Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e83568, doi:10.12957/epp.2024.83568
ISSN 1808-4281 (online version)
DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE
"Sou Só Eu, Sozinha": O Que Dizem as Famílias de Adolescentes em Medida Socioeducativa?
"It's Just Me, Alone": What Do the Families of Adolescents in Socio-Educational Measure Say?
"Soy Apenas Yo, Solo": ¿Qué Dicen las Familias de Adolescentes en las Medidas Socioeducativas?
Amata Xavier Medeiros a, Fernando Santana de Paiva a
, Jupter Santana Ferreira Garajau a
a Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
A presente pesquisa objetivou compreender a inserção das famílias no processo de acompanhamento a adolescentes em medida de internação em um Centro Socioeducativo do Estado de Minas Gerais. Considerando que a família possui um papel central na política socioeducativa e a escassez de trabalhos com esse público, buscamos identificar suas principais necessidades, os possíveis afetos emergentes no cotidiano das visitas e os impasses encontrados na relação com o aparato do Estado. A partir de uma concepção participativa e dialógica, adotamos a observação participante e o diário de campo como recursos metodológicos. Como principais resultados encontramos a responsabilização majoritariamente feminina, associada a processos de culpabilização, em especial materna, no acompanhamento desses adolescentes. A presença de sentimentos de vergonha, humilhação e desconfiança eram constantes no contato da família com a política socioeducativa. Por fim, salientamos a importância do desenvolvimento de estratégias no âmbito das políticas públicas que possibilitem a efetiva participação da família no contexto das medidas socioeducativas, considerando suas singularidades e necessidades.
Palavras-chave: medida socioeducativa, família, cuidado, psicologia.
ABSTRACT
This research aimed to understand the involvement of families in the process of accompanying adolescents undergoing internment measures at a socio-educational center in the state of Minas Gerais, Brazil. Considering the central role of families in socio-educational policy and the scarcity of studies focusing on this topic, we sought to identify their main needs, the possible emotions emerging during visits, and the challenges encountered in their relationship with the state apparatus. Employing a participatory and dialogical approach, we utilized participant observation and field diary as methodological tools. The main findings highlighted the predominantly female, especially maternal, responsibility in accompanying these adolescents, often associated with processes of blame. Feelings of shame, humiliation, and distrust were consistently present in the family's interactions with socio-educational policy. Finally, we emphasize the importance of including families, in their plurality and diversity, in the context of socio-educational measures for an ethically sound practice committed to the needs of adolescents and their support network.
Keywords: socio-educational measure, family, care, psychology.
RESUMEN
Esta investigación tuvo como objetivo comprender la inserción de las familias en el proceso de seguimiento de adolescentes en internación en un Centro Socioeducativo del Estado de Minas Gerais. Considerando que la familia juega un papel central en la política socioeducativa y la escasez de trabajo con este público, buscamos identificar sus principales necesidades, las posibles emociones que emergen en las visitas diarias y los impases encontrados en la relación con el aparato del Estado. Desde una concepción participativa y dialógica, adoptamos como recursos metodológicos la observación participante y el diario de campo. Los principales resultados encontraron mayoritaria responsabilidad femenina, asociada a procesos de culpa, especialmente materna, en el seguimiento de estos adolescentes. La presencia de sentimientos de vergüenza, humillación y desconfianza fueron constantes en el contacto de la familia con la política socioeducativa. Finalmente, destacamos la importancia de desarrollar estrategias en el ámbito de las políticas públicas que permitan una participación efectiva de las familias en el contexto de las medidas socioeducativas, considerando sus singularidades y necesidades.
Palabras clave: medida socioeducativa, familia, cuidado, psicología.
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) lançou em 2023 o Levantamento Nacional de Dados do SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), referente à restrição e privação de liberdade de adolescentes no Brasil. É importante realçar a relevância deste relatório, visto que tal sistematização e publicização não acontecia desde 2017, quando o último Levantamento foi efetuado. No período de coleta de dados, foi apontado que 11.556 (onze mil quinhentos e cinquenta e seis) adolescentes estavam em cumprimento de medida socioeducativa (MSE) nas modalidades de restrição e privação de liberdade. Destes, 8.638 (oito mil seiscentos e trinta e oito) estavam em medida socioeducativa de internação, 1.068 (um mil e sessenta e oito) estavam em semiliberdade, 1.637 (um mil seiscentos e trinta e sete) em internação provisória e 213 (duzentos e treze) em internação sanção (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania [MDHC], 2023).
O Estado de Minas Gerais possui 36 unidades socioeducativas, ocupando o segundo lugar em número de instituições de restrição e privação de liberdade e de adolescentes, atrás apenas de São Paulo que à época possuía 111 unidades. Dos 11.556 adolescentes, 770 estavam em Minas Gerais, correspondendo a 6,7% da população inserida no sistema socioeducativo. Apesar da redução do percentual de adolescentes inseridos no sistema socioeducativo, observada na comparação entre o Levantamento de 2017, com 24.803 (vinte e quatro mil oitocentos e três), e o Levantamento de 2023, expressando uma redução de praticamente 50%, a precariedade das condições no atendimento socioeducativo permanecem como um desafio. Dificuldades nos âmbitos da saúde e educação dos adolescentes, condições de trabalho precárias, bem como a presença de tortura e castigos físicos são pautas centrais no que diz respeito à qualidade da política socioeducativa no país (MDHC, 2023).
Atualmente há uma corresponsabilidade entre família, Estado e sociedade na garantia dos direitos sociais voltados para a criança e para o adolescente. O debate em torno das MSE no Brasil, no âmbito da política de proteção à infância e adolescência, explicita a existência de diversas formas de compreender e intervir sobre o fenômeno relacionado ao jovem que comete o ato infracional (Medeiros & Paiva, 2015). Apesar de uma mudança paradigmática representada pela transição da Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral, ainda é possível observar a manutenção de uma racionalidade punitivista no trabalho com adolescentes e suas famílias, que coexiste com as premissas de uma atuação pedagógica, responsabilizadora e socioeducadora (Scisleski et al., 2015).
As MSE são respostas organizadas e regulamentadas pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), regimentada pela Lei n.º 12.594/2012 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado pela Lei n.º 8.069/1990. O ato infracional se refere à conduta descrita como crime ou contravenção penal quando cometido por menores de 18 anos, visto que esses sujeitos são considerados como em condição peculiar de desenvolvimento e, portanto, inimputáveis (Lei n.º 8.069/1990; Lei n.º 12.594/2012). A despeito das determinações expressas no SINASE, sobre a necessidade de políticas de atendimento e desenvolvimento econômico das famílias, bem como sua integração com o adolescente e efetiva participação no Plano de Atendimento Individual (PIA) dos jovens em cumprimento de MSE, há uma escassez de propostas de atuação que abarque os familiares no cotidiano do atendimento socioeducativo. Conforme Brondani e Arpini (2023), os trabalhos que consideram a presença das famílias na relação com os adolescentes em privação de liberdade têm sido pouco explorados e, por vezes, são mencionados de maneira periférica nas produções da literatura.
A experiência da juventude é compreendida enquanto uma produção sócio-histórica, conformada a partir de elementos de classe, raça e etnia, gênero, relações geracionais, levando em consideração também aspectos culturais, políticos e econômicos. Nesse sentido, um jovem que experimenta seu modo de vida a partir de condições de pobreza e desigualdade não pode ter sua experiência comparada a um jovem com acesso pleno a bens e recursos (Medeiros & Paiva, 2021). Partimos da concepção que a adolescência é uma experiência relacional, cujas vivências guardam íntima relação com suas respectivas condições de vida, bem como aspectos macrossocietários.
Da mesma maneira, a família também é constituída e atravessada pelos condicionantes históricos, políticos e econômicos, o que significa que um contexto de desigualdades e injustiças sociais compõem a experiência dessa família, bem como sua relação com os adolescentes (Brondani & Arpini, 2023). Durante e após o cumprimento da MSE, a família é destacada, pelos profissionais, em suas funções de suporte social, proteção, apoio afetivo e financeiro, bem como na formulação e concretização de um projeto de vida alternativo (Andrade & Barros, 2018). Frequentemente a família é representada como aquela que terá a função de socialização, transmissão da cultura e mantenedora do bem-estar da criança e do adolescente, porém, ela mesma poderá ter experienciado limitações de acesso a direitos sociais em sua trajetória de vida, a depender dos recursos disponíveis para seu grupo (Medeiros & Paiva, 2015).
Ao falarmos das relações familiares dos adolescentes em cumprimento de MSE é necessário sinalizar que majoritariamente são as mulheres - mães, avós, irmãs, tias e namoradas - que se mantêm no acompanhamento desse jovem durante a execução da medida, às vezes de forma solitária, sendo as únicas responsáveis presentes (Souza & Costa, 2013). Esse cenário, frequentemente, é uma continuação do que já se experenciava em momento anterior à medida na vida dessas famílias, isto é, a responsabilização materna pelo adolescente. Ficam centralizadas na figura feminina as funções de cuidado, suporte emocional e apoio financeiro, entre outras tarefas, o que acaba desencadeando processos de desgaste, sofrimento e sobrecarga, evidenciando a importância de ações e políticas específicas voltadas às necessidades dessas mulheres (Medeiros & Paiva, 2015).
O processo de visita das famílias à unidade de internação, tema ainda pouco abordado na literatura, é um momento crucial e desafiador no cotidiano dessas mulheres. É preciso considerar os elementos dificultadores, tais como o deslocamento e recursos financeiros para garantir sua presença, a abordagem às vezes humilhante e vexatória direcionada aos familiares, a frequente culpabilização por parte dos atores institucionais pelo cometimento do ato infracional, entre outros elementos que influenciam na complexa relação entre família e unidade socioeducativa (Brondani & Arpini, 2023; Paz, 2022; Souza & Costa, 2013).
Ademais, historicamente os saberes psi atuaram nos espaços de privação de liberdade de forma a coadunar com perspectivas normativas do comportamento, individualizantes e patologizantes. Essa aliança entre o fazer psicológico e a demanda por controle social através da segurança pública, contribuiu para produzir e reforçar a noção de uma classe supostamente perigosa, de preditores de periculosidade, a partir de chaves explicativas focadas unicamente no indivíduo e/ou em sua família - família que tradicionalmente foi vista como foco do problema ou tida como desestruturada (Bicalho et al., 2012).
Nesse sentido, considerando a relevância que a família representa no atendimento socioeducativo e a necessidade da construção de pesquisas e intervenções que contemplem esses atores em seus contextos e complexidades, foi objetivo do presente trabalho compreender a inserção das famílias no processo de acompanhamento a adolescentes em medida de internação em um Centro Socioeducativo (CSE) do Estado de Minas Gerais. Buscamos identificar, a partir do relato das famílias, suas principais necessidades, os possíveis afetos emergentes no cotidiano das visitas e os impasses na relação com o aparato do Estado no processo de visitação.
Percurso Metodológico
Trata-se de uma pesquisa-participante (Fals-Borda, 1999), em que foram utilizados inicialmente a observação participante e o diário de campo (Vieira, 2002) como recursos metodológicos; pautando-se em uma postura dialógica, participativa e sensível com os diferentes sujeitos do campo (Calais, 2020). A pesquisa integra um projeto de extensão universitária intitulado Psicologia, Direitos Humanos e Ações Comunitárias. O trabalho foi desenvolvido em um CSE do Estado de Minas Gerais, localizado em uma cidade na zona da mata mineira, onde são executadas as medidas socioeducativas de internação, bem como as internações sanção ou provisórias. Vale ressaltar que essa unidade recebe adolescentes do sexo masculino de diversos municípios do Estado de Minas Gerais, o que acarreta uma concentração de adolescentes de localidades diferentes de seu município de origem. A pesquisa foi realizada entre os meses de novembro de 2022 e dezembro de 2023, com visitas semanais à instituição, momento em que buscamos compreender o funcionamento da mesma e construir possibilidades de atuação junto aos atores institucionais, em especial com os familiares dos adolescentes sob medida socioeducativa.
Inicialmente, a inserção na instituição se deu a partir do acompanhamento das atividades cotidianas realizadas pelos profissionais, como atendimentos individuais aos adolescentes, oficinas pedagógicas, intervenções grupais, acompanhamento do momento de visitação das famílias, reuniões entre a equipe e audiências realizadas com adolescentes e seus responsáveis. Em uma segunda etapa, as atividades se concentraram no acompanhamento das famílias que visitavam os adolescentes, situação que acontecia em dois dias da semana e também aos domingos.
Observamos que as famílias chegavam horas antes de sua entrada no CSE, onde aguardavam fora da instituição por esse período até que fossem chamadas a entrar. Em diálogo com a equipe construímos a possibilidade de um trabalho durante essa espera, considerando a demanda já enunciada pelos profissionais sobre a necessidade de aproximação e acolhimento dessas famílias. Estas chegavam com diversas dúvidas sobre a medida socioeducativa, sobre a instituição e o cotidiano dos adolescentes. Comumente apresentavam-se inseguras, aflitas e temerosas pelo futuro dos mesmos.
Nesta direção, em uma perspectiva de pesquisa de se fazer com e em relação com o Outro (Souza & Carvalho, 2016), iniciamos um processo de acolhimento e escuta com estes familiares, que ocorreu durante o período em que esperavam para adentrar à instituição. Ou seja, nossa atividade consistiu em abordar as famílias presentes com as seguintes questões: "Gostaria de conversar um pouco? Estaria interessada em falar sobre como é para você estar aqui? Como são os dias de visita? Como está sendo esse processo de acompanhamento do adolescente?". A partir dessas questões, o diálogo era iniciado e novas perguntas surgiam, considerando as necessidades e o desejo das/dos familiares. Durante os meses que se seguiram, nossa atuação concentrou-se em acolher as famílias que estavam "recém-chegadas" à dinâmica da instituição e acompanhar aquelas que permaneciam durante o período de execução da medida, sendo possível com algumas a construção de maior vínculo e suporte.
A maioria das famílias presentes era composta por mulheres negras. Os atores masculinos, entre eles pais, avôs, tios, irmãos, mesmo quando presentes, não eram identificados como o familiar de referência para os adolescentes. Ou seja, ainda que os momentos das visitas fossem compartilhados com esses homens, as mulheres permaneciam sendo as protagonistas desse cuidado durante a trajetória do adolescente na medida.
Durante o período de observação em que se produziram os diários de campo, foram realizados encontros semanais entre as/os pesquisadoras/es com o intuito de produzir reflexões que pudessem nortear as ações desenvolvidas em campo. Como resultado desse processo, foi possível perceber os diferentes afetos que permeiam o encontro destas famílias com a instituição, depurar suas principais demandas e necessidades, bem como os entraves percebidos na relação com a instituição, com o judiciário e com as demais políticas sociais que atravessam o itinerário de vida destes sujeitos. Como podemos observar na fala de Aurora, uma avó ouvida neste percurso, "O menino que é preso, mas o castigo é para o familiar", o que pode sinalizar que esses sujeitos sentem em seus corpos e em suas vidas diretamente os efeitos da medida, o que reforça a importância de trabalhos direcionados às famílias de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa.
Para a apresentação dos resultados, foram utilizados trechos do Diário de Campo, que foram organizados a partir de dois eixos de análise: 1) (Des)encontros afetivos entre famílias e Centro Socioeducativo; 2) As mulheres na fila: produção de cuidados e a recusa ao abandono. Esclarecemos que seguimos todos os parâmetros éticos de produção da pesquisa, pautando-nos nas diretrizes para a ética na pesquisa e a integridade científica (Fórum de Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes [FCHSSALLA], 2023), bem como nas diretrizes concernentes à pesquisa com seres humanos conforme a Resolução n.° 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde. A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética, sob número de parecer 6.791.728. A fim de preservar o sigilo e a identidade das participantes, os relatos serão apresentados com nomes fictícios.
Resultados e Discussão
(Des)encontros Afetivos entre Famílias e Centro Socioeducativo
As dificuldades, ou os (des)encontros experienciados pela família ao se aproximar da instituição que executa a medida socioeducativa de restrição de liberdade são numerosos. Inicialmente, destacamos a maneira como essa família chega à unidade que, comumente, é uma chegada que já se anuncia com desafios. Revelam-se nesse primeiro momento os obstáculos associados ao acesso à instituição, por exemplo, de deslocamento, pois por vezes as famílias percorrem longos percursos para conseguirem chegar. Além da distância, os custos envolvidos nesse deslocamento também comprometem a sua presença, considerando o gasto com passagens e com o custeio de sua permanência fora de casa. Como observado em pesquisas sobre a população privada de liberdade, as famílias desses sujeitos estão majoritariamente em contextos marcados por profundas desigualdades, isto é, apresentam condições de vida empobrecidas, possuem baixa escolaridade e dificuldades de acessos aos espaços de cidadania e direitos (Mestre & Souza, 2021).
De maneira geral, o momento das visitas era bastante esperado e desejado, tanto pelas famílias, quanto pelos adolescentes, apesar dos sentimentos diversos que compareceram nessa espera. As famílias, quando estavam iniciando seu contato com a instituição, chegavam repletas de dúvidas sobre o cotidiano dos adolescentes, sobre a execução da medida e os passos seguintes e, também, sobre os tipos de intervenção e suportes recebidos pelos jovens. Tais questões emergiam constantemente a partir de uma queixa sobre o pouco contato que conseguiam com a instituição e equipe técnica desde a chegada do adolescente no CSE, o que contribui para a produção de um sentimento de desamparo vivenciado durante esse processo. Frequentemente se diziam ansiosas para ver os adolescentes, falavam sobre a saudade e as mudanças no cotidiano após a internação dos mesmos. Esse desejo de ver o filho, sobrinho, neto ou irmão coexistia com o medo de adentrar a instituição e o que poderiam ver ou presenciar, como pode ser observado no relato de Ana, irmã de um adolescente em cumprimento de medida.
Na conversa, a irmã do adolescente disse que abriria mão de entrar para a visita porque estava com medo do que ela veria lá dentro, medo de começar a chorar muito, ou ter uma crise de ansiedade. Ela realmente parecia muito ansiosa com a situação e desconfortável de estar ali presente. [...] Questionei do que ela tinha medo, e ela disse que o irmão, depois de cometer o ato infracional, tinha sido levado para a penitenciária de outra cidade, ficando lá por alguns dias. Ela disse que essa foi uma experiência muito traumática, tanto para ele, quanto para a família, dizendo que as condições que ele ficava eram muito ruins, ele não tinha locais adequados para fazer suas necessidades fisiológicas, além das visitas e o processo de revista dos familiares serem muito humilhantes. Ela tinha medo do Socioeducativo ser igual e, portanto, gostaria de não entrar.
Com alguma frequência ouvíamos no relato das famílias que estas já tinham estado em outras unidades de privação de liberdade acompanhando seus familiares, como referido acima por Ana, sejam estas unidades socioeducativas ou unidades prisionais. Tal cenário sinaliza um itinerário desses sujeitos que é atravessado por diversos contatos com aparatos de segurança ao longo de sua vida, em detrimento de acesso a outras políticas sociais, nos campos da saúde e assistência social, por exemplo (Mestre & Souza, 2021).
Geralmente, a família comparecia à instituição para visitar os adolescentes, mas havia uma segunda circunstância em que as elas também participavam durante a medida, que era o momento das audiências concentradas. Duas vezes ao ano a equipe da Vara da Infância e Juventude realiza as audiências na unidade socioeducativa, onde normalmente participam o juiz, o promotor, o defensor, a equipe técnica responsável pelo adolescente, o próprio adolescente e sua família, e em alguns casos outros profissionais da rede de assistência, por exemplo do Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CapsIJ) e do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). Nas audiências são definidas as conduções de cada caso, isto é, se as medidas provisórias serão transformadas em internação ou se poderão ser cumpridas em Liberdade Assistida ou Semiliberdade; se as medidas de internação serão extintas ou se os adolescentes se manterão em restrição de liberdade; se irão cumprir outra modalidade de medida; se deverão acessar outros suportes da rede socioassistencial, entre outros arranjos possíveis.
Além da importância desse momento para os adolescentes, ressaltamos os efeitos observados nas famílias. Apesar das dificuldades enfrentadas para se manterem presentes nas visitas, dos sentimentos de saudade, preocupação e receio, algumas famílias manifestavam-se aliviadas pela continuidade da medida de internação. É importante sinalizar que esse sentimento de alívio estava associado a alguns fatores, como o fato de considerarem que a vida dos filhos estava mais segura dentro da unidade, como podemos observar no relato de Marli, mãe de um adolescente: "Sinceramente, eu acho melhor que ele esteja aqui. Pelo menos ele tá seguro e tem o que comer, onde estudar. Se ele voltar prá lá, matam ele". Algumas famílias consideravam que dentro da instituição os adolescentes conseguiam acessar tratamentos de saúde e se manter estudando com mais facilidade do que fora dela, o que pode sinalizar para o precário acesso a políticas públicas desses sujeitos. Ao mesmo tempo, observamos que um dificultador desse encontro com o aparato judiciário se referia à linguagem empregada pelos diferentes atores estatais, que às vezes não era compreensível, o que provocava sentimentos de revolta e impotência nos familiares.
De início, as famílias presentes, mães de Tiago, Breno e Ulisses comentaram a respeito das audiências que aconteceram na semana anterior. Elas reclamaram que não entendiam nada do que o juiz e o promotor diziam e também que havia muitas pessoas presentes na audiência, o que as deixou desconfortáveis.
Um aspecto importante no cotidiano da medida é a construção da relação entre família e unidade/equipe profissional, relação essa que não depende apenas do momento em que o adolescente inicia o cumprimento da medida. Como referido acima, essas famílias percorrem um itinerário em que os aparatos da segurança pública estão ativamente presentes, o que significa que a atuação do Estado com esse grupo - não de maneira arbitrária - se dá via essa política (Medeiros & Paiva, 2021). São repetidos os relatos de violência institucional, expressos pela violência policial, pelo cometimento de agressões físicas contra os adolescentes, de episódios de humilhação nas delegacias ou até mesmo de invasões policiais injustificadas em suas residências, como explicita o relato de Mônica, mãe de um adolescente, durante um acolhimento realizado:
Além disso, ela (Mônica) relatou as violências que seu filho sofreu dos policiais quando cometeu o ato infracional. Ela disse que os policiais bateram em seu filho, que ele foi transportado no porta-malas da viatura enquanto passava mal, além de ter ficado em "presídio de adulto" até ser levado para o Centro Socioeducativo.
Ademais, outra faceta relacionada às dificuldades de acesso se refere aos empecilhos na comunicação entre família e equipe, o que impede essa troca de informações, seja por problemas na infraestrutura, por exemplo no sistema telefônico, seja por dificuldade de manter um contato entre esses atores. Diante desse cenário e histórico expressos, em que há diversas tensões e desconfianças na relação família-instituição, a construção do vínculo com a família se torna um trabalho complexo e desafiador.
Nesta perspectiva, conforme mencionado, historicamente os saberes psi atuaram nos espaços de privação de liberdade de maneira a reafirmar uma perspectiva individualizante e patologizante dos sujeitos, famílias e seus modos de vida. O foco era o comportamento, a personalidade, entre outras categorias psicológicas, focalizando a atenção no indivíduo e atribuindo-lhe centralidade e causalidade na explicação dos atos cometidos. Dessa forma, é imperativo que a atuação da psicologia nesses espaços considere fatores sociopolíticos e econômicos, a partir de preceitos éticos e comprometidos com a perspectiva dos direitos e com as reais necessidades desse público (Barros et al., 2019). A atividade profissional precisa contribuir para a desmistificação de noções segregatórias e ideologicamente forjadas.
Durante o período de pesquisa, as(os) psicólogas(os) eram os profissionais que indicavam a necessidade de uma aproximação com a família dos adolescentes e, também, eram os atores que participavam com alguma frequência desse acolhimento inicial. Apesar de reconhecerem a necessidade de um trabalho voltado às necessidades específicas das famílias, sinalizavam para as dificuldades de manterem uma proposta a longo prazo, principalmente pela quantidade de atribuições cotidianas, mas também pelo receio das famílias não aderirem. Essa não adesão, nas perspectivas destes profissionais, poderia se manifestar por alguns motivos, como o perfil de famílias visitantes naquele momento, sendo estas majoritariamente oriundas de outros municípios e com dificuldades de deslocamento, mas também pelo ambiente institucional. Em razão da instituição ser orientada pela política de segurança pública, que historicamente produz formas de operação pautadas por elementos de controle, cerceamento e rigidez, conforma-se um espaço que pode a priori dificultar práticas de acolhimento bem como relações mais dialógicas.
Ao longo do processo da pesquisa, deparamo-nos também com relatos que expressam o estigma vivenciado pelos adolescentes em razão do ato infracional, que também se estende para suas famílias, lembrando-nos o que Goffman (1988) delimita como estigma de cortesia, o que prejudica ou impede a relação da família com o jovem e a instituição. Ouvimos que algumas famílias omitiam os motivos do seu deslocamento para a cidade onde a unidade socioeducativa estava, principalmente quando precisavam utilizar carros da prefeitura para fazer esse translado. Em alguns casos essa omissão também acontecia para o restante da família, em razão da vergonha, do medo do julgamento e das reações que isso poderia provocar, conforme ilustrado abaixo:
Ela (Roberta) disse que estava com dificuldade em ir nas visitas agora que a prefeitura da cidade não estava mais deixando ela ir de carona no carro da saúde porque alguém havia a denunciado, dizendo que ela pegava as caronas para "ir para prisão". Assim, ela estava tendo que pagar para ir de ônibus ou de carona, e estava ficando muito caro para ela.
Em outro momento, "uma das mães relatava as dificuldades para se locomover semanalmente para as visitas e os preconceitos que sofria, como ter que ocultar o verdadeiro motivo da viagem, dizendo que iria pegar remédios para conseguir uma carona no carro da saúde". Durante o trabalho de campo, uma das mães ouvidas começou a se emocionar falando sobre Breno, seu filho:
Ela disse ficar muito preocupada com o filho e fica com o coração apertado e ainda disse ter vergonha e não tinha coragem para falar para sua mãe, avó de Breno, que ele estava cumprindo medida. Ao invés disso, disse que ele havia sido internado em uma clínica de reabilitação.
Nessa perspectiva, é importante ressaltar o papel desempenhado pelos sentimentos de humilhação e vergonha que essas famílias experimentam ao ter os filhos em contexto de privação de liberdade. Expressões como "mãe de bandido" (Santos et al., 2020) denunciam parte da representação social em torno dessa problemática que, como dito acima, responsabiliza a família, leia-se: mulher/mãe pelo ato infracional. Estas experiências podem impedir as famílias de falarem, de buscar seus direitos e se posicionarem (Ribeiro, 2020). Em uma lógica que demanda quase de maneira compulsória a presença das mães no acompanhamento desses jovens, é necessário não naturalizar essa participação e também, aprimorar formas de escutar os tensionamentos quando elas expressam o desconforto de estarem ali.
As Mulheres na Fila: Produção do Cuidado e Recusa ao Abandono
Durante as visitas semanais à unidade socioeducativa, uma cena comum se repetia. Ao chegar na unidade horas antes de iniciar o período da visita, já havia em média cinco a seis famílias esperando do lado de fora da unidade, com uma presença dominante de mulheres negras. Frequentemente essas mulheres estavam acompanhadas de crianças, fossem elas irmãos dos adolescentes ou seus filhos. Era comum os diálogos serem divididos com momentos de cuidado com essas crianças. Em alguns momentos os pais, tios e irmãos compareciam nas visitas, porém de maneira mais pontual. Mesmo quando estavam presentes, a grande maioria desses homens não participava de forma ativa das tarefas de cuidado demandadas pela instituição. Da mesma forma, poucas vezes eles se aproximavam para participar das intervenções realizadas na fila de espera.
Para discutir o papel desempenhado pelas mulheres no acompanhamento de seus familiares privados de liberdade é imprescindível que se considere a complexa intersecção entre gênero, raça, maternidade, cuidado e Estado. Conforme discute Hirata (2022), o cuidado engloba:
um conjunto de atividades materiais e de relações que consistem em trazer uma resposta concreta às necessidades dos outros. Pode também ser definido como uma relação de serviço, de apoio e de assistência, remunerada ou não, que implica um senso de responsabilidade pela vida e pelo bem-estar do outro. (Hirata, 2022, p. 30)
Quando as políticas públicas falham em oferecer serviços e estratégias de cuidado, ele acaba sendo realizado no âmbito familiar e, centralmente, pelas mulheres (Aguirre et al., 2014). Nessa direção, foi possível perceber que a concentração da responsabilidade em acompanhar o adolescente e comparecer às visitas era centralizada na figura materna, apesar da instituição permitir na visita até três familiares, desde que os visitantes estivessem inseridos em uma lista previamente informada. Esse cenário não é exclusivo do contexto socioeducativo, em que as mulheres ficam responsáveis pelo cuidado de algum parente. Há em nossa sociedade uma cultura que delega às mulheres a responsabilidade do cuidado com as crianças, com os idosos, com os doentes, ficando a elas delegadas as tarefas domésticas como se dispusesse de vocação para tal, e que, comumente coexistem com trabalhos formais ou informais "fora de casa" (Hirata, 2022).
No trabalho de escuta a essas mulheres, elas compartilhavam os processos de sobrecarga experienciados, diziam que tinham outros filhos para cuidar e como isso influenciava sua possibilidade de acompanhar o filho acautelado. Nessa mesma direção, outras mulheres também falaram sobre a dificuldade de sair de casa por ter que deixar algum parente sozinho, caso ainda mais complexo quando esse familiar possuía alguma doença, deficiência ou necessidade específica. Mesmo quando havia um revezamento nas visitas, essas trocas aconteciam entre as mulheres da família, o que explicita a centralidade do cuidado e da responsabilidade na figura feminina.
De maneira reiterada as famílias faziam afirmações e questionamentos em que elas mesmas atribuíam a culpa do ato infracional a si: "onde foi que eu errei?", "foi um descuido meu", situação que pode ser verificada em outros trabalhos, como no de Paz (2022). Apareceram também relatos em que a culpa do ato infracional era atribuída a essas mulheres por outro familiar do adolescente, como se pode observar pelo relato do diário de campo, em um diálogo com Roberta em que ela relatava uma crise de ansiedade:
O pai de Caio, que residia em Belo Horizonte, ligara para ela (Roberta) e eles tiveram uma discussão, em que ele a culpabiliza pelos erros do filho e por ele estar preso. Ela disse que essa discussão mexeu muito com ela, e que a crise de ansiedade veio depois.
Essas falas eram acompanhadas de emoção, choro, sentimentos de desespero e angústia. Dessa forma, o trabalho da psicologia nesse espaço também se dedicou a discutir junto a essas mulheres outros aspectos que devem ser considerados ao se analisar o cumprimento de uma medida socioeducativa. A concepção individualizante como primeira e principal hipótese explicativa do ato infracional deve ser superada, considerando as dimensões sociais e históricas do que se elege como crime, a dinâmica criminalizadora da juventude negra, bem como as desigualdades econômicas experienciadas por esses jovens (Maresch, 2021).
O sentimento de culpa relatado pelas mães não era algo apenas autopercebido. Como no relato acima, as falas evidenciam que outros familiares as culpabilizavam pelo ato infracional, isto é, "pelo filho estar preso". No contexto das delegacias o discurso não era diferente, local onde apareciam as falas sobre sua incapacidade em transmitir uma boa educação aos jovens e mantê-los "longe do crime". Vale realçar que, mesmo partindo de uma abordagem que não se coaduna com perspectivas moralizantes sobre essas famílias, em diversos momentos as mesmas se apresentavam preocupadas em demonstrar todo o esforço e trabalho dedicado ao adolescente, bem como suas tentativas de evitar que o mesmo seguisse um caminho infracional. Todo esse cenário expressa um apelo ao que se considera ser uma "boa mãe", a partir de uma concepção moral sobre essa família, que deposita sobre as mulheres a responsabilidade pelo fracasso ou sucesso dos filhos, especialmente quando essas famílias são pobres (Paz, 2022; Vianna & Farias, 2011).
Algumas mulheres permaneceram visitando a instituição por meses, outras compareciam pontualmente, além daquelas que ficavam pouco tempo em razão de mudanças ou extinções na MSE. Nesse período, observamos além da sobrecarga, a presença de processos de adoecimento. A narrativa dessas mulheres expressava o quão difícil era manter-se ali e ser a única responsável, no entanto isso era concomitante a um forte sentimento de obrigação e dever, mesmo quando extremamente cansadas (Santos et al., 2020). Em Roberta, uma das familiares por nós acompanhada, notamos expressões dessa sobrecarga:
Ela (Roberta) me disse que estava muito ansiosa nas últimas semanas e teve uma crise de ansiedade. Tinha ido ao médico que lhe passou uma série de remédios para "controlar os nervos" e para a pressão, que também estava alta [...] ela disse que sua rotina estava muito cheia, muitas responsabilidades para cuidar [...] que acaba tendo que resolver todos os problemas da família, e que só ela podia resolvê-los. Ela dizia que era o "para-raios" de problema da família.
Ainda sobre um relato da mesma participante, fica realçado os efeitos deletérios em sua saúde em razão da sua centralidade no cotidiano de cuidado:
Conversei com Roberta, que veio hoje depois de quase um mês. Ela disse que estava sem condições de vir e ficou esse tempo em casa de cama. Nesse tempo, ela passou no médico e trocou de remédios, o que segundo ela foi positivo, mas que um dos remédios a deixava "derrubada". Ela disse que esse mal-estar foi consequência das sobrecargas que ela estava passando, sobre as quais conversamos algumas vezes anteriormente.
Recorrentemente as falas das mulheres descreviam episódios de ansiedade, momentos depressivos, sensações de desespero e aumento do consumo de bebidas alcoólicas. Esses relatos se articulavam com as falas sobre o uso de psicotrópicos e tratamentos diversos, por exemplo para depressão, câncer, diabetes e hipertensão. As queixas de sofrimento e adoecimento aparecem nas narrativas de mães que acompanham os filhos em situação de violência e/ou privação de liberdade, como pode ser visto também nos trabalhos de Araújo (2011) e Araújo (2019). Inclusive era objeto de receio que alguns dos tratamentos comprometessem a presença na visita, pois reconheciam que se não estivessem ali, possivelmente não haveria outra pessoa para substituí-las.
[...] Maria também relatou que estava com câncer e temia a possibilidade do tratamento atrapalhar os dias de visita. Disse ainda que gastava muito dinheiro para se locomover até o CSE, mas que trabalharia noite e dia para não deixar de ver o filho.
A despeito dos inúmeros dificultadores nesse percurso trilhado pelas famílias até a unidade socioeducativa, em especial o recorrente sentimento de culpa e uma hiper responsabilização, há uma insistência por parte das mulheres em manter-se no acompanhamento de seus filhos, recusando-se a abandoná-los. Mesmo em cenários de esgotamento e de agravamentos de saúde elas se faziam presentes. Não há intenção de romantizar a maternidade dessas mulheres, pois essa presença insistente era acompanhada de processos de dor e de lutas. Por outro lado, fica em relevo uma complexa dinâmica que pode envolver sentimentos e práticas como culpa, cuidado e responsabilização na atuação dessas mães no contexto de privação de liberdade dos filhos, o que pode reforçar processos de estigmatização e sofrimento (Mestre & Souza, 2021).
Considerações Finais
A presente pesquisa objetivou compreender a inserção das famílias no processo de acompanhamento a adolescentes em medida de internação em um Centro Socioeducativo em MG. A partir do trabalho realizado com algumas famílias durante as visitas que ocorriam semanalmente na instituição, foi possível depreender a existência de sentimentos como vergonha, humilhação, medo e o estigma, que dificultam sobremaneira as relações entre os diferentes sujeitos coprodutores da medida socioeducativa.
A prática do cuidado centralizado na figura das mulheres foi muito evidenciada, o que expressa uma dimensão presente no âmbito da sociedade brasileira. Os relatos de sobrecarga e adoecimento foram constantes entre as mães dos adolescentes. Uma situação que guarda algumas ambiguidades, uma vez que a despeito das imensas dificuldades relatadas, estas figuras do cuidado se faziam presentes e, recusando-se a abandonar seus filhos, sobrinhos ou netos. A permanência destas mulheres pode ser pensada como uma alternativa à via punitivista reiteradamente impetrada por um contingente de atores estatais imersos.
Durante o período de trabalho, inúmeras famílias se interessaram pelas atividades realizadas. No entanto, também é importante discutir sobre aquelas que, por algum motivo, não participavam desse momento de acolhimento. Algumas se apresentavam indisponíveis para o diálogo e não é possível acessar todos os motivos que justifiquem tal postura. Mas consideramos que o sentimento de desconfiança que pode emergir na relação entre a família, instituição e seus representantes, conforme explicitado no primeiro eixo dos resultados, pode ter sido um dos dificultadores. Há uma descrença por parte dessas famílias naquilo que pode ser feito com e em relação elas, o que pode ser compreendido a partir de suas trajetórias institucionais anteriores à medida socioeducativa ou também a partir desse contato, marcadas por violências de diversas ordens, em especial no contato com políticas de segurança.
Nesse sentido, a atuação com essas famílias precisa ser capaz de acolher, escutar e trabalhar em relação aos diversos afetos que podem emergir nessa relação. Apesar desse acolhimento não se restringir a uma categoria profissional, não teria a psicologia recursos para desenvolver um trabalho nesta direção? Ao considerar a importância da família no cotidiano da política socioeducativa, é preciso abarcar também o histórico de precariedade experienciados por esse grupo, seu escasso acesso às políticas públicas e os diversos dificultadores que surgem em consequência deste cenário.
Uma ação criada ao longo da pesquisa em conjunto com as(os) psicólogas(os) foi a formação de um grupo com as famílias, com frequência mensal, realizado em espaço diferente da unidade socioeducativa. A estratégia do grupo se deu em razão da percepção de que, quando presente nas visitas, as famílias se concentravam no encontro com o adolescente; acolher essas famílias em momento diferente da visita poderia contribuir para fortalecer o vínculo com elas, além de possibilitar a discussão de outras temáticas, inclusive pautadas pelas próprias familiares.
Por fim, apontamos para a importância de se construir formas da família participar ativamente na execução da medida e, para isso, é imprescindível um trabalho que compreenda os fatores que podem afastá-las ou aproximá-las e, para tal, é preciso acolher suas especificidades. Propostas que busquem desenvolver ações de pesquisa e formação com os profissionais, escutando suas concepções sobre o trabalho com os adolescentes e suas famílias, bem como apoiando o desenvolvimento de metodologias dialógicas e participativas podem configurar importantes estratégias de trabalho.
Referências
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Endereço para correspondência
Amata Xavier Medeiros - amata.medeiros@gmail.com
Recebido em: 15/04/2024
Aceito em: 16/09/2024
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