo), mas também há a presença de um vazio, uma diferença que se imiscui em cada novo elemento. Um conjunto, portanto, não apenas se funda a partir da repetição, como cada repetição introduz novamente um furo, permitindo nomear a partir da diferença.
Por isso, para termos o 1 é preciso primeiramente abordarmos o 0. O zero possui um caráter distinto, é não idêntico a si mesmo porque sobre sua extensão nenhum objeto recai (Frege, 1884/1989). O zero é, portanto, o conjunto vazio (Ø), um conceito não submetido à relação de igualdade (0=0), marca de uma inexistência passível de ser inscrita. O zero não fica simplesmente fora da lógica como também não fica fora da linguagem. Da feita que nomeio esse vazio faço dele uma inscrição, um conceito. A inscrição dessa inexistência produz uma escritura, visto que é a partir desse vazio que uma representação pode surgir (Corrêa, 2003).
É no vazio que é nada, mas que inscreve algo como uma não existência que o sujeito pode advir. O conceito de não idêntico a si mesmo fere o princípio da identidade tão caro à lógica clássica e fundamental para o próprio pensamento, traçando um paralelo entre a lógica e a Psicanálise, pois, como sabemos, o sujeito do inconsciente não obedece necessariamente aos princípios lógicos.
Segundo Corrêa (2003), Frege, Cantor e mesmo Saussure pensaram esse conceito de não identidade respectivamente pelo zero, conjunto vazio e o próprio significante, mas o sujeito também é contrário à identidade: "[…] o sujeito contraria, assim, o princípio fundamental da razão sem deixar, no entanto, de pensar, se bem que se excluindo de seu próprio pensamento" (Corrêa, 2003, p. 159). O zero, ao fundar e comparecer sempre apagado em toda série de números inteiros naturais, tem um status similar ao sujeito, que emerge nas formações do inconsciente para, logo em seguida, esvanecer nos processos secundários.
Ao contrariar o princípio da identidade, o conjunto vazio também introduz a questão da negação e da diferença e torna-se fundamental para pensar o Um, pois antes do zero, teríamos somente o Um da completude e da mesmidade, no qual nenhum outro seria possível, apenas o mesmo. Com o conjunto vazio, podemos negar este Um, fundando-o no vazio que se repete em cada extensão de seu conjunto. Essa negação permite o surgimento da alteridade, que se possa nomear a partir da diferença: "O nomeável só pode surgir, só pode aparecer a partir da negação" (Corrêa, 2003, p. 50). Logo, o Ø é necessário para operarmos com o 1. Na série de números inteiros naturais, temos sempre que considerar esse zero ocupante de um lugar, um zero que está inscrito, mas não se conta. Por isso, o 1 pode ser representado por n + 1 = 1 e o dois por (n + 1) + 1= 2 e assim sucessivamente, com o zero, representado aqui pelo n, elemento que se repete em toda série.
No campo da relação sexual, o conjunto vazio presta-se a demarcar o registro do Real, aquilo que não cessa de não se inscrever, que persiste como pura marca distintiva, ao qual somente temos acesso pelo 1, pois o Um, marca do Simbólico, é a extensão e inscrição deste vazio que permitirá bordejar e nomear a ex-istência do Real (Corrêa, 2001). Temos, portanto, uma dimensão do sujeito irredutível à ordem simbólica, que não se esgota no dito da cadeia significante. Dimensão de limite mesmo da representação e que aponta para o campo do Real.
Mas há, nesse ponto, a introdução de um caráter paradoxal do Um em Psicanálise, pois é tanto a ordem significante pela qual toda a cadeia se constitui como o que, retroativamente, a instaura pela sua falta. Temos, portanto, suas duas dimensões: o Um da repetição (Autômaton), do automatismo inerente à própria estrutura de funcionamento da cadeia significante e o Um (Tiquê) abordado no Seminário 20, esse Um, que comporta o vazio, sob o qual repousa a diferença:
O Um de que se trata no S1, aquele que o sujeito produz, ponto ideal, digamos, na análise, é, ao contrário do que se trata na repetição, o Um como Um só [Um seu]. É o Um na medida em que, seja qual for a diferença existente, sejam quais forem todas as diferenças que existem e todas as quais se equivalem, existe apenas uma: é a diferença (Lacan, 1971-1972/2012, p. 159, grifo do autor).
Disso decorre que um conjunto de elementos encontra sempre seu limite, um umbigo que é pura impossibilidade, "[…] mesmidade da diferença pura", como descreve Cardoso (2010, p. 138, grifo do autor), ou êxtimo do conjunto. É uma contradição lógica que sustenta a dupla proposição em torno do Um, mesmo e diferente, repetição e vazio, e que também é afirmada como contradição interna da estrutura simbólica:
Dito de outra maneira, o único condicionante logicamente pertinente é a própria ausência de fundamento, e a entidade simbólica julgada por Lacan capaz de responder a este critério lógico-fundamental é precisamente a contradição lógica. É nesse sentido que, para Lacan, o fundamento da ordem do significante somente pode ser uma contradição interna à ordem mesmo da determinação simbólica (Cardoso, 2010, p. 138).
No caso do conjunto dos homens, a contradição interna vem pela via da negação particular, do Há um que diz não, isto é, Há um que marca a distinção, a diferença que permitirá categorizar os elementos do conjunto a partir de um atributo que o designa, fecha e completa - nesse caso, a castração. É por haver essa exceção que faz limite que o conjunto será regido pelo Um da repetição e do sentido unificante de uma classe, por isso diremos que todos os homens são castrados. É importante destacar que este Há um formalizado por Lacan (1971-1972/2012), para abordar a sexuação, não parte de uma experiência concreta ou do indivíduo, ele o recolhe do campo mítico aqui apresentado como um juízo de existência, por isso o recurso a Totem e tabu e ao pai da horda.
É no campo lógico que este Um demarca uma existência, o que não deixa de ter implicações para o sujeito. É dessa forma que o masculino se paratodiza, submete-se aos princípios lógicos da identidade e passa a ser regido pelo uno, pela repetição, completude e pelo sentido, suportado por um universal.
Já o zero, bem como o Real, coloca em xeque o princípio de identidade, condição da universalidade. No lado feminino, não temos esse recurso à exceção que faz a regra, Não há um que não, por conseguinte, não há universalidade possível, as mulheres se constituem uma a uma, por isso, respondem diferente ao furo, a borda e ao insubmisso que não cessa de não se inscrever. Essa fenda entre os dois modos de não inscrição da relação impele o sujeito, move-o, enquanto persiste como impossível, fazendo limite ao encontro: "[…] e é isso exatamente que a linguagem vai revelar, é que entre o eu e o outro existe um buraco. A alteridade não é outra coisa senão isso: a impossibilidade de dois fazerem um" (Corrêa, 2003, p. 54).
É na tentativa de tamponar este buraco que o significante fálico emerge como símbolo da castração. É esse significante que irá operar um corte entre o masculino e o feminino, corte que produz de um lado um conjunto fechado (masculino) e do outro um conjunto aberto (feminino) (Corrêa, 2003). Nunca temos, portanto, a despeito de uma crítica ao binarismo da Psicanálise, a ascensão do dois, temos sempre a dissimetria instaurada pelo corte - em que pesem as críticas ao que significa colocar o feminino como conjunto aberto, singular.
Aqui Lacan (1971-1972/2012) é categórico ao afirmar que o que se articula do Um é exatamente isto, que ele não produz dois: "Para dizer isso, ele só pode dizer, ou bem há - e, como eu digo, Há-um -, ou bem não dois, o que se interpreta imediatamente por nós: não existe relação sexual. Já está, portanto, como vocês podem ver, ao alcance da nossa mão" (Lacan, 1971-1972/2012, p. 177, grifo do autor). Decorre disto a construção lacaniana que interpela essa noção de 1 + 1 = 2 ao longo do Seminário 19, não há dois no campo sexual, porque o que se formula da sexuação é o 0 e o 1, entre o feminino e o masculino se imiscui o gozo, que impede a relação e qualquer recurso a completude do dois:
A pretexto de o corpo, evidentemente, ser uma das formas do Um, de se manter unido e ser, salvo acidente, um indivíduo, o Um é promovido por Freud. Isso põe em questão a díade de Eros e Tânatos formulada por ele. Se essa díade não fosse sustentada por outra figura, que é precisamente aquela em que fracasse a relação sexual, isto é, a do Um e do Não-um, ou seja, zero, é difícil dizer que função poderia ter esse par espantoso (Lacan, 1971-1972/2012, p. 122, grifo do autor).
Ao situar a sexuação entre o Há um e o não dois, Lacan (1971-1972/2012) recusa tanto a complementariedade entre os sexos, o binarismo, quanto a multiplicidade. A diferença sexual não é ontológica. O efeito disruptivo do Real indaga o que Zupančič (2019) descreveu como uma ontologia performativa de gênero, isto é, uma teoria baseada na noção de que o gesto performativo, reiterado ao longo do tempo, forja o gênero como se fosse um elemento natural, mesmo não sendo. O Real aponta para um fora-de-ser, o impasse e a contradição inerente ao ser que não permite seu fechamento.
O sujeito, portanto, também é marca de uma inexistência passível de ser inscrita. E é pelo lado feminino da sexuação, aproximado do conjunto vazio, que se pode observar este devir do furo, que questiona a identidade e a universalidade. Tanto que, não há universalidade do lado feminino, apenas o uma a uma. Diante do furo, da borda e do insubmisso, que não cessa de não se inscrever, temos, apenas, a relação contingente com o significante fálico, incapaz de recobrir de sentido a falta.
Há um furo entre o sujeito e o Outro, entre o eu e o outro. É por haver esses dois modos de se relacionar com o gozo, por nos posicionarmos do lado masculino e/ou feminino - afinal, o feminino comparece mais como experiência de indeterminação do que como uma posição estável para o sujeito -, que a relação falha. A não inscrição da relação faz limite ao encontro. E é na tentativa de recobrir este furo que o significante fálico emerge como símbolo da castração. É pela não relação sexual que não poderemos atribuir à Psicanálise a manutenção de um binarismo, não temos dois porque, entre mim e o outro, há o furo que institui um sexo e o Outro sexo.
O que os seminários lacanianos aqui abordados parecem, portanto, estabelecer é uma leitura da passagem da lógica da não-contradição para a lógica da não-relação. Na primeira, a univocidade de sentido; na segunda, o equívoco e a significação possível (Cassin, 2013). É o Real, a inexistência, o conjunto vazio - sendo possível pensar alguns nomes para esse furo - que permitem também à Psicanálise pensar em uma desontologização do sujeito. O próprio inconsciente emerge, desse modo, enquanto o que faz limite ao ser. O Real, enfim, resiste à definição e à delimitação.
Ato, Sexuação e Política
A partir da sexuação podemos retomar a afirmação do inconsciente como a política. Se a política possui, como afirmou Lacan (1969-1970/1992), uma relação imanente com o saber proposto como total - concepção imaginária de um saber completo que pode dar conta de uma questão -, como o inconsciente pode ser a política? É preciso diferenciar, para compreender essa relação, a política do Um da política da Psicanálise. A primeira é calcada na alienação a um significante mestre, que busca apagar os efeitos do inconsciente, individualizando o sujeito e produzindo cola entre eles.
Ainda assim, o inconsciente ex-siste e insiste, não permite recobrimento de sentido ou pretensão ontológica. Temos de apostar, então, em outra política que não a do Um: uma política do sintoma, como dirá Izcovich e Oliveira (2018), que atua interpelando o sujeito ali onde ele não se crê, mas se mostra, nos atos falhos, sintomas e chistes - uma política pautada pela ética do desejo.
É a política da falta-a-ser, instituída pelo analista quando este recusa, em análise, a posição de sujeito ou de modelo para fazer semblante de objeto a. Em A direção do tratamento, Lacan (1958/1998) asseverou não ser possível dirigir o sujeito em seu tratamento, pelo contrário, cabe ao analista colocar-se enquanto falta-a-ser para o analisando, permitindo que o sujeito estruture seu desejo, isso porque o inconsciente resiste à direção.
Isto é, uma política pautada pelo discurso do analista, do qual o ato pode advir. O que caracteriza o ato é uma intervenção no significante: o corte que provoca uma redução lógica, suspendendo tudo o que foi estruturado no âmbito da análise. Dessa suspensão, é possível extrair a fantasia fundamental que enlaça o sujeito e seu gozo e operá-la não mais no campo Imaginário, mas como produção significante. Por isso, do ato analítico, nada podemos formular em termos de seu conteúdo, ele será tão variável quanto uma fala em análise. É, afinal, pela sua estrutura e seus efeitos que podemos afirmar que determinado ato pode ser caracterizado como tal.
O ato analítico, então, evidencia o dito, fazendo borda com o significante. O sujeito, ao manifestar um dito em análise, não pode desdizê-lo, como ressaltam Zacharias e Becker (2004), resta apenas lidar com suas consequências. É a partir do dito que o sujeito inconsciente se faz presente pela sua afânise e é sobre esse dito que o analista atua, produzindo no só depois um efeito de sujeito.
O ato possibilita a suspensão da cadeia significante, da fantasia e do próprio sujeito, promovendo neste uma ruptura de sua ordenação simbólica - este é seu efeito de sujeito. Portanto, o ato não pode advir do sujeito, mas do analista como suporte de a:
De fato, Lacan acompanha rigorosamente a ideia de que para que o ato analítico seja a marca da experiência de ruptura do sujeito com as coordenadas simbólicas que o determinam, mesmo que através de sua própria escolha/resposta singular na fantasia, este ato não pode ter como agente este mesmo sujeito, pois o que pode se esperar do sujeito estará sempre no horizonte da repetição desta sua resposta fantasmática (Torres, 2013, pp. 33-34).
Entretanto, o analista não se torna o a para o outro, pois a análise não é uma relação de um ao outro, mas do outro ao Outro. Ao analista restará assumir a posição de semblante de a. Semblante porque a posição do analista não é de uma substância, nem é substancializável, é des-ser, avesso do ser: O semblante de a é "[…] fazer de conta, no analista, que ele motiva a vinda do desejo do paciente" (Amigo, 2001, p. 80).
Essa posição advém de uma mudança ocorrida no objeto a durante a análise, que passa de "[…] condição de dejeto gozado", de resíduo gozado pelo Outro, para causa da cisão do sujeito - uma causa vazia, não ontológica (Amigo, 2001, p. 80). Por isso, o analista comparece na análise com a suspensão de seu próprio gozo, fazendo semblante de a como causa vazia da divisão. É dessa forma que convoca o sujeito ao desejo.
Um ato bem-sucedido, portanto, desvela a verdadeira função do Outro como "[…] envoltório de a, quer dizer, cobertura do vazio" (Amigo, 2001, p. 81). O Outro também é falta, é não-todo, por consequência, os significantes dele encadeados apenas recobrem o furo do sujeito. Desta feita, o que se nomeia de transferência nada mais é do que esse sujeito suposto saber que inicia a análise e deve cair para ceder lugar a uma verdade. Ao final de uma análise, o analisando pode, enfim, fazer também semblante de a.
Em consequência disso, o ato somente pode ser considerado como tal a posteriori, o seu fim determinará se ele existiu ou não, a despeito das intenções do analista, é a "[…] mínima utilidade" a que Lacan (1968-1969/2008, p. 336) refere-se. É só ao incitar o desejo de saber no analisando, pôr em movimento essa estrutura que parte de um corte para a produção de uma nova cadeia, de uma nova metáfora, que podemos testemunhar pelo fim seu início e caracterizá-lo enquanto tal.
Ao permitir a suspensão da alienação ao significante mestre, o ato analítico modifica sua função: o S1 não é mais, como no discurso do mestre, o significante que domina, mas o significante unário tecido no interior de uma análise. O ato permite a assunção de um significante mestre ao estilo do Real, vazio de sentido, como afirma Bousseyroux (2012, p. 107): "[…] um S1 que, por estar separado pela barreira do gozo do saber em posição de verdade, não seja do estilo do Pai e de seu semblante, mas do estilo do real e de seu sentido deixado em branco".
No ato não há Outro nem há sujeito. O que comparece não é nem o significante, nem o sujeito, mas a sua divisão, a sua causa (Soler, 2015). O ato analítico acontece no a posteriori em que o sujeito pode advir. Depende do sujeito suposto saber e de sua destituição, sustentado pelo analista fazendo semblante de a. O ato, tal qual a sexuação, é uma operação de redução lógica.
O que o ato promove é uma suspensão do sujeito e a queda da cadeia significante e se este permite articular algo da política da psicanálise é justamente ao apontar para o lugar em que ela toma o sujeito em sua singularidade e o enodamento possível de um Real que não faz Um.
Este corte introduz uma dimensão de não-sentido, um campo contraditório em que não há afirmação, tampouco negação de sentido, como afirma Badiou (2013):
Mais precisamente, tudo se baseia na asserção segundo a qual a Psicanálise, na sua experiência do sexo, do ab-sexo, encontra um real tal que desloca os efeitos de sentido, a ponto de poder garantir que existe um registro do sentido que não é nem a afirmação do sentido nem sua negação. Supõe que a experiência analítica abra um espaço entre sentido e sem sentido, necessário para que possa se cristalizar o ato analítico (Badiou, 2013, p. 70).
Se o ato falho, como afirma Côrrea (2001), é o êxito do discurso, ele é um desvio da linguagem necessário para um bem-dizer. O ato analítico seria o êxito da subversão do sujeito, de uma mudança nos significantes mestres que teria efeitos não apenas em uma dinâmica libidinal, mas em uma economia política.
É por essa via que compreendemos o inconsciente como a política, visto que, ao operar com a abertura ao impossível, a contradição e a falta promovem rupturas na alienação significante inerente à política do Um. O discurso do analista, movido por sua política e atestado em ato, é o que coloca, enfim, o Real em cena, ao situar, no lugar de agente o objeto a, convocando o sujeito em sua própria cisão. Trazer o Real ao discurso é também convocar o sujeito a fazer nó com o impossível.
A radicalidade da experiência psicanalítica reside nessa dimensão de não realização ontológica, de recusa ao fechamento e à completude, que aparece não exclusivamente nos sujeitos e na clínica, mas também pode ser transposta para seus conceitos, textos e seminários, pois, como ressaltamos, o tratamento do Real que se imiscui, que impede a completude e impõe o furo, é pela lógica. O Real não se transmite pelo sentido ou pela significação, ele escapa.
E é no discurso do analista que situamos a possibilidade de reencontrar a verdade do sujeito, pois o a como agente do discurso situa o Real, aponta tanto para a falta no próprio sujeito quanto para a falta de significante no campo do Outro, incapaz de responder à sua demanda. Não há nenhuma promessa de completude, pelo contrário, em seu lugar, há a falta-a-ser, fazer semblante de a é o que estrutura a política da Psicanálise.
Aqui a lógica é a referência fundamental porque atesta a falência de um sujeito suposto saber, que nada sabe, nem se reduz a nada: "[…] o que funda e legitima a existência da lógica é, muito precisamente, esse ponto ínfimo, quando se define o campo no qual o sujeito suposto saber não é nada" (Lacan, 1967-1968, p. 162). O que articula a Psicanálise e a lógica no campo do sujeito suposto saber é que, por um lado lógico, ele se reduz a nada e, do lado analítico, ele é um engodo, uma falácia.
Não-todo, Real e objeto a formam a tríade pela qual concebemos o sujeito fundado em vazio, efeito do Real, sobre o qual a significação, semblante e mesmo a identidade se constituirão, na tentativa de recobri-lo. Adentrar a identidade nos reconduz sempre à dimensão do furo, trata-se do caminho ao qual estamos destinados a percorrer. Diante deste, então, o ato, promovendo a suspensão da cadeia significante e o encontro do sujeito com sua própria indeterminação seria uma indicação de onde podemos levar esse confronto.
Ao colocar o sujeito frente à normalização e à completude, o ato analítico destitui-o de sua própria identidade, tornando-a irrisória. Abre-se com isso uma dimensão de aposta para pensar horizontes factíveis para uma política não mais constituída no Um, mas sim uma política que leve em consideração a verdade do não-todo.
No entanto, como nos disse Lacan (1972-1973/2008c), o gozo Outro é um gozo sobre o qual a mulher não fala, é gozo excedente e mudo que precisa ser posto, se não a falar, a irromper, quebrando a fixação no significante. Pensamos, também, o discurso do analista como aquele que com seu ato permite que o inexistente entre em cena.
Diante desse ponto de indeterminação instituído, o sujeito pode construir um saber que advém da abertura ao campo da verdade. A verdade corta o sujeito, impondo a construção de um saber que é da ordem de um não-saber, pois não advém do sentido, do deslizamento da cadeia metonímica, mas de sua própria estrutura: "[...] de certa forma, o ato analítico opera em um nível ainda mais fundamental ao suspender a estrutura, operando nesse sentido com a categoria de impossível" (Safatle, 2020, pp. 124-125).
A dimensão de indeterminação presente nas operações de reduções lógicas aponta para a potência do ato e de um não-todo que resistem ao subjetivismo - seja discursivo, seja identitário. Operar com o tema significa operar com o que escapa, pôr em palavras o que somente pode ser articulado logicamente. É apostar em um (des)caminho para pensar os limites do universal, lendo a enodação entre lógica, política e sexuação não somente pela via dos semblantes ou da significação fálica, mas principalmente do furo, da impossibilidade de um saber dizer tudo acerca do sexo. De certa forma, tal como no ato analítico, é unicamente no a posteriori que podemos conferir os efeitos desta aposta.
Referências
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Endereço para correspondência
Paula Affonso de Oliveira - paulaoliveira.psi@gmail.com
Recebido em: 23/04/2024
Aceito em: 24/10/2024
Notas
1 O princípio da identidade é um dos princípios fundamentais da lógica, o qual estabelece que uma proposição é sempre verdadeira quando se refere a si mesma (A = A). No campo da política, este princípio traduz-se na noção de um indivíduo idêntico a si, portador de uma identidade encrustada em seu Eu que pode ser culturalmente afirmada e socialmente partilhada no interior de um determinado grupo, estabelecendo formas político-jurídicas de viver.
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