Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e83467, doi:10.12957/epp.2024.83467
ISSN 1808-4281 (online version)
DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE
Ser Pai, Estar Preso: Vivências e Sentidos da Paternidade em Presídios no Rio de Janeiro
Being a Father, Being Imprisoned: Experiences and Meanings of fatherhood in Prisons in Rio de Janeiro
Ser padre, Ser Preso: Experiencias y Significados de la Paternidad en las Cárceles de Río de Janeiro
Lucas Gonzaga do Nascimento a
a Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Esta pesquisa é uma cartografia os significados e experiências relacionados à paternidade de homens privados de liberdade ou que passaram pela prisão no Rio de Janeiro. Como uma pesquisa-intervenção cartográfica baseada no conceito deleuziano de dobra, são abordados os conteúdos provenientes de entrevistas com um homem preso e um egresso, ou sobrevivente do cárcere, em que ambos possuem filhos/as. O artigo analisa algumas das dobras da paternidade, ou seja, a forma como ela é vivida pelos homens presos, onde se agenciam as relações de cuidado, os significados sobre a paternidade e os efeitos dos processos de criminalização sobre essa relação. Para além do apagamento institucional da condição parental dos sobreviventes do cárcere e da estigmatização imposta a esta população, esta pesquisa busca cartografar suas formas singulares de vivenciar a parentalidade e as relações familiares, que apontam para o questionamento dos estigmas e para a potência das relações familiares, mesmo em contextos de precariedades e violações de direitos impostos pelo sistema prisional.
Palavras-chave: sistema prisional, paternidade, cartografia.
ABSTRACT
This research is a cartography of the meanings and experiences related to fatherhood of men deprived of liberty or who have been imprisoned in Rio de Janeiro. As a cartographic intervention research based on the Deleuzian concept of folding, data will be analyzed from interviews with a prisoner and an ex-prisoner, or prison survivor, both of whom have children. The article analyzes some of the folds of fatherhood, that is, the way it is experienced by imprisoned men, where care relationships are managed, the meanings about fatherhood and the effects of criminalization processes on this relationship. In addition to the institutional erasure of the parental status of prison survivors and the stigmatization imposed on this population, this research seeks to map their unique ways of experiencing parenthood and family relationships, which point to the questioning of stigmas and to the power of family relationships even in contexts of precariousness and violations of rights imposed by the prison system.
Keywords: prison system, paternity, cartography.
RESUMEN
Esta investigación es una cartografía de los significados y experiencias relacionadas con la paternidad de hombres privados de libertad o encarcelados en Río de Janeiro. Como investigación de intervención cartográfica basada en el concepto deleuziano de plegado, se abordan contenidos de entrevistas a un preso y a un expreso o superviviente de prisión, ambos con hijos. El artículo analiza algunos de los pliegues de la paternidad, es decir, la forma en que es vivida por los hombres encarcelados, dónde se gestionan las relaciones de cuidado, los significados sobre la paternidad y los efectos de los procesos de criminalización sobre esa relación. Además del borrado institucional de la condición parental de los sobrevivientes de prisión y la estigmatización impuesta a esta población, esta investigación busca mapear sus formas únicas de experimentar la paternidad y las relaciones familiares, que apuntan al cuestionamiento de los estigmas y el poder de las relaciones familiares, incluso en contextos de precariedad y vulneración de derechos impuestos por el sistema penitenciario.
Palabras clave: sistema penitenciário, paternidad, cartografia.
Este artigo é baseado em uma pesquisa de mestrado em Psicologia Social, realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A pesquisa busca contribuir para uma compreensão mais crítica acerca da realidade prisional, a partir dos agenciamentos produzidos entre a relação parental dos homens presos e a forma como a prisão atravessa suas relações familiares, em especial com seus filhos e filhas. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Número do parecer: 3.802.908, CAAE n. 26544819.5.0000.5282), e seguiu todos os preceitos éticos recomendados pelas Resoluções nº 466/12 e 510/16, do Conselho Nacional de Saúde.
Como afirma Cunha (2014), as prisões são espaços privilegiados para etnografar o Estado e conhecer seus modos de funcionamento. É importante ressaltar que o estudo sobre qualquer aspecto das prisões não se resume apenas ao funcionamento delas próprias, mas fala de dinâmicas que compõem toda a nossa organização social. Dessa forma, as relações que ocorrem nas prisões e em seu entorno reproduzem micropoliticamente aquilo que diz respeito também aos aspectos macrossociais e históricos de toda a sociedade. No sistema prisional brasileiro, podemos apontar a pouca ou mesmo nenhuma atenção institucional dispensada para as relações parentais dos homens presos, onde as estatísticas demonstram que, para a maior parte casos, nem ao menos há a informação se eles são pais ou não (Nascimento, 2022). Ao mesmo tempo tais relações parentais, quando se trata das mulheres presas, ganham muito mais atenção e relevo (Machado & Granja, 2013).
Cartografia e o Conceito de Dobra
Ao propormos uma pesquisa sobre a paternidade no âmbito do sistema prisional, estamos necessariamente abordando uma série de questões: a família, os processos de criminalização, os atravessamentos institucionais, entre muitos outros aspectos. Tendo como proposta metodológica a cartografia, e seguindo sua postura de abertura e de análise de implicação sobre aquilo que nos afeta, buscamos ao longo do texto cumprir a premissa do cartógrafo como uma espécie de antropófago, ou seja, como aquele que "vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado" (Rolnik, 2011, p. 65). Por isso, o texto aqui apresentado não se furtou a se apropriar de diferentes temas e discussões que se apresentaram ao longo do percurso da pesquisa.
A pesquisa buscou acompanhar os processos acionados no desenvolvimento da pesquisa, nos encontros que se travaram e nas intensidades que constituíram o interesse em um ou outro tema. Deleuze utiliza o conceito de dobra para problematizar os processos de subjetivação que envolvem sempre jogos de força e relações de poder em cada contexto sócio-histórico. "A subjetivação se faz por dobras", diz Deleuze (2005, p. 55), mas toda dobra seria composta por quatro momentos, ou, dito de outra forma, há sempre quatro dobras presentes em todo modo de subjetivação: 1) a relação subjetiva com a carne, ou seja, com o próprio corpo; 2) o plano de forças que é dobrado ao gerar a relação consigo mesmo; 3) a maneira pela qual se constitui a relação entre saber e verdade; 4) aquilo que o sujeito espera do exterior. Essa última dobra refere-se ao modo de subjetivação calcado na ideia de uma divisão entre dentro e fora, característico da produção de conhecimentos ocidentais (Silva, 2004).
Utilizar o conceito de dobra no estudo dos fenômenos que ocorrem nas prisões traz a necessidade de pensar o quanto a realidade é dobrada nos processos de subjetivação, adequando-a às modulações da lógica capitalística. A prisão em nossa sociedade envolve sempre o imperativo da segurança a qualquer custo, visto que seu público-alvo, provindo em sua maioria das classes mais baixas e da população negra, integra aquilo que é alvo preferencial dos processos de criminalização. A lógica da contenção, e mesmo do extermínio, se traduz em uma relação com o corpo que não é sutil: há de verificá-los constantemente, de todas as formas e de todos aqueles que adentrem o espaço prisional, com especial atenção para os possuem vínculos de afeto e parentesco com as pessoas presas.
Paradoxalmente, a vigilância com o corpo pelo imperativo da segurança não se faz presente na mesma medida quando se trata segurança da saúde dos corpos vigiados. Busca-se uma espécie de proteção da sociedade dos considerados criminosos, sem considerar que estes também compõem a sociedade, além de possuírem famílias que são afetadas violentamente pelos processos de suspeição e criminalização. A segurança da vigilância sanitária encontra-se também submetida à segurança em geral, que mantém o pleno funcionamento da prisão, dificultando ao máximo ou mesmo impedindo ações de garantias de direitos e eliminação de práticas de tortura (Godoi, 2019). A relação entre verdade e saber quando se trata das prisões obedece a uma lógica peculiar: seu fracasso é o seu sucesso, ou seja, a inobservância de leis e tratados internacionais de respeito aos direitos humanos compõe a técnica de governo marcada pela falta e pela incompletude. Com relação às vivências e sentidos da parentalidade no sistema prisional, pode-se dizer que o conceito de dobra permite abordar suas nuances não a partir de um viés individualista ou culpabilizante, como se os sentidos fossem criados individualmente ou as vivências não fossem compartilhadas; pelo contrário, ele aponta que a subjetividade é sempre atravessada por agenciamentos sociais e institucionais.
As Chamadas "Famílias Desestruturadas" e o Racismo Nosso de Cada Dia
Compartilhando a advertência de Silva (2017) quanto à necessidade de racializar o debate sobre o sistema prisional brasileiro, é possível traçar um paralelo entre as práticas coloniais de sistemática desagregação das famílias negras escravizadas com as atuais violências perpetradas pelo Estado brasileiro diante da precarização das condições de vida da classe trabalhadora, cuja parcela mais vulnerabilizada é majoritariamente negra. O endurecimento penal sobre corpos negros através do Código Penal de 1890, onde costumes de pessoas negras foram criminalizados, como a capoeira, perpetuou o controle e a violência sobre esse contingente marginalizado. Controle que segue sendo operado pelo braço armado do Estado, cuja Polícia Militar constitui um caso exemplar, criada no período colonial para evitar rebeliões negras. Dessa forma, se a desumanização dos indivíduos não-brancos durante o período da escravidão operou a sistemática fragilização de vínculos familiares, o atual contexto neoliberal de produção de vidas precárias reproduz a lógica de uma suposta incapacidade individual da massa negra e empobrecida para uma vida familiar supostamente "normal" e "estruturada".
A afirmação dessa suposta falta de estrutura das famílias pobres e criminalizadas está ligada, em grande parte, à comparação com certo modelo de família nuclear burguesa idealizado. Sobre essa questão, Davis (2016) realiza uma crítica sobre a tese do "matriarcado negro" e a sua suposta influência no crescimento da desigualdade na sociedade estadunidense. Segundo tal tese, o fim da escravidão nos Estados Unidos teria deixado muitas mulheres sozinhas chefiando suas famílias. Com a ausência paterna, tais famílias teriam contribuído para a reprodução da pobreza e da criminalidade.
No entanto, neste trabalho fazemos uma aposta na alteridade. Buscamos engendrar outra visão sobre os homens privados de liberdade onde seja possível problematizar aspectos raciais e generificados que, sem desresponsabilizar os sujeitos pelas suas ações, apontam para atravessamentos múltiplos nos quais estamos todos/as implicados/as. Abordar a condição parental dos sujeitos estigmatizados pela prisão traz à tona processos micropolíticos acerca dos sentidos e vivências particulares junto a suas famílias, e também aspectos macrossociais que abordam a biopolítica perversa operada pelo Estado brasileiro.
A Questão das Visitas no Sistema Prisional Fluminense
Segundo a Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210, 1984), o contato das pessoas presas com seus familiares é uma das formas de promover ressocialização. Ainda que possamos questionar o conceito de ressocialização (Batista, 2008) a convivência familiar é, indubitavelmente, um fator que pode promover o que podemos chamar de redução de danos do encarceramento (Nascimento & Bandeira, 2018).
Os presos em regime fechado têm permissão para receber visitas "do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados" (art. 41, inciso X). No entanto, pode-se dizer que as famílias das pessoas privadas de liberdade no Brasil ocupam um lugar paradoxal frente à instituição prisional. De um lado, são alvos da suspeição generalizada promovida pelo aparato da justiça criminal, por sua proximidade e parentesco com os considerados criminosos. Seus corpos - majoritariamente femininos - se tornam alvo de um escrutínio através de diferentes tecnologias (revistas, scanners) que produzem diversos tipos de violências contra essa população, exemplificados, de forma exemplar, pela prática das revistas vexatórias. Por outro lado, sua presença nas prisões é demandada pela (des)estrutura mesmo das prisões: a produção da insuficiência material e das péssimas condições de vida fazem com que as famílias dos presos se mobilizem para levar a seus parentes itens básicos de sobrevivência, como alimentos, roupas e produtos de limpeza; além de sanar, de alguma forma, a distância física e emocional provocada pelo confinamento. A família representa esse elo entre o dentro e o fora, transporta os mais variados itens, informações sobre a vida fora da prisão, o andamento dos processos na justiça, etc., e promove encontros que preservam vínculos afetivos e familiares com as pessoas privadas de liberdade.
Dobras da Paternidade de Sobreviventes do Cárcere
Abordaremos aqui as entrevistas realizadas no decorrer desta pesquisa. Uma entrevista foi conduzida em uma unidade prisional de Gericinó, no bairro de Bangu, no Rio de Janeiro. Outras entrevistas seriam realizadas naquela unidade, mas a pesquisa teve que ser redesenhada com o advento da pandemia e a interrupção das visitas nas prisões do país inteiro. Assim, a pesquisa foi impactada pela dinâmica pandêmica do isolamento social, impedindo outras visitas a unidades prisionais, após um longo percurso para a aprovação da pesquisa junto à Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP) do Rio de Janeiro. Com a mudança de cenário, iniciou-se a busca por egressos do sistema prisional que já fossem pais durante o período do encarceramento, através de redes informais junto a outras pesquisadoras e militantes de movimentos sociais de cunho antiprisional. No entanto, outras dificuldades se colocaram para a realização de entrevistas, que envolvem o próprio isolamento social, a incompatibilidade de agendas de trabalho com possíveis participantes da pesquisa, dentre outros fatores. Apesar disso, outra entrevista foi realizada de forma remota com um sobrevivente do cárcere. O número relativamente pequeno de entrevistas não necessariamente representa um problema na perspectiva de pesquisa qualitativa e cartográfica. Como não almejamos chegar a nenhum tipo de "verdade última" sobre os processos cartografados, buscamos, principalmente, acompanhar o fluxo de afetações a partir dos encontros possíveis no contexto da pesquisa, e para além dele.
Utilizo no texto o termo "sobrevivente do cárcere" ou apenas "sobrevivente" para se referir às pessoas privadas de liberdade ou egressas do sistema prisional, como forma de denúncia das diversas formas de violência e políticas de morte perpetradas pelo Estado através das políticas de encarceramento (Nascimento, & Uziel, 2022).
Acerca das entrevistas realizadas, uma se deu em meio à precariedade do espaço prisional, numa sala aparentemente abandonada, com cadeiras e mesas velhas e quebradas, enquanto a outra ocorreu online. A entrevista na prisão não pôde ser gravada. A outra, no entanto, foi gravada e transcrita em sua totalidade. Essa diferença gerou uma disparidade no volume de informações: a entrevista na prisão ficou sujeita às dinâmicas institucionais, tendo ocorrido no tempo entre a realização de um exame criminológico pela psicóloga da unidade e a hora do almoço; além disso, sua transcrição foi menos rigorosa por estar sujeita à memória do entrevistador. Já a outra entrevista pôde ocorrer em mais tempo e ser totalmente transcrita.
O primeiro entrevistado, que nomeei de Gabriel, para preservar sua identidade, tem 36 anos e três filhos: duas crianças e uma já maior de idade. O outro entrevistado, que chamei de Luciano, tem 43 anos e é pai de um casal de filhos/as, uma criança e outro adolescente. Gabriel não concluiu o ensino fundamental, e trabalhava como mecânico antes do primeiro aprisionamento. Já Luciano era funcionário público concursado e, fora da prisão, cursa faculdade de história. Além disso, Luciano faz parte de um coletivo que reúne sobreviventes do cárcere e militantes antiprisionais. Uma das limitações da pesquisa diz respeito à questão racial: na entrevista com Gabriel, não foi perguntado a ele sua identificação racial. Já a entrevista com Luciano, feita com mais tranquilidade por ser online, essa informação foi solicitada e o mesmo se declarou como preto. Os trechos das falas dos entrevistados aparecem em itálico.
Dobrando a Vida Familiar nos Dias de Visita
Ficar sem visita dentro de um sistema cara, é uma ruptura assim, massacrante. Uma ruptura assim torturante. Né, porque você fica totalmente refém de uma alimentação precária, de um racionamento de água total, de realidades que você precisa transitar sobre umas questões de afetividade com tua família, então perdendo a sua identidade afetiva com sua família. (Luciano)
A fala de Luciano denota o quanto a falta, ou interrupção do contato com a família causa sofrimento e pode enfraquecer vínculos (perdendo sua identidade afetiva com sua família), as condições precárias do cárcere que são minimamente amenizadas pelos insumos levados por familiares, dentre outras. Luciano abordava aqui o período em que sua família ainda não podia visitá-lo na prisão, o que gerou um período de afastamento completo, só interrompido quando sua esposa e filhos/as cumpriram os trâmites burocráticos necessários, após alguns meses.
Os presos do regime semiaberto têm direito a visitas à família em datas específicas (geralmente datas festivas: dia das mães, natal etc.), que devem ser autorizadas pelo poder judiciário. Já as visitas das famílias às pessoas privadas de liberdade é direito de todas as pessoas presas. Por meio das visitas, ou das custódias, uma série de itens de higiene pessoal e alimentos adentram na prisão, suprindo, na medida do possível, as insuficiências institucionais. No entanto, a entrada de itens e alimentos não é livre: uma série de regras regula o que pode e o que não pode entrar. Regras muitas vezes arbitrárias e que mudam constantemente, fazendo com que muitas famílias desperdicem dinheiro com o que compraram, privando seus entes queridos dos quitutes que carregam afetos e lembranças.
As visitas expressam também os atributos generificados do sistema prisional. Estando ligada à manutenção de contatos afetivos e ao cuidado, por meio do deslocamento, da preparação de alimentos e de seu transporte, a visita é um ambiente quase exclusivamente feminino. São em geral as mães e esposas com eventuais filhos/as que lotam as filas das visitas. Pais, irmãos, companheiros ou, em menor escala, amigos, também podem estar presentes, mas a predominância de mulheres é um dado inconteste.
Na entrevista com Gabriel, foi abordada sua relação com o tempo durante as visitas e durante tempo na cela: "Quando eu recebo visita, o tempo voa, lá na cela demora uma eternidade, mas quando você tá recebendo uma visita especial, tá com a pessoa que gosta, aí passa rápido, a gente esquece um pouco os problemas". A diferenciação na vivência do tempo durante as visitas também é um dado presente na pesquisa e na literatura da área (Cunha, 2007; Godoi, 2017). Tal diferenciação não indica uma mudança brusca na temporalidade, como se nada acontecesse durante o tempo sem visitas: O tempo vivido nas celas é também um tempo percebido como cheio de possibilidades, mesmo que poucas aconteçam de fato; mas a iminência de novidades, e o próprio relacionamento interpessoal inviabilizam análises que veem o tempo de privação como uma espécie de "tempo morto" (Godoi, 2017).
Dobra Homem-Provedor
Embora os homens sejam instados atualmente a manter um contato mais próximo e afetivo com os filhos/as, eles são também mais cobrados para prover o sustento material da casa. E, como aponta Machado (2004), a "falha" em ocupar sua posição social no interior da família pode gerar sentimentos de desvalorização pessoal. Daí noção de que a honra masculina seria maculada a partir do momento em que o homem deixa de prover e perde o controle da casa: o homem visto como "de respeito" é aquele que mantém a autoridade e o sustento da família e, nessa função, o âmbito da paternidade enquanto autoridade perante os filhos/as se confunde com a própria masculinidade enquanto instância de controle da casa. Na entrevista com Luciano, ele aponta os efeitos do encarceramento com relação a esse aspecto de sua vida familiar. Perguntei a ele a questão financeira de sua família durante seu aprisionamento.
É, isso é uma questão muito séria, né. Eu era o principal provedor, principal provedor da família. Provedor direto da família. E aí quando traz esse processo de prisão, todos os direitos foram negados, (...). Todos foram violados. (...). Eu como uma pessoa que trabalha numa esfera pública federal, foi tirado salário, foi tirado tudo, antes mesmo do julgamento, antes mesmo da decisão final, né, condenatória. Foi tirado todas as subsistências econômicas, desamparando de forma brutal a minha família, tá entendendo? Filhos sem nenhum tipo de recurso. Aí foi nesse momento que a família tenta se reunir, que eu digo meus familiares, pra tentar dar esse suporte nesse período.
No caso de Luciano, portanto, importaram menos aspectos morais acerca do provimento da casa, do que a urgência de garantir a sobrevivência da família. Sendo ele antes do encarceramento o principal responsável pelo suporte financeiro, ter sido preso afetou de forma direta toda a família. O suporte da família extensa e de amigos/as foi apontado como crucial para evitar o colapso de sua esposa e filhos/as.
É, alguns amigos se disponibilizaram a me ajudar, pra que não viesse a família a entrar em colapso tanto econômico como emocional e na dignidade da própria pessoa, que mantiveram essa disponibilidade de ajudar e isso foi crucial. Isso eu tive esse privilégio de, no caso do círculo de amizades, de alguns familiares. Outras pessoas entram em colapso, entraram em degradação, tá entendendo? Por causa dessa questão... [inaudível]. Esses familiares acabam sendo sentenciados com a prisão... [inaudível]. Aí a gente vê que é... Na Constituição, tanto no código processual penal a gente vê que a condenação não pode passar da pessoa do condenado. Mas infelizmente não acontece isso na prática. As pessoas que sofrem com seus entes privados de liberdade também acabam sentenciados. A partir da sentença do juiz, né, a partir do martelo que bate pra esse ente que vai ser privado de liberdade, vai cumprir pena, seus familiares recebem de forma indireta, e muitas das vezes de forma direta, essa sentença. Talvez o juiz nem saiba que tenha os seus familiares. Mas a sociedade que tá bem próxima da sua família sabe e ela contribui pra essa sentença, tá entendendo? E essa sentença ela vai se perpetuando de acordo com as questões que circulam diante dessa questão da prisão. (Luciano)
Luciano mostra de forma contundente como a pena ultrapassa a pessoa presa e atinge diretamente seus familiares. Os dados acerca da invisibilidade imposta às relações parentais dos homens privados de liberdade pela SEAP, ou seja, a quase completa falta de informações sobre a existência ou não de filhos/as dessa população gera essa situação onde "talvez o juiz nem saiba que tenha os seus familiares" (Luciano).
Estão aqui presentes aspectos da burocratização das instâncias jurídicas combinadas com as diferenças de classe e raça que desumanizam continuamente as pessoas presas: uma administração penitenciária que desconhece aspectos importantes das pessoas por ela acauteladas, dificultando ações planejadas visando garantir direitos dessa população, bem como a construção de políticas públicas; uma justiça criminal que pouco ou nada se importa com os efeitos do aprisionamento de uma pessoa para sua família - especialmente quando se trata de homens, visto não serem considerados cuidadores por excelência dos filhos/as. E, mesmo no espaço que é chancelado socialmente como masculino que, na ausência do homem, é realizado pelo Estado, a saber, o provimento material de seus dependentes, a família de Luciano não pôde obter o auxílio reclusão, mesmo com Luciano tendo trabalho formal antes do aprisionamento.
E isso trouxe efeitos dramáticos para Luciano e sua família. Houve um incremento da punição através da angústia por não poder proteger sua esposa e filhos/as, por não poder fazer nada para sanar suas necessidades mais básicas de sobrevivência. Por conta disso, nas suas visitas, sua esposa passou a ter o cuidado de selecionar as informações que ele receberia, como forma de protegê-lo da angústia, ou ao menos de diminui-la.
E assim, cara, assim, é massacrante. Porque você fica impotente, você não tem como resolver as questões econômicas da sua família, você fica de braços atados, de mãos atadas, sabe? É mais uma privação, tanto a privação do corpo, a privação da própria mente, né, porque você não consegue sair daquele lugar, de poder mudar a realidade da sua família. (Luciano)
Dobra da Ausência
Simone Menezes, militante antiprisional que foi casada durante décadas com um homem que esteve preso, além de ser mãe de seus filhos/as, é autora do texto "Família carcerária, população invisível". No texto, Simone traz um emocionante relato pessoal sobre suas experiências com o cárcere, a partir do aprisionamento de seu companheiro. Em determinada altura do texto, ela aborda a questão da ausência do pai que está preso:
Os filhos aprendem desde cedo que o pai está no hospital e quando já entendem o peso da masmorra são orientados, na maioria das vezes, a também se auto negarem. Dizem aos professores, vizinhos e colegas que seus pais estão viajando ou estão separados da mãe, e sentem com isso, desde pequenos, que não fazem parte da grande história de uma sociedade e sim, vivem obrigatoriamente, à margem do que são ou do que poderiam ser. (Menezes, 2005)
Simone relata o peso do estigma vivenciado por centenas de milhares de famílias brasileiras que possuem parentes presos/as. A suspeição generalizada e o receio do julgamento moral fazem com que, muitas vezes, seja preferível esconder a situação do encarceramento a lidar com a vergonha de ter questionada a idoneidade dos membros da família. Tal situação é compatível os resultados da pesquisa conduzida por Cúnico et al. (2020a), onde foi observada uma espécie de "contaminação do estigma" de parentes de pessoas privadas de liberdade, independentemente da gravidade do crime supostamente cometido pela pessoa presa. Com relação aos filhos/as, há também a delicada questão de vê-los/as aos poucos compreendendo os reais motivos da ausência de seus pais de casa, com toda a carga afetiva e de sofrimento que isso pode acarretar. Em determinado momento da entrevista com Luciano, ele abordou especificamente alguns efeitos do afastamento de seus filhos/as.
Porque assim, é, a ruptura é muito perigosa. Assim, eu tive um problema seríssimo quando a minha filha foi a primeira vez. Porque a minha esposa trouxe uma informação dizendo assim ó, "a (nome da filha) tá perdendo a sua identidade como pai". Ela não sabe quem é o pai dela e quando ela vê alguém ela chama de pai. (...) Aí minha esposa fez essa leitura e falou "vou precisar trazer ela". Porque eu não queria de fato que ela viesse ali, porque a gente sabe que existe uma... pô cara, assim, uma desumanidade, existe um desrespeito, tanto com os visitantes, sabe? Quando vão acessar esses lugares. Então eu não queria que minha filha passasse por aquilo ali (...) Eu via meu pai, via minha esposa, mas eu não via meus filhos, e isso me causava muita dor. Mas eu tentava segurar minha onda justamente pra eles não irem naquele espaço, mas ao mesmo tempo me causava muita dor pelo grau de afetividade, de relacionamento direto que eu tinha, que eu tenho com eles. Aí ela me trouxe essa parada e falou assim "vou precisar de trazer ela, porque ela tá perdendo". E quando... Foi um choque, foi uma porrada bem dada, bem no coração, né cara. Quando ela chegou, ela me olhou eu fui pegar ela no colo ela não quis vir. Ela não quis vir. E quando eu peguei ela chorou e pedia o colo da mãe. Ela não me conhecia. (Luciano)
Sua filha, ainda de colo, já não lembrava mais de seu pai. Incomensurável dor para Luciano, que sempre teve uma relação afetuosa com os filhos/as. E o contato se deu nesse jogo entre tentar proteger sua filha do ambiente hostil do cárcere, ao mesmo tempo em que não queria deixar de ser sua referência paterna, algo que sua filha demandava, chamando outras pessoas próximas de pai.
Hoje eu conheço alguns companheiros que tem filhos, mas os filhos vêem não como uma figura de pai, de afetividade. Sabe que foi ele que é o genitor, mas não tem essa... Como se fosse dois cidadãos que estavam ali trocando uma ideia numa fila de um banco, tá entendendo? Então assim, traz muita ruptura. Eu respeito essas decisões, isso é uma leitura de cada um faz, mas também essa proteção pode trazer... Essa proteção também pode trazer umas coisas muito mais nocivas que essa diluição da identidade parental, tá entendendo? (Luciano)
Aqui Luciano aborda situações de pais que de alguma forma perderam o vínculo com seus filhos/as, tornando-se estranhos para eles. Se é verdade que tais situações podem ocorrer - e ocorrem - a partir de múltiplos motivos e situações, o afastamento imposto pela prisão pode contribuir ainda mais para esse enfraquecimento ou mesmo ruptura de vínculos. É claro que as famílias são múltiplas, sendo impossível compreender cada situação específica a partir dos mesmos termos. Mas isso não apaga o fato de que, em cada singularidade atravessada pela privação de liberdade, cria-se a marca de uma ruptura de processos de vida durante o cumprimento da pena. E certas rupturas podem perdurar indefinidamente. Além das diversas dificuldades, há também o medo da estigmatização dos filhos/as, que apareceu em ambas as entrevistas. A crença de que ter uma carteirinha de visitante do sistema prisional pode causar danos futuros aos filhos/as acaba por contribuir, efetivamente, para um afastamento mais prolongado entre filhos/as e seus pais.
Minha mulher me visita sempre, até hoje, toda semana ela vem. Os meus filhos com ela vinham também, mas quando fizeram sete anos eu pedi pra ela não trazer eles mais. Se eles fizerem a carteirinha isso pode atrapalhar se eles quiserem fazer faculdade, pra entrar no serviço público, arrumar emprego... Eles puxam lá as informações e vai aparecer que eles têm carteirinha pra visitar a prisão, aí vão ver que tem parente preso, não quero. Aqui também não é lugar pra criança. Existe muito preconceito com isso, então eu quero o melhor pra eles, ver eles crescer, amadurecer... (Gabriel)
Dessa forma, como já afirmamos anteriormente, no âmbito do sistema prisional brasileiro, há um apagamento da figura do homem-pai que, salvo raras exceções, tem sua relação parental desconsiderada pelo poder judiciário. A invisibilidade dessas paternidades reforça estereótipos sobre uma suposta inaptidão de homens - em geral pobres, negros e com baixa escolaridade - para o cuidado dos filhos/as. Esse enquadramento da paternidade também se ancora em visões conservadoras que enxergam na figura do pai, sobretudo, a fonte do sustento material da casa e a imposição de limites aos desejos maternos e da prole. No entanto, na situação de encarceramento, os homens ficam sujeitos à intermediação, principalmente das companheiras, para manter algum contato com os filhos/as, além de, na maioria das vezes, se verem impedidos de desempenhar a função de provedor. Isso cria um paradoxo em que, na situação adversa que é a perda da liberdade, novos sentidos da paternidade podem emergir, ou mesmo novas formas de conceber a relação com os filhos/as.
Dobra do Cuidado, ou do Pai-Presente
"Eu considero quando eu falo a palavra pai considero também de proteção" (Luciano). Proteção aparece em seu discurso como algo que define a paternidade. Aqui estão presentes formas de imaginar o cuidado que pode ser exercido por homens com relação a suas famílias, nas quais uma das possibilidades é a proteção diante dos perigos do mundo.
No âmbito prisional, os aspectos institucionais ao mesmo tempo que coíbem, também forçam certas práticas de cuidado. Por ser um ambiente marcado por condições insalubres, com altos índices de mortalidade e transmissão de doenças, a prisão é comumente vista como lócus apenas de violência, o que é o oposto da noção corrente de cuidado enquanto preservação da vida. Além disso, entre os homens presos a autoafirmação pela força e de masculinidades hegemônicas perpassa os relacionamentos (Newton, 1994), sendo determinadas ações de cuidado consideradas indicadores de fraqueza e, portanto, evitadas (Diuana et al., 2008).
No entanto, certas formas de cuidado se tornam possíveis mesmo no ambiente prisional: aquelas das famílias para com as pessoas presas, e das pessoas presas entre si, com formas de solidariedade e auxílio material para com os presos que não recebem visitas familiares e, por conta disso, se veem mais vulneráveis de diversas formas. Com relação à família das pessoas presas, mesmo que as visitas demandem longos percursos e esperas para um contato com o parente por pouco tempo, elas mobilizam um esforço por parte da família, que reorganiza sua rotina em prol da manutenção dos vínculos e do suporte ao familiar preso. E as pessoas presas, em nome da coletividade, muitas vezes dividem itens de higiene e alimentos recebidos da família com alguns companheiros de cela.
Afirmar as práticas de cuidado assumidas pelos homens (presos ou não) significa, portanto, ir além dos discursos que afirmam que apenas as mulheres cuidam. Embora sejam elas, em grande medida, as responsáveis pelos cuidados dos filhos/as - efeito também de diferentes formas de desinteresse e desinvestimento de homens no cuidado cotidiano da prole, para além do sustento material -, se quisermos mudar este quadro e estranhar o que está dado, é necessário dar visibilidade às perspectivas dos homens sobre o que eles entendem por cuidado e qual sua posição na distribuição de tarefas e responsabilidades na família. Importa ver, assim, como diversas instituições naturalizam ou mesmo reforçam a noção de "pai ausente", indo na contramão do que seria desejável em termos de uma maior igualdade de gênero nas famílias e distribuição de tarefas de cuidado, onde podemos localizar as prisões por suas inúmeras formas de dificultar o relacionamento de homens presos com suas famílias e filhos/as, para além de todo estigma social produzido a partir do aprisionamento de um familiar.
Dessa forma, as definições e relatos acerca da paternidade presentes aqui não são exclusivas da população egressa ou privada de liberdade, mas evocam agenciamentos coletivos de significados. Um agenciamento importante é a ênfase atual para que os homens não restrinjam seus cuidados à questão material (provimento da família) e de autoridade, implicando na necessidade de fortalecer vínculos afetivos com a rede familiar e manter um papel ativo nas decisões importantes da manutenção da casa e do desenvolvimento dos filhos/as. Gabriel, por exemplo, ao abordar a questão da educação de seus filhos/as, faz questão de frisar que buscou não exercer uma forma autoritária de criação:
Uma coisa que eu não gosto é quando vejo batendo nos filhos. Eu falo pra minha esposa não bater neles, porque eu sei que isso não funciona. Eu apanhei muito quando era pequeno, era só na base do cinto, aí eu cresci revoltado com isso, não deu certo. Tem é que conversar com eles, explicar que tá errado, botar de castigo. É só pegar o que ele mais gosta de fazer, ah, jogar futebol, pronto: vai ficar um mês sem sair de casa. Pega o vídeo game e esconde. Pronto, agora não precisa bater. Tem gente que parece que não tem amor pelos filhos. (Gabriel)
Dessa forma, Gabriel evoca a forma como ele próprio foi criado, e que não deseja reproduzir com seus filhos/as. Ele aponta para o amor que deve perpassar essa relação, e que vai além da mera função educativa por meio da autoridade. Já Luciano, ao responder sobre sua definição sobre a paternidade, diz o seguinte:
Pô cara, eu acho que ser pai, assim, a gente podia encontrar (...) várias definições né. Mas assim, cara, pra mim ser pai, é porque o meu pai tá vivo, meu pai sempre foi um pai... Muito presente, né? Sempre teve ali nos momentos mais difíceis da minha vida, então assim, ser pai... Além de ser pai, ser o genitor né, mais assim, vai muito além de ser só uma figura de autoridade. É uma figura mesmo de orientação, uma figura de construção, sabe, de coisas... Participar dessa construção do crescimento, passo a passo da... da evolução do filho, sabe? E poder se apresentar como uma, um... um porto seguro. Pra uma pessoa que tá em construção, tanto física como emocional, né, aprendendo a lidar com as questões ainda, e tal, e pela experiência que você tá na frente por alguns anos, você contribuir que aquela pessoa de ela poder também começar a ter seus pensamentos críticos, ter suas reflexões, tentar não impor um pensamento que é seu sobre ela, mas sim fazer ela refletir sobre a realidade que tá cercando, e assim, cara, ser pai pra mim é isso. Ser pai pra mim é ser amigo, ser companheiro, ser compreensivo, é dar esporro na hora que tem que dar esporro... (Luciano)
A definição de Luciano indica certos agenciamentos da paternidade contemporânea, compartilhados socialmente. Ou seja, em primeiro lugar, cabe destacar o fato de Luciano ter tido em sua história um pai presente. Num país onde milhões de pessoas desconhecem seus pais ou quase não tiveram nenhum contato afetivo com ele, isso soa quase como um privilégio. Já o outro entrevistado, Gabriel, não conheceu seu pai, o que, segundo ele, marca sua vida até hoje: "Meu pai fez falta, se ele tivesse lá poderia dar uma ajuda em casa. Eu nunca vi nenhuma foto dele, aí fica uma falta de preenchimento no peito, de amor, carinho" (Gabriel). Daí a qualificação de "presente" quando se fala desses pais; qualificação que não se encaixa muito bem quando se fala das mães, já que se espera socialmente que elas se dediquem ao cuidado dos filhos/as integralmente. Quando um pai se coloca junto aos filhos/as e acompanha seu desenvolvimento, isso chama a atenção, justamente por ser, em certa medida, incomum. Além de ser ligado, como indicado, tanto com o incremento da pobreza material quanto com a carência afetiva e emocional. Pois a vivência da paternidade, nas palavras de Luciano, é importante para os filhos/as e segue sendo após o encarceramento:
Cara, é uma relação muito... Assim, é uma relação maneiraça, assim, sabe? Com meus filhos... (...) Porque pro meu filho ele acompanhou mais o processo de prisão, a minha filha não. Minha filha era bem pequena, não entendia nada, e hoje que ela traz essas indagações: "pai, porque você foi preso?" (...) "porque você foi preso? Um cara tão legal, pai..." "Você é um cara tão bacana porque você foi preso, pai? O que que você fez?" Aí a gente tem que trazer essas informações, explicar pra ela. Aí ela faz essas indagações... "A prisão não é só pra quem é perigoso?" [risos] E tal, aquela coisa toda. (Luciano)
A forma como a pequena filha de Luciano quer saber sobre o aprisionamento do pai é muito interessante. Com sua curiosidade de uma criança que aos poucos vai conhecendo o mundo, ela quer entender como alguém tão bom para ela, como seu pai, foi parar no lugar para onde vão as "pessoas perigosas". Isso aponta para a potência da afetividade que perpassa essa relação, e, além disso, o estranhamento dela que acabou gerando uma pergunta interessante para desalojar o que se pensa sobre o sistema prisional, propiciando que se vá muito além dos estigmas sobre periculosidade e da visão maniqueísta que separa "cidadãos de bem" e "bandidos". Uma pergunta que também nossa sociedade e a Psicologia enquanto classe profissional devem se fazer para desnaturalizar os processos de criminalização vigentes e as violências deles decorrentes. A realidade é mais complexa que o discurso punitivo dominante, e a filha de Luciano aos poucos vai aprendendo isso.
Entendeu? Recentemente ela fez 11 [anos]. Mas essas perguntas vem com mais frequência quando a gente já tinha retornado pra casa, e ela estava ainda nos seus 8 anos... Né, 8 anos e tal. Aí a gente estava... 8, 7 anos. Aí a gente estava, ela estava fazendo essa pergunta com mais frequência, agora ela faz muitas duras críticas sobre o sistema prisional, ela acompanha, a gente conversa muito sobre isso, mas assim, nossa relação é muuuito bacana. A nossa relação é muito de amizade, que as vezes eu até me perco, na verdade, as vezes eu nem me vejo como pai mas como amigo que tá ali né... [risos]. Do lado, construindo e tal, e as vezes que eu vou entender que tenho que ser pai também assim na figura da autoridade, que tem que "não, não é assim" e tal, mas assim, é muito mais amizade do que autoridade, entendeu? (Luciano)
O encontro com Luciano e Gabriel para cartografar suas vivências parentais demonstra, ao mesmo tempo, a variedade de sentidos e práticas que essa relação envolve (apesar da repetição de certos temas, como a autoridade e o sustento material da família), o impacto negativo dos processos de criminalização e o estigma deles decorrentes, bem como as algumas formas possíveis de resistência a estes processos. Corroborando com os resultados de pesquisa semelhante conduzida por Cúnico et al. (2020b), verifica-se que a paternidade não é um dos aspectos centrais na identidade dos homens presos (quando comparado com a maternidade para mulheres presas). No entanto, a situação do aprisionamento pode acarretar novas preocupações e reflexões em torno das relações familiares, como os impactos na situação financeira da família, a manutenção (ou não) dos contatos através das visitas, os temores decorrentes dos estigmas e, também, as formas possíveis de cuidado durante a após o tempo de privação de liberdade.
Considerações Finais
Embora o foco do trabalho não tenha sido a prática psicológica nas instituições de privação de liberdade, acreditamos que as reflexões ajudem a problematizar a relação entre paternidade, processos de criminalização e sistema prisional, em que as intersecções de gênero, raça e classe se fazem presentes e modulam determinadas maneiras de ser pai, estando preso. É importante assinalar que a pesquisa se fez desde uma perspectiva que pode se chamar de engajada: estudando realidades institucionais perpassadas por diversas formas de violências, torturas e opressões, acreditamos ser importante denunciar e tomar posição na defesa dos direitos humanos. Buscando manter uma postura ética no decorrer da pesquisa, foi dado um retorno a Luciano sobre o uso feito nesse trabalho de sua entrevista, dando-lhe a oportunidade de ler o texto e dar sugestões em sua escrita.
As formas com que a parentalidade é vivida nos espaços de privação de liberdade dependem das dinâmicas institucionais que, de forma simultânea, perpassam o cárcere e são recriadas dentro e através deles. Em geral, cria-se uma relação em que a criminalização se estende para além da pessoa presa, ao mesmo tempo em que a prisão, para funcionar, precisa do trabalho e do cuidado despendido por essas famílias, em especial de suas mulheres. Uma relação perpassada por diversos tipos de violências, desigualdades e silenciamentos. Mas que também aponta para possibilidades de resistência e (re)invenção da vida.
É importante ressaltar que estes processos não são separados das discussões sobre gênero e parentalidade. Ambos são acionados de diferentes formas na sociedade e no Estado para legitimar ações ou omissões, além de se materializarem nos corpos - nas formas localizadas de ser mãe, pai, homem ou mulher - daqueles que se implicam nos múltiplos processos sociais: nas lutas por justiça contra as violências de Estado, na forma de exercer controle sobre a população privada de liberdade, nas histórias de vida que produzem sentidos ao mesmo tempo singulares e coletivos. A forma como o a instituição prisional conforma as possibilidades de exercício parental indica como gênero e parentalidade se produzem também nas práticas de Estado. E as formas de viver as relações familiares e parentais apesar e através da prisão apontam para a potência dos vínculos e dos cuidados que vão muito além dos preconceitos que se dirigem à população privada de liberdade brasileira.
Dessa forma, para além das dinâmicas de invisibilização que perpassam as relações parentais de sobreviventes do cárcere, é importante buscar práticas psicossociais que fortaleçam os vínculos sociais e familiares das pessoas privadas de liberdade, o que deve incluir a relação parental dos homens presos, que representam a maior parte da população prisional brasileira. Assim, é importante evocar legislações como a própria Lei de Execução Penal de 1984, a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária de 2006 e o Marco Legal da Primeira Infância de 2016. Como importantes marcos legais na defesa de direitos sociais à convivência familiar e comunitária, eles são aliados na luta pela construção de diretrizes institucionais e profissionais, bem como de políticas públicas que minimizem os impactos familiares e sociais do aprisionamento, sem deixar de considerar as demandas das pessoas e famílias diretamente atingidas pelas violências dos processos de criminalização e aprisionamento.
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Endereço para correspondência
Lucas Gonzaga do Nascimento - lucasgonzagapsi@gmail.com
Recebido em: 12/04/2024
Aceito em: 08/10/2024
Financiamento: A pesquisa foi financiada por bolsa de mestrado do autor (CAPES, No. Processo 88882.450271/2019-01).
Agradecimento: O autor agradece à orientadora da pesquisa de mestrado, profª Anna Paula Uziel.
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