Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e83544, doi:10.12957/epp.2024.83544
ISSN 1808-4281 (online version)

 

DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE

 

Saúde Mental de Adolescentes no Sistema Socioeducativo: Entrevista com Profissionais da Semiliberdade em Curitiba

 

Adolescent Mental Health in the Socio-educational System: Interview with Semi-liberty professionals in Curitiba

 

Salud Mental del Adolescente en el Sistema Socioeducativo: Entrevista a Profesionales de Semiliberdade en Curitiba

 

Kiara Olivett a, Laiza Milena de Araújo a, Deivisson Vianna Dantas dos Santos a, Sabrina Stefanello a

a Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O sofrimento e a crise em saúde mental da população infantojuvenil são fenômenos de interesse interdisciplinar. Ao abordar adolescências em vulnerabilização, como o caso de adolescentes cumprindo medida socioeducativa, as políticas e práticas de cuidado urgem. O objetivo principal desta pesquisa foi compreender as definições aplicadas ao sofrimento e às crises em saúde mental de adolescentes cumprindo Semiliberdade em Curitiba. A metodologia da pesquisa foi qualitativa e exploratória, aplicando entrevistas com 11 trabalhadores das Casas de Semiliberdade e discutindo os achados a partir de referenciais da Atenção Psicossocial. Dos resultados, destacam-se dois temas: (1) definições de saúde mental, sofrimento e crise, (2) manejos de sofrimentos e crises. Os trabalhadores demonstraram entendimentos e manejos amplos e contextuais para o sofrimento e a crises. Impasses relativos às premissas da Socioeducação foram encontrados, assim como o relato de sofrimentos vivenciados pelos trabalhadores. A maneira como os profissionais compreendem e conceituam crise e sofrimento resulta nas suas práticas. Esta pesquisa entendeu o modelo da Semiliberdade com mais alinhado a Atenção Psicossocial.

Palavras-chave: saúde mental, adolescência, socioeducação, semiliberdade, crise.


ABSTRACT

The suffering and mental health crisis of the child and adolescent populations are phenomena of interdisciplinary interest. When addressing vulnerable adolescences, such as adolescents undergoing socio-educational measures, care policies and practices are urgent. The main objective of this research was to understand the definitions applied to the suffering and mental health crises of adolescents fulfilling semi-freedom in Curitiba. The research methodology was qualitative and exploratory, applying interviews with 11 workers from Semi-freedom Houses and discussing the findings based on Psychosocial Care references. From the results, two themes stand out: (1) definitions of mental health, suffering and crisis, (2) management of suffering and crises. Workers demonstrated broad and contextual understanding and management of suffering and crises. Impasses related to the premises of Socioeducation were found, as well as reports of suffering experienced by workers. The way professionals understand and conceptualize crisis and suffering results in their practices. This research understood the Semi-Freedom model as more aligned with Psychosocial Care.

Keywords: mental health, adolescence, socio-education, semi-liberty, crisis.


RESUMEN

El sufrimiento y la crisis de salud mental de la población infantil y adolescente son fenómenos de interés interdisciplinario. A la hora de abordar adolescencias vulnerables, como los adolescentes sometidos a medidas socioeducativas, resultan urgentes políticas y prácticas de atención. El principal objetivo de esta investigación fue comprender las definiciones aplicadas al sufrimiento y a las crisis de salud mental de los adolescentes en semilibertad en Curitiba. La metodología de la investigación fue cualitativa y exploratoria, aplicándose entrevistas a 11 trabajadores de Casas de Semiliberdade y discutiendo los hallazgos a partir de referentes de Atención Psicosocial. De los resultados se destacan dos temas: (1) definiciones de salud mental, sufrimiento y crisis, (2) gestión del sufrimiento y crisis. Los trabajadores demostraron una comprensión y gestión amplia y contextual del sufrimiento y las crisis. Se encontraron impases relacionados con las premisas de la Socioeducación, así como relatos de sufrimiento experimentado por los trabajadores. La forma en que los profesionales entienden y conceptualizan las crisis y el sufrimiento resulta en sus prácticas. Esta investigación entendió el modelo de Semilibertad como más alineado con la Atención Psicosocial.

Palabras clave: salud mental, adolescencia, socioeducación, semilibertad, crisis.


 

 

O sofrimento e a crise em saúde mental da população infantojuvenil são fenômenos de interesse interdisciplinar e intersetorial (Ministério da Saúde, 2014), que englobam a Psicologia. Quando se trata de crises de adolescentes cumprindo medida socioeducativa tal viés é tão recente quanto o paradigma da Atenção Psicossocial (APS) nesse contexto, onde a compreensão sobre crise e sofrimento está pautada em perspectivas mais contextuais e críticas. Para este artigo, compreende-se por crise em saúde mental o momento no qual emerge um sofrimento intenso produzindo prejuízo considerável no cotidiano da pessoa, determinada por dimensões relacionais, territoriais, culturais, políticas, raciais, de gênero que influenciam como o sujeito vive singularmente cada crise. (Dias et al., 2020).

Essa ampliação do conceito de crise ao âmbito da atenção psicossocial se dá pela atual captura pela nomenclatura psiquiátrica (agitação psicomotoras, surtos, descompensão clínica) de fenômenos antes com outras nomeações (Ferigato et al., 2007). Esse movimento também ocorre com interpretações das crises na adolescência, momento da vida que exige uma compreensão normalizadora do fenômeno. Autores clássicos da Psicanálise conceituam a adolescência como um período de crise esperada, devido às mudanças de identidade e aos papéis que se enfrentam, desencadeados pelas transformações anatômicas. Aberastury e Knobel (2008) a referem como um processo extenso de lutos relativos à perda da imagem corporal da infância, à perda da identidade infantil e à perda da maneira como se era tratado pelos pais e pela comunidade durante a infância, já que novas exigências de desempenho e comportamento costumam surgir na adolescência. Na travessia do "adolescer" (Outeiral, 2009), tais sujeitos tendem a recorrer a condutas e a comportamentos de ruptura tidos como desviantes. Visto ser muito sensível para o sujeito adolescente o impacto projetivo da comunidade que os rodeia, fará toda a diferença o modo como sua comunidade - os adultos que os acompanham - encara e ampara (ou não) seu "adolescimento" (Outeiral, 2009).

Para Carreteiro (2020), a adolescência deve ser considerada em sua pluralidade, visto que o lugar social que o jovem ocupa proporciona trajetórias sociais diferentes. Adolescências que contam com pouco suporte objetivo (econômicos, institucionais) e vivenciam violências, ‘consequentemente têm menores possibilidades de desenvolvimento individual e estão expostos a traumas e sofrimento difíceis de transformar (Carreteiro, 2020).

Esses desafios se tornam ainda maiores quando focamos nos adolescentes privados de liberdade. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei n.º 8.069, 1990) determina que adolescentes que praticarem atos infracionais estão sujeitos a cumprir medida socioeducativa a ser determinada conforme a gravidade do ato. Das seis medidas previstas, duas aplicadas para atos considerados grave são a inserção em regime de semiliberdade e a internação em estabelecimento socioeducativo. Entendida como alternativa à internação (Silva et al, 2018; Lei n.º 8.069, 1990), semiliberdade é um regime de restrição de liberdade, que preconiza invariavelmente realização de atividades externas a unidade, visando à preservação dos vínculos familiares e comunitários positivos. Já o regime de internação se apresenta como medida privativa de liberdade, no qual o cumprimento da medida se dá majoritariamente na unidade de privação.

Segundo o Relatório de Gestão da Secretaria de Estado da Justiça, Trabalho e Direitos Humanos do Estado do Paraná (2020), entre os adolescentes que cumprem medida socioeducativa há uma prevalência do sexo masculino em comparação ao feminino (91,78% e 6,12% respectivamente). Em termos étnicos, 51% da/os adolescentes são negros (42% pardos, 9% pretos) e 37% brancos. As idades mais encontradas foram 17, 16 e 15 anos (40,4% seguido de 26,35% e 15,15% respectivamente). Com relação à situação escolar e ocupacional, mais de 50% não estava estudando e aproximadamente 40% não estava trabalhando. A respeito da renda, 53,20% deles possuíam renda familiar de 1 a 2 salários-mínimos, comportando de 4 a 6 pessoas na família em mais de 50% dos casos. Assim, no geral, o perfil do adolescente cumprindo medida socioeducativa é o de um menino negro, de 17 anos, em evasão escolar e renda de até dois salários-mínimos para uma família de seis pessoas. Tal perfil se enquadra no retrato da vulnerabilização e desigualdade de condições, fundamentais para considerar as experiências de sofrimento e crise.

Mesmo que o adolescente seja privado de liberdade, é garantido por meio das legislações vigentes a atenção integral à sua saúde e a compreensão do seu sofrimento de um modo ampliado. Exemplos dessas normas são a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei, em Regime de Internação, Internação Provisória e Semiliberdade de 2014 e a resolução 487 da Política Antimanicomial do Poder Judiciário da Comissão Nacional de Justiça de 2023 - que inclui as medidas socioeducativas - tendo como sua primeira premissa a Lei da Reforma Psiquiátrica. Entretanto, ainda é tendencial a racionalidade manicomial nas abordagens, implicando em tutela e segregação na compreensão dos fenômenos e execução dos cuidados (Guerra et al., 2022; Robert et al., 2023).

A literatura recente sobre o tema aponta que a patologização das questões sociais é comum e pouco se leva em consideração que a própria institucionalização pode desencadear ou agravar quadros de sofrimento psíquico (Fernandes et al., 2015): (1) O uso de psicofármacos alcança altos níveis nos adolescentes privados de liberdade, mesmo quando eles não possuem nenhum diagnostico prévio, (2) a permissão de saídas para possíveis consultas ou intervenções clínicas no território são limitadas devido a questões estruturais, (3) as estratégias para manejo das crises são protocolozidas a partir de marcadores diagnósticos e (4) apenas os profissionais do campo da saúde mental são identificados como capazes de manejar crises (Bueno et al., 2023; Ohata et al., 2023; Federhen, 2024). Esses pontos indicam uma realidade algumas vezes medicalizada no manejo das crises dos adolescentes e outras permeadas pelo aspecto moral, onde as questões de segurança se sobrepõem à lógica de um cuidado acolhedor. Destaca-se daí a importância de mais estudos sob o enfoque compreensivo do fenômeno.

A partir da perspectiva dos profissionais que atuam nas Casas de Semiliberdade, este artigo discute os manejos relacionados às crises e ao sofrimento em saúde mental de adolescentes cumprindo medida socioeducativa de Semiliberdade no município de Curitiba, considerando as nuances anteriormente expostas. Para tal, amplia-se a compreensão da interpretação como a do manejo das crises na adolescência, partindo do paradigma do acolhimento de suas histórias, condições de vida e necessidades de saúde e deslocando o olhar do adoecimento e os sintomas de forma isolada em direção a um cuidado menos medicalizado.

 

Método

A pesquisa teve cunho qualitativo e exploratório e investigou as percepções, interpretações e opiniões dos participantes da pesquisa, explorando processos ainda pouco estudados (Minayo, 2014) como a compreensões de crises e sofrimento em Casas de Semiliberdade. Aplicou-se a entrevista em profundidade com uma amostra intencional dos atores sociais - diretores, profissionais técnicos, agentes socioeducativos - representativos do universo das Casas de Semiliberdade em Curitiba (Fontanella et al., 2008). Como referencial filosófico e reflexivo para a realização das entrevistas e sua análise, teve-se a base da hermenêutica gadameriana, sintetizada por Ayres (2013), no que diz respeito aos traços característicos da hermenêutica filosófica.

Utilizou-se roteiro semiestruturado de perguntas abertas e norteadoras, permitindo a livre expressão dos entrevistados. As perguntas norteadoras tiveram enfoque no processo de trabalho relativo ao manejo em saúde mental. Os dados e conteúdos emergidos das entrevistas estão em sigilo e confidencialidade, preservando a identidade dos participantes. Os nomes dos participantes foram modificados, assim como informações que favoreceriam identificação foram suprimidas. As entrevistas foram sobre o trabalho que os entrevistados exercem nas unidades, como significam saúde mental, sofrimento e crise e o manejo aplicado as situações de sofrimento e crise. Para facilitar a emergência de tais conteúdos, utilizou-se roteiro com perguntas disparadoras validadas por outros pesquisadores do mesmo grupo. A utilização dessas perguntas deu-se no curso da entrevista, na sequência referida, na medida em que a fala da/os entrevistada/os sinalizavam possibilidade de relação com a próxima pergunta.

A pesquisa se deu nas Unidades Socioeducativas de Semiliberdade, pertencentes ao município de Curitiba: a Unidade Semiliberdade feminina com capacidade para 7 adolescentes e a Unidade masculina com capacidade para 18 adolescentes. Elas atendem adolescentes oriundos dos diversos municípios do estado. Devido à Pandemia de COVID-19 e à redução do efetivo das equipes (Secretaria de Estado da Justiça, Trabalho e Direitos Humanos do Estado do Paraná, 2020), durante a realização da coleta de dados, a capacidade instalada de acompanhamento da unidade feminina reduziu-se a 2 adolescentes e a da unidade masculina a 7 adolescentes.

As/os participantes do estudo compreendem trabalhadoras e trabalhadores das Casas de Semiliberdade para cumprimento de medida socioeducativa de Semiliberdade. A amostra e seleção de participantes ocorreram a partir da aproximação e contato prévio com as Casas, fruto de articulações locais de pesquisa anteriores. Os trabalhadores entrevistados são profissionais, com experiência de no mínimo 2 anos na Socioeducação. Em sua maioria, eles já trabalharam em outras unidades ou ainda exerceram cargos de gestão em outras unidades. As entrevistas com esses profissionais ocorreram em outubro e novembro de 2022, nas modalidades presencial e virtual. Todos os participantes entrevistados consentiram em participar da pesquisa, o que envolveu o aceite da gravação da entrevista. Isso ficou formalmente registrado no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Para a análise dos dados utilizou-se a produção de autores e pesquisadores ligados ao campo da Atenção Psicossocial ou que apresentassem perspectiva crítica e reflexiva quanto ao problema da medicalização do sofrimento. Todos os arquivos de áudio e/ou vídeo das entrevistas foram literal e integralmente transcritos. Na sequência, realizaram-se repetidas leituras das transcrições - narrativas literais dos participantes - e observância às rememorações da entrevista em si durante o processo de leitura. Nas leituras buscou-se temas afins, a partir dos trechos que encerravam significação destacável e articulável ao tema da pesquisa ou que se demonstrou como tema relevante pelos participantes, ainda que ultrapassasse a pergunta estabelecida no roteiro. Com a redução dos temas estabelecida, passou-se à produção das narrativas referentes a cada um dos temas. Os entrevistados foram identificados por códigos, visando preservar o sigilo e a identidade dos participantes (Onocko Campos & Furtado, 2008).

De modo a resguardar a identidade dos participantes, os dados desta tabela restringiram-se a nome, gênero, função, experiência em internação e duração da entrevista. Não se estipulou a qual Casa se vinculam os participantes e o tempo em que trabalham na Socioeducação ficou parametrizado na margem de 15 anos, para mais e para menos, de trabalho na Socioeducação e não o tempo exato de trabalho. Os entrevistados foram identificados por códigos e nomes fictícios, visando preservar o sigilo e a sua identidade. Os nomes fictícios de cada participante são nomes de personagens do livro "Cem Anos de Solidão", do colombiano Gabriel García Márquez. A pesquisa passou por análise e aprovação em comitê de ética em pesquisa e teve como parecer de aprovação sob nº 5.454.652/CAAE: 02353018.3.3018.5219.

 

Resultados

Os resultados são provenientes de 11 entrevistas, 8 presenciais e 3 virtuais. O tempo total das entrevistas foi de 944 minutos, cerca de 15h44m, ou seja, 1h41m em média por entrevista, resultando em 140 páginas de transcrições. As entrevistas tiveram duração maior do que o estimado, dados o envolvimento e a participação das/as entrevistadas/as. Foram entrevistados 5 Agentes Socioeducativos, 4 profissionais da equipe multiprofissional e 2 diretores.

 

Tabela 1

Caracterização dos Participantes da Pesquisa

 

Participante

Função na Casa de Semiliberdade

Tempo na Socioeducação

Já trabalhou em Cense?

Rebeca - A1

Agente Socioeducativo

< 15 anos

Sim

José Arcádio - A2

Agente Socioeducativo

> 15 anos

Não

Sofia - A3

Agente Socioeducativo

> 15 anos

Sim

Amaranta - A4

Agente Socioeducativo

< 15 anos

Sim

Melquiades - A5

Agente Socioeducativo

> 15 anos

Sim

Úrsola - T1

E. Multiprofissional

> 15 anos

Sim

Remédios - T2

E. Multiprofissional

< 15 anos

Sim

Petra - T3

E. Multiprofissional

> 15 anos

Sim

Fernando - T4

E. Multiprofissional

< 15 anos

Não

Maurício - D1

Diretor

< 15 anos

Sim

Aureliano - D2

Diretor

< 15 anos

Não

Autor, 2023

 

As entrevistas, transcritas e posteriormente organizadas nas narrativas que aqui se apresentarão, passaram por apreciação sistematizada em grade de análise estabelecida em software de tabulação. Os temas estabelecidos foram (1) Definições de Saúde Mental, Sofrimento e Crise e (2) Manejos de Sofrimentos e Crises e referem-se às experiências que observam que os adolescentes vivenciam e conforme são manejados em relação aos adolescentes. Quando não disser respeito aos adolescentes e ao cuidado dedicado a eles, isso será explicitado.

Definições de Saúde Mental, Sofrimento e Crise

O termo saúde mental para esse coletivo de trabalhadores tomou sentidos que passaram pela aplicação individual e coletiva do conceito, sendo indicado como termo mais fácil de associar a seu negativo ou oposto. O termo foi associado a equilíbrio, rotina, capacidade de resolução de problemas, multifatorialidade, complexidade, ambiente, liberdade e circulação e território. Já a palavra sofrimento foi associada a manifestações verbais de revolta, choro, agressividade, violência física, isolamento e a terminologias biomédicas, além de ser compreendido como aquilo que deixa alguém mal, independente do juízo de quem observa, e como situação inerente a aplicação da medida socioeducativa. Quanto ao termo crise, este foi definido como contido no sofrimento e com manifestações mais externalizantes, como autolesão, heteroagressão, uso e abuso de substâncias, introspecção extremada, violência verbal, fuga, evasão, ocasiões da vivência de desespero, desistência e perda de conexão com a realidade. Em contrapartida, foi entendido também numa entrevista como não necessariamente ruim por romper com injustiças.

A circulação no território foi associada ao sofrimento pelo risco de uso de drogas e retorno aos conflitos familiares e territoriais. Determinantes sociais foram descritos pelos trabalhadores como associados ao sofrimento dos adolescentes na Semiliberdade (pobreza, vulnerabilização do território de origem, violências sofridas).

Com frequência foi apontado que na Semiliberdade as manifestações de crise são mais brandas que nas unidades de internação, onde raramente ocorrem tentativas de suicídio, situação indicada como mais frequente nas unidades de internação. Nota-se uma associação entre crise e suicídio feita pelos profissionais e a menção de maior prevalência dessa manifestação de crise nas unidades de privação de liberdade. A essa diferença foi atribuída a razão de as Casas de Semiliberdade terem aparência de casa ou serem uma unidade de tamanho menor, além da circunstância de circulação no território. Foram descritas a ocorrência de crises envolvendo choro e heteroagressividade desencadeadas por negativas e restrições aplicadas pela equipe em razão da própria medida (ações disciplinares).

Seguem trechos de entrevistas para ilustrar a narrativa do tema:

A crise pode acontecer quando o adolescente não dá conta do ir e vir [...] quando ao invés da/o adolescente voltar, ela/e faz outro caminho e vai usar droga (T1 - Úrsula, 2022).

Já vi crise da/o adolescente ficar embaixo da mesa e chorar, chorar, chorar, chorar, ou ter uma resposta agressiva, bater a porta, diante de receber um não, nessa dificuldade de lidar com a negativa, com a perda (T2 - Remédios, 2022).

Se a crise pode ser entendida como algo que rompe com a lógica hegemônica vigente, então nem sempre uma crise é ruim (T3 - Petra, 2022).

Aqui eu já acompanhei algumas situações de adolescentes desestabilizar, mas não ao ponto que a gente via na internação. Acontece, mas é mais brando. Acho que ela/es poderem circular, sair e não ser um ambiente fechado com grades, como na internação - que dá aquele aspecto de prisão - isso faz ser muito mais tranquilo de lidar (D1 - Aureliano, 2022).

Manejos de Sofrimentos e Crises

Pode-se entender que para os entrevistados o manejo começa pela identificação de sinais de possíveis crises. O início do fluxo de ação para manejo envolve abordar e escutar direta a/ao adolescente e acionar o apoio e articulação entre equipe. Destacou-se como fundamental a postura acolhedora durante o manejo e a importância do vínculo para a eficácia do manejo. A noção de vínculo foi considerada em termos de potencialidade e também em nuances negativas. Indicou-se como estratégia de manejo recorrer a alternativas criativas e expressivas para facilitar o diálogo com a/o adolescente, especialmente nos casos em que há alguma condição limitante na verbalização da/o adolescente.

Foram referidas crises associadas ao descumprimento de regras da medida e então os entrevistados aprofundaram o tensionamento entre agir pautados em medidas disciplinares e em manejos dialógicos e reflexivos. A aplicação de manejos dialógicos e reflexivos nesses casos depende de número menor de adolescentes na unidade, para que trabalhadores tenham tempo de atendimento da/os adolescentes e reflexão em equipe.

Os entrevistados apresentaram crítica em relação ao uso de psicotrópicos para manejar crises, sendo entendida a utilização como problemática ou então em último caso. O excesso de medicação foi concebido como prejudicial ao cumprimento da semiliberdade por trazer prejuízo a/ao adolescente na realização das atividades ligadas a medida, dentro e fora da unidade.

Os entrevistados, que espontaneamente compararam o manejo de crise em unidades de internação e na medida de restrição, afirmaram maior possibilidade de manejo na Semiliberdade que nos CENSES e que os manejos costumam ser efetivos para a crise emergida.

Ao relatarem sobre os manejos de crises, espontaneamente os trabalhadores falaram a respeito de como eles sofrem no exercício de suas atividades e funções na Socioeducação. Algumas das razões atribuídas a esse sofrimento são o fato de alguns atos infracionais chocarem-se com valores pessoais dos trabalhadores e pelo contato com a vulnerabilização que a/os adolescentes vivem. Um dos entrevistados aponta que a solução para esse sofrimento é ter conhecimento e compreensão a respeito da vulnerabilização que a/o adolescente sofre.

Os seguintes trechos articulam-se com a narrativa estabelecida:

A estratégia é acolhida. [...] quando a/o adolescente verbaliza, habitualmente já dá uma boa descarregada [...] é preciso oferecer ajuda para ela/es e isso logo se concretizar. Muitas vezes só fato de oferecer escuta e demonstrar que estamos preocupados com a situação dela/es já acalma (A2 - José Arcádio, 2022).

Ultimamente com menos menina/os a gente consegue discutir melhor os atendimentos, fazer reflexão. Quando são muita/os temos que ficar nessa coisa mais direcionada assim do tipo fez ganhou, não fez perdeu. Fica uma coisa mais mecânica. Com menos menina/os temos mais tempo. […], pois dificilmente a situação (crise e indisciplina) é pontual. sempre tem uma razão. Por exemplo, a/o adolescente matou a aula para encontrar a/o namorada/o. Mas tinha que ser matando aula? Num caso como esse, estando em menos menina/os e por consequência tendo mais tempo, a gente consegue abordar melhor, pensar em outras estratégias. Com mais tempo também é melhor para fiscalizar, vamos mais nas escolas, verificar o que tem acontecido, também conseguimos ter mais contato com as famílias. Quando são muita/os menina/os o acompanhamento fica mais atropelado (T2 - Remédios, 2022).

A saúde mental das pessoas que operam no sistema socioeducativo é importante e muito frágil. A gente se depara aqui com muitas situações, que é preciso preparo para absorver, definir como vai lidar com as informações. [...] por exemplo, tomar conhecimento do ato infracional da/o adolescente e saber que envolveu violência grave, então ficar imaginando que a/o adolescente é capaz de fazer o que fez […], isso mexe com os valores e os sentimentos dos trabalhadores (D1 - Aureliano, 2022).

A gente percebe a necessidade que algumas pessoas têm de se desumanizar para poder e conseguir trabalhar no sistema socioeducativo. [...] quando você se coloca nessa situação de se desumanizar para evitar sofrimento, é que você cria esse flagelo para si [...] tem que ter a compreensão da origem dos sofrimentos dos adolescentes, para poder ser o ator que vai favorecer ela/e a contornar essas situações (A5 - Melquiades, 2022).

 

Discussão

Das significações trazidas pelos participantes para os termos saúde mental, sofrimento e crise, chama atenção o espectro contextual, crítico e social de compreensões para as manifestações de sofrimento e as crises, rompendo com noções individualizantes e patologizantes.

O estudo qualitativo de Martins (2017) verificou que em um CAPS a noção de crise esteve predominantemente atrelada à descrição da agudeza de sintomatologias atribuídas a saberes psiquiátricos, apesar de também ter encontrado respostas contendo noções mais contextuais e amplas. No entanto, o estudo constatou hierarquização dos saberes no serviço, tendo o saber médico lugar de ápice na hierarquia. Martins conclui que as noções de crise atribuídas pelos profissionais determinam o tipo de terapêutica que será proposta ou não ao usuário do serviço (Martins, 2017).

Ao comparar os achados de Martins com o desta pesquisa, entende-se que para o coletivo de trabalhadores da Socioeducação as noções envolvendo saúde mental e sofrimento foram predominantemente contextuais, diferente dos achados de Martins (2017). Esse dado é curioso, pois a Semiliberdade não é um serviço de saúde mental especializado, como o CAPS. Pergunta-se, portanto, o que faz esses trabalhadores entrevistados serem mais alinhados a concepções contextuais de crise do que trabalhadores de CAPS. Algumas respostas podem ser encontradas em informações oferecidas pelos trabalhadores. Primeiro, são trabalhadores com experiência média de 10 anos trabalhando nas unidades Socioeducativas, alguns possuindo experiência de dezenas de anos. A maioria dos trabalhadores entrevistados tem formação complementar, mesmo no cargo de agente socioeducativo, um cargo de nível médio. Além do longo trabalho com adolescentes em conflito com a Lei, a maioria também passou por experiência em gestão e escolheu trabalhar na Semiliberdade.

Outra característica que pode ser considerada para responder àquela pergunta é o fato de que se trata de unidades com um quantitativo menor de instituídos, diferente de um CAPS como o CAPS III que possui leitos de curta permanência e tem um quantitativo máximo recomendado pela portaria 366/2002 do Ministério da Saúde (2014) de 40 usuários por período, sendo no máximo 60 por dia. A instalação de vagas nas unidades Socioeducativas estudadas são de 7 na unidade feminina e 18 na masculina. Até o período das entrevistas, a capacidade estava reduzida.

Para dialogar sobre os sentidos referenciados ao termo sofrimento, destaca-se a discussão de Dunker (2015), em seu livro Mal-estar, Sofrimento e Sintoma, na qual o autor aprofunda a discussão sobre narrativas de sofrimento. Dunker oferece uma relação fundamental entre sofrimento e reconhecimento a partir de investigações na Sociologia, Psicanálise, Filosofia e Antropologia. Se para as experiências de sofrimento não houver o que chamou de "uma gramática de reconhecimento", a transformação dessas experiências fica comprometida, pois "o sofrimento se transforma na função direta da gramática que o reconhece" (Dunker, 2015, p. 219). Assim, sem reconhecimento do sofrimento não há transformação dele. O fato de que toda experiência de sofrimento demande a criação de algum nível de pertencimento pelos mecanismos da identificação advém das experiências sociais de partilha, legitimadas numa época específica. Portanto, as formas de sofrimento têm um caráter histórico, determinando o que será socialmente reconhecido como sofrimento ou não (Dunker, 2015).

Outra autora que se alinha ao proposto por Dunker (2015) e Rosa (2022), quem sugere que todo sofrimento é psíquico e social ao mesmo tempo. Partindo de autores como Freud, Sawaia e Mbembe e dos estudos das populações que pesquisa, incluindo adolescentes em conflito com a lei, Rosa propõe a nomeação de "sofrimento sociopolítico", para dar ênfase a essa dimensão e por constatar que existe desigualdade na maneira como as experiências de sofrimentos são acolhidas socialmente. Para a autora, mais do que a diferença de acolhimento, as formas de organização social capitalista e, logo, racista, na forma em que o poder e controle estão organizados para a finalidade de exploração, "incluem em sua própria estratégia de dominação gerar a experiência do sofrimento, seja composta pela angústia, culpa, vergonha ou humilhação social" (Rosa, 2022, p. 5). Isso produz para o sofrimento das pessoas submetidas às desigualdades sociais um lugar de apagamento e silenciamento, pois seus sofrimentos têm alto teor de denúncia a essas desigualdades. Tal silenciamento engendra a negação da possibilidade de narrar suas experiências, haja vista que suas narrativas portam a denúncia do mal-estar social. A autora então sugere a noção de "desamparo discursivo" como componente do sofrimento sociopolítico, sendo o discurso o modo como o laço social se estabelece, englobando as trocas que serão legitimadas no jogo na linguagem e os modos como as relações se dão em determinado espaço e tempo. Os discursos oferecem ou não aos sujeitos a possibilidade de pertencimento e confirmação de valores nas trocas sociais. Para tanto, é fundamental a criação de espaços de reconhecimento e elaboração de narrativas destes sofrimentos, na qual as experiências narradas possam ser acolhidas e enlaçadas às possibilidades de pertencimento e à confirmação de valores (Rosa, 2022).

O desamparo discursivo seria então, segundo Rosa (2022), a condição dada por determinados discursos que não consideram os conflitos e as problemáticas sociais em jogo no sofrimento, procurando furtar-se de dar visibilidade a esses conflitos sociais e políticos presentes nas bases da nossa sociedade:

Esses discursos promovem desamparo, pois o sujeito passa a ser inteiramente culpabilizado por sua condição social plurideterminada. Nesses casos, a invisibilidade dos conflitos gerados no e pelo laço social recai sobre o sujeito, individualizando e naturalizando seus impasses, patologizando ou criminalizando suas saídas. Produz-se, assim, o bandido, o vagabundo, o devasso, o incapaz, o drogado: concepções por vezes amparadas em diagnósticos psicológicos apressados que declaram, sem a devida análise das circunstâncias sociais, deficiência intelectual, psicose, psicopatia. Os seus sofrimentos são registrados em óptica discursiva que retira sua mensagem e tem repercussões sobre o narcisismo, as identificações, o luto e afetos, como o amor, o ódio, a ignorância e a culpa (Rosa, 2022, p. 6).

É possível reparar que, nas acepções trazidas pelos trabalhadores, destaca-se a dimensão sociopolítica dos sofrimentos da/os adolescentes, já que considerarem a pobreza, os conflitos no território de origem, os conflitos familiares e as violências vividas pelos adolescentes. Veremos adiante como isso se articula com os manejos e como as falas dos trabalhadores remetem à plurideterminação do sofrimento.

Quanto ao comparativo da gravidade das crises ocorridas nas unidades de internação (CENSE) e de privação de liberdade (Casas de Semiliberdade) apresentadas nos resultados, em Robert et al. (2022) encontramos as inadequações físicas dos CENSES e a privação ocupacional constatadas neste tipo de unidades como partícipe do agravamento as crises. A hipótese dos autores para as constantes ideações e tentativas de suicídio de adolescentes na internação é a da privação ocupacional que sofreriam pela ociosidade e escassez de atividades ofertadas nesse tipo de unidade, em razão de excessivos procedimentos de segurança, baixo efetivo da equipe, e número elevado de adolescentes internados.

Outro aspecto obtido nos resultados, que diz respeito a comportamentos envolvendo agressividade e transgressão, como bater portas ou ausentar-se da escola, ora são lidos como relativos à crise ou desencadeadores de crise, ora entendidos e manejados como indisciplina. Um depoimento permitiu concluir que a chave de leitura e manejo desses comportamentos está mais atrelado a indisciplina quando o quantitativo de adolescentes é maior e se tem menos tempo para reflexão entre equipe. Assim, entende-se que quando as equipes têm a possibilidade de ter menos adolescentes, criam-se mais possibilidades de ações acolhedoras e que prezem o vínculo como tecnologia de cuidado. a possibilidade de se vincular, elas têm manejo mais diversos, menos disciplinares. Dessa forma, as possibilidades de manejo de crise, graças à maior possibilidade de tempo e espaço para a escuta e diálogo com os adolescentes, fica mais diversa e mais resolutiva. Essa compreensão produzida pela análise dos resultados se afina com o que há de recomendação para o manejo de crises, que são atendimentos que demandam mais tempo e disponibilidade (Lobosque, 2015). Contudo, a compreensão que aqui se levanta, de mais tempo para diálogo e vinculação, não se restringe à possibilidade de melhora do manejo de crise. A escuta e o diálogo com os adolescentes poderiam, nesse cenário, contribuir para a diminuição do sofrimento e dos episódios de crise, haja vista que sem a possibilidade de amparo discursivo, o sofrimento tende a se intensificar na experiência de silenciamento, não estabelecendo partilhas e diminuindo as possibilidades de transformação da experiência. E é nessa impossibilidade de transformar a experiência e poder ter seu sofrimento reconhecido que se nota uma tendência à eclosão de crises.

Aos relatos dos trabalhadores da Semiliberdade, acrescenta-se que essa recorrência não diz respeito apenas a privação ocupacional, mas a própria privação de liberdade característica aos CENSES, que impossibilitam a circulação da/os adolescentes nos territórios. Entende-se que esse é o principal produtor de manifestação de crises graves, expressas em tentativas e planejamento suicida.

Nos resultados relativos ao tema dos manejos, é possível observar o aprofundamento do que na seção de definições se demonstrou como compreensão contextual e ampla a respeito das crises, destacando-se a existência de fluxos ou processos de trabalho para o manejo de crises. Esses fluxos têm ressonância com as orientações e práticas sugeridas nas práticas da Atenção Psicossocial. O diálogo dos entrevistados com os adolescentes envolve perguntas diretas a respeito dos desencadeadores da crise e o apoio ao sofrimento vigente. O diálogo direto com quem sofre a situação de crise é prerrogativa na Atenção Psicossocial, não só pelo caráter de avaliação, mas pela consideração ao estabelecimento de vínculo e em respeito a autonomia de quem sofre, na aposta de que a pessoa poderá dizer algo sobre si no momento e ser escutada já é parte da eficácia do manejo, pela possibilidade da transformação da experiência do sofrimento por narrá-lo (Lobosque, 2015; Moura & Matsukura, 2022; Dunker, 2015).

Acolhimento e vínculo, apontados como operadores fundamentais dos manejos de crise (não só dos manejos de crise, mas de todo processo de trabalho com adolescentes na Socioeducação) são tecnologias leve de cuidado, premissas na Política Nacional de Humanização no SUS, indicando outro alinhamento (Dassoler & Palombini, 2022; Ministério da Saúde, 2004).

O sofrimento espontaneamente declarado dos trabalhadores da Socioeducação é confirmado também no estudo de Ragnini e Brüning (2021), que indica a inexistência de ações políticas e sistemáticas para a saúde do trabalhador socioeducativo. A existência de impasse no trabalho pela duplicidade de concepção no entendimento do trabalho a ser realizado na Socioeducação, se com fins Socioeducativos propriamente ou de segurança, é apontado por Ragnini e Brüning (2021) como fator determinante ao adoecimento nesse contexto de trabalho.

O estudo das autoras, assim como o de Rohmann (2022), alinhado ao presente estudo, também constatou o impasse da duplicidade de concepção no entendimento do trabalho a ser realizado na Socioeducação, se com fins Socioeducativos propriamente ou de segurança. Detectaram ainda que o modo como cada trabalhador entende o que é a Socioeducação resulta em práticas assentadas na concepção que têm. Esse outro achado corrobora com o que também se percebe aqui.

Na participação de nosso estudo, nota-se a recorrência de trabalhadores que compreendem a Socioeducação no viés da educação e da proteção de direitos, no entanto, demonstrando eventualmente contradições nos discursos ou a presença da defesa de ações voltadas à perspectiva de segurança na realização do trabalho. Com isso, deduz-se que, o entendimento mais contextual e amplo de sofrimento e crise que os trabalhadores apresentaram encontra-se com mais facilidade entre os que têm a concepção da Socioeducação como promoção de educação e proteção de direitos.

Ragnini e Brüning (2021) constataram também a sobrecarga de trabalho na realidade da Socioeducação no Paraná, o que chama atenção ao aqui encontrado sobre a melhora dos manejos associados a diminuição de carga de trabalho durante a Pandemia, como efeito colateral da redução de vagas. Logo, essa condição de sobrecarga de trabalho não só piora o manejo das crises como causa piora a condição de saúde do trabalhador. Nesse sentido, Robert et al. (2022; 2023) confirmam o sofrimento dos trabalhadores na Socioeducação, especialmente no contexto da privação de liberdade, cuja ambiência característica dessas unidades produz nos trabalhadores a sensação de institucionalização e de aprisionamento. Assim como nesta pesquisa, Robert et al. (2022; 2023) encontraram relação do sofrimento desses trabalhadores com a piora nas possibilidades de manejo. É possível deduzir que quanto mais intensificado o sofrimento do trabalhador pelas condições de trabalho, a tendência é de haver menor disponibilidade para acolhimento e vinculação, posturas fundamentais para o manejo de crises.

Dentre as limitações identificadas para esta pesquisa, a principal foi a impossibilidade de incluir adolescentes como participantes da pesquisa, devido à restrição de tempo. Seria fundamental ampliar investigações com essa inclusão, tanto em pesquisas como para formulações de políticas. Destaca-se que, por se tratar de uma pesquisa qualitativa, os resultados não possuem a intenção de serem generalizados, uma vez que foram produzidos intencionalmente em um par de unidades de semiliberdade, e que, o alinhamento dos pesquisadores e pesquisadoras ao campo da atenção psicossocial e da defesa dos direitos humanos guiou o processo interpretativo.

 

Considerações Finais

Conclui-se que os participantes da pesquisa entendem saúde mental, sofrimento e crise a partir de uma perspectiva contextual e ampla, afinada com pressupostos da Atenção Psicossocial e com o que apontam a crítica sobre o problema da medicalização da vida. Ainda que esse não seja um entendimento global e aplicado a todos os manejos, é inegável a existência e a materialização do paradigma antimanicomial nas referências verbalizadas pelos trabalhadores, sugerindo que o modo como eles conceberam esses termos pode resultar em manejos mais voltados ao acolhimento e a construção de vínculo.

Portanto, diferente do que é encontrado na maior parte dos estudos sobre manejo em condições de privações de liberdade, onde a medicalização social, com altas taxas de prescrição de psicofármacos e compreensão das crises a partir do viés moral ou diagnostico, na semiliberdade estudada o enfoque foi no mínimo mais diversificado e mais evidente nos serviços focados na semiliberdade. A alternativa da Semiliberdade que o SINASE oferece, ainda que carregue os impasses relativos à punição versus educação, foi constatada por esta pesquisa como dispositivo com grande potencial humanizante para o manejo de situações de crises comparado às unidades de internação e até mesmo no comparativo com alguns CAPS estudados nesse enfoque da crise por outros pesquisadores.

Para finalizar, citamos o trecho da música Estardalhaço da artista Tulipa Ruiz, que acompanhou os intervalos finais da escrita da dissertação que embasa este artigo, dizendo com e para a/os adolescentes e trabalhadores da Socioeducação: vocês merecem o sol, a circulação e o apoio. Com equidade, todas e todos que sofremos, merecemos.

 

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Endereço para correspondência
Kiara Olivett - kiara.olivett@gmail.com

Recebido em: 15/04/2024
Aceito em: 08/10/2024

 

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado da primeira autora pela Agência CAPES/Fundação Araucária - Processo 88887.644557/2021-00 e esta pesquisa fez parte de projeto guarda-chuva este projeto de pesquisa teve financiado pelo Programa Pesquisa para o SUS: Gestão Compartilhada em Saúde da Fundação Araucária.

Agradecimentos: As autoras agradecem as trabalhadoras e aos trabalhadores as Socioeducação e as trabalhadores da Secretaria de Saúde do Paraná pela participação na pesquisa.

 

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