Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e83578, doi:10.12957/epp.2024.83578
ISSN 1808-4281 (online version)
DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE
Quando a Psicologia Encontra a Fome: Cartografias Insurgentes no Sistema Prisional
When Psychology Meets Hunger: Insurgent Cartographies in the Prison System
Cuando la psicología se Encuentra con el Hambre: Cartografías Insurgentes en el Sistema Penitenciario
Caíque Azael Ferreira da Silva a, Elen Gonçalves Leite a
, Gabriela Mynssen de Pinho da Silva a
, João Gabriel Pires Queirós b
, Marina Bizzo da Silva Póvoa a
, Pedro Paulo Gastalho de Bicalho a
a Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
b Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
No presente artigo, são apresentados três encontros com a fome durante atividades de pesquisa e extensão realizadas por profissionais e estudantes de Psicologia vinculados à Universidade Federal do Rio de Janeiro e à Universidade do Estado do Rio de Janeiro no âmbito do Serviço de Atendimento à Pessoa Custodiada. No primeiro momento, são apresentadas discussões sobre "encontros com a fome", apresentando no texto os atendimentos realizados pela equipe com pessoas que ingressam no Sistema Penitenciário em situação de insegurança alimentar, por vezes, sem ingerir alimentos há dias. O "segundo encontro" é com as prisões em função de furtos por necessidade (principalmente furtos de alimentos). Por fim, o terceiro encontro nos leva à discussão sobre a perpetuação da fome entre pessoas que estão custodiadas pelo Estado, em um fenômeno que vem sendo conhecido por "pena de fome". O esforço analítico é orientado metodologicamente pela cartografia, conforme as proposições de Deleuze e Guattari (1980) e a vinculação ao campo é concretizada pelo acordo de cooperação entre universidades públicas e atores vinculados ao Sistema de Justiça. A análise das articulações entre fome e sistema prisional ajudam a atingir o objetivo de reconhecer movimentações do colonialismo e racismo no Brasil nos últimos séculos, localizando a prisão enquanto operadora moderna dos mecanismos de dominação e violação de direitos da população negra e pobre no país, bem como alguns embaraços endereçados aos profissionais que ocupam esta política pública diante de um contexto de total desarranjo das possibilidades tradicionais de atuação.
Palavras-chave: psicologia, sistema prisional, fome.
ABSTRACT
In the present article, we present three encounters with hunger during research and extension activities performed by psychologists and psychology students from Federal University of Rio de Janeiro and the State University of Rio de Janeiro, within the scope of Service for Assistance to Incarcerated Individuals. In the first instance, we present discussions about our "encounters with hunger", arguing in the text about the services provided by the team to people who enter the penitentiary system in a situation of recent food insecurity, sometimes without ingesting food for days. The "second encounter" is with prisons due to thefts out of basic necessity (mainly, thefts of food). Finally, the third encounter leads us to a discussion about the perpetuation of hunger among people who are incarcerated by the state, in a phenomenon that has come to be known as "starvation sentence." The analysis of the connections between hunger and the prison system helps us recognize movements of colonialism and racism in Brazil over the past centuries, locating the prison as a modern operator of mechanisms of domination and violation of the rights of the black and poor population in the country, as well as some embarrassments faced by professionals who occupy this public policy in the face of a context of total disruption of traditional possibilities for action.
Keywords: psychology, prison system, hunger.
RESUMEN
Este artículo presenta tres encuentros con el hambre durante actividades de investigación y extensión realizadas por psicologos y estudiantes de Psicología de la Universidad Federal de Rio de Janeiro y la Universidad del Estado de Rio de Janeiro, en el contexto del Servicio de Atención a la Persona Custodiada. El primer encuentro discute los "encuentros con el hambre", desarrollando los servicios que realiza el equipo con personas ingresadas en el Sistema Penitenciario en situación de inseguridad alimentaria. El segundo se refiere a detenciones por robos motivados por necesidad. El tercero aborda la perpetuación del hambre entre personas bajo custodia del Estado, fenómeno conocido como "peña de hambre". La investigación se orienta metodológicamente por la cartografía, y el trabajo de campo se desarrolla en colaboración con universidades públicas y actores del Sistema de Justicia. El análisis conecta el hambre con el sistema penitenciario y pretende reconocer los movimientos del colonialismo y racismo en Brasil, situando la prisión como operadora moderna de mecanismos de dominación y violación de derechos de la población negra y pobre en el país. Asimismo, el artículo destaca los desafíos que enfrentan los profesionales en este campo, frente a la descomposición de los métodos tradicionales de trabajo.
Palabras clave: psicología, sistema penitenciario, hambre.
Em junho de 2022, no estado de Minas Gerais, um jovem de 20 anos foi preso sob a acusação de roubo de telefone, prática enquadrada no Art. 157 do Código Penal Brasileiro como crime. Era sua primeira passagem no Sistema Prisional e, seguindo os ritos formais do Sistema de Justiça Brasileiro, ele foi encaminhado a uma Audiência de Custódia. O resultado de sua audiência - liberdade provisória - não foi exatamente comemorado pelo custodiado: após a juíza proferir a sentença, o mesmo pede para permanecer na prisão por mais uma noite para poder jantar. O pedido, recebido com espanto pelos atores presentes na Audiência de Custódia, incentivou uma agenda de discussões na sociedade brasileira (Machado, 2022). Além da situação apresentada pelo custodiado - permanecer mais tempo na prisão para ter acesso à alimentação -, o mesmo também relatou ser usuário de medicamentos psiquiátricos. Jovem, desempregado, morador de um bairro da periferia urbana de Belo Horizonte, com ensino fundamental incompleto. Que precisou ser preso para fazer-nos analisar as intensas situações de desigualdade que são constituintes da vida de parte da população brasileira, instigando-nos a pensar como outras políticas incidem sobre as expressões da desigualdade, além das políticas públicas de Segurança.
À época de finalização do presente manuscrito, dois anos após a história anteriormente relatada, não é possível saber quantas outras semelhantes a essa poderiam ser narradas no cotidiano das prisões brasileiras. No entanto, pode-se afirmar que não se trata de um episódio espetacular, mas sim de uma característica estruturante da formação social brasileira, a qual atua de forma seletiva na distribuição de violências, aliando nosso passado-presente colonial com mecanismos de dominação sofisticados, fabricados para perpetuar violências contra grupos específicos.
No Sistema Prisional, cenário de alguns encontros discutidos no artigo, podemos observar diferentes violências, sendo operadas todos os dias, de forma explícita. Apesar de diversas, tais violências se conectam por serem parte de um mesmo projeto de dominação e assujeitamento da população brasileira, incidindo principalmente sobre aqueles e aquelas que são mais pobres, negros e negras. Os autores deste artigo, psicólogos e estudantes de Psicologia, atuantes em duas unidades prisionais no estado do Rio de Janeiro, mobilizaram um conjunto de inquietudes quando suas práticas foram atravessadas pela insegurança alimentar: como é possível tolerarmos que ainda haja fome no mundo?
Logo depois, ainda sob efeito das primeiras inquietudes, começaram os questionamentos sobre o que podemos fazer diante dos contextos em que somos convocados a atuar. Eticamente referenciados nos acúmulos coletivos da profissão, expressos em documentos como o Código de Ética do Psicólogo (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2005), compreendemos que nossa atuação deve considerar as relações de poder nos contextos em que atuamos, sempre pautados pela análise crítica e histórica das realidades política, econômica, social e cultural e com horizontes de atuação orientados "para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (CFP, 2005, p. 7). Outro conjunto de acúmulos, expresso no caderno de Referências Técnicas para atuação de Psicólogas no Sistema Prisional (CFP, 2021), contribui para aterrar nossos princípios diante das criminologias do presente, localizando a relação entre Psicologia e o campo de práticas e saberes que normaliza, normatiza e executa uma certa política penal.
A Psicologia brasileira, ao longo de sua história - principalmente após a lei de regulamentação da profissão, em 1962 - caminhou rumo à ampliação dos campos de referência e atuação, ocupando lugar privilegiado em políticas públicas, como o Sistema Único de Saúde e o Sistema Único de Assistência Social. Desde então, possibilitou-se conhecer e formular ferramentas para o trabalho com um público diferente daquele que majoritariamente ocupava somente os espaços dos consultórios privados. Nas políticas públicas, compreendemos com materialidade que a desigualdade produz sofrimento e que as sistemáticas violações de direitos são também um problema para a Psicologia.
É neste contexto que observamos demandas para que a Psicologia, enquanto ciência e profissão, renove suas orientações técnicas e mobilize novas referências não apenas para o mapeamento e compreensão dos processos de produção de subjetividades, mas para uma reinvenção de suas possibilidades de atuação. O Conselho Federal de Psicologia, atento às transformações na profissão, constituiu em 2006 um espaço institucional cuja função é a de promover a qualificação da atuação profissional de psicólogas e psicólogos que atuam nas políticas públicas, o Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP). Dentre diversas publicações 1, é possível encontrar temas como sistema prisional, segurança pública e relações etnico-raciais, debates críticos que, no contexto das políticas públicas, se fazem necessários para uma atuação que esteja de acordo com os princípios fundamentais que constam no Código de Ética.
Em nosso cenário de atuação - o Sistema Prisional - há uma notável ausência de recursos técnicos consistentes, eticamente referenciados, considerando que a construção do campo teórico psi no Brasil é feita de forma distanciada dos principais problemas da população, importando teorias e técnicas do norte global que pouco se conectam com as forças que são presentes nos processos de subjetivação da população brasileira. Assim, em vários contextos, observamos uma dificuldade de produzir intervenções que considerem as relações de poder vigentes na sociedade em que atuamos, conforme preconizado no sétimo princípio fundamental do Código de Ética Profissional (CFP, 2005). Queremos dizer, com isso, que há uma histórica demanda concreta para nossa profissão: que sejamos ortopedistas sociais. Operadores de violências. Construtores de diagnósticos de periculosidades, de perfis criminosos, de justificativas para a consolidação de processos de desumanização e torturas. Assim, demanda-se à Psicologia tornar-se uma "amoladora de facas" (Baptista, 1999), contribuindo com as movimentações da necropolítica que, muito além das práticas de extermínio e execuções, reduz a humanidade de grupos específicos e legitima violências.
O presente texto, ao reunir experiências e análises de uma política de Psicologia no Sistema Prisional, coletiviza angústias, reflexões e caminhos; mas ainda se dedica a questionar e a buscar fissuras na estrutura vigente, capazes de confrontar uma política ontológica que considera algumas pessoas mais humanas que outras e, portanto, muitas indignas de direitos. Sozinha, a Psicologia brasileira é incapaz de reconstruir os sentidos para a vida e de alargar as noções de humanidade em vigência. As tarefas principais que aparecem ao longo do texto só fazem sentido se consideradas coletivas, intersetoriais, implicadas em substituir as políticas do ódio, da punição e da segregação por políticas da solidariedade.
Os Caminhos de Pesquisa: Das Salas de Aula às Audiências de Custódia
Em seu livro "Encarceramento em Massa", Juliana Borges (2019) posiciona o encarceramento como principal aparato de reordenação sistêmica para a manutenção do racismo (e das desigualdades baseadas na hierarquização racial). No caso brasileiro, alguns aspectos devem ser levados em consideração: somos, atualmente, o terceiro país que mais prende pessoas em todo o planeta, com mais de 800 mil pessoas privadas de liberdade, ainda que sejamos o oitavo maior país do mundo. Desse universo, mais de 210 mil são presas provisórias, de acordo com os dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) de 2023. As pessoas presas em provisoriedade são aquelas que ainda não foram apresentadas a um juiz ou juíza, muitas custodiadas pelo Estado por anos sem uma definição sobre sua acusação e eventuais penalidades. Contudo, o que se observa em países cujo quantitativo de presos provisórios representa uma generosa fatia entre a população carcerária, é que há uma prática de morosidades que penaliza os acusados sem que estes tenham seus direitos processuais garantidos, transformando a prisão preventiva em uma pena antecipada.
O caráter desumanizante das prisões brasileiras é discutido mundialmente, convocando ao debate o mais amplo conjunto de controvérsias que historicamente atuam ao redor da discussão sobre a relação entre normas-transgressões-castigos. Nossas pesquisas, conectadas aos dados oficiais divulgados pelos órgãos de Estado, localizam as ações que hoje são operadas enquanto práticas de tortura. Considerando dados da SENAPPEN (2023), observamos uma superlotação e um déficit de mais de 160 mil vagas no sistema prisional do país. Além de superlotar as prisões, manter pessoas custodiadas por longos períodos sem o devido processo legal se desenvolver, há um conjunto de episódios que merecem destaque para corroborar a nossa tese, como no caso em que o órgão normativo de políticas penais brasileiras propôs, durante a pandemia, que pessoas presas ficassem em contêineres no interior das unidades, contexto criticado por representar um aprofundamento de mecanismos de tortura e demais violações de direitos, como apontam Costa et al. (2020).
A superlotação do sistema prisional é uma condição incapaz de ser solucionada, pois a expansão do número de vagas (e prisões) pelo país é acompanhada pelo endurecimento de uma agenda penal que hipertrofia o sistema - um exemplo notável na última década é a aprovação de uma nova legislação em torno das políticas de drogas (Lei n.º 11.343, 2006) que impulsionou uma onda de hiperencarceramento (Bicalho & Rangel, 2006). Durante a escrita deste texto, um novo projeto tramita no Congresso Federal, com a Proposta de Emenda Constitucional n.º 45/2023, que criminaliza a posse de "entorpecentes e similares" independentemente da quantidade. Em um país em que ⅕ da população já fez uso de maconha e mais de 1,5 milhão de pessoas utiliza a substância todos os dias (D'Alama, 2012), por exemplo, o endurecimento da lei de drogas pode levar milhares de brasileiros à prisão e gerar um colapso social inédito, considerando o caráter particular da lei de drogas no Brasil, que é operado de acordo com a seletividade penal e com o racismo (Borges, 2019), que indicam diferenças na forma como são conduzidos os casos de acordo com marcadores territoriais, econômicos e raciais. Desta forma, desenha-se no Brasil um modelo punitivo em que a construção do Sistema Prisional se faz a partir da herança de uma racionalidade colonial, em que pessoas pobres, negras e moradoras de periferias urbanas são super representadas nas instituições prisionais, mesmo quando realizam práticas similares às cometidas por pessoas em condições de vida sob marcadores sociais distintos. Nesse sentido, vemos que a lógica punitiva opera de forma a atualizar relações opressoras advindas da colonialidade do poder que, conforme aponta Quijano (2005), vem sustentando o controle e extermínio de populações pobres e não brancas na sociedade.
Acompanhar os rastros das políticas penais no Brasil pode ser também um exercício de conduzir um conjunto expressivo de resistências. Diante das constantes denúncias de movimentos sociais contra as violações de direitos humanos no sistema prisional, é protocolada em 2015 junto ao Supremo Tribunal Federal pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) uma ação indicando que Preceitos Fundamentais estariam sendo descumpridos, denotando uma fática situação inconstitucional. Durante o processo de julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.° 347, conduzido pelo Supremo Tribunal Federal, é decidido que há um estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro, considerando as ações e omissões dos poderes públicos (Brandão & Bicalho, 2024). Há uma particular importância neste julgamento: primeiro por criar a figura do Estado de Coisas Inconstitucional na jurisprudência brasileira, medida que pode contribuir em muitas outras iniciativas de ativismo por direitos humanos pelo país. E em segundo lugar, pelas medidas indicadas pelo STF ao julgar o caso: a liberação de verbas do Fundo Penitenciário Nacional, para incidir com investimentos sobre a deplorável situação do Sistema, mas também a implementação de um importante recurso capaz de atuar diretamente sobre a superlotação dos presídios, em vias de reduzir prisões provisórias: é decretado, em 2015, que o Brasil passaria a contar com Audiências de Custódia. Com sua implementação formulada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tais audiências consistem em uma estratégia de análise sobre a legalidade e necessidade de manutenção da prisão. Isto é, no primeiro momento em que a pessoa presa é apresentada à autoridade judicial, que deve ocorrer em até 24 horas após a prisão, a audiência é realizada para averiguar a existência de elementos que apontem para a ilegalidade da prisão, como por exemplo, a presença de tortura desde o momento da abordagem até a audiência, mas também conduz sobre a pessoa custodiada uma análise que pode indicar a necessidade de prisão preventiva ou liberdade provisória para responder ao processo, com ou sem medida cautelar.
A disputa pelos mecanismos de operacionalização do sistema de justiça deve ocorrer, seguramente, em simultâneo às disputas sobre as lógicas hegemônicas de condução de tais mecanismos, com as devidas preocupações para que novas formas não sejam apenas operadoras de velhas forças. Em que pese que as Audiências de Custódia possuem uma vocação de grandeza, no que diz respeito às contribuições para acesso a direitos e desencarceramento, estas demonstraram potência quando articuladas a atendimentos sociais capazes de conduzir encaminhamentos no caso de concessões de liberdade provisória ou relaxamento de prisões (contexto de um atendimento pós audiência), mas também no caso de realizar mapeamentos de vulnerabilidades importantes não apenas para um melhor preparo das defesas, mas para um alargamento do olhar sobre o custodiado por parte dos magistrados que julgam os casos - e, por que não, sobre eventuais responsabilidades do Estado brasileiro em alguns casos.
Assim, a partir do ano de 2019, o Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e com apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, buscou ampliar e institucionalizar os atendimentos sociais no contexto das audiências de custódia, denominados de Atendimento à Pessoa Custodiada (APEC), nos momentos pré e pós audiência. Tais atendimentos ainda não são uma realidade em todas as unidades da federação e, nos casos em que existem, suas formas de realização são diversas.
No presente artigo, partimos da experiência de acompanhamento dos atendimentos realizados no contexto prévio às Audiências no estado do Rio de Janeiro, realizado por uma equipe universitária multidisciplinar, responsável por elucidar à pessoa presa sobre a audiência de custódia, identificar suas demandas emergenciais e elaborar um relatório sobre suas condições de vida para subsidiar a tomada de decisão pelo juiz.
No caso do estado do Rio de Janeiro, desde o ano de 2021, a partir de uma articulação interinstitucional, está em funcionamento o Serviço de Atendimento à Pessoa Custodiada (APEC), na modalidade pré audiência de custódia, realizado em uma Central de Audiências de Custódia (CEAC) na cidade do Rio de Janeiro, no bairro de Benfica. É para este local que a maioria das pessoas presas é encaminhada no estado (além da CEAC localizada na capital, há outra unidade na Região Sul e também na Região Norte Fluminense). No contexto da capital, o Conselho Nacional de Justiça atuou de forma intensa e presente na construção do acordo de cooperação técnica e em sua implementação, entre os anos de 2021 e 2022. Desde então, os atores que constroem tal política são o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Universidade Federal do Rio de Janeiro, com equipes de estudantes e profissionais de Psicologia, Serviço Social, Enfermagem e Terapia Ocupacional. Uma rede ainda maior de parcerias contribui com o cotidiano do Atendimento Prévio, como a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
Entre as principais funções desenvolvidas pela equipe de pesquisadoras, estagiárias e extensionistas, está o atendimento às pessoas custodiadas, normalmente no mesmo dia em que estas ingressam nas unidades prisionais. Desde o início dos atendimentos, em novembro de 2021, cerca de 3 mil pessoas passaram pelos atendimentos da equipe que, além da orientação e acolhimento à pessoa custodiada, articula ações para a garantia de direitos. Não é incomum que grupos prioritários para audiência não tenham seus direitos respeitados - como idosos (que devem ter suas audiências priorizadas em qualquer circunstância) ou mães de crianças com até 12 anos, pessoas gestantes ou lactantes, presas em flagrante, em crimes que não envolvem violências, que tem seu direito de priorização para realização de audiência e orientação pela liberdade provisória, em função do Marco Legal da Primeira Infância (Lei n.º 13.257, 2016). A atuação da equipe é atenta aos casos em que podemos contribuir para a celeridade dos ritos administrativos, considerando as múltiplas vulnerabilidades que comparecem ao cenário, acolhendo-as e encaminhando dentro do que é previsto em lei. Assim, o campo é ocupado por um corpo técnico orientado para a garantia de direitos - enfrentando os entraves de uma instituição que, pela forma como se constituiu ao longo da história, funciona como operadora de violações de direitos.
Mas, nem tudo que surge no campo enquanto vulnerabilidade encontra respaldo em ritos administrativos e legais para se encaminhar. Nas próximas páginas, debruçamos nossas reflexões sobre encontros impertinentes que, ao longo dos últimos três anos de atuação no contexto dos atendimentos, tem produzido na equipe muitas interferências e urgências.
A orientação metodológica referenciada nas pesquisas processuais encontra na cartografia uma direção de pensar e conhecer o mundo a partir de suas movimentações, de seu caráter dinâmico, reticular e plural. Assim, a cartografia subsidia nossas formas de compreensibilidade da realidade. Nosso conhecimento sobre Fome e Sistema Prisional tem sido tecido a partir de um olhar para a relação entre tais temáticas. Assim, em diálogo com Passos e Barros (2009), compreendemos que a produção de conhecimento é, também, mobilizada por um campo de interações cruzadas, onde as diferentes implicações de pesquisadores-mundo se presentificam, com seus valores, interesses, expectativas, compromissos e tantos outros atravessamentos; e para conhecer melhor nosso campo, é preciso justamente mobilizarmos um olhar que seja atento e generoso a essas relações. Analisar uma cadeia no Brasil sem localizá-la em uma história de formação social onde as forças motoras são a exploração de corpos específicos, a violência colonial e o racismo pode produzir compreensões simplistas, no mínimo, sobre que lógicas sustentam os espaços ainda nos dias de hoje.
A análise implementada é sobre diferentes encontros com a fome: no atendimento aos custodiados, no entendimento das acusações e no conhecimento de um modo de operação do Estado que emprega práticas de tortura em ações cotidianas e rotineiras.
Encontro 01: Quando Foi a Última Vez que Você Comeu?
A situação de insegurança alimentar e fome no Brasil acentuou-se a partir de 2016, com o golpe institucional e as medidas regressivas em direitos sociais expressas nos governos de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (União Brasil). Os dados apresentados no livro "Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro" (Campello & Bortoletto, 2022) nos ajudam a compreender como um país, de dimensões continentais e responsável por alimentar cerca de um bilhão de pessoas pelo mundo, não consegue efetivar o direito constitucional à alimentação para a sua própria população.
Se, no começo do século XXI, a implementação de um conjunto intersetorial de políticas públicas para incidir sobre pobreza e miséria conseguiram retirar o país do mapa da fome, o labirinto reacionário (Arcary, 2023) que habitamos desde o golpe de 2016 destruiu de forma contundente um caminho recente de enfrentamento à pobreza, com o fortalecimento de uma agenda neoliberal e sub-financiamento das políticas sociais. Relatórios apontam que, ao menos ½ da população brasileira enfrentou situações de insegurança alimentar ou absoluta fome entre 2020 e 2022 (Secretaria de Comunicação Social, 2023). Mais de 120 milhões de brasileiras e brasileiros que não conseguem sequer acessar a riqueza que seu próprio país produz e se vê indigno de direitos fundamentais para o exercício pleno da vida. De acordo com dados da segunda edição do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar, 2022), nos anos de 2021 e 2022, 125,2 milhões de brasileiros conviviam com algum nível de insegurança alimentar e 33,1 milhões de brasileiros estavam em situação de fome no país. Considerando os marcadores de raça, de gênero e de território, vê-se que 65% dos lares chefiados por pessoas pretas e pardas convivem com a insegurança alimentar, enquanto 46,8% dos domicílios comandados por pessoas brancas se encontram nessa situação. 64,1% dos lares chefiados por mulheres convivem com a restrição de alimentos, enquanto nas casas em que o homem é a pessoa de referência este percentual é de 53,6%. O retorno ao mapa da fome, em 2022, é efeito não apenas das movimentações da pandemia, ainda que agravado por ela, mas principalmente de um processo de retirada de direitos da população mais pobre, diretamente afetada pelo desmonte de políticas sociais ou pelas medidas neoliberais do período pós golpe (como a Reforma da Previdência e Reforma Trabalhista). O que isso diz à Psicologia?
No início do texto, destacamos que as muitas mudanças sociais desde a redemocratização também produziram sobre nós um convite a repensar a Psicologia, que, enquanto ciência e profissão, deveria passar a incidir e contribuir para a transformação dos principais problemas do país. Nosso caminho, que leva da Universidade ao Sistema Prisional, intensifica tal tese. Desde o começo da habitação das políticas de atendimento prévio às audiências de custódia encontramos a fome como problema em nosso cenário de atuação. Como mencionado anteriormente, nosso atendimento figura entre os primeiros procedimentos após a entrada na prisão, antes das pessoas custodiadas serem encaminhadas às suas respectivas celas. Assim, tem sido comum ao longo dos anos que a fome compareça ao atendimento; seja pela falta de alimentação desde a prisão até o encaminhamento às unidades prisionais (onde estas receberão, em algum momento, café da manhã, almoço e jantar) - tema examinado no terceiro encontro deste artigo, ao debater as penas de fome; mas também por situações que são reflexo da insegurança alimentar que indicamos acima.
Em um dos atendimentos realizados no ano de 2023, encontramos com um jovem que foi preso na zona sul do Rio de Janeiro. Estava sem comer há alguns dias e, ao tentar furtar um pão em uma padaria, foi pego pelos seguranças, espancado e encaminhado à prisão. Ao chegar em nosso atendimento, o jovem estava muito ferido e assustado. No diário de campo de um dos psicólogos que realizou o atendimento, encontramos o relato: "Ele repetia "por um pão"... tudo isso por um pão. Ele estava muito machucado: os braços, as pernas, o rosto, os pés… muito machucado" (diário de campo da equipe técnica, 24 de maio de 2023). No decorrer do atendimento, além de uma escuta atenta e orientação sobre o procedimento envolvendo a prisão, a principal informação que compartilhamos com o jovem custodiado foi a de que haveria, em algum tempo depois do nosso atendimento, fornecimento de alimentação na cela. Aquele jovem que nós atendemos, uma entre as milhões de pessoas que passam por situações de insegurança alimentar no Brasil, convoca nossa equipe a repensar que tipos de articulação são possíveis nesses casos.
Pouco a pouco, a habitação do Sistema Prisional construiu, junto ao saber técnico da Psicologia, procedimentos para intervenção. Aprendemos como proceder em casos de crises em saúde mental, entendemos quais articulações são possíveis para eventuais antecipações de audiências, qualificação de audiências… À época do atendimento mencionado acima, nossa equipe passava por inquietações sobre quais articulações seriam possíveis para situações como esta. A fome no setting terapêutico. E agora? Basta perguntar ao custodiado "quando comeu pela última vez?" e informar aos magistrados sobre isso? Betinho, sociólogo e idealizador da campanha "quem tem fome, tem pressa", nos ensina que se alguém tem fome, é preciso "dar de comer". Nossos relatórios e nossas orientações seguem necessários e com capacidade institucional de produzir ruídos e interferências. Mas há um conjunto de urgências que, em um primeiro olhar, não seriam atribuições formais dos profissionais da Psicologia, pensando no exercício mais ortodoxo da profissão. Contudo, não há a menor chance de ignorar o mundo quando, de forma escancarada, ele nos convoca a agir.
Encontro 02: E o que Você Faz Quando Não Tem Comida?
A ideia de furto famélico diz da subtração de produtos de valor irrisório mobilizado por um estado de necessidade, entre eles a fome. Um dos casos julgados no STF em 2004 (HC 84.412/SP) criou precedente e entendimento de que casos de furto por necessidade devem ser arquivados. Segundo essa orientação, furtos de comida e produtos de higiene pessoal, por exemplo, devem ser considerados insignificantes por juízes. Nesse julgamento, alguns requisitos foram determinados para o princípio da insignificância: a ausência de periculosidade da ação, a mínima ofensividade do agente executor do furto, a inexpressividade da lesão e o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento.
Mesmo assim, no ano de 2022, na cidade de São Paulo, uma mulher mãe de cinco filhos foi presa após furtar "duas garrafas de refrigerante, dois pacotes de macarrão instantâneo e um pacote de suco em pó", somando um total de R$21,69, não tendo sido liberada em sua Audiência de Custódia. Apesar da decisão do STF de 2004 servir de referência para as decisões judiciais em território nacional, a não aplicabilidade em casos como esse revelam que os entendimentos do Poder Judiciário sobre furtos por necessidade e princípio da insignificância não são uníssonos. A maior preocupação é que, diante de expressões da desigualdade cotidianas, as respostas de Estado sejam no horizonte de encarceramento e não de garantia de direitos. Nosso investimento em políticas públicas deve olhar para casos como esse e pensar na importância, por exemplo, de abertura de restaurantes populares, de distribuição de materiais de higiene e cuidado social, de mecanismos para expansão da cidadania e não apenas no endurecimento da lei penal e ampliação do encarceramento.
A atuação no Atendimento Prévio às Audiências de Custódia na capital do Rio de Janeiro proporciona a reflexão e investigação do encontro da fome e de situações de vulnerabilidade com a justiça.
. . . estava descalço e sem camisa, tinha apenas uma bermuda vermelha. Andava com dificuldade. Oferecemos água e ele perguntou, algumas vezes, se tinha algo para comer. Ele contou que vive em situação de rua desde a infância, e que estava numa lanchonete pedindo algo para comer. Um homem lhe ofereceu um lanche caso ele pegasse uma caixa que estava do outro lado da rua, que ele sequer sabia o que tinha dentro, e chegou à prisão ainda sem saber. Quando saiu, com dificuldade e lentamente, conforme era possível, um agente gritou "anda preto, vem pra cá". (Diário de campo, comunicação pessoal, 04 de janeiro de 2022).
A prisão age como operador moderno da necropolítica, com um papel fundamental no processo de criminalização da pobreza, sendo o espaço de encarceramento de massas populacionais pobres e, portanto, indesejadas na dinâmica da vida social capitalista. O aparato jurídico-político-econômico brasileiro se movimenta apenas para manutenção do status quo e da propriedade privada. Como efeito, convivemos com um constante cenário de superlotação das cadeias brasileiras, sendo a prisão não apenas um espaço de aplicabilidade da lei, mas também um local em que observamos a violação de direitos em todos os sentidos, inclusive com práticas de suplício e tortura das pessoas custodiadas, muitas vezes operada ativamente pelos agentes de Estado.
A expressão "criminalização da pobreza" não se restringe aos embaraços jurídicos que mantém presas pessoas que cometeram crimes motivados por situação de necessidade. A mesma envolve reflexão acerca de uma norma a ser seguida, mesmo que não esteja positivada como lei. No Código Penal, não está descrito que ser pobre é um crime, mas furtar comida é, e essa transgressão é punida. Aqui não falamos que todas as pessoas pobres furtam comida, mas que o acesso à alimentação (e a todos os outros direitos fundamentais) é mediado pelas possibilidades de compra, de negociação, de posse de recursos, já que não há políticas públicas de distribuição de renda em vigor para eliminar a desigualdade, sobre a fome e sobre tantos outros direitos negados à população.
A não garantia de liberdade nos casos de furtos por necessidade ganha outros contornos quando olhamos de forma mais cuidadosa sobre as controvérsias dos magistrados. Em São Paulo, no ano de 2024, uma juíza concedeu liberdade ao dono de um carro da marca Porsche, avaliado em mais de meio milhão de reais, que atropelou e matou um trabalhador, motorista de aplicativo, fugiu do local do crime sem prestar socorro. A mesma juíza, dois anos antes, manteve preso um homem, desempregado, acusado de furtar dois frascos de desodorante e três garrafas de bebida em um supermercado (Resk, 2024).
Diante de diversas problemáticas e contradições que envolvem o tema, o Projeto de Lei 4540/2021, de autoria da Deputada Federal Taliria Petrone (PSOL-RJ), propõe a alteração no artigo 155 do Código Penal para despenalizar furtos famélicos. O texto não prevê desresponsabilização do sujeito, mas sugere que, caso o juiz não possa absolver o autor do delito, deverá aplicar penas alternativas, como prestação de serviços à comunidade. Ainda assim, postagens em redes sociais diziam que o projeto visa "criar a profissão de ladrão, com direito a aposentadoria e tudo". A dificuldade de capilarização social de uma proposta que caminha contra o populismo penal, tão bem sucedido no Brasil, fortalece a agenda de retrocessos no campo dos direitos humanos.
A incapacidade do Estado em garantir o direito à alimentação deixa uma parte importante da população brasileira em insegurança alimentar, e, motivada por isso, comete delitos que, apesar de sem violência, têm muitas vezes como consequência prisões preventivas. O projeto de lei apresentado acima sugere uma reflexão sobre como grande parte dos casos de furtos famélicos são reflexo da ausência de políticas públicas que garantam direitos como à alimentação para pessoas em situação de vulnerabilidade social, ao invés de vê-las como potenciais criminosas, pressupondo que um sujeito pode ser um criminoso antes de cometer um delito, mesmo que este seja subtrair um alimento no mercado.
A associação entre a seletividade penal e o encarceramento em massa da população mais vulnerabilizada faz parte de um projeto de continuidade do controle racial e social. As teorias apresentadas, o aprofundamento das desigualdades e o entendimento coletivo social em relação à figura do criminoso criam possibilidade de expansão da necropolítica e privam a liberdade pessoas que já viviam sem muitas condições de decisão, sem trabalho, educação, moradia, mas com fome. Nesse sentido, contando com contribuições como a da Psicologia, a função do aparato jurídico é a manutenção da ordem, não a justiça.
Encontro 03: Seu Castigo é Ficar com Fome.
"No ano de 1829, foi produzido o primeiro relatório sobre o estado das prisões que existiam em São Paulo e o início dessa forma de punir" (Bonach, 2020, p. 252).
"A penitenciária . . . não apresenta condições adequadas para a execução de pena privativa de liberdade em regime fechado de acordo com as normas nacionais e internacionais de direitos humanos" (Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, 2013, p. 32).
"A partir das informações levantadas nas inspeções, percebe-se a mera estocagem de pessoas nas unidades prisionais, sem a garantia de direitos básicos" (Núcleo Especializado de Situação Carcerária, 2022, p. 97).
Na última cena deste manuscrito, exploramos sobre o suplício. No Brasil, não há penas corporais como componente do Código Penal, ainda que, de tempos em tempos, propostas de castração química e similares voltem à ordem do dia ou denúncias de espancamentos promovidos por agentes do Estado ocupem os noticiários.
O estado em que se encontram submetidas as pessoas privadas de liberdade é uma problemática secular que permeia toda a trajetória do sistema penitenciário brasileiro. Podemos enquadrar essa questão pensando na superlotação de celas, na morosidade dos processos judiciais, nas legislações injustas. Voltamos a essa discussão pois, ao retomar alguns documentos oficiais, percebemos que parte expressiva dos relatórios de inspeção de regularidade realizados nas unidades prisionais, como os três citados na epígrafe da seção, apontam para as mesmas condições, que as classificam como desumanas e incapazes de assegurar direitos básicos. Dentre elas, observam-se inúmeras menções ao não fornecimento de alimentação e a sua má sua qualidade, de tal modo que, a Defensoria Pública de São Paulo (DPE-SP) produziu no ano de 2022, um relatório por meio de seu Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC), o documento expõe que todas as unidades prisionais inspecionadas (com exceção Penitenciária Feminina da Capital) oferecem um número de refeições diárias abaixo do previsto na a Resolução 3 (2017) do Conselho Nacional de Política Criminal, definindo tal fenômeno como "pena de fome". A lógica dos suplícios, presente na história das relações entre normas-transgressões-castigos desde a pré-história criminológica, é atualizada no sistema prisional brasileiro, podendo ser comprovada no acompanhamento de tal fenômeno.
Embora o cenário de insegurança alimentar seja um problema reconhecido no âmbito normativo brasileiro, como previsto na lei que institui o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN (Lei n.º 11.346, 2006), que garante a alimentação como um direito fundamental, assim como na resolução do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, que dispõe sobre a garantia do direito à alimentação adequada das pessoas privadas de liberdade e na resolução mencionada anteriormente (Resolução n.º 27, 2020), ainda assim, de acordo com Instituto de Defesa do Direito de Defesa (2022), o orçamento destinado ao sistema prisional da maior metrópole do país está direcionado ao aumento de vagas nos presídios, já no que se refere a garantia de necessidades básicas a população encarcerada, que pressupõe alimentação, higiene e alojamento, obteve investimento de menos de 20% entre os anos de 2021 e 2022.
Com base em trechos retirados do diário de campo da equipe técnica (02 de setembro de 2022), é possível rememorar falas referentes à infestação de percevejos nas unidades, a escassez de água e a má qualidade da alimentação fornecida. Portanto, cabe aqui ponderar os impasses que permeiam a equipe técnica que atua neste espaço, de que maneira é possível oferecer suporte àqueles cuja vulnerabilidade se expressa no corpo dessa forma? Isto é, na queixa de sensação de desmaio, nos lábios secos, nas dores de estômago ou no enjoo ao se deparar com as condições do que lhe é oferecido como alimento. Não é incomum que nossa equipe, ao transitar pelas unidades nos momentos de almoço, sinta-se mal com o cheiro que vem das comidas fornecidas.
Rotineiramente, torna-se demanda para a equipe técnica traçar estratégias de negociação com os atores do sistema penitenciário, dentre estas, o ato de "humanizar" os sujeitos que ali chegam. Portanto, é preciso relembrar que há uma pessoa antes da acusação criminal e que qualquer que seja tal acusação, a fome não está instituída no código penal. Como mencionado, a realidade da fome e da prisão são resultados de uma mesma estrutura, assim, nos referimos a uma parte da população que é atravessada por estigmatizações acerca de sua chegada no presídio. Em outro diário de campo, também do ano de 2022, relembramos a fala de um policial penal "quando ela estava na rua usando crack não estava sentindo fome".
Por vezes, se faz necessário que a escuta seja colocada como plano de fundo, que ocorre durante os intervalos das mastigações de um pão velho, isto é, quando há sucesso por parte da equipe em conseguir o que é tido como uma ‘regalia' naquele espaço. Uma vez que é esperado que a alimentação seja fornecida apenas nos horários pré-estabelecidos, o que não leva em conta o tempo que o custodiado passa na delegacia. Tais aspectos atravessam o dia-a-dia da equipe técnica no serviço da APEC, nos trazendo reflexões acerca de (im)possibilidades enquanto profissionais psicólogos naquele espaço.
Assim, embora exaltemos a importância da readaptação de nossas ferramentas técnicas enquanto psicólogos, sobretudo em contextos de violência e tortura, também nos indagamos diante das possibilidades de intervenção em contextos em que a demanda se apresenta na fome. Dito isso, como nos preparar para compreender a estrutura psíquica desses sujeitos? Qual profissional se requer quando a demanda é a fome?
Para Não Concluir: Embaraços para a Psicologia que Defende os Direitos Sociais
São incontáveis os desafios para efetivação das nossas orientações éticas, mas o compromisso que efetuamos a cada dia do exercício profissional da Psicologia passa por, fundamentalmente, contribuir para a construção de um mundo em que a violência não seja a única forma do Estado se relacionar com a população mais pobre. É verdade que a Psicologia no Brasil avança muito em suas formulações teóricas e na fabricação de ferramentas para a atuação nas políticas públicas. O CREPOP, já citado no início do texto, é um dos melhores analisadores de tal movimentação, realizada não de forma individual, mas como compromisso coletivo de uma categoria profissional. Mas, por melhores que sejam as nossas ferramentas, o encontro com a fome nos revela que nosso maior desafio é o de disputar outra racionalidade de funcionamento do Estado e de suas instituições, com maiores ações para a garantia de direitos, em uma perspectiva intersetorial, crítica às lógicas estruturantes da sociedade brasileira. O papel do Estado não pode ser o de gerenciador e defensor dos direitos de propriedades de poucos, enquanto a maioria da população vive situações de calamidades. Alguns gestos podem contribuir, do lugar do exercício profissional da Psicologia: articulações in loco no contexto de trabalho para a garantia dos direitos - como acesso à alimentação ou serviço de saúde adequados -, articulação com as instituições como a Defensoria Pública e movimento sociais, formação continuada para letramento étnico-racial dos operadores das políticas (inclusive nós). Contudo, a tarefa colocada não é simples e, sem dúvidas, não temos condições de resolver todos os males do mundo a partir da Psicologia ou de qualquer política pública que exista em concomitância à manutenção da ordem capitalista.
Mas podemos contribuir, em esforços coletivos, com a construção de um mundo diferente. Algumas pistas podem ajudar nesse longo caminho: resgatar os princípios de solidariedade, orientar a construção de justiça por caminhos contra-coloniais, antirracistas e anticapitalistas, afirmar uma Psicologia insurgente, que não se acomoda diante das injustiças, nem naturaliza a barbárie que é viver em um país com fome de direitos. Para não concluir, convidamos Carolina de Jesus (2019), que nos pergunta: "haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?"
Referências
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Endereço para correspondência
Caíque Azael Ferreira da Silva - caiqueazael12@gmail.com
Recebido em: 15/04/2024
Aceito em: 08/10/2024
Notas
1 Tais publicações estão disponíveis em: https://crepop.cfp.org.br/publicacoes/
Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de doutorado do primeiro autor, Caíque Azael Ferreira da Silva (CAPES, processo 88887.650569/2021-00), pela bolsa de iniciação científica da segunda autora, Elen Gonçalves Leite (PIBIC-CNPq, No. Processo 146793/2023-4) e pela bolsa de Produtividade em Pesquisa do sexto autor, Pedro Paulo Gastalho de Bicalho (PQ-CNPq).
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