Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e83530, doi:10.12957/epp.2024.83530
ISSN 1808-4281 (online version)

 

DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE

 

Relato de Experiência: Psicodrama, Educação e Cárcere - Encruzilhadas Emergentes

 

Experience Report: Psychodrama, Education, and Prison - Emerging Crossroads

 

Relato de Experiencia: Psicodrama, Educación y Cárceles - Encrucijadas Emergentes

 

Pedro Afonso de Oliveira a, Maria Aparecida Fernandes Martin b

a Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama, São Paulo, SP, Brasil
b Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama, São Paulo, SP, Brasil e Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Este artigo parte da descrição de um projeto nomeado "Teatro Terapêutico" realizado em uma unidade penitenciária de regime fechado, com o intuito de promover a interlocução do psicodrama, da psicologia social e da pedagogia do oprimido na atuação clínica. Durante as doze sessões de psicoterapia grupal realizadas com vinte e três participantes, foram utilizados recursos artísticos como poesia, desenho, dança e artes cênicas, especialmente na modalidade de teatro espontâneo, a fim de promover a formação de uma identidade grupal e facilitar a expressão dos envolvidos. Foi valorizada uma atuação horizontal e que considera o protagonismo do sujeito em seu próprio processo terapêutico e existencial. Apesar dos desafios enfrentados no contexto do cárcere, observaram-se alcances no alívio do sofrimento psíquico e no desenvolvimento psicossocial dos participantes. O texto tem como objetivo apresentar uma clínica grupal que viabilizou a participação ativa e coletiva dos integrantes do grupo, promoveu encontros entre as subjetividades e estimulou a reflexão crítica sobre questões sociais e raciais que atravessam o contexto do cárcere. Além disso, compreende o cuidado com a saúde mental como ato político na construção de novas trajetórias na esfera coletiva e individual.

Palavras-chave: psicodrama, teatro espontâneo, protagonismo, psicoterapia de grupo, sistema penitenciário.


ABSTRACT

This article is based on the description of a project named "Therapeutic Theater" carried out in a closed regime penitentiary unit, aiming to foster reflections between the interconnection of psychodrama, social psychology, and the pedagogy of the oppressed in clinical practice. During the twelve group psychotherapy sessions conducted with twenty-three participants, artistic resources such as poetry, drawing, dance, and performing arts, especially in the form of spontaneous theater, were used to promote the formation of a group identity and facilitate the expression of the participants. A horizontal approach was valued, considering the subject's protagonism in their own therapeutic and existential process. Despite the challenges faced in the prison context, achievements were observed in alleviating psychological distress and in the participants' psychosocial development. This paper aims to present a group clinic that enabled active and collective participation of group members, fostered encounters between subjectivities, and stimulated critical reflection on social and racial issues inherent in the prison context. Furthermore, it understands mental health care as a political act in building new trajectories in both collective and individual spheres.

Keywords: psychodrama, spontaneous theater, protagonism, group psychotherapy, prison system.


RESUMEN

Este artículo parte de la descripción de un proyecto denominado "Teatro Terapéutico" realizado en una unidad penitenciaria de régimen cerrado, con el objetivo de fomentar reflexiones entre la interconexión del psicodrama, la psicología social y la pedagogía del oprimido en la práctica clínica. Durante las doce sesiones de psicoterapia grupal llevadas a cabo con veintitrés participantes, se utilizaron recursos artísticos como poesía, dibujo, danza y artes escénicas, especialmente en forma de teatro espontáneo, para promover la formación de una identidad grupal y facilitar la expresión de los participantes. Se valoró un enfoque horizontal, considerando el protagonismo del sujeto en su propio proceso terapéutico y existencial. A pesar de los desafíos enfrentados en el contexto penitenciario, se observaron logros en la mitigación del malestar psicológico y en el desarrollo psicosocial de los participantes. El texto tiene como objetivo presentar una clínica grupal que permitió la participación activa y colectiva de los miembros del grupo, fomentó encuentros entre subjetividades y estimuló la reflexión crítica sobre cuestiones sociales y raciales inherentes al contexto penitenciario. Además, comprende el cuidado de la salud mental como un acto político en la construcción de nuevas trayectorias tanto en el ámbito colectivo como individual.

Palabras clave: psicodrama, teatro espontáneo, protagonismo, psicoterapia de grupo, sistema carcelario.


 

 

O presente artigo é fruto de um projeto denominado "Teatro Terapêutico" realizado em uma unidade penitenciária brasileira de regime fechado. Este se refere à oferta de atendimentos psicoterapêuticos grupais a vinte e três participantes privados de liberdade. O coordenador da intervenção é o autor principal deste artigo e tem histórico de atuação na área de educação social com experiência em projetos sociais no sistema socioeducativo e penitenciário.

Neste texto pretende-se, através da descrição de algumas sessões do mencionado projeto, observar a interlocução entre a psicologia social crítica, a pedagogia do oprimido e o psicodrama na construção de uma práxis clínica política. Neste sentido, a encruzilhada destes saberes viabiliza uma relação de horizontalidade para com os participantes do grupo terapêutico em tela, na qual o terapeuta ocupa papel de facilitador, proporcionando ao processo a possibilidade de circulação e valorização de conhecimentos cotidianos importantes para a sobrevivência no cárcere.

O cárcere é uma prática antiga, registrada desde 1700 a.C. no Egito, inicialmente para manter escravos sob custódia. No entanto, segundo Foucault (1975) em "Vigiar e Punir", a privação de liberdade começou a ser usada como pena a partir do século XIV. Antes disso, o cárcere era usado principalmente como custódia até o julgamento. Foucault analisa como o sistema penal "evoluiu" de tortura e execuções públicas para prisões, levantando questões sobre os impactos sociais de uma sociedade que prende. Segundo o Instituto de Pesquisa de Política Criminal (Jacobson et al. 2017), há mais de 10 milhões de pessoas presas em todo o mundo, distribuídas pelos seis continentes.

Segundo dados do Infopen de 2019, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com cerca de 770 mil presos, dos quais 34,7% estão aguardando julgamento (Departamento Penitenciário Nacional & Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019). O Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022) destaca que 68,2% da população carcerária são pessoas negras. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2015) revelou que a maioria das pessoas presas têm baixa escolaridade, com apenas 8,5% dos homens e 14% das mulheres tendo completado o ensino médio. Tal cenário é reflexo de aspectos culturais e sócio-históricos da sociedade brasileira, sendo a compreensão destes atravessamentos de caráter importante para uma atuação da psicologia neste contexto de forma coerente e efetiva.

Conforme argumentado por Santos e Hur (2024) no texto presente na obra "Ética e Política Contra Colonial", uma abordagem clínica que busca apenas a adaptação do sujeito às estruturas ou relações que causam sofrimento, sem um questionamento crítico e uma reflexão sobre a esfera política e social que as permeiam, acaba por transformar a relação terapêutica em apenas mais um dispositivo opressor sobre essas vidas. Essa perspectiva ecoa a compreensão de Paulo Freire (1970) em sua obra "Pedagogia do Oprimido", que enfatiza como uma pedagogia fundamentada em interesses egoístas e na perspectiva da classe dominante se torna um instrumento de desumanização e opressão.

O alcance de uma prática clínica e do fazer terapêutico em um ambiente carcerário, não diz respeito à adaptação do sujeito às condições em que está submetido, mas à uma compreensão dos atravessamentos que constituem a trajetória histórica daquele que habita o papel social de presidiário. Tal prática tem como fim um desenvolvimento emocional e o bem-estar individual dos sujeitos constituintes do processo terapêutico, mas não se limita a isso, objetivando-se também alcançar na esfera coletiva, política e social, a produção de uma consciência crítica. A interlocução entre as áreas da psicologia clínica e social, promove uma compreensão mais assertiva do processo de subjetivação e dos impactos das relações entre sujeito e meio.

O psicólogo social Ciampa (2000), argumenta que a identidade deve ser compreendida como um processo dinâmico e em constante transformação, fortemente influenciado pelas interações sociais e condições históricas de cada sujeito. Para ele, a identidade não é um atributo fixo, mas uma construção contínua influenciada por fatores sociais e culturais. A partir dessa compreensão, a prática psicoterapêutica no contexto carcerário deve considerar como as experiências e as estruturas sociais afetam a construção da identidade dos indivíduos e o processo de subjetivação dos mesmos, visando promover o desenvolvimento psicossocial, bem como uma crítica às estruturas que perpetuam a marginalização e a exclusão.

Em um artigo de 1996, Martín-Baró destaca a importância do reconhecimento entre os psicólogos latino-americanos na definição de seu papel e identidade profissional na sociedade. Ele argumenta que é mais interessante examinar a situação histórica e as necessidades de seus povos do que definir rigidamente o escopo da psicologia como ciência ou atividade. Martín-Baró também aponta que definições genéricas de outras origens socioculturais frequentemente levam a uma compreensão limitada das realidades enfrentadas pelos povos latino-americanos, sendo inadequadas para uma compreensão sóbria e assertiva da realidade social e cultural (Martín-Baró, 1996).

A predominância de pessoas negras em situação de cárcere no Brasil reflete a compreensão do racismo preconizada por Gonzalez e Hasenbalg (1982), enquanto um componente estruturante das instituições e políticas públicas. A autora argumenta que o racismo está integrado nas estruturas sociais e econômicas do país, resultando em desigualdades e injustiças sistemáticas que afetam desproporcionalmente a população negra. Gonzalez destaca que essa estrutura racista é sustentada por uma combinação de fatores históricos, culturais e políticos que perpetuam a exclusão e marginalização dos negros. Isso inclui a forma como são tratados pelo sistema de justiça e pelas instituições carcerárias, refletindo a persistente desvantagem e opressão enfrentadas por essa população.

De acordo com um relatório divulgado em 2022 por uma colaboração entre o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), os índices de reincidência no Brasil entre 2010 e 2021 atingiram 42,5%. No estudo, a reincidência é definida como qualquer retorno ao sistema prisional por decisão judicial, fuga ou progressão de pena (Depen, 2022).

Embora o presente estudo não se proponha a discutir a questionável eficácia do sistema penitenciário, a apresentação desses dados nos oferece uma dimensão dos (não) alcances desse sistema em relação à redução da criminalidade e reinserção social dos nomeados "reeducandos". As prisões são espaços historicamente caracterizados pela violação de direitos e condições desumanas, estas que produzem consequências subjetivas e objetivas importantes nos sujeitos submetidos a ela. No Brasil, a experiência do cárcere é atravessada pela superlotação, pela ausência de assistência social, psicológica e médica, bem como pela precariedade nas condições de alimentação e higiene, fatores que desencadeiam diversos quadros de saúde.

A grande questão / contradição que se manifesta nesse estudo é a intenção de proporcionar um ambiente psicoterapêutico, que em resumo busca aliviar e elaborar o sofrimento psíquico, dentro de um contexto que, por sua própria natureza, produz sofrimento psíquico, algo que na expressão popular frequentemente descreve-se como "enxugar gelo". No entanto, a proposição deste estudo compreende o cuidado com a saúde mental como forma de resistência política para a construção de novas trajetórias na esfera coletiva e individual. Esse cuidado é concebido como um contexto terapêutico que abre espaço para reflexões de ordem cultural, social e política, levando em consideração não apenas o sofrimento individual dos sujeitos, mas também o sofrimento decorrente de experiências sociais e raciais.

Nessa perspectiva, o uso do psicodrama se faz enquanto ato político, uma via para a liberdade, cerceada não apenas pela condição do cárcere, mas por muitos outros muros concretos e simbólicos que foram construídos na trajetória destes sujeitos. Os dados supramencionados apontam para um atravessamento da desigualdade socioeconômica e do racismo na subjetivação do público com o qual este trabalho se propôs atuar. O processo de subjetivação, um dos principais objetos de estudo da psicologia, é de ordem multifatorial e a produção dessas subjetividades se faz atravessada pelo sistema econômico, político e social vigente.

Como aponta Massaro (2020, p. 86), uma atuação crítica tem como fim "Desconstruir e reconstruir subjetividades. Nas ruas, onde a hierarquia social pode ser mais facilmente quebrada. No consultório. Em espaços públicos. Em hospitais. Em centro de eventos. Em escolas. Em indústrias e empresas. No inferno, se for necessário.". E sim, se faz necessário. Nomeado desta forma pelos sujeitos submetidos a ele, o cárcere no Brasil é simbolizado por muitos como um inferno na terra. Como disse Dexter, rapper e sobrevivente do cárcere, em sua música Oitavo Anjo: "Cadeia, um cômodo do inferno" (Omena, 2000).

J. L. Moreno é o precursor do psicodrama e da psicoterapia de grupo, tendo aberto caminhos para diversos teóricos do mundo no aprofundamento do estudo da íntima relação entre psicoterapia e arte. Além da compreensão do sujeito como um ser coletivo e social, o teórico enxergava nas artes cênicas um caminho fértil para a elaboração do sofrimento humano e para a terapêutica do sujeito em relação. Da mesma forma que outras abordagens têm como enfoque o comportamento ou o inconsciente, a abordagem em tela tem como objeto de estudo a relação. Quando pensamos no ato de relacionar-se sempre há um outro, seja um espaço físico, outra pessoa, uma instituição, enfim, sempre nos relacionamos a alguma coisa, daí advém a potencialidade do trabalho em grupo.

A dimensão grupal proposta pelo psicodrama tem como premissa o princípio da interação terapêutica, que considera que um paciente é agente terapêutico dos outros (Moreno, 1959/1974, p. 31). O psicoterapeuta, também chamado de diretor no contexto psicodramático, cumpre a função de facilitador de um processo terapêutico grupal dotado de sentido. A compreensão de grupo assumida na abordagem não é a de um aglomerado de sujeitos, mas de uma série de relações e intersubjetividades que produzem características inéditas na dimensão coletiva. De acordo com Moreno (1959/1974, p. 24), "indivíduos relativamente enfermos podem, mesmo assim, formar um grupo são".

Para o psicodrama, um sujeito saudável é marcado por dois atributos conceituais nomeados espontaneidade e criatividade. Ou seja, é saudável o sujeito que é capaz, na esfera coletiva e individual de dar novas respostas à antigas situações, transcendendo o pensamento e comportamento condicionado à conserva cultural, outro conceito moreniano, caracterizado por um sistema de valores que constitui parte do processo de subjetivação dos sujeitos na reprodução de hábitos e ideias previamente concebidas, por muitas vezes (ou sempre) influenciada por mecanismos opressores (Moreno, 1993).

O psicodrama se multiplica em diversas formas de atuação, utilizando-se na maioria das vezes do recurso da dramatização como emergente de conteúdos intra e interpsíquicos eminentes para o processo psicoterápico. No chamado onirodrama, utiliza-se das narrativas oníricas enquanto subsídio para o processo terapêutico. Desde as primeiras experiências psicodramáticas, existem registros do uso de sonhos por Moreno nos processos terapêuticos grupais. (Wolf, 1993)

Visando o compartilhamento de uma experiência teórico-prática e tendo a compreensão da importância de trabalhos de cuidado e atenção psicológica em ambientes de privação de liberdade, o presente estudo tem como objetivo observar um processo grupal fundamentado na atuação psicodramática aliada a psicologia social crítica e à pedagogia freireana com pessoas submetidas ao cárcere. Especificamente, buscaremos a) observar o uso de sonhos em processos grupais psicoterapêuticos; b) refletir sobre a arte enquanto mediadora de processos terapêuticos; e c) observar um diálogo entre a pedagogia freireana, a psicologia social crítica e o psicodrama na atuação clínica grupal.

 

Método

Trata-se do relato de experiência de um processo de psicoterapia psicodramática grupal no formato presencial, situação inicialmente não planejada para a pesquisa. Essa perspectiva surgiu ao longo do processo. Dessa forma, não foi possível a obtenção de aprovação prévia de um Comitê de Ética em Pesquisa para sua realização. Entretanto foram observados os aspectos éticos de acordo com a Resolução MS/CNS n.º 510 (2016) do Conselho Nacional de Saúde, obtendo-se o termo de consentimento livre e esclarecido dos participantes, bem como da instituição, que foram assinados no momento da decisão de escrever sobre o grupo. Na escrita deste estudo foram garantidos o sigilo e a confidencialidade da identidade dos participantes que foram nomeados com identificação numérica (Participante 1 ao 23). Além disso, foram realizadas algumas alterações nas descrições dos contextos das sessões de forma a preservar o sigilo de dados que poderiam fornecer qualquer identificação parcial ou total (Goldim & Protas, 2007). Ressalta-se que, de acordo com a resolução mencionada, não é necessário submeter ao Sistema de Comitês de Ética pesquisas que "objetiva[m] o aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito" (Resolução MS/CNS n.º 510, 2016).

Para a formação do grupo, o projeto foi anunciado nas salas de aula da unidade penitenciária que recebeu o projeto, observando o interesse dos presentes, e aberta a inscrição para os interessados. Participaram do processo vinte e três homens, com idades variando de 19 a 50 anos, todos privados de liberdade. Entre eles, todos pertenciam a classes socioeconômicas baixa ou média-baixa; 17 se autodeclararam pretos ou pardos, e 6 se autodeclararam brancos. O grupo estava composto em uma unidade penitenciária de regime fechado no estado de São Paulo.

Foram realizadas doze sessões semanais com três horas de duração cada. As sessões foram organizadas de acordo com a estrutura da sessão sociátrica, descrita por Malaquias (2012) que considera três contextos (social, grupal e psicodramático), três etapas (aquecimento, dramatização e compartilhar) e cinco elementos (diretor, ego auxiliar, protagonista, plateia e palco).

Durante as sessões foram utilizados diversos recursos artísticos, em especial o teatro, mas também poesia, desenho e dança, além de técnicas psicodramáticas para o manejo das sessões, em especial a técnica do duplo que consiste em expressar pelo protagonista emoções que ele tem dificuldades para perceber ou expressar, e a inversão de papéis, que consiste em trocar os participantes da cena de lugar, mas sobretudo de papel, levando-os a experienciar o papel do outro (Moreno, 1959/1974).

 

Resultados e Discussão

A condução do processo grupal norteou-se por princípios da pedagogia de Paulo Freire e pelo teatro espontâneo de Jacob Levy Moreno e Moysés Aguiar, compreendendo uma interlocução entre ambos enquanto produtora do papel de um psicoterapeuta/diretor/educador que tem como escopo de sua atuação viabilizar a circulação de conhecimentos, sabedorias e significados através dos dispositivos teórico-práticos do psicodrama e da educação popular.

Em sua obra Pedagogia do Oprimido, Freire (1970) aborda uma compreensão de mundo constituído por consciências intersubjetivas, considerando uma necessidade colaborativa para o alcance da educação enquanto uma prática de liberdade. Na obra, Freire traz seu método de "círculos de cultura" enquanto um modelo de educação libertária, não "bancária", que possibilita que "os homens se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada implícita ou explicitamente, nas suas sugestões e nas de seus companheiros." (Freire, 1970, p. 76).

Tal compreensão de proposta pedagógica faz simetria com a metodologia de condução psicoterapêutica promovida no processo grupal em tela. A promoção de uma autonomia e protagonismo do sujeito em seu próprio processo de formação de identidade e das suas ideias e formas de compreender o mundo, foi premissa para toda e qualquer intervenção durante a atuação do facilitador do processo grupal.

Por sua vez, Moreno e Aguiar abordam o teatro espontâneo como forma de teatro interativo, no qual a improvisação é central. O psicodrama, empregado neste contexto, constitui um percurso terapêutico através de improvisações cênicas e de uma construção grupal coletiva, visando o desenvolvimento psicossocial tanto dos indivíduos quanto do grupo como um todo. Nessa perspectiva, quando mais livre se dá o fluxo criativo do processo, mais curto é o caminho para atingir a dimensão terapêutica pretendida. (Aguiar, 1998).

Além disso, a referência ao método proposto por Merengué (2024) na incorporação dos sonhos no dispositivo clínico psicodramático, descrito na obra "O Sonho Como Resistência - Psicodrama e Neoliberalismo", foi tida como norteadora para a compreensão do fazer deste projeto. Este autor apresenta uma abordagem que destaca a construção dialógica entre elementos compreendidos e não compreendidos presentes nos sonhos através de recursos investigativos e dramáticos. Tal metodologia surgiu como uma ferramenta importante a partir da quarta sessão deste processo terapêutico.

Desde o primeiro encontro, se propôs um trabalho com recursos de linguagem da arte, como a poesia, o desenho, a dança e, claro, o teatro. No primeiro encontro, os participantes se apresentaram ao grupo através de suas afinidades artísticas, discorrendo sobre os tipos de arte que gostam de consumir e/ou de produzir. Apareceram desde poesia, leitura, artes visuais, música até jardinagem e paisagismo.

Ao observar/prever certa apreensão e insegurança nos participantes com relação ao teatro, iniciou-se o processo através da poesia. Foram levadas diversas poesias breves do poeta brasileiro Sérgio Vaz (2021), impressas em uma folha, distribuída a cada participante. Feito isso, foi solicitado a cada um que lesse todas as poesias em silêncio e em seguida apresentasse ao grupo a poesia com a qual mais se identificou, se possível justificando a escolha. Tais poesias dispararam diversas reflexões e diálogos a respeito de seus possíveis sentidos e significados, além de se materializarem enquanto um recurso para a formação de uma identidade grupal.

Uma das premissas fundamentais de um processo grupal norteado pelo psicodrama, é a "cocriação", conceito moreniano que diz respeito à uma horizontalidade e participação coletiva nos produtos do grupo, sejam eles simbólicos ou concretos. Visando promover uma participação enquanto sujeitos ativos do processo, foi realizada, ainda no primeiro encontro, uma atividade de escrita criativa a partir das reflexões e poesias disparadoras. Embora a atividade de escrita tenha sido realizada individualmente, ela foi concebida como um primeiro passo para a formação de um repertório comum nas reflexões e inspirações de cada participante, tendo mais tarde sido utilizadas como subsídio para dramatizações produzidas de forma coletiva pelo grupo.

Nos encontros subsequentes, foi iniciado o trabalho com o corpo, dando continuidade a um processo grupal coparticipativo, objetivando-se a criação de um ambiente acolhedor e facilitador do desenvolvimento pessoal, centrado na promoção da autonomia dos participantes. Em virtude dos limites desta publicação, daremos ênfase a quatro encontros do processo grupal, visando através dos mesmos traduzir o alcance dos instrumentos teórico-práticos do psicodrama aliados à uma psicologia crítica e à fundamentos da pedagogia freiriana. Os encontros foram selecionados de forma a evidenciar o desenvolvimento do processo grupal.

2ª Sessão - (Des)controle dos Corpos

"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música" Carlin (1981)

O encontro se iniciou através de um aquecimento, em que cada participante verbalizou como chegava ao encontro. Foi possível dialogar sobre as dificuldades que cada um vinha encontrando no cotidiano do cárcere, bem como sobre aspectos pessoais de cada participante. Visando o trabalho com a corporeidade, foi planejada atividade com música, na qual o facilitador solicita para que os participantes circulem pela sala de forma livre e espontânea. Notou-se neste momento que o grupo apresentou movimentação circular, não ocupando o centro da sala, frente a isso foi sugerido que circulassem de forma não-linear, contudo rapidamente voltaram a andar em círculo, quando um deles justificou que todos os dias eles andam desta forma no pátio, chamado na linguagem popular do cárcere como "pedal". Em seguida, foi inserido um chapéu amarelo de caráter chamativo na atividade, sendo o objeto apresentado como dotado de um poder especial: quem estivesse vestindo-o controlaria, através de seu corpo, o corpo dos outros participantes do grupo. O chapéu passou de cabeça em cabeça, promovendo expressões não-convencionais da corporeidade, bem como um aquecimento dos corpos e uma descontração entre os participantes.

Após isso, formaram-se duplas e foi solicitado para que dialogassem entre si sobre momentos importantes de suas trajetórias de vida pessoais, podendo discorrer sobre uma circunstância agradável ou não de sua historicidade. Logo em seguida, os participantes foram orientados a circular pela sala novamente, desta vez dando uma corporeidade para a história que escutaram de suas duplas, mais em frente personificando essa corporeidade e dando nomes para cada "personagem". Nesta lógica, surgiram personagens como: Saudade, Liberdade, Alegria das Coisas Simples, entre outros. Ao voltarmos em formato de círculo, os participantes foram provocados a apresentarem-se a partir de seus personagens e o grupo foi escolhendo com quais personagens mais se identificaram. Os mais votados ocuparam o palco (contexto dramático) para dramatizar a partir de histórias reais compartilhadas pelos outros participantes, que voltaram para o contexto grupal e aos seus papéis.

Após o diálogo, o grupo se sentou e compartilhou as impressões do encontro. Alguns participantes comunicaram que nunca haviam dançado antes e que a experiência foi valiosa para eles. O Participante 11 compartilhou sua experiência no uso de álcool e drogas como lazer, reconhecendo o efeito positivo da dança em seu corpo e ressignificando sua concepção de lazer. Ele também compartilhou parte de sua história, mencionando que já acumula 14 anos de cárcere, demarcando os efeitos desse período em sua corporeidade. O Participante 13 observou a dificuldade do grupo em sair do condicionamento corporal imposto pelas regras da prisão, verbalizando: "esse lugar aprisiona nossas cabeças". Por fim, os participantes expressaram uma palavra sobre como estavam saindo do encontro, e esse foi encerrado.

5ª Sessão - O Drama do Cárcere

"Na cadeia a gente se sente coisa, mas aqui nessa sala a gente se sente humano."
Participante 18

O grupo inicia com um questionamento aos participantes de como tem se dado a relação de cada um com o espaço terapêutico que tem sido construído. O Participante 18 inicia verbalizando que tem sido benéfico, tendo utilidade na "luta contra uma depressão", dizendo ainda que gostaria que fosse mais vezes por semana, verbalizando também "quando a gente faz o que é novo, a gente se sente capaz e dá ânimo para acreditar que a gente vai sair daqui e ter outra caminhada, na cadeia a gente se sente coisa, mas aqui nessa sala a gente se sente humano". Por sua vez, o Participante 17 verbaliza "falar de teatro pra bandido é coisa muito dura" dizendo que quando chegou ao grupo estava receoso, porém ao perceber a potência de cada encontro tem tido uma outra percepção, proferindo: "nem todos somos os monstros que queremos representar dentro da cela, muitos tem um sofrimento muito grande no peito, mas não conseguem chorar". O Participante 19 diz compreender que a penitenciária é projetada para "fechar nossos corpos e trancar nossas mentes", dizendo ainda "fico feliz quando descubro que tem teatro, hoje eu nem lembrava do encontro, essa atividade me tira daqui por algumas horas". O Participante 4 indica que o grupo tem sido um respiro em seu cotidiano, verbalizando "A gente sofre pelas pessoas que estão lá fora, passando isso com a gente também, eu nem saio no sol direito, só quando precisa, geralmente fico na cela, passando os dias na maior neurose".

A partir da impressão de cada participante, foi possível dialogar junto aos mesmos sobre a natureza horizontal de construção deste processo grupal. Dialogamos sobre os sonhos que os participantes tiveram nesta semana e o Participante 9 verbalizou sobre um sonho em que corria em uma rua, quando um sujeito desconhecido passa por ele e diz para que ele corra mais rápido, momento em que ele acelera a velocidade e chega à um armário cheio de roupas de marcas, vestindo-as por fim. Dialogamos sobre atravessamentos culturais e políticos deste breve conteúdo onírico. Correr para alcançar é uma semiótica marcada na trajetória dos sujeitos ali presentes, tendo seus corpos atravessados pelo racismo e pela invisibilidade social. Dialogar sobre como essas marcas representam uma possibilidade de acesso a aqueles sujeitos foi possível na ocasião, tendo o grupo se engajado com o debate. O Participante 11 compartilhou sobre seu tio que vive em uma área rural, onde os símbolos das roupas de marca não têm influência em sua vida. Ele demonstrou admiração por esse estilo de vida mais simples e livre das pressões associadas ao status das marcas.

Em seguida falamos sobre outros sonhos, em especial o do Participante 11, que verbalizou "só sonho desgraceira mano, durmo pedindo à Deus um sonho bom, hoje achei que tava tendo um, mas o bagulho virou no final". Visto o potencial simbólico do sonho, sugeri a dramatização que foi consenso com o participante em tela e com o grupo. No sonho, o Participante 11 foi indicado para um trabalho na oficina mecânica onde seu padrasto trabalha. Ele trabalhou lá por uma semana até seu supervisor descobrir seu histórico criminal e o dispensar após uma conversa. Pela semana de trabalho, recebeu apenas cinquenta reais e um pacote de bolachas. O protagonista sentiu isso como um desrespeito do supervisor/patrão e no dia seguinte, ele voltou armado à oficina e a assaltou. Os participantes interessados em encenar foram convidados para o centro da roda, e o protagonista foi orientado a organizar a cena e nomear cada personagem. Após a representação da cena com seu desfecho, a plateia foi convidada a sugerir outras possibilidades, resultando em diferentes finais. Um deles envolveu a inversão de papéis entre o protagonista e o Supervisor, diante de uma dificuldade do protagonista em assumir um papel não violento quando se sente desrespeitado. Finalizada a cena, foi possível dialogar sobre como cada participante se sentiu e sobre os desfechos que se materializaram. Alguns dos participantes comentaram já terem experienciado cenas muito semelhantes em suas vidas pessoais. O Participante 17 comentou já ter trabalhado com construção civil e ter ocupado o papel de contratante, dizendo "eu acho que a pessoa tem que contratar pelo caráter e não pela história". O protagonista da cena nomeia seu sonho como um pesadelo, diz encontrar dificuldades quando em liberdade para se inserir no mercado de trabalho, refere que o crime é a única coisa que ele aprendeu a fazer, que nunca teve carteira assinada e que isso é um impeditivo para que uma pessoa o registre em um trabalho. Por fim, pudemos dialogar sobre essa forma de encurralamento social, ponto em comum entre muitos participantes do grupo.

7ª Sessão - Movendo Montanhas

"Através da vida dele eu consegui olhar pra minha vida, eu penso que o maior monte que eu tenho que enfrentar sou eu mesmo"
Participante 19

Iniciamos o grupo com uma retrospectiva do encontro anterior e discutimos os sentimentos relacionados ao final do ano, sendo este o último encontro do ano. O Participante 13, que havia faltado a três encontros, explicou que se afastou devido a uma internação para uma cirurgia na cabeça. Durante a internação, a assistente social o ajudou a retomar o contato com sua família, localizando sua mãe e informando-a sobre seu paradeiro. Após três anos encarcerado, ele revelou que sua família não sabia onde ele estava devido à fragilidade dos vínculos causados por seu uso abusivo de substâncias. O participante relata que, ao retornar à penitenciária após internação, recebeu uma carta de sua mãe, com quem não tinha contato desde antes de sua chegada ao sistema prisional. Contou que conteve as lágrimas até chegar à cela, onde chorou ao ler a carta. Verbaliza que está há três dias escrevendo uma resposta. Expliquei a ele sobre o andamento do processo grupal, nossas experiências com sonhos e outras atividades.

Ao falarmos sobre os sonhos, o Participante 13 referiu ter sonhado naquela noite, nos contou um sonho que se destacou pelo potencial simbólico e pela profunda relação com a história que havia acabado de nos contar. Ao nos levantarmos, fez algumas contas e verbalizou: "preciso de dez pessoas", os outros integrantes do grupo atentos e disponíveis à vivência teatral se mobilizam. O contexto dramático se constitui dando origem aos personagens da cena, montamos o cenário e através deste cada personagem foi se materializando. A cena inicia com uma caminhada na comunidade, onde o agora protagonista da cena, (personagem que traz para si a emoção, movimenta e sensibiliza para o drama) se encontra com o personagem Bigode, representado pelo Participante 2. Na interação, pergunta à Bigode se poderia conseguir um trabalho para ele, visto que havia saído da cadeia e precisava se organizar financeiramente. Bigode o leva até uma montanha de terra (descrita pelo participante como significativamente grande), com uma carriola na frente, dizendo que precisava subir essa terra para um outro terreno e que pagaria a diária para ele fazer isso, o protagonista fez um acordo e aceitou o serviço. Em seguida, através dos caminhos não lineares que os sonhos percorrem, o participante aparece na casa do seu tio João, estando na cena o seu tio, sua tia e uma prima. Ao congelarmos a cena, o protagonista menciona que seu tio João sempre foi uma figura de referência para ele, tendo o auxiliado na sua luta contra a adicção. Na ocasião realizamos uma técnica de inversão de papéis e de duplo, dialogando sobre o sentimento do protagonista ao encontrar-se com essa figura. No diálogo com seu tio, o protagonista pergunta se poderia dormir na casa do mesmo, e este confirma essa possibilidade. Na próxima cena, seguindo a mesma (não) linearidade, o protagonista aparece na casa de sua avó, a sra. Maria, que segundo a descrição do protagonista é benzedeira e uma pessoa de vasta sabedoria. Na cena, a avó, representada pelo Participante 18, dá orientações para o protagonista, pedindo para que ele faça escolhas sábias.

Após o fechamento da cena, voltamos às cadeiras e sentamos em roda para o compartilhamento. Foi possível simbolizar a montanha enquanto o desafio de reatar as relações do participante que protagonizou a cena, como algo a se fazer de pouco em pouco, dia após dia, carriola por carriola. O participante aponta que não tem contato com ninguém de sua família há três anos, tendo sido irresponsável com seus familiares antes de sua prisão. A cena dramatizada reverberou em outros participantes. O Participante 2 mencionou que em sua primeira prisão não recebeu nenhuma carta ou visita de familiares, contando ter sido preso novamente por negligência com relação à liberdade assistida. O Participante 6 proferiu palavras de motivação ao Participante 13, dizendo que a cena trabalhada no encontro tem a ver com esperança e que seus familiares ainda acreditam nele.

O simbolismo da sessão refletiu as histórias individuais dos participantes. O encontro terminou com a pergunta: "qual é a sua montanha?". Alguns mencionaram o desafio do cotidiano no cárcere, enquanto outros falaram sobre suas relações familiares. O Participante 22 destacou os cuidados com sua avó e que "visita não vem de qualquer um". O Participante 19 disse: "o maior monte que eu tenho que enfrentar sou eu mesmo". O Participante 13 afirmou que seu sonho revelou desafios, mas sente-se capaz de mudar sua vida. Finalmente, o Participante 2 perguntou ao diretor: "qual é a sua montanha?". O diretor respondeu que sua montanha é o processo grupal e o uso da arte como ferramenta terapêutica, política e transformadora.

 

Análise das Sessões

A promoção de um fazer pautado na psicologia social, no psicodrama e na pedagogia freiriana, envolve o protagonismo dos participantes no processo terapêutico e psicodramático, bem como no desenvolvimento de um pensamento crítico a partir das reflexões e circulação de saberes que as dramatizações, rodas de conversas e diálogos grupais puderam promover.

Na segunda sessão, foi observada a formação de uma identidade grupal e da construção de vínculo entre o facilitador e cada participante do grupo, as reflexões e conteúdos emergidos neste encontro subsidiaram o (não) planejamento dos próximos. A premissa que se trabalha em um processo grupal fundamentado no psicodrama é o princípio da espontaneidade-criatividade, que não deixa de fora o terapeuta/diretor, tendo o improviso como parte de seu fazer.

Observa-se na fala do Participante 13 "esse lugar aprisiona nossas cabeças", a demarcação do conceito antagônico à espontaneidade-criatividade, que é o da conserva cultural. Conforme apontado anteriormente, o conceito se refere à cristalização na expressão do sujeito, produzido e reproduzido pelo contexto social. Ao encontrarem dificuldades para expressar-se livremente no exercício da caminhada, os participantes se conscientizam sobre como o cárcere também reflete em suas subjetividades, afetando sua espontaneidade e criatividade.

O conceito de "conserva corporal" concebido pela psicodramatista Vomero (2024), nos ajuda na compreensão de como as subjetividades corporais que habitam o cárcere são atravessadas historicamente por violências concretas e simbólicas perpetuadas por ideologias eugenistas, racistas e coloniais, que constituem heranças culturais do histórico de invasões e desterritorializações na construção do Brasil como país. Nas palavras da autora:

"toda violência sobre o corpo-território compõe exercícios de poder atualizados e, ao mesmo tempo, mantidos por meio de conservas coloniais e corporais para que suas estruturas não sejam abaladas. A conserva corporal atua para marcar, controlar, regular, "normalizar" o corpo e, assim, manter o seu comportamento disciplinado e útil" (Vomero, 2024, p.48).

Aquele que está privado de sua liberdade, também está privado de suas relações familiares, conjugais e comunitárias, aspecto que se manifestou como pauta permanente do processo grupal em tela. Lidar com a distância de tais relações afetivas é desafio cotidiano na cadeia e impacta na socialização dos sujeitos. Um ponto observado ao longo dos encontros, são as relações de carinho corporal que os sujeitos em situação de cárcere mantêm entre si. Durante o compartilhamento ou aquecimento grupal, não era incomum perceber um participante trocando afetos físicos com outro, trocas como mexer no cabelo, fazer um carinho na orelha, ficar abraçado, entre outras.

Compreendemos tais afetos como mecanismos de resistência ao cárcere, recursos afetivos subversivos que atendam as necessidades de seus corpos. Talvez um rompimento da conserva corporal da masculinidade, construída sob ideologias homofóbicas e patriarcais. Apesar de manifestarem pensamentos e ideias homofóbicas, por conta do atravessamento sócio-históricos que compõe o processo de subjetivação dos homens, os participantes demonstravam relações de afetividade corporal entre si, de forma legitimada e naturalizada.

Freire (1970), propõe reflexões a respeito de um antagonismo entre a educação bancária, prevalente no Brasil, e a educação libertária, que consiste em uma metodologia educativa de comunhão entre educador e educando. Na última, além da produção de conhecimento, se produz também consciência histórica no sujeito, que na percepção de Freire, consiste em um processo fundamental para que os indivíduos se reconheçam e reflitam criticamente sobre sua condição de existência. No prefácio da obra Pedagogia do Oprimido, o professor Ernani Maria Fiori, explora ainda mais a concepção de consciência histórica e coloca-a enquanto uma premissa para uma "consciência historiadora", que por sua vez constitui em uma relação existencial com o mundo de forma protagônica e consciente, como um "sujeito que escreve sua própria história".

Tal processo se finda enquanto forma de resistência ao processo de "dessubjetivação", descrito por Foucault como a fragmentação e a perda da identidade subjetiva provocada por instituições que impõem normas e controles rigorosos. Foucault analisa como esses mecanismos de poder e disciplina desintegram a subjetividade do indivíduo, reduzindo-o a um estado de conformidade e sujeição (Milanez, 2021). Em contraste, a oferta de espaços de expressão e reflexão dentro do cárcere, como o teatro e a arte, pode fornecer aos indivíduos a oportunidade de reconstruir e afirmar suas identidades, resgatando aspectos da sua subjetividade que foram ameaçados pela experiência carcerária. De forma explícita na fala do Participante 18: "Na cadeia a gente se sente coisa, mas aqui nessa sala a gente se sente humano."

Na terceira sessão, foi dado início ao trabalho com dramatização, utilizando as poesias produzidas pelos participantes no primeiro encontro como subsídio para a composição das cenas. A condução pela metodologia do Teatro Espontâneo, prevê que não há espectadores passivos no processo, promovendo a interação direta da plateia no exercício dramático. Neste contexto, os participantes iniciaram relação afetiva para com o grupo terapêutico, tornando esse espaço uma influência importante na constituição identitária desses sujeitos.

O cárcere constitui geopolítica onde a identidade vinculada ao universo do crime é cultuada e onde poderes paralelos se sustentam e organizam regras de comportamento e conduta. Como os próprios participantes descrevem, neste contexto eles "respiram o crime", havendo cotidianamente conversas sobre experiências envolvendo práticas infracionais e sobre a política do crime. Tais aspectos identitários são impressos nas tatuagens, na linguagem e na corporeidade das pessoas sujeitas ao cárcere. O "grupo do teatro", como chamado pelos participantes do projeto, rompeu com as barreiras da sala de atendimento e transbordou-se nas relações pelo corredor da unidade penitenciária, compondo a possibilidade de uma identidade coletiva, coligada pela arte e pelas reflexões ocorridas no processo grupal, sendo compreendida pelos próprios participantes como interações saudáveis em um contexto hostil.

O trabalho com os sonhos se iniciou na quarta sessão e continuou sendo o foco principal dos atendimentos seguintes do processo grupal. Na quinta sessão, destaca-se a potencialidade das reflexões possíveis através dos atalhos que o trabalho com os sonhos permite. O breve sonho do Participante 9, no qual este corria em uma rua e se depara com um armário com roupas de marca, propôs um debate ao grupo sobre aspectos políticos e sociais importantes. O conceito de sujeito neoliberal, proposto por Dardot e Laval (2016), descreve a forma como a ideologia neoliberal influencia o processo de subjetivação dos indivíduos, moldando sua percepção de si mesmos e suas aspirações. Segundo os autores, tal ideologia promove uma ênfase exagerada na autonomia pessoal e na acumulação de bens e status, em detrimento de preocupações coletivas e sociais. O conteúdo onírico emergiu a discussão sobre como o sistema capitalista e suas ideologias dominantes não só afetam os desejos e sonhos individuais, mas também moldam as percepções sobre si mesmos e seus valores.

A concepção proposta por Lane (1984) sobre o caráter histórico de um grupo enfatiza que "o significado da existência e da ação grupal só pode ser encontrado dentro de uma perspectiva histórica que considere a sua inserção na sociedade, com suas determinações econômicas, institucionais e ideológicas" (Lane, 1984, p. 81). Este conceito se alinha com o conceito de J.L. Moreno sobre o contexto social, que entende o grupo como uma estrutura dinâmica onde as interações dos indivíduos não ocorrem isoladamente, mas são moldadas e influenciadas por uma rede de fatores sociais e históricos. No caso do Participante 11, na quinta sessão, a dificuldade em encontrar respostas alternativas ao personagem Supervisor reflete não apenas suas experiências pessoais, mas também os aspectos sociais e históricos que influenciam nas suas possibilidades de interação. Assim, o trabalho com técnicas psicodramáticas como a inversão de papéis e o duplo possibilita explorar novas formas de resposta, considerando as complexas interações entre o indivíduo e o contexto social em que está inserido.

Na última sessão analisada, o grupo já havia constituído um vínculo mais fortalecido, o que permitiu um aprofundamento significativo no processo terapêutico. A partir do método proposto por Merengué (2024), o conteúdo onírico do Participante 13 foi subsídio para acessar e processar conteúdos intrapsíquicos importantes. Observando uma relação direta entre a história que o participante conta no início da sessão e o conteúdo simbólico de seu sonho, foi possível dialogar e refletir sobre questões centrais da vida do sonhador.

Além disso, o conceito de "emergente grupal" proposto por Alves (1999) se fez presente ao evidenciar como o sonho do Participante 13 ativou uma dinâmica coletiva, trazendo à tona temas relevantes para o grupo como um todo. O sonho se tornou um espelho das preocupações e desafios compartilhados, e a dramatização do sonho no grupo permitiu que o "protagonista" da cena, como definido por Alves, ocupasse um papel central, facilitando a expressão e exploração das emoções grupais.

A construção simbólica da "montanha" como um desafio a ser enfrentado ajudou não apenas o Participante 13 a refletir sobre suas próprias dificuldades, mas também proporcionou aos outros membros do grupo uma oportunidade de examinar suas próprias "montanhas". Assim, a utilização deste sonho no processo grupal, promoveu o crescimento emocional e a coesão dentro do grupo terapêutico.

 

Considerações Finais

O fazer do psicodrama no ambiente carcerário promoveu um processo grupal possível e potente, que alcançou, através dos atalhos viabilizados pelos sonhos e pela arte, uma dimensão terapêutica coletiva e individual nos sujeitos participantes. A promoção da espontaneidade e da criatividade através da metodologia do teatro espontâneo, aliada a perspectiva crítica da psicologia social e pedagogia freireana, viabilizou uma intervenção clínica, política e educativa.

O propósito deste estudo é questionar o papel da psicologia contemporânea, buscando maneiras sóbrias de desenvolver uma abordagem crítica e latino-americana. A construção de caminhos na interlocução entre teorias e fazeres da psicologia e da educação, no sentido de uma práxis crítica e coerente à nossa realidade, se faz de suma importância para uma resistência política contra os mecanismos opressores produtores de sofrimento psíquico. Além disso, reconhecemos que a promoção e criação de políticas públicas que garantam o acesso de indivíduos, social e economicamente marginalizados, aos serviços de saúde mental devem estar na agenda dos profissionais da área, nas discussões de nossa categoria.

Feito isso, o presente estudo sugere ao leitor a continuidade de fazeres críticos da psicologia em espaços que necessitam de profissionais da área. Construir espaços terapêuticos para além da geografia cerceada pela clínica enquanto um consultório elitizado em regiões centrais da polis é dever do psicólogo social e clínico comprometido com um fazer político da ciência e profissão.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Pedro Afonso de Oliveira - psi.oliveirapedro@gmail.com

Recebido em: 14/04/2024
Aceito em: 11/09/2024

 

Agradecimentos: Os autores agradecem as/aos seus colegas de trabalho, profissão e estudos que participaram e participam de seus processos formativos, educadoras/es, terapeutas ocupacionais, psicóloga/os, assistentes sociais, pedagogas/os, e principalmente aos integrantes do grupo que este trabalho propôs atuar, que tanto nos ensinaram ao longo dos encontros.

 

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