Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e83500, doi:10.12957/epp.2024.83500
ISSN 1808-4281 (online version)
DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE
Sexualidade e Gênero: Cartografando Entraves para Visita Íntima no Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro
Sexuality and Gender: Cartographing Obstacles to Intimate Visits in the Socio-Educational System of Rio de Janeiro
Sexualidad y Género: Cartografando Obstáculos para las Visitas Íntimas en el Sistema Socioeducativo de Río de Janeiro
Juraci Brito da Silva a, Bárbara Silva da Rocha a
, Lana Pereira Mattos a
a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Este artigo tem como objetivo cartografar como o sistema socioeducativo se posiciona frente à possibilidade de implantação da visita íntima, bem como as expectativas de um grupo de adolescentes ao vislumbrarem a garantia desse direito. A discussão sobre o tema abarcou os direitos sexuais e os direitos reprodutivos a partir da agenda de gênero e sexualidade. Foram realizados 03 encontros na modalidade de oficina com 11 adolescentes, entre 15 e 17 anos de idade, em uma unidade feminina da cidade do Rio de Janeiro. A visita íntima é direito garantido pela Lei Federal n° 12.594 de 2012, tendo como finalidade a convivência familiar, o fortalecimento dos vínculos entre o casal e a promoção à saúde. Os conceitos de analisador e recalcitrância foram utilizados para compreender os recursos acionados pela instituição, sendo a segurança elemento regulador da ordem interna. Nossa aposta é que estudos como este constituem-se como elementos catalisadores de um debate interessado na efetivação de políticas comprometidas com os direitos sexuais e os direitos reprodutivos das/os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa.
Palavras-chave: sexualidade, gênero, cartografia, visita íntima, socioeducação.
ABSTRACT
The aim of this article is to cartography how the socio-educational institution positions itself regarding the possibility of intimate visits and the expectations of adolescent girls when envisioning the guarantee of this right. The discussion on the topic encompassed sexual rights and reproductive rights, based on the gender and sexuality agenda. Three workshop-style meetings were conducted with 11 adolescents, aged between 15 and 17 years old, in a female unit in the city of Rio de Janeiro. Intimate visits are a right guaranteed by Federal Law No. 12,594 of 2012, with the purpose of family coexistence, strengthening bonds between couples, and promoting health. The concepts of analyzer and recalcitrance were used to understand the resources employed by the institution, with security acting as a regulatory element of the internal order. Our belief is that studies like this serve as catalysts for a debate focused on the implementation of policies committed to the sexual rights and reproductive rights of adolescents undergoing socio-educational measures.
Keywords: sexuality, gender, cartography, intimate visit, juvenile justice system.
RESUMEN
El objetivo de este artículo es cartografiar cómo la institución socioeducativa se posiciona frente a la posibilidad de la visita íntima y las expectativas de las adolescentes al vislumbrar la garantía de este derecho. La discusión sobre el tema abarcó los derechos sexuales y los derechos reproductivos desde la perspectiva de la agenda de género y sexualidad. Se realizaron 03 encuentros en modalidad de taller con 11 adolescentes, de entre 15 y 17 años de edad, en una unidad femenina en la ciudad de Río de Janeiro. La visita íntima es un derecho garantizado por la Ley Federal n.º 12.594 de 2012, que busca promover la convivencia familiar, fortalecer los vínculos entre las parejas y promover la salud. Se utilizaron los conceptos de analizador y recalcitrancia para comprender los recursos empleados por la institución, siendo la seguridad un elemento regulador del orden interno. Nuestra apuesta es que estudios como este se constituyan en elementos catalizadores de un debate centrado en la implementación de políticas comprometidas con los derechos sexuales y los reproductivos de las/los adolescentes que cumplen medidas socioeducativas.
Palabras clave: sexualidad, género, cartografía, visita íntima, sistema de justicia juvenil.
Este artigo retrata uma seção de uma pesquisa de doutorado realizada entre 2019 e 2023 por um dos autores em uma unidade socioeducativa de internação feminina na cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa, registrada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o nº CAAE: 34866520.3.0000.5282, analisou como são acionados os dispositivos: sexualidade, gênero, segurança, sexo, medo, desconfiança, quando dos esforços pela efetivação da visita íntima na perspectiva dos direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes em privação de liberdade cumprindo medida socioeducativa de internação. O direito à visita íntima encontra-se assegurado pela Lei Federal n.º 12.594 (2012) e compreende o exercício pleno da sexualidade, a convivência familiar, o fortalecimento dos vínculos entre o casal, a promoção e o cuidado em saúde, além da prevenção de diferentes formas de violência.
Nosso objetivo neste texto é cartografar como o sistema socioeducativo se posiciona frente à possibilidade de implantação da visita íntima, bem como as expectativas de um grupo de adolescentes ao vislumbrarem a garantia desse direito que se encontra "esquecido". A discussão e as análises são resultados de uma oficina realizada com adolescentes numa unidade feminina na cidade do Rio de Janeiro. Seguiram-se 03 encontros com 11 adolescentes entre 15 e 17 anos de idade, dentre as quais, uma jovem vivia a experiência gestacional e, outra, mãe, à época, recebia visita frequente do filho. A proposta da oficina era proporcionar um espaço onde as adolescentes pudessem falar de seus desejos, sonhos, alegrias e frustrações. Cumpre destacar que, nesta discussão, colocamos como perspectiva os direitos sexuais e os direitos reprodutivos a partir das proposições teóricas pós-estruturalistas de gênero e sexualidade.
Na pesquisa de Brito da Silva (2023), foi discutido o quanto a possibilidade de implantação da visita íntima desestabiliza a rotina institucional, pautada na disciplina e no controle dos corpos, e que tem a segurança como elemento que delimita seus contornos (Foucault, 2009). Por isso, essa temática e as questões que ela provoca raramente são inseridas nas propostas de atividades desenvolvidas pelos setores vinculados ao atendimento técnico, ao atendimento de saúde integral, às dinâmicas escolares, desportivas, entre outras. Assim, partimos da perspectiva metodológica da cartografia psicossocial e da pesquisa-intervenção, referenciadas por Romagnoli (2014), para pensarmos o que ocupa a cena. Segundo a autora, a pesquisa cartográfica e a pesquisa-intervenção se entrelaçam e se produzem no encontro com o objeto de estudo, diante da impossibilidade de não haver "zonas de interferências e de indeterminações, que podem, ou não, levar a desestabilizações" (Romagnoli, 2014, p. 50). Nesse plano, para a autora, produzir conhecimento é desestabilizar, transformar, inventar, sempre - e isso é intervir.
Diante disso, no decorrer da elaboração da escrita deste texto, compreendemos ser fundamental pôr em análise nossas implicações enquanto psicólogas/os pesquisadoras/es, estudante de psicologia e funcionário da instituição socioeducativa para pensarmos como os diferentes lugares produziram efeitos na organização, nas adolescentes e em nós. Do ponto de vista teórico, utilizamos os conceitos de analisador e recalcitrância para discutir o quanto as questões de gênero e sexualidade são percebidas como ameaçadoras da ordem no espaço da socioeducação. Constantemente invisibilizadas, quando aparecem, enfrentam uma série de entraves e resistências ou são distorcidas para se fazerem palatáveis ao modus operandi da instituição.
Assim, faz-se necessário considerar o analisador como um conceito-ferramenta forjado por Guattari (2004), que evidencia forças em disputa nos territórios, nas sociedades, culturas e instituições. Na pesquisa que originou este artigo, a segurança comparece enquanto analisador que faz ver os não-ditos; aqui, dispositivos como: sexualidade, gênero e visita íntima, os quais são operacionalizados na instituição socioeducativa para um uso regulado e disciplinado (Franco et al., 2023). Em outras palavras, a segurança funciona como um elemento regulador da ordem interna da instituição e se faz presente, por vezes, de forma muito dura, quando essa dita ordem é ameaçada. Nesse sentido, a segurança emerge como um dispositivo que explicita o jogo de forças entre o que pode e o que não pode aparecer na instituição disciplinar.
A recalcitrância, por sua vez, é um conceito da Teoria Ator-Rede (TAR) que busca apreender os efeitos, os entraves, as potências das resistências produzidas no campo de pesquisa, nas vivências sociais, entre outros. Propor e realizar uma oficina para discutir a visita íntima em uma unidade feminina de privação de liberdade, suscitou inúmeras questões. A recalcitrância, de acordo com Ferreira (2015), é uma das formas da resistência se apresentar e, ao mesmo tempo, produzir saídas, escapes às durezas da vida, sendo mais evidente na instituição-prisão. No contexto em análise, a oficina engendrou a expressão livre de sentimentos e experiências compartilhadas por meio das histórias narradas pelas adolescentes. Espaço destinado a falar sobre sexualidade, possibilidade de visita íntima e outros temas ainda pouco discutidos na/pela instituição, apesar dos 12 anos da Lei SINASE (Lei n.º 12.594/2012).
Tomando a nossa entrada na unidade de internação feminina como ponto de partida, tecemos a organização deste artigo em cinco pistas que despontaram do campo, no encontro com as adolescentes, e que podem ser, desse modo, descritas: 1- a percepção de que existem muitos obstáculos no caminho, no sentido de uma efetiva implantação da visita íntima no sistema socioeducativo;2- a constatação de uma série de restrições sem parâmetros,daí pensar a segurança como elemento analisador;3- a importância do exercício da sexualidade como direito a ser garantido;4- a demanda pela expressão da liberdade e do prazer em um ambiente de recorrentes privações, 5- a necessidade de criação de um espaço de resistências contra o engessamento institucional.
Pistas que se produziram no curso da experiência e que serão melhor apresentadas a seguir. Nos próximos tópicos abordaremos os limites impostos à pesquisa e, ainda, como a segurança opera, continuamente, nos corpos daqueles/as que habitam e transitam à/na "prisão-socioeducação". Ademais, dentre os muitos atravessamentos que acometeram o campo, discorreremos sobre como a proposta de intervenção funcionou enquanto instrumento promotor de liberdade, resistência e produção de vida para o grupo de adolescentes.
Muitos Obstáculos no Caminho
Os obstáculos foram um dos primeiros atravessamentos experimentados por nós na pesquisa, os quais se manifestaram desde a nossa entrada na unidade socioeducativa até a realização das oficinas com as adolescentes. Os movimentos da instituição não eram explícitos e nem pareciam ser propositais, uma vez que se tratava de um modo de se fazer poder e como ele operava na instituição do controle. Sabíamos dos desafios, em especial, por conta da temática que a pesquisa propunha. Desafios estes que, em vários momentos, também compareceram diante da oferta de outras atividades institucionais, que concorriam com a que estávamos oferecendo.
O início da oficina com as meninas foi marcado por algumas tensões, preocupações e situações imprevistas. No primeiro dia, chegamos na portaria da unidade e nos apresentamos: um funcionário-pesquisador, uma pesquisadora e uma aluna de psicologia à época. Tudo parecia muito tranquilo, no entanto, tivemos que lidar com uma das formas rígidas de segurança sem a devida justificativa ou necessidade, uma vez que, além de termos autorização para a pesquisa, tínhamos algum trânsito na unidade por ser funcionário e por termos participado de outras pesquisas na instituição.
Ultrapassado esse momento, tivemos de lidar com outra situação um tanto quanto desagradável: apesar de estar tudo certo e agendado com antecedência para a nossa oficina, a instituição marcou outra atividade no mesmo horário. Por um instante achamos que não conseguiríamos dar início ao trabalho naquele dia, mas após alguns acordos e conversas com as/os dirigentes da unidade foi possível viabilizar o primeiro encontro com as meninas.
Caminhando por um corredor em direção à sala onde seria realizada a oficina, avistamos as meninas enfileiradas no pátio, de forma muito similar à dinâmica dos quarteis. Uma rotina pautada na segurança e no controle dos corpos, um modo minucioso de organização do espaço-tempo, de maneira que nada se perca da visão daquele que detém o olhar, como ocorria nas instituições disciplinares descritas por Foucault (2009). Enquanto isso, as meninas pareciam eufóricas, demonstrando certa agitação, pois sabiam que estávamos ali para falar da visita íntima. De fato, no espaço da oficina, neste primeiro dia, foi bem agitado, com muitas perguntas sobre o que estávamos fazendo ali. Nosso lugar ético de pesquisador/as foi explicitado de modo a estabelecer uma relação de confiança que foi se solidificando ao longo dos encontros que se seguiram.
No retorno à unidade, a nossa entrada já se deu sem os impasses do primeiro dia, o que nos fez pensar acerca da lógica discricionária nos procedimentos de segurança. Ou seja, embora existam protocolos da instituição nas portarias de entradas das unidades, o critério usado foi pessoal, baseado no humor e desconfiança do agente daquele dia.
A desconfiança nas meninas e no/as pesquisador/as apareceu não só na entrada à unidade, mas a todo tempo. Afinal, estávamos falando de sexualidade, da possibilidade da visita íntima, assunto pouco ou quase nada desejado pela instituição. Nesse segundo encontro, as meninas estavam mais descontraídas, o que possibilitou que elas falassem de suas histórias, de seus relacionamentos e dos conflitos familiares. Mas essa descontração, vez por outra, era interrompida por uma agente de segurança socioeducativa que entrava na sala com uma demanda: assinar a lista de presença, ser chamada para atendimento técnico, entre outras intercorrências. Do ponto de vista do funcionamento da instituição e do controle dos corpos, não é possível sentir prazer ou alegria em um local que, em tese, é para se pagar por erros/"crimes" cometidos, assemelhando-se muito à prisão (Foucault, 2009).
No terceiro dia, um novo contratempo: a instituição não avisou à escola de nossa atividade. Foi agendada outra programação com as meninas, o que inviabilizaria o trabalho previamente pensado para elas. Mais um momento de preocupação, expectativas em nós e nas adolescentes. Porém, em uma conversa com a equipe da escola, as professoras concordaram em usar a atividade como parte do conteúdo escolar. A participação das docentes possibilitou que as adolescentes falassem da sua relação com a escola e do desejo de uma delas de fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A entrada de novas pessoas na oficina aconteceu com a concordância das adolescentes. No entanto, ficamos atento/as para o fato de que a chegada de pessoas novas em um grupo provoca reações.
O tema da oficina, por si só, produziu obstáculos durante nosso trânsito na unidade. Também, a posição que ocupamos: pesquisador/as de fora e de dentro provocaram diferentes dobraduras nas formas duras e instituídas. Em outras palavras, nossos corpos, que não eram submetidos às mesmas formas de controle exercido sobre as meninas, inclusive, considerando a nossa movimentação entre o dentro e o fora - sair da unidade e retornar - fez aparecer para nós o funcionamento hierarquizado da instituição e a possibilidade de linhas de fuga. A ausência de comunicação com o mundo externo tem a finalidade de manter a ordem interna preservada, fazendo-se necessário estabelecer uma segurança de modo que as coisas se mantenham nos seus devidos lugares do lado fora ou do lado dentro. Esse movimento se assemelha às instituições de preservação da ordem estudadas por Bicalho et al. (2016).
A segurança compareceu como obstáculo na nossa entrada na instituição. O modo como ela é acionada tem a prevalência sobre qualquer outra demanda, deixando pouco ou quase nenhum espaço para negociação. A expressão "em nome da segurança" tem um significado muito próprio, algo que não carece de explicação. De acordo com Vinuto (2019), a segurança exercida na socioeducação aproxima-se do jeito militarizado de se organizar, o que produz conflitos nas práticas e identidades dos/as agentes, uma vez que suas abordagens deveriam priorizar a educação. A socioeducação tem princípios muito diferentes do regime militar ou de outras instituições voltadas à segurança pública.
Esses e outros obstáculos com os que nos deparamos durante a realização da oficina com as adolescentes serviram de pistas para pensarmos o quanto a sexualidade e o gênero, ainda, são percebidos como elementos ameaçadores à preservação da ordem da instituição socioeducativa. Apesar disso, a nossa intenção também foi encontrar as brechas e as porosidades nos muros de concretos altos com concertinas da unidade socioeducativa, criando possibilidade de vida fora dos obstáculos e dos muros.
A Segurança como Analisador
A visita íntima, quase sempre, é compreendida como "regalia", aquiescendo discursos repressivos que declinam o exercício da sexualidade como direito. Nas unidades de internação, onde as regras e a disciplina são vistas como eixos medulares no cumprimento da medida socioeducativa, a sexualidade se exprime por uma lógica normalizadora e cerceadora. Aqui, a noção de segurança emerge como um potente analisador. Nas palavras dos/as agentes de segurança socioeducativa, tratamos de um "lugar que vira cadeia depois das 17h". Uma amostra, portanto, das linhas discursivas que anseiam docilizar os corpos e controlar as subjetividades (D'angelo et al., 2019), explicitando uma importante hibridez organizacional (Vinuto, 2019) que transita entre as premissas da segurança e as políticas de socioeducação.
O acionamento da "segurança" movimenta uma engrenagem punitivista que delineia a gestão do cotidiano institucional, fazendo ver e falar dos dispositivos do campo. Para Vinuto (2019), as discussões que tentam definir o termo, o qualificam como sendo estruturado pelas normas e procedimentos necessários à proteção de todo o espaço socioeducativo, conduzindo rotinas preventivas e interventivas, calcadas na percepção de um perigo constante e suspeição ininterrupta. Acerca das práticas relativas à sexualidade das/os adolescentes, cabe ressaltar o modo como parecem ser constituídas as intersecções entre gênero, sexualidade e segurança na instituição socioeducativa. A preservação da ordem social aparece de maneira bastante pregnante para justificar a medida de internação para os jovens meninos e a palavra "bandido" é léxico recorrente. Em relação ao público feminino, vigora a ideia de uma maior propensão à agressividade e ao desequilíbrio, tanto na descrição do ato cometido, quanto no próprio cumprimento da medida. Assim, "gênero" atravessa e norteia as decisões e o acompanhamento da rotina nesses Centros de Socioeducação e nos interpela acerca do nosso corpo-pesquisador/a enquanto campo de análise, ensejando disputas e barreiras.
Faz-se evidente, então, o quanto as questões de gênero - decerto, transversalizadas por marcadores de raça, classe, geração, dentre outros - perpassam de modo diverso às unidades do sistema socioeducativo. Por meio de tais construções é possível apreender um conjunto de práticas, regramentos, códigos e símbolos que modulam a dinâmica institucional. Segundo Garcia (2019), essas diferenças aparecem na gestão das relações sexuais entre os/as internos/as, nas discriminações por orientação sexual e identidade de gênero, tal como no tratamento distinto que toma por base preconceitos de gênero, contribuindo para a manutenção de uma perspectiva binarista-segregadora.
Voltando o olhar para as unidades femininas, foco de nossas análises, as desigualdades de gênero indicam se manifestar, notadamente, em razão dessa transgressão: - o cometimento de uma infração que rompe com as expectativas sociais da inabilidade feminina para as violações legais, - a presença das adolescentes nesses espaços desvela, ainda, a ruptura com um compilado de prescrições sociais de gênero que se atualizam nas políticas da instituição. Em última análise, o posicionamento do corpo feminino nas instituições socioeducativas é uma transgressão aos estereótipos sociais e expectativas de gênero presentes na nossa sociedade.
Soma-se a essa análise o fato de que nas unidades masculinas há uma paisagem em que as regras das facções comandam as condutas sexuais dos internos, obstaculizando as relações homossexuais; ao contrário, nas unidades femininas, os relacionamentos são declarados pelas jovens e informalmente atestados pela instituição como um dispositivo que "acalma a cadeia". Ou seja, o gênero encontra-se normatizado, prescrito pelas diferentes instituições: o Estado, o tráfico, entre outros.
A ideia da "carência feminina" parece sustentar essa trama. Ela é geralmente evocada - pelas adolescentes e pelo DEGASE (Departamento Geral de Ações Sócio Educativas) - para justificar o que leva às jovens a relacionarem-se umas com as outras durante o período de internação. Barcinski (2012) aponta para o fato de que tanto o sexo quanto os afetos atravessam o debate da homossexualidade, sobretudo quando da intenção de diferenciar a homossexualidade masculina da feminina. Estando as mulheres, em tese, ligadas à rede de cuidados e afetos, e aos homens, caberia o sexo. O que se verifica é uma invisibilização do prazer da mulher, que se relaciona com outras pessoas em detrimento da naturalização das relações afetivas ou, nesse caso, por circunstâncias de uma provável "carência". Nesse plano, as instituições de privação de liberdade ao colarem à imagem da mulher a prática do cuidado, chancelam o apagamento do prazer, reproduzindo as prescrições de gênero.
Diante disso, parece haver um jogo de forças que ao mesmo tempo que possibilita, impede que o sexo seja pautado. Sem negá-lo por completo, a sua expressão deve estar sob a égide da segurança, devidamente controlada e regulada. Nota-se, assim, que a sexualidade acaba funcionando como moeda de troca fundamental aos limites institucionais (D'Angelo, 2017). Cumpre aos/às agentes, nas unidades femininas, a facilitação da convivência em troca da manutenção da ordem. Em um espaço onde o exercício da sexualidade é atravessado pela premissa securitária, o entendimento de seu uso como moeda de troca expõe, enfim, não só a dificuldade em apreender enquanto um direito, mas também o seu caráter organizador. No trato da sexualidade, admitindo a segurança como recurso analisador, vemos que a instituição encarregada da socioeducação tende a perpetuar preconceitos e discriminações sociais com base nos binarismos de gênero.
O Exercício da Sexualidade como Direito
Em pesquisa que aponta alguns dos discursos utilizados para embasar a não efetivação da visita íntima nas unidades socioeducativas como política de acesso a direitos fundamentais, Camuri et al. (2012) sustentam a defesa dos direitos sexuais e do exercício de uma sexualidade plena coextensiva a adolescentes em cumprimento de medida de internação. Nessa direção, de Garay Hernández et al.(2019) denotam que há uma série de tensões em torno da temática. Dentre os enunciados desfavoráveis, a ideia de que a prática sexual sob o aval do Estado chancelaria uma rotina de privilégios. O estudo demonstra como o debate em torno da sexualidade enfrenta resistências internas, que se expressam tanto nas decisões do corpo gestor quanto na prática dos/as demais funcionários/as. Garcia (2019) elucidam que uma parte das equipes técnicas também não reconhece a sexualidade como um dispositivo de intervenção potente no acompanhamento dos/as jovens, mas a encara como um problema a ser evitado. Em rota contrária aos movimentos de construção e fortalecimento da autonomia, a ordem das moralidades tende a fazer com que a sexualidade da juventude ocupe um lugar naturalizado. Assim, as atividades desenvolvidas ficam limitadas à
[...] perspectiva de prevenção da gravidez e das doenças sexualmente transmissíveis, ou ainda tendo como foco o enfrentamento da violência sexual. [...] Não há uma perspectiva de articular a dimensão sexual a outras na vida dos adolescentes, e essa postura estaria ligada a uma dificuldade dos profissionais em lidarem com o tema (Garcia, 2019, p. 6-7).
A prática jurídica no âmbito da juventude não tem colaborado com o protagonismo de seus atores quando confere atenção ao tema da sexualidade. Apesar dos inegáveis avanços, esse se constitui um terreno espinhoso por denotar um campo ainda fortemente tutelado. Considerando as possibilidades de alargamento da discussão, Lazzarotto e Carvalho (2012) destacam a importância de se compreender a distinção entre sexo, direitos sexuais e sexualidade. Sob a perspectiva das autoras, ultrapassando uma leitura simplista das pautas em debate, o exercício da sexualidade não se esgota na noção irrestrita da atividade sexual genital, mas revela um dispositivo construído socialmente, espaço de prazer e autonomia e, assim, um território produtor de subjetividades.
A inadequação das estruturas físicas, bem como a preocupação dos/as agentes de segurança socioeducativa com a distribuição de preservativos, além da ideia difundida sobre um conjunto de demandas assistencialistas, tidas como ações prioritárias, impedem a relevância da discussão sobre direitos sexuais e direitos reprodutivos. Pesquisa realizada pela Universidade Federal Fluminense, DEGASE e UFF (Mendes & Julião, 2019), teve como intenção mapear o perfil dos/as adolescentes institucionalizados. Os dados comunicam que muitos/as deles/as investem, de modo rotineiro, em trocas íntimas e sexuais, contudo, acabam silenciando tais práticas, em função de um certo "combinado tácito" que marca o espaço organizacional, contornado pela segurança.
A recusa dos mais variados direitos é mantida, assim, no interior da socioeducação mesmo que, perversamente, este prossiga sendo anunciado como lugar de acesso a cuidados. Para Foucault (1988), o modelo pautado no ajuste da sexualidade à norma vigente caminhou por muito tempo sob a égide de saberes canônicos e se especializou em um saber científico, que passou a utilizar o aparato do Estado para vigiar e controlar os gestos, os movimentos dos corpos e suas performances. Na socioeducação, campo em exame, ela emerge interditada por normas que regulam diferentes instituições: as famílias, as escolas, hospitais, entre tantas outras. Não por acaso, temos assistido, nos últimos anos, um número considerável de pesquisas em favor da afirmação da necessidade de políticas públicas voltadas ao campo da saúde sexual e da saúde reprodutiva, sobretudo nesses espaços. Os estudos enunciam, pois, a importância do protagonismo juvenil nas decisões que lhes competem e registram que ainda há um longo caminho a ser percorrido no afastamento dos juízos de valor que norteiam as escolhas políticas, desconsiderando um universo de valores, de sentidos e uma multiplicidade de experiências vividas (Garcia, 2019).
Consoante às leituras de Foucault (1988), de acordo com Nayara (2019), a sexualidade sempre foi alvo de discussões polêmicas que espelham posturas repressoras e biologizantes. Para a autora, a situação se complexifica "quando analisada no contexto da adolescência, onde os jovens são tratados como seres assexuados havendo, assim, um reflexo de tal postura social dentro dos ambientes socioeducativos de internação" (Nayara, 2019, p. 12). No campo da pesquisa em tela, a dinâmica observada indica que a reflexão crítica acerca da atuação profissional socioeducativa é elemento crucial. Em um movimento que toma o exercício da sexualidade como "regalia" e, portanto, como condição ameaçadora, parece evidente que o eixo securitário detém contornos muito bem definidos quando dos investimentos em uma prática contumaz de disciplinarização e tutela dos corpos na vida cotidiana. Destarte, o que este e outros trabalhos anseiam disputar é a urgência de se abordar o tema de forma ampla e contínua nos limites da socioeducação.
Expressão de Liberdade e Prazer
Assim, na perspectiva de identificar as porosidades na estrutura rígida da instituição, que aqui é campo de pesquisa e de análise, há de se primeiro entender onde é inflexível. Discutindo acerca da obrigação ou não da prática sexual sem vontade, uma das participantes da oficina compartilha ao longo do encontro que a experiência sexual nem sempre é movida pelo desejo. Sua fala ressoa na vivência de muitas de suas colegas, que pontuam sentir o mesmo. As vivências sexuais muitas vezes são suscitadas pela vontade de atender o desejo do outro, ou como moeda de troca, como observado nas falas das adolescentes ao explorar o sentimento coletivo que dali emergiu. Outro relato importante para se trazer aqui é o da participante que manifesta querer "engravidar cedo" para poder "manter sua linhagem". O sentimento é explicado pelo fato de que a maioria de seus familiares estão presos/as ou então foragidos/as, sendo, ao seu ver, a possibilidade de ter um/a filho/a uma forma de dar um/a neto/a para a mãe, que expôs essa expectativa para a adolescente, além de uma maneira de manter a família "viva". Ela em momento algum pontua o maternar como desejo seu, ou advindo de motivações individuais. Cabe ressaltar, antes de avançarmos, que entendemos que nenhuma motivação, nem desejo, são completamente individuais ou de outros/sociais. Sujeito-sociedade não se dissociam e não têm fronteira demarcada. Para Soares e Miranda (2009):
Não mais a representação do mundo na consciência de um sujeito autônomo, mas a assunção de uma floresta de objetos e de signos concatenados para formar um gosto, um jeito de vestir, um modo de viver. Não mais falar em sujeito como um être-là, dado a priori, mas em agenciamentos coletivos de enunciação, concerto polifônico de vozes, devires imperceptíveis, mutações afetivas e outras sensibilidades (Guattari & Rolnik, 1999). Descentramento da questão do sujeito para a da produção de subjetividade, pois esta, como nos diz Guattari e Rolnik (1999, p. 28) "constitui matéria-prima de toda e qualquer produção" (Guattari & Rolnik, 1999, p. 415).
Neste sentido, o que observamos é a expressão da produção de subjetividade, a fabricação de um modo de viver interpretado como desejos individuais, tratados como tão singulares que são colocados, muitas vezes, como inatos. A subjetividade é produzida ao mesmo tempo por instâncias humanas, que são evidenciadas pela linguagem, e por instâncias "sugestivas ou identificatórias", evidenciadas por interações institucionais (como a socioeducação), dispositivos maquínicos e por "universos de referência incorporais", como as artes (Soares & Miranda, 2009).
Acontece que essas referências que nos são vendidas, tal qual um American way of life, são diferentes quando pensamos nos marcadores que atravessam essas subjetividades, as interseccionalidades, ou seja, além das referências serem multi atravessadas, esses atravessamentos ainda são variáveis.
A partir disso, sabendo o recorte que a socioeducação escolhe utilizar para dividir de forma binária suas unidades, o gênero, e o fato de que "as mulheres ao passar dos anos, se tornaram reféns das projeções e expectativas da sociedade a ponto de se sentirem culpadas quando seus desejos particulares fogem disso" (Freitas & Xavier, 2022, p. 25), somos convidados a refletir sobre a modelação da subjetividade dessas adolescentes. É forjado o desejo de atender ao desejo daquele que no jogo de poder está acima delas, seja de suas famílias, de seus companheiros ou daqueles que fazem acontecer a instituição. Essa produção de desejo engessada que atravessa seus corpos é reproduzida/produzida pelas instituições.
Pensando no nosso campo, na relação dos sujeitos que representam a instituição, e em uma escala, o ideal do DEGASE, vemos novamente uma expectativa depositada de um desejo idealizado, que, quando não seguido, é reforçado negativamente, seja de forma punitiva física, verbal ou proibicionista. No caso do tema da visita íntima, o desejo da abstenção aos direitos sexuais e direitos reprodutivos.
Pensando o que traz Brito da Silva (2023), sobre as expressões sexo e sexualidade serem "palavras que se misturavam nas narrativas dos/as personagens na instituição, evocando sentimentos de: preocupação, irritação, descaso, algo desnecessário" (p.167) percebemos que esse desejo idealizado/produzido/projetado anda em direção contrária à visita íntima, e à discussão dos temas que a atravessam. Assim, o tema sexualidade, em seu contexto amplo, é identificado aqui como um ponto de inflexibilidade dessa instituição.
Apesar disso, Guattari e Rolnik (1999) nos falam que subjetividades aprisionadas, não estão absolutamente dentro das grades, ou seja, onde há essa produção engessada, há também "imensas possibilidades de desvio e singularização". Neste sentido, para as meninas, sexo e a expressão sexual embora aparecesse de formas que desconsideram suas vontades, também eram lugares de aproximação, carinho, parceria, troca, prazer e liberdade. Em suas palavras, sexo aparece como sinônimo de "vida", "autoconhecimento", "leveza" e "felicidade". Apesar disso, durante a oficina em que surgiu a proposta de pensarmos em como definir/conceituar sexualidade, as meninas trouxeram uma noção restrita ao ato sexual.
Enquanto a oficina acontecia, foram trabalhados eixos dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, como questões de gênero, performance, o acesso ao conhecimento de sua própria anatomia, modos de prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis - ISTs, gravidez, entre outros. As discussões que surgiram durante as questões expostas propiciaram ambiente no qual as adolescentes se sentiram acolhidas e confiantes para pensar sobre o sexo na perspectiva de seus desejos, bem como coletivamente refletirem de forma crítica, além de compartilharem seus pensamentos e serem afetadas pelos das suas colegas.
Como consequência disso, foi possível que as adolescentes chegassem, durante as oficinas, a uma conceituação de sexualidade ampla e potente:
Sexualidade é mais que só sexo. É importante para a prevenção da saúde. É uma necessidade do ser humano e também uma escolha de gênero, além de uma forma de autoconhecimento. Ela é importante para a saúde mental e saúde física porque mexe com o emocional, com os hormônios, deixando mais calma, tranquila, aumentando a autoestima e evitando problemas relacionados a si próprio (Brito da Silva, 2023, p. 162).
Assim, os encontros semanais com as meninas, na modalidade de oficina, mostraram-se uma importante ferramenta de exploração das porosidades, possibilitando a discussão sobre visita íntima, sexo e a sexualidade como expressões da vida social e política, permitindo a construção das "imensas possibilidades de desvio e singularização", em palavras de Guattari e Rolnik (1999).
Como colocado por Guattari (1992), "a única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que enriqueça de modo contínuo sua relação com o mundo" (Guattari, 1992, p. 33). Isto é, sabendo que a subjetividade é constantemente produzida, e que os agentes que a produzem privilegiam o desejo de certos corpos, é necessário lutar para que se crie condições para formas de existência menos engessadas, mais porosas e maleáveis.
Espaço de Resistências
No período que passamos na unidade socioeducativa, utilizamos a potência da cartografia em busca de pistas, no sentido de compreender e/ou processar em nós e nas adolescentes os efeitos das resistências que atravessaram a oficina de direitos sexuais e direitos reprodutivos.
Salientamos em diversos momentos neste artigo que somente pelo fato de existir a possibilidade da visita íntima para adolescentes privados/as de liberdade é acionada uma série de elementos defensivos pela instituição, os quais comparecem, principalmente, em um modo muito específico de fazer segurança (Vinuto, 2019), evidenciando a rotina, as práticas, o ambiente permeado por regras, disciplinas e vigilâncias pautadas no medo e na desconfiança. Há uma aposta no controle e na regulação dos corpos que não deixa espaço para as diferenças e para os acontecimentos que investem na experimentação.
Diante disso, uma maneira de pensarmos a resistência é situá-la na perspectiva da Teoria Ator-Rede (Ferreira, 2015), como recalcitrância. A exemplo, foi a forma reativa que a instituição se colocou quando chegamos no primeiro dia para fazer a oficina na unidade socioeducativa, descrita no início deste artigo. A resistência, entendida como recalcitrância, figurou como a possibilidade de subverter as formas instituídas e/ou produzir porosidades nas práticas e subjetividades territorializadas, onde se ecoa o aforismo: prisão é lugar de sofrimento para se pagar pelo erro cometido. Essa percepção distorcida do propósito do sistema socioeducativo se estende a outros sistemas de privação de pessoas e à sociedade de modo geral.
É nesse contexto que a Psicologia e as pesquisas realizadas no campo têm a responsabilidade de colocar questões cujo objetivo é encontrar e produzir brechas e porosidades onde sejam possíveis o cuidado de si. Romagnoli (2022), ao analisar as práticas da Psicologia nas políticas sociais, salienta a importância da resistência como posicionamento crítico frente às formações de subjetividades centradas no sujeito, na interioridade, apontando para formas de ser naturalizadas, tendo o sujeito como responsável pelo seu fracasso ou conquista, descontextualizado do momento histórico, social, político e econômico. De acordo com a autora, "apostar na transversalidade é resistir à reprodução de hierarquizações para que encontros potentes se efetuem (...). A transversalidade se liga ao coletivo e esta dimensão funciona como um plano de coconstrução" (Romagnoli, 2022, p. 10).
Nossa aposta na resistência é porque ela está relacionada à potência de agir. Ao exercer a função de psicólogo/a na socioeducação, haverá necessariamente convivência com demandas e expectativas de diferentes instituições: saúde, educação, assistência social, justiça e outras; as quais, quase sempre, exigem desse/a profissional posicionamentos taxativos e avaliativos sobre a vida alheia. Não responder a esses chamados abre caminhos para um devir-psicologias. Trata-se de lugares não acabados, mas em constante construção, tecendo posicionamentos críticos aos modos de vida de sujeitos, grupos e instituições. Nesse sentido, Brito da Silva (2023) argumentam que:
Ser psicólogo/a nestas condições pressupõe, necessariamente, compreender as relações de poder que engendram, capturam e modelam subjetividades dos usuários e dos profissionais. Por isso, é fundamental que as ações e as práticas de resistência e de insistência se deem nas fissuras e nas brechas das dobras rígidas (Brito da Silva, 2023, p. 55).
Assim, a resistência pode se ocupar de uma dupla função: se ocupar de movimentos comuns às instituições de preservação da ordem (Bicalho et al., 2016), principalmente em pesquisas como a nossa sobre sexualidade e gênero, ou estabelecer uma posição de inflexão diante das relações de poder nos lugares ocupados pela psicologia que, por vezes, ensejam a fabricação de subjetividades criminosas e/ou perigosas.. Ou seja, a resistência pode funcionar para a manutenção do status quo da instituição ou estabelecer linhas de fuga como estratégias de sobrevivência. Conceber a resistência nessas duas perspectivas coloca mais uma questão: o espaço da oficina com as adolescentes funcionou fora do controle da instituição, pelo menos, em alguns momentos? Entendemos que sim. Nesse sentido, podemos deduzir que houve resistência como fuga dos modos endurecidos da instituição, possibilitando, que durante a realização da oficina, houvesse relaxamento do controle dos corpos das meninas e também nossos corpos.
Ademais, como destaca Foucault (2009) a resistência estará sempre presente onde houver exercício de poder. No sentido dado pelo autor, a resistência vai buscar saídas possíveis frente às forças dominantes. Mas, nem sempre é possível transportar-se dos muros altos com concertinas e das grades as quais emolduram, não só estabelecimentos, mas também as subjetividades das/os adolescentes.
Experienciar pesquisa com as adolescentes convoca-nos a apostar na potência da vida, como nos escritos e ditos de Rolnik (1989) a respeito da política de produção do social que está relacionada à produção do desejo. Na compreensão da autora, social e desejo não são opostos; ao contrário, são coextensivos. Por isso, é importante estarmos atentos/as (enquanto pesquisadores/as e psicólogos/as) ao movimento das tramas que se apresentam em duas formas: macropolítica, que capta o plano dos territórios e do visível relacionando-os às linhas duras; e a forma micropolítica que se conecta aos movimentos das linhas flexíveis e de fuga; tanto no plano molar, das macropolíticas, que insistem na violação de direitos, quanto no plano molecular que deixa visível as mazelas do sistema socioeducativo.
Parafraseando o poeta Fernando Pessoa: Resistir é preciso! Principalmente quando o tema de pesquisa, já de início, é percebido pela instituição como desestabilizador ao seu modo de funcionar; produzindo, com isso, diferentes reações para que as coisas continuem como estão, em seus devidos lugares. Dentre as várias ocorrências, destaca-se a fala de uma agente de segurança socioeducativa que convida um de nós para uma conversa com um tom de preocupação: "você pode dizer a elas (às adolescentes) que a visita íntima não será permitida nem tão cedo, que é algo para um futuro remoto?".
Essa situação nos fez pensar: o quanto os encontros semanais com as meninas estavam reverberando no cotidiano da unidade socioeducativa? As adolescentes compreendiam sexo e sexualidade misturados, ambos se aproximavam de sentimentos como: carinho, parceria, troca, prazer, liberdade. O que colaborou para a constatação de que a oficina de direitos sexuais e direitos reprodutivos funcionou como um espaço de resistência. E pode ser certificado diante da cena em que uma funcionária chama-nos e solicita que comuniquemos às adolescentes que a visita íntima seria algo para o futuro, demonstrando o quanto essa discussão na oficina com as adolescentes desestabilizava a instituição e socioeducativa.
Considerações Finais
Iniciamos este artigo informando nossa intenção de cartografar como o sistema socioeducativo se posiciona frente à possibilidade de implantação da visita íntima e as expectativas das adolescentes ao vislumbrar a garantia desse direito. A discussão sobre o tema abarcou os direitos sexuais e direitos reprodutivos a partir de uma perspectiva pós-estruturalista, durante os três encontros, na modalidade de oficinas com adolescentes em cumprimento de medida de internação na cidade do Rio de Janeiro. Para tanto, seguimos as pistas: muitos obstáculos no caminho, a segurança como analisador, o exercício da sexualidade como direito, expressão de liberdade e prazer, espaço de resistências, as quais apareceram nas vozes das adolescentes e nosso encontro com elas e com a instituição.
Durante a escrita, apresentamos as análises dos limites, dos impasses, das dificuldades encontradas por nós e por muitos/as outros/as que se aventuraram a falar e/ou pesquisar as temáticas sexualidade e gênero na instituição de preservação da ordem. Ousamos fazer barulho nas engrenagens enferrujadas da instituição socioeducativa, provocando o surgimento de um pouco de alegria e esperança. Isso foi possível na oficina com as meninas, que funcionou como espaço de resistência e de possibilidade de respiro para dizer, sem censura, sobre seus sonhos, desejos e frustrações. Pensando na importância, já muito citada acima, da possibilidade de construção de subjetividades não aprisionadas, entendemos o espaço construído em nossa intervenção como um caminho em direção a subjetividades menos engessadas, desterritorializadas. Nossos lugares de psicóloga, servidor e estudante de psicologia, colocaram em movimento dispositivo de cuidado que foi percebido e verbalizado pelas adolescentes.
Realizamos uma produção cartográfica e, portanto, uma construção coletiva, situada, historicizada, que buscou, em última análise, mapear as forças em disputa na cena que prima pela implementação de uma política pública (visita íntima) voltada à garantia dos direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes em privação de liberdade.
Enquanto linha de primeira mão, a visita íntima emerge como dispositivo elementar de um processo em muito compreendido como impossível de ser estabelecido e operado, sob o paradigma securitário da dinâmica institucional. A asserção, no relato dos/as agentes, de que transitamos por um "lugar que vira cadeia depois das 17h", confere contornos explícitos à retórica das interdições. As vozes das adolescentes ecoam por entre as grades dos pavilhões, que guardam vidas esquecidas no interior dos alojamentos. Já no espaço da oficina, essas vozes tomaram forma nas histórias concretas das adolescentes, deixando desnudar as marcas da violência das ruas, da violência de suas famílias e da violência do Estado.
A partir das contribuições de Foucault (2009), Guattari e Rolnik (1999) e outros/as autores/as, que contribuíram na escrita deste trabalho, arriscamo-nos a dizer que as unidades socioeducativas do Rio de Janeiro fabricam subjetividades e agenciam corpos em dinâmicas punitivas. Nesse sentido, pensar o marcador da sexualidade e tudo o que gravita em torno dele refere voltar o nosso olhar ao imperativo do controle-disciplinar, que ambiciona manter a rotina institucional balizada por parâmetros de "normalidade".
Sexualidade, gênero, visita íntima, e tudo que pareça ou tenha cheiro de liberdade, passa por um minucioso e criterioso controle da segurança que funciona como um dispositivo que tem a função de regular e disciplinar condutas internas. Frente a qualquer situação que produza ameaça ao status quo da instituição, são acionados elementos que conformam e reforçam os contornos rígidos do ambiente institucional. Ou seja, segurança tem a prevalência sobre qualquer outra demanda, deixando pouco ou quase nenhum espaço para negociação. A expressão "em nome da segurança" tem um significado muito próprio, algo que não carece de explicação.
Não resta dúvida para nós que a oficina com as adolescentes funcionou como espaço de resistência, onde respiram foram possíveis sem a pressão das normas e de regras que, muitas vezes, só visam a privação da liberdade, não sendo este o principal objetivo da socioeducação.
Por fim, sabemos que as discussões neste artigo não se esgotam nestas linhas. São muitos os desafios e obstáculos que estão colocados diante da necessidade da efetivação da visita íntima no bojo dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos. Neste sentido, é importante que sejam ampliadas pesquisas sobre a visita íntima, dando visibilidade às temáticas: gênero, sexualidade, saúde, paternidade, maternidade, entre outros que englobam os direitos à convivência familiar e comunitária, garantindo uma política de saúde ampla e irrestrita para os/as adolescentes em privação de liberdade.
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Endereço para correspondência
Juraci Brito da Silva - britopsic@gmail.com
Recebido em: 14/04/2024
Aceito em: 24/09/2024
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