Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e83442, doi:10.12957/epp.2025.83442
ISSN 1808-4281 (online version)
CLIO-PSYCHÉ
A Psicanálise Cibernética de Lawrence Kubie: As Primeiras Incursões no Conceito de Feedback
The Cybernetic Psychoanalysis by Lawrence Kubie: The First Forays into the Concept of Feedback
El Psicoanálisis Cibernético de Lawrence Kubie: Las Primeras Incursiones en el Concepto de Retroalimentación
Bernardo Sollar Godoi a
a Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
O movimento cibernético foi composto por um grupo bastante heterogêneo de cientistas e intelectuais que se reuniu periodicamente durante alguns anos das décadas de 1940 e 1950 com o propósito de construir um paradigma comum para explicar o funcionamento de máquinas e seres biológicos. Embora tenha tido uma sobrevida relativamente curta, a cibernética foi propulsora de diversos empreendimentos científicos e intelectuais ao longo do século XX; dentre eles, a reformulação epistemológica de alguns conceitos psicanalíticos. No entanto, a influência da cibernética sobre a psicanálise continua sendo objeto de escassa investigação e publicação em território nacional. Por exemplo, é pouco conhecido que havia um psicanalista envolvido nos trabalhos do movimento cibernético. Por conta disso, nosso objetivo é reconstruir o modo como o psicanalista Lawrence Kubie ensaiou algumas articulações entre a psicanálise e a terminologia cibernética. Seu principal esforço foi o de interpretar a repetição patológica a partir de noções como feedback e circuito reverberante para explicá-la de uma forma "maquínica".
Palavras-chave: cibernética, feedback, máquina, psicanálise, repetição.
ABSTRACT
The cybernetics movement was composed of a highly heterogeneous group of scientists and intellectuals who convened periodically during a few years in the 1940s and 1950s, aiming to develop a shared paradigm to elucidate the functioning of both machines and biological organisms. Despite its relatively brief existence, cybernetics served as a catalyst for numerous scientific and intellectual pursuits throughout the 20th century, including the epistemological reevaluation of certain psychoanalytic concepts. However, the impact of cybernetics on psychoanalysis remains underexplored and underpublished in Brazil. For instance, few researchers are aware of the involvement of a psychoanalyst in the cybernetic movement. Consequently, our goal is to delineate how psychoanalyst Lawrence Kubie, an active participant in the movement, explored connections between psychoanalysis and cybernetic terminology. His primary endeavor involved interpreting pathological repetition through concepts such as feedback and reverberant circuits, elucidating it in a "machinic" manner.
Keywords: cybernetics, feedback, machine, psychoanalysis, repetition.
RESUMEN
El movimiento cibernético estaba o formado por un grupo muy heterogéneo de científicos e intelectuales que se reunieron periódicamente durante algunos años de las décadas de 1940 y 1950 con el objetivo de construir un paradigma común para explicar el funcionamiento de las máquinas y los seres biológicos. Aunque tuvo una vida relativamente corta, la cibernética fue la fuerza impulsora de varios esfuerzos científicos e intelectuales a lo largo del siglo XX, incluida la reformulación epistemológica de algunos conceptos psicoanalíticos. Sin embargo, la influencia de la cibernética en el psicoanálisis sigue siendo objeto de poca investigación y publicación en el territorio nacional. Por ejemplo, pocos saben que hubo un psicoanalista participando en el movimiento cibernético. Por ello, nuestro objetivo fue reconstruir la manera en que el psicoanalista Lawrence Kubie, participante activo del movimiento, ensayó algunas articulaciones entre el psicoanálisis y la terminología cibernética. La cuestión psicoanalítica central investigada por el autor en este contexto se refiere a las cuestiones de repetición. Su principal esfuerzo fue interpretar la repetición patológica utilizando nociones como retroalimentación y circuito reverberante para explicarla de manera "maquínica".
Palabras clave: cibernética, retroalimentación, máquina, psicoanálisis, repetición.
Em seu conto "A última pergunta", publicado na década de 1950, Asimov (1956/1981) narra interações entre seres e máquinas a propósito de uma questão fundamental para a sobrevivência de qualquer vida em um futuro longínquo no universo: é possível reverter a entropia? Tal possibilidade seria a garantia necessária para que haja recursos energéticos infindáveis para a sobrevivência eterna da vida no universo. No entanto, essa é a única pergunta para a qual a máquina não possui dados o suficiente para responder. As interações seres-máquinas são retratadas em diferentes épocas fictícias de um futuro tecnológico e transhumanístico. Os seres são dotados de características humanas e as máquinas se assemelham, em certa medida, com as nossas atuais máquinas de Inteligência Artificial, que respondem a comandos que lhe são feitos. A vantagem dessas máquinas está na capacidade de computar dados que ultrapassam a própria competência cognitiva humana, permitindo que elas funcionem quase sozinhas quando programadas adequadamente: insere-se um estímulo de entrada (como uma pergunta), a máquina computa o estímulo, confrontando-o com as informações e estado interno atuais, para enfim fornecer uma resposta de saída.
Não é difícil identificar uma influência da cibernética na narrativa de Asimov. A bem da verdade, os contos do autor refletem o debate acerca da interação entre humanos e máquinas, que ganhou uma virada considerável com o movimento cibernético nos anos de 1940 e 1950. De maneira geral, esse movimento foi formado por um grupo bastante diverso de cientistas e intelectuais que buscavam construir um paradigma comum para explicar o funcionamento de seres biológicos e máquinas. Nesse sentido, a cibernética se encontra nas origens das ciências cognitivas como um estágio imediatamente anterior à Inteligência Artificial (Dupuy, 1996).
Mas não é apenas o meio técnico-científico e as narrativas de ficção científica que receberam o impacto dos debates cibernéticos. O propósito de construir um paradigma comum para explicar o funcionamento de seres biológicos e máquinas teve como corolário certa diluição das fronteiras entre ciências da natureza e ciências humanas, possibilitando o diálogo com diversas disciplinas: desde as matemáticas e as engenharias até as ciências biológicas e sociais, sem contar as meditações filosóficas provocadas pelo avanço tecnológico e a associação entre máquinas e humanos. Vale notar que, embora tenha tido uma sobrevida relativamente curta, a cibernética mobilizou diversos empreendimentos científicos e intelectuais ao longo do século XX: introduziu o formalismo e a conceitualização das ciências do cérebro e do sistema nervoso; concebeu o design das máquinas de processamento de informação e os fundamentos da Inteligência Artificial (IA); produziu uma metaciência de teoria de sistemas, que deixou uma marca nas ciências humanas e sociais; proveu inspiração para inovações conceituais na economia, na teoria do jogo, na teoria da escolha racional, na ciência política, na sociologia e em outras disciplinas, como a interpretação lacaniana de Freud (Dupuy, 1996).
Realmente, durante meados da década de 1950, a cibernética (ao lado da teoria da informação e da teoria dos jogos) figurava no programa de reformulação epistemológica da psicanálise, proposto por Lacan sob a bandeira de "retorno a Freud". Ela era uma disciplina privilegiada para pensar questões relativas ao acaso, à causalidade e ao determinismo, à liberdade e à compulsão à repetição (Lacan, 1998/2010), logo antes da linguística estrutural ganhar uma posição mais priorizada nas interlocuções que propunha com outras disciplinas.
Mas, antes mesmo de Lacan se apropriar de problemáticas e termos da cibernética para repensar epistemologicamente alguns conceitos freudianos, o movimento cibernético já contava com a participação ativa de um psicanalista em suas apresentações formais e na condução de debates. Curiosamente, esse fato ainda é pouco conhecido pela literatura especializada em território nacional. Lawrence Kubie (1896-1973) foi o primeiro a ensaiar uma articulação entre a psicanálise e a cibernética, em conjunto com os demais membros do movimento. Embora tenha ocorrido uma investigação tímida a respeito da interlocução entre psicanálise e cibernética, principalmente a propósito de Lacan, a história e as implicações de tais diálogos ainda não receberam a atenção devida pela comunidade psicanalítica. Apenas muito recentemente que a relação entre os dois campos tem surgido em nosso país, talvez em grande parte devido à forma como as problemáticas a respeito da IA têm ocupado o debate público.
A título de exemplo, podemos mencionar a conferência de Mario Eduardo Costa Pereira sobre psicanálise, cibernética e IA para o Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG, 2020, 24 de Setembro) e três textos: o de Pedro Fonseca, que busca estabelecer uma relação entre a cibernética de Lacan e teóricos de mídia, como Flusser e Kittler (Fonseca, 2023); o de Augusto Ismerim e Christian Dunker, que discute a influência da cibernética na teoria da linguagem de Lacan (Ismerim & Dunker, 2023); e um texto de nossa autoria, que apresenta alguns usos que Lacan faz de noções de máquina (Godoi, 2024). Além disso, começa a aparecer a palavra "cibernética" como disciplina importante no quadro de disciplinas que interessaram a Lacan (Dunker & Iannini, 2023, p. 93, 98) - algo que, até então, não ocorria. Com efeito, a cibernética aparece associada a questões relativas à temporalidade e ao determinismo psíquico como uma causalidade circular ou retroativa que se contrapõe a uma teoria causal linear (Iannini, 2024, pp. 92-109). Dessa forma, o conceito de feedback, um conceito eminentemente cibernético,revela-se indispensável para pensar tais articulações com a psicanálise.
Contudo, esses trabalhos ainda não contemplam a origem da importação do conceito de feedback para a psicanálise. Tendo isso em vista, nosso objetivo é fazer uma breve reconstrução histórico-conceitual da forma como o diálogo entre psicanálise e cibernética aconteceu a partir de Kubie, o primeiro psicanalista a realizar uma interlocução com a cibernética ainda no interior do próprio movimento. Desse modo, pretendemos contribuir com esses estudos, a partir de uma investigação sobre a maneira como conceito de feedback, por exemplo, começa a surgir na comunidade psicanalítica para repensar seus conceitos internos em diálogo com um debate científico contemporâneo. Essa contribuição, entretanto, somente é uma parte pequena da história, que deve ser acrescida, em um futuro próximo, com um exame mais detalhado acerca da influência da cibernética sobre o ensino de Lacan. Por ora, faremos uma breve descrição do movimento cibernético, situaremos o motivo pelo qual Kubie, e não outro psicanalista, é inserido no grupo, apresentaremos as articulações que o autor propõe e discutiremos a maneira como a perspectiva psicanalítica era recebida pelos integrantes do movimento.
O Movimento Cibernético
O uso da palavra "movimento", no título da seção, não é sem propósito. Ele expressa duas características marcantes da cibernética: a interdisciplinaridade e a atmosfera propícia ao debate. A primeira é facilmente reconhecida pela pluralidade das formações dos autores e dos participantes das reuniões em que se discutia a cibernética, conhecidas como "Conferências Macy". Há uma explicação histórica, social e política para isso: grande parte dos autores que se uniram ao movimento cibernético vieram de um período pós-guerra, nos EUA, em que cientistas sociais e cientistas de disciplinas exatas trabalhavam em conjunto (Heims, 1991). A segunda é identificável nas próprias transcrições dos debates das conferências (Pias, 2016).
O movimento cibernético é composto por pesquisadores de diversas vertentes, reunidos em quatro grupos. Em evidência, o primeiro grupo conta com os seis cibernéticos, propriamente ditos: Norbert Wiener, matemático e o nome mais conhecido na história da cibernética e seu principal divulgador; Warren McCulloch, neurofisiologista, importante por desenvolver (junto a Pitts) o primeiro modelo matemático do neurônio, precursor das atuais redes neurais, e grande agitador das discussões nas Conferências Macy; Julian Bigelow, engenheiro que, ao lado de Wiener, do projeto bélico de previsão da trajetória de aviões para a defesa antiaérea na Segunda Guerra Mundial (Wiener, 2017); Arturo Rosenblueth, fisiologista mexicano, que colaborou com Wiener e Bigelow no famoso artigo sobre o conceito de feedback; Walter Pitts, lógico e cientista cognitivo, que assinou, com McCulloch, um dos textos fundadores da cibernética do primeiro modelo computacional das redes neurais; e John von Neumann, desenvolvedor da teoria dos jogos e de uma teoria geral dos autômatos. A característica geral desse grupo é o destaque que davam para a modelização matemática da mente (Dupuy, 1996).
O segundo grupo é composto por anatomistas, fisiologistas, médicos e naturalistas, que não expressavam muito gosto pela abstração matemática (Dupuy, 1996). O terceiro grupo é o "psicológico" (mais numeroso do que o dos matemáticos), formado por gestaltistas, psicólogos sociais, psicólogos experimentais, psiquiatras, neuropsiquiatras, comparatistas, especialistas em comportamento animal e o psicanalista Lawrence Kubie, acerca do qual comentaremos mais tarde. Finalmente, o quarto grupo é formado por filósofos e cientistas sociais, além do linguista Roman Jakobson, que esteve presente em algumas reuniões.
Realizadas entre 1946 e 1953, as Conferências Macy reuniram cientistas e pesquisadores de diversas áreas para discutir a cibernética e sua aplicação em suas disciplinas. Elas eram organizadas pela Josiah Macy Foundation, uma organização filantrópica que apoia pesquisas em educação na área de saúde, mas também se preocupava em viabilizar colaborações pioneiras entre disciplinas. Embora fossem realizadas no formato de conferências, o foco estava mais no intercâmbio de ideias e nas discussões, com o objetivo de desenvolver um pensamento comum, do que nas apresentações formais e individuais. As Conferências Macy se tornaram o ponto de encontro dos cibernéticos, que não dispunham de um centro único (Dupuy, 1996). Eles não chegaram a desenvolver um idioleto próprio, limitando-se a poucos termos, como: digital, analógico, feedback, servomecanismo, causalidade circular (Dupuy, 1996).
A história intelectual costuma associar o movimento cibernético ao impacto do artigo de Alan Turing (1936) sobre a proposta teórica da máquina universal (Dupuy, 1996) 1. Também conhecida como "máquina de Turing", ela é considerada uma das grandes conquistas técnico-científicas do século XX, tendo, inclusive, dado origem ao computador. Um grupo de pesquisadores que se interessou em buscar um modelo abstrato e formal capaz de explicar unificadamente o funcionamento da máquina e do vivente ficou particularmente interessado nas propostas teóricas de Turing. Mais tarde, esse grupo constituiu o movimento cibernético e, em síntese, almejava obter uma explicação materialista do funcionamento da mente.
A máquina de Turing dispõe de três componentes: (a) a máquina propriamente dita, com seus estados internos finitos, chamados de "configurações" (cada estado tem uma função de como operar); (b) uma fita de extensão ilimitada nos dois sentidos, dividida em "casas" com ou sem alguma marca; (c) um cabeçote, responsável por ler, escrever ou apagar, e se deslocar para a direita ou para a esquerda (Dupuy, 1996; Turing, 1936). A máquina de Turing é uma calculadora aritmética: ela realiza uma função numérica particular por meio de codificação. Inicialmente, a máquina possui já uma configuração: o estado interno (e.g., posição C) e a ausência ou a presença do símbolo na casa da fita. O argumento da função são as marcas da fita quando se liga à máquina. As casas se atualizam de acordo com as instruções ("configurações"). Essas informações de entrada fornecerão uma resposta de saída: mudança de estado interno; mudança ou não do conteúdo da casa lida; deslocamento ou não do cabeçote. Assim, temos uma decodificação do argumento inicial, obtendo um valor para a função com a resposta de saída. Em outras palavras, temos uma calculadora simbólica: a transformação das informações de entrada em informações de saída, modelo este do pensamento simbólico (Dupuy, 1996).
A máquina de Turing foi um marco histórico no mundo da técnica, inspirando os autores que mais tarde formaram o grupo cibernético. Podemos situar duas produções fundadoras da cibernética (Dupuy, 1996): o ensaio "Behavior, Purpose and Teleology", de Rosenblueth, Wiener e Bigelow (1943), e o artigo "Alogical callculus of the ideas immanent in nervous activity", de McCulloch e Pitts (1943).
O ensaio de Rosenblueth, Wiener e Bigelow (1943) versa sobre um dos conceitos mais importantes (se não o mais importante) da cibernética, a saber: feedback (ou retroalimentação), em sua forma positiva ou negativa. Esse conceito é crucial para compreender a diferença no conceito de máquina a partir da cibernética, além de funcionar como um modelo de explicação que abarca certos dispositivos de engenharia e aspectos do comportamento humano (com apoio principalmente na neurofisiologia). Essa foi a semente que reuniu, posteriormente, os diversos autores nas séries de Conferências Macy (Heims, 1991).
Máquinas sem um sistema de feedback são máquinas não propositadas, como, por exemplo, a roleta, o relógio e o revólver. Embora possam ter sido projetadas com algum propósito e usadas para alguma finalidade pensada, todos os propósitos são externos ao objeto, isto é, são subjetivos. A roleta pode ter sido projetada para o jogo, mas pode ser usada para ser lançada em alguém; os relógios, principalmente os caros, podem ser usados com o propósito de status social; e um revólver pode ser usado como objeto de coleção (Rosenblueth, Wiener & Bigelow, 1943). Essas máquinas não propositadas são os "autômatos"; não estabelecem nenhuma relação com o que é externo a elas, a não ser pela ação de um agente externo.
Por outro lado, existem máquinas que são intrinsecamente dotadas de propósito, como o caso de um termostato e de um míssil que contém um mecanismo localizador e preditor do movimento do alvo. Essas máquinas também podem ser chamadas de "servomecanismos" (Rosenblueth, Wiener & Bigelow, 1943, p. 19). A diferença crucial entre esses dois tipos de máquina é a capacidade que as segundas têm (mas as primeiras não) de mudar de comportamento de acordo com dois fatores: a programação interna e a informação que lhe chega do ambiente. Ou seja, são máquinas que são propositalmente responsivas ao ambiente.
Dentro da categoria das máquinas propositadas, existem as com feedback positivo e as com feedback negativo. Quando parte da energia de saída da máquina é reconduzida à entrada, aumentando o estímulo inicial, em vez de reduzi-lo, falamos em feedback positivo. Já as máquinas com feedback negativo são assim denominadas porque o comportamento é controlado pela margem de erro entre a meta específica e o estado atual; ou, ainda, porque os sinais vindos da meta são usados para restringir saídas que, de outra forma, ultrapassariam a meta (Rosenblueth, Wiener & Bigelow, 1943).
Desde as primeiras discussões do grupo, os autores estavam preocupados em ações direcionadas para metas. Antes dos cibernéticos, essa perspectiva era controversa. Explicar ações em termos de meta era tradicionalmente criticado pelos cientistas, pois significava explicar ações por meio de eventos que ainda não aconteceram - como se a causa viesse após o efeito (Heims, 1991). Rosenblueth, Wiener e Bigelow (1943) rejeitaram essa crítica e argumentaram a favor de ações propositadas (ações teleológicas), que, em engenharia, são chamadas de "mecanismos teleológicos" (Heims, 1991, p. 15). Esse tipo de modelo substitui a relação tradicional de causa e efeito (causalidade linear) por uma "causalidade circular", por conta dos sistemas de feedback. Bastava então deslocar tal modelo dos servomecanismos e aplicar a ideia de retroalimentação a organismos dotados de uma neurofisiologia.
Por exemplo, imaginemos as etapas de uma pessoa que vai pegar um copo: assim que ela estende o braço e a mão para pegar o copo com água, os membros estão continuamente lhe informando, pelas sensações (visual, proprioceptiva), o quão perto a mão está do copo. Há uma constante troca de informação que retroalimenta a ação, de acordo com a meta a ser alcançada. O processo é circular, porque a posição do braço e da mão em determinado momento é parte da informação input para a ação no próximo momento (Heims, 1991).
Mas precisamos esclarecer um aspecto quando se trata de organismos biológicos. A cibernética de Wiener e Rosenblueth é não mentalista. Quando se fala em purpose (propósito) não se deve traduzir o termo por "intenção", uma vez que os autores defendem uma finalidade não intencional (Dupuy, 1996). "Intencionar" pode sugerir uma subjetivação da máquina ou do organismo, o que não é o caso. Nessa aproximação entre máquina e humano, alguns poderiam supor que se trata da humanização da máquina, mas, novamente, não é esse o caso. Ao contrário, refere-se ao uso da máquina, dotado de um sistema de feedback, como modelo.
Nesse caso, podemos entender "modelo" como a construção de objetos a partir de uma idealidade formalizada e matematizada que sistematiza um conjunto de relações. Em suma, uma forma abstrata encarnada nos fenômenos (Dupuy, 1996). O projeto cibernético envolve, assim, a construção de modelos de explicação mecanicistas do comportamento humano (em sentido amplo, e não no sentido behaviorista) (Dupuy, 1996). Essa explicação mecanicista frequentemente vem associada - daí o motivo de Wiener (2017) fazer questão de sublinhá-lo - à influência marcante da lógica matemática na história da cibernética.
O artigo de McCulloch e Pitts (1943) é uma tentativa de arquitetar um neurônio artificial-matemático, baseado no comportamento simplificado dos neurônios. Trata-se do primeiro modelo computacional de redes neurais. Por conta do processo de "tudo-ou-nada" da atividade nervosa, os eventos neurais e a relação entre eles podem ser tratados por meio da lógica proposicional. Assim, "cada neurônio idealizado é uma calculadora aritmética elementar, que computa uma função booliana de limiar. O cérebro inteiro é representado como uma rede de interconexões entre tais calculadoras" (Dupuy, 1996, p. 60).
Segundo Dupuy (1996), eles radicalizam o que propuseram Rosenblueth, Wiener e Bigelow em dois sentidos: (i) enquanto estes negam o mentalismo e entendem que "mente" é uma mera convenção de linguagem, McCulloch e Pitts buscam mecanismos materiais e lógicos do funcionamento neuronal; (ii) enquanto a popularização da cibernética por Wiener foi marcada pela analogia entre organismo e máquina, McCulloch entende que o organismo é uma máquina. Cabem aqui duas ressalvas para melhor entender isso. Wiener é um matemático aplicado. Para ele, basta estabelecer um isomorfismo matemático para concluir pela analogia. McCulloch, por sua vez, toma uma posição ontológica. Além do mais, o conceito de máquina difere entre os dois. Enquanto, para Wiener, máquinas são máquinas "de verdade", artefatos, máquinas artificiais, objetos técnicos, para McCulloch, a máquina é um ser lógico-matemático. Trata-se de uma máquina-lógica.
O artigo de McCulloch e Pitts (1943) é claramente influenciado pela máquina de Turing. Os autores buscam demonstrar, em princípio, a existência de uma máquina lógica equivalente à de Turing, que pode ser modelo para a anatomia e a fisiologia do cérebro. Dessa forma, a estrutura do cérebro e sua função (a mente) seriam assimiláveis à máquina de Turing. É assim que McCulloch pensa ter resolvido o velho e longo problema da mente e do corpo (Dupuy, 1996). Ele, especialmente, estava convencido de que poderia demonstrar as faculdades atribuída à mente (como a percepção, o pensamento, a memória, a formação de conceitos, o conhecimento e reconhecimento dos universais, a vontade e até a consciência) com a sua máquina lógica. Assim, ele acaba por se interessar particularmente pelas propriedades da rede de circuitos fechados, ciclos ou loops no funcionamento de organismos 2 (Dupuy, 1996).
É nesse ponto que a participação do psicanalista Lawrence Kubie nas Conferências Macy mostra sua importância. Em 1930, quando ainda era neurologista, Kubie publicou um artigo, "A Theoretical Application to some Neurological Problems of the Properties of Excitation Waves which Move in Closed Circuits" (Kubie, 1930), sobre circuitos fechados e sua relação com movimentos involuntários espontâneos (como espasmo clônico, atetose, coreia, ataque epiléptico), que conquistou a atenção de McCulloch (Dupuy, 1996). Anos mais tarde, em 1941, agora como psicanalista, Kubie publicou o artigo "Repetitive Core of Neurosis" e, de acordo Dupuy, "conjecturou que o circuito neurofisiológico das neuroses reside nesses circuitos fechados reverberantes, em que as sequências de impulso se deixam cair na cilada de um círculo sem fim" (Dupuy, 1996, p. 61) 3. Vejamos como o psicanalista estadunidense estabeleceu diálogo com a cibernética.
Lawrence Kubie e a Presença da Psicanálise nas Conferências Macy
Lawrence Kubie foi um dos primeiros psicanalistas a estudar na tradição de escola médica estadunidense e, como Freud, começou sua carreira com pesquisas experimentais em neuropatologia. A sua formação psicanalítica se deu na Inglaterra e, posteriormente, foi membro do ortodoxo Instituto Psicanalítico de Nova York (Heims, 1991).
Embora Dupuy (1996) afirme que Kubie abordara os circuitos fechados reverberantes como uma proposta de leitura da neurose em "Repetitive Core of Neurosis", o termo "reverberative circuits" ou palavras correlatas não são encontradas em nenhum momento do texto, e o termo "closed circuit" é mencionado apenas uma vez (cf. Kubie, 1941, p. 25). Mesmo assim, esse termo aparece vinculado ao seu antigo texto de 1930, e nada o associa especificamente à neurose. Esse termo encontra-se referido à repetição própria da fisiologia do sistema nervoso central: com exceção do arco reflexo, todo comportamento e até o pensamento seriam propensos à repetição, podendo funcionar em um circuito fechado ou aberto.
No texto de 1941, Kubie aborda a repetição (patológica) como o elemento central da neurose, revisitando o conceito freudiano de compulsão à repetição. Inicialmente, ele traça desenvolvimentos teóricos que lembram explicações behavioristas para a aquisição do comportamento não patológico (a partir de um sistema de gratificação) e os desvios que eles sofrem de acordo com as contingências da vida. Obviamente, a repetição de comportamentos acontece, mas não significa que sejam patológicos apenas por terem essa característica. Assim, ele define a neurose como o fato de o indivíduo não conseguir parar os atos repetitivos por conta própria. A partir daí, o autor elabora teoricamente como se desenvolve um ato repetitivo até alcançar o estatuto de uma compulsão neurótica, envolvendo conflitos ambivalentes relacionados ao contexto familiar (Kubie, 1941). Não é o caso de nos atermos aos detalhes dessa explicação de Kubie, uma vez que o nosso interesse é mais específico: a maneira como relaciona neurose, repetição, circuitos fechados reverberantes, feedback e cibernética. Comecemos pela forma como a noção de circuito fechado aparece em seu trabalho inicial, para enfim entender sua participação nas Conferências Macy e suas articulações com termos cibernéticos.
No texto neurológico de 1930, Kubie aborda o problema da falta de explicações satisfatórias, na literatura neurológica, acerca dos movimentos involuntários espontâneos (espasmo clônico, atetose, coreia, ataque epiléptico). Ele trabalha com a hipótese de que esses movimentos podem ser explicados a partir da noção de circuito fechado. Primeiro, ele parte do dado corrente da neurofisiologia da época de que o caminho percorrido pelo impulso nervoso vai de uma ponta a outra, como um circuito aberto (recepção do estímulo aferente pelos dendritos, seguindo o curso pelo corpo celular até que o axônio transfira o impulso a outro neurônio ou execute a ação eferente). No entanto, ele trabalha com a possibilidade de existirem funções (ou, nesse caso, disfunções) no organismo que provocariam outro funcionamento do percurso nervoso. Ele especula que, nos movimentos involuntários espontâneos, em vez de a excitação nervosa se manter estática e eventualmente liberada (como era o pensamento da época), ela percorreria caminhos que retornam ao ponto de partida, fechando o circuito da excitação. Acontece aqui uma onda de excitação nervosa circular. Um elemento pressuposto nessa hipótese é que existem áreas encefálicas "ativas" (nas quais o impulso nervoso necessariamente provoca alguma alteração corporal, ao percorrer um trajeto até o exterior do sistema nervoso central) e áreas "silenciosas" (nas quais o impulso nervoso não provoca nenhuma mudança visível no organismo; como quando estamos dormindo e a atividade cerebral não deixa de existir, mas o organismo se encontra quase imóvel). Dessa forma, os casos de movimentos involuntários espontâneos seriam explicáveis (com poucas variações para cada um deles) por um circuito fechado que percorre áreas "ativas" e "silenciosas", variando entre contratura (área motora "ativa") e relaxamento (área motora "silenciosa") (Kubie, 1930).
Esse texto chama especial atenção de McCulloch e Pitts, mas também de Rafael Lorente de Nó, outro participante das Conferências Macy, que na década de 1930 observou e estudou, em laboratório, os neurônios de circuitos reverberantes. McCulloch considera Kubie o pioneiro da proposta de caminhos circulares de neurônios (Heims, 1991). Esse trabalho parece ter motivado McCulloch a convidar Kubie para participar das Conferências Macy, a despeito do seu vínculo com a psicanálise. Na verdade, tudo indica que há dois motivos centrais para a participação de Kubie nas conferências: a insistência do grupo das ciências humanas pela presença de um psicanalista; e o fato de McCulloch conhecer e respeitar os trabalhos neurológicos do autor (Le Roux, 2013).
De fato, Kubie foi o único psicanalista frequentador das Conferências Macy, participando com apresentações formais e direcionando temáticas de discussão nos encontros. Embora parte de seu público fosse refratário à psicanálise, ele sempre mobilizava participações ativas dos integrantes do grupo cibernético. A atmosfera envolvendo a presença de Kubie, de maneira geral, e as críticas à psicanálise, de maneira específica, nas Conferências Macy, foram detalhadamente descritas por Heims (1991). Segundo o comentador, embora tenha se tornado psicanalista, após ter sido um pesquisador experimental, Kubie nunca quis perder o status de cientista. Ele fazia questão de atribuir o caráter científico à psicanálise e se esforçava na apresentação e explicação da psicanálise para os membros das Conferências Macy, na intenção convencê-los disso. No entanto, o resultado era sempre controvertido.
As teorizações derivadas da natureza subjetiva da relação entre analista e analisante eram contrastadas com as observações controladas dos cientistas experimentais, o que levava a psicanálise a ser desacreditada por estes. Mesmo assim, Kubie mantinha uma postura paciente diante dos insucessos em apresentar a psicanálise à sua audiência. Ele sabia tolerar uma "transferência negativa". Por outro lado, alguns se mostravam interessados em escutá-lo: às vezes mais pelo respeito que tinham em decorrência dos seus trabalhos experimentais anteriores do que por um interesse genuíno nas ideias psicanalíticas (Heims, 1991).
No que se refere a participantes específicos, podemos dizer o seguinte. Wiener não tinha uma objeção estrita à psicanálise, mas acreditava que seria adequado que a teoria fosse reescrita em termos de informação, comunicação, feedback e sistema. Pitts e Bateson criticavam a psicanálise pela oposição dicotômica entre consciente e inconsciente, tal como apresentada por Kubie. Fatalmente, de acordo com o psicanalista, é por haver inconsciente que há neurose, e que a consciência deveria exercer certo domínio dos impulsos inconscientes. Para Pitts, havia ambiguidades e inconsistências lógicas na psicanálise, o que o levava a perguntar sobre a necessidade do "inconsciente". Já Bateson considerava complicado realizar um discurso científico sobre as emoções. Kubie até demonstrou sua vontade em encontrar uma forma de medir e quantificar emoções, apesar de saber das dificuldades eminentes dessa empreitada. Bigelow, talvez o matemático mais sofisticado presente ali, por sua vez, logo intercedeu contra essa possibilidade (Heims, 1991).
As objeções de McCulloch são as mais duras. Muitas críticas à psicanálise que conhecemos hoje, e que foram "requentadas" com as acusações recentes de pseudocientificidade, já haviam sido feitas, antes de Popper, por McCulloch nas décadas de 1940 e 1950. Suas críticas vão desde a suposta falta de evidência para o tratamento psicanalítico e a alegada impossibilidade de testes científicos que verificariam a validade das hipóteses psicanalíticas quanto até a acusação de que haveria um determinismo rígido nas interpretações dos analistas, que impedia um diálogo racional (Heims, 1991).
Em sua análise das discussões acirradas envolvendo a psicanálise nas Conferências Macy, Heims (1991) depreende que a diversidade de posições quanto à psicanálise refletia não apenas uma rivalidade ou legitimidade questionável entre psicanalistas e neuropsiquiatras, mas também experiências pessoais dos participantes. Por exemplo, na visão de Kubie, o próprio McCulloch estaria acometido por algum estado psicopatológico, muito por conta da maneira inflamada com que expressa suas opiniões a respeito da psicanálise (Heims, 1991). Em todo caso, as críticas de McCulloch são diversas e atinge aspectos variados da teoria e da experiência analíticas. Teria que ser realizado um trabalho a parte apenas para examinar, de maneira mais detalhada, as críticas do neurofisiologista e compará-las com as que vieram posteriormente (bem como se acerta ou não o alvo e de que maneira se caracteriza a psicanálise atuante nos EUA na época etc.), se quisermos fazer um retrato mais apurado das considerações do autor.
De qualquer forma, assim como McCulloch, Kubie também acreditava que haveria um substrato biológico em jogo nas enfermidades psíquicas - de maneira similar a Freud 4. No entanto, para o psicanalista estadunidense, a neurofisiologia ainda estava muito primitiva para fornecer teorizações profícuas nesse sentido. Assim, ele via a psicanálise como a melhor terapia disponível para as neuroses. Não à toa, Kubie era um dos poucos psicanalistas que McCulloch ainda assim respeitava, apesar dos embates intelectuais que possuíam (Heims, 1991).
Uma Psicanálise Cibernética: Os Circuitos Reverberantes da Neurose e os Primeiros Usos do Conceito de Feedback na Psicanálise
Tudo indica que, apesar da associação do "circuito reverberante" ou "circuito fechado" com a neurose não ter sido exatamente abordada no texto de 1941, o próprio fato de Kubie ser o autor do artigo neurológico sobre circuitos fechados já era o suficiente para que essa associação entre neurose e circuitos fechados reverberantes fosse considerada entre aqueles que conheciam seus trabalhos. No texto de 1941, Kubie faz referência ao artigo de 1930, ao sustentar uma base fisiológica para a repetição (seja ela patológica ou não), estendendo-a tanto para o comportamento quanto para o pensamento, a partir do funcionamento não somente em circuito aberto, mas também em circuito fechado (Kubie, 1941).
Em compensação, essa associação é explícita em várias discussões sobre o assunto nas Conferências Macy. Por exemplo, em 1949, Kubie (2016a) fornece a conferência "The Neurotic Potential and Human Adaptation". Nela, o autor realiza uma leitura sobre, de um lado, a disposição adaptativa e, de outro, a disposição neurótica que o humano possui no ambiente em que se encontra. O autor propõe aqui uma definição de neurose e de normalidade, esquivando-se de noções de normalidade estatística, de normalidade como conformação com os valores sociais e de normalidade como utilidade do comportamento. Para ele, a neurose consiste na repetição obrigatória de padrões de comportamentos, por causas que se dissociaram dos processos conscientes (ou seja, inconscientes). Alguém poderia ser bem adaptado aos valores sociais de onde vive sem sofrimento visível. Bastaria, porém, uma desorganização inesperada desse ambiente para sucumbir em sua neurose. Além disso, ele define os processos conscientes e inconscientes de maneira dicotômica: os primeiros são flexíveis, realistas, adaptativos e passíveis de aprendizagem pela experiência, enquanto os segundos são rígidos, desadaptativos e não passíveis de aprendizagem com a experiência (argumentação, exortação, persuasão não provocariam mudanças), não importando se esta é acompanhada de prazer ou de desprazer.
A discussão, visivelmente mais extensa do que a apresentação (Kubie, 2016a, pp. 72-97), é calorosa e controversa, principalmente porque a maior parte do público, além de não ser muito familiarizado com a psicanálise, possui alguma relutância a ela. Kubie recebeu numerosas perguntas, e o que se destaca é a tentativa constante de explicar várias vezes o mesmo assunto da apresentação. O autor também não se furta a afirmar o desconhecimento da psicanálise para dar respostas definitivas ou normativas para determinadas questões. Chama a atenção, por sua vez, o comentário de McCulloch e Wiener sobre o emprego de termos como "força" e "energia" pelos psicanalistas: McCulloch prefere que o termo "energia psíquica" seja substituído por "quantidade de informação" (Kubie, 2016a, p. 88); e Wiener e outro participante, o médico Harold Abramson, criticam esses termos, por não possuírem o sentido disciplinar que carregam na física, recomendando que sejam revistos.
É somente no início da discussão que Kubie (2016a) alude a uma leitura cibernética dos problemas clínicos. Segundo o autor, as noções de circuitos reverberantes e feedback poderiam ser aplicadas como modelo explicativo (i) da relação entre os processos conscientes e os inconscientes; (ii) dos processos emocionais caracterizados por círculos viciosos; (iii) dos "tiques"; (iv) dos padrões de comportamentos compulsivos ou padrões obsessivos de pensamento; e (v) das manifestações rígidas de depressões ou elações psicóticas, que são quase impenetráveis pela influência psicoterapêutica, mas que (supostamente) responderiam à estimulação elétrica.
McCulloch é fortemente levado pela ideia de que a neurose pode ser explicada pelos circuitos reverberantes (Pias, 2016, pp. 143, 156-157). De fato, tanto Kubie quanto McCulloch e outros participantes das Conferências Macy tinham, apesar de várias divergências, o consenso de uma íntima relação entre neurose e circuitos fechados reverberantes. Mas, afinal, o que isso significa? Tentemos esclarecer essa intricada relação.
Inicialmente, Kubie toma o âmago da neurose como uma repetição obrigatória, cujas motivações originais se tornaram inconscientes, causando um conflito (quase) irremediável. A partir disso, o psicanalista "modela" a neurose através do funcionamento dos circuitos reverberantes, entendendo que o neurótico opera como uma máquina de feedback em que o processamento da informação em relação às metas não está em acordo com a realidade: ou seja, não ocorreria o processo de feedback negativo de ajustamento do estado interno atual com a meta e a informação de entrada que chegaria do ambiente. Isso porque o processamento da informação e sua resposta de saída se dão motivados pelos processos inconscientes, que são pouco afeitos com a realidade. O neurótico estaria, assim, preso em uma rede de circuito fechado que se retroalimenta positivamente, isto é, toda a informação de saída retorna ao sistema de entrada, sem modificação e sem finalidade efetiva: a informação de saída acaba sendo a mesma da de entrada. A repetição neurótica seria, dessa forma, um loop cibernético ou, ainda, um circuito fechado reverberante (de feedback positivo).
Podemos dizer que essa é, sinteticamente, a leitura cibernética de Kubie a propósito da repetição neurótica. Anos depois, em 1952, Kubie (2016b) faz outra apresentação nas Conferências Macy, intitulada "The Place of Emotions in the Feedback Concept", na tentativa de ensaiar outras articulações de temas psicológicos com a retroalimentação. Inicialmente, ele assume que há quatro maneiras de considerar o feedback no comportamento humano: (i) circuitos que buscam manter o equilíbrio energético através da autossinalização, como a memória e a representação simbólica; (ii) circuitos que corrigem a precisão com os objetivos conscientes ou inconscientes; (iii) circuitos que equilibram prazer e dor, bem como a tendência a repetir ou evitar experiências anteriores; e (iv) circuitos que corrigem as consequências psicossociais do pensamento e da ação, usando recompensas e punições, virtude e culpa.
Embora mencione essas quatro maneiras de abordar o feedback, Kubie (2016b) não os examina detalhadamente. O objetivo da apresentação é explorar o terceiro tipo de circuitos. O autor considera que as emoções, bem como a influência das emoções no comportamento, possuem um funcionamento circular mais ou menos regulatório. A ideia é que padrões afetivos podem ser entendidos como circuitos reverberantes. Mas, agora, a apresentação consiste mais em identificar as dificuldades de precisar como os circuitos reverberantes (ou os circuitos de feedback positivo) influenciam no acúmulo, na descarga, na manifestação consciente e inconsciente, na mobilização de estados fisiológicos e psicológicos específicos (e.g., apenas um órgão, como o intestino, é consistentemente afetado quando um indivíduo sofre de algum intenso estado emocional como a raiva, havendo, assim, uma influência circular inconsciente já formada) e como esses circuitos podem ser ou não estudados experimentalmente. Além disso, a preocupação possui uma visada clínica de compreender os caminhos terapêuticos para tentar promover uma mudança nesses circuitos, bem como de definir quais circuitos de feedback seriam normais ou patológicos. A apresentação termina com diversas questões, que são então debatidas com a audiência.
A principal tarefa de Kubie (2016b) em toda sua apresentação, mas também na sessão de debate, parece ter sido mostrar o quanto levar em consideração fatores psicológicos complexifica os lugares comuns a partir dos quais fisiólogos, experimentalistas, matemáticos e engenheiros gostariam de abordar as questões: respirar não é apenas um processo biológico; fazer experimentos implica excluir variáveis importantes para compreender o funcionamento psíquico; o papel das emoções no funcionamento humano pode não ser quantitativamente formalizado (e.g., um ouvinte pergunta se não seria possível mensurar a raiva pela mudança na pressão sanguínea); e máquinas podem não ser modelos perfeitos.
O problema da definição de um estado emocional em si aparece em toda a exposição de Kubie (2016b), mas também no debate. Qualquer descrição de um estado emocional parece insuficiente e imprecisa o bastante para ser mensurável. Afinal, não se pode mensurar algo que não é definido o suficiente para tanto. É nesse problema que se encontram metidos. Por fim, concordam que um correlato fisiológico deva ser um apoio seguro para a definição, e se dão por satisfeitos de que ainda não é possível pensar em mensuração sem uma descrição compatível com os desenvolvimentos acurados da fisiologia e neurofisiologia.
Um leitor lacaniano poderia dizer ao terminar de ler o debate: "é como se eles se engassem na possibilidade de adequação entre significante e significado ou, de maneira ainda mais primária, de uma adequação entre linguagem e coisa, e não percebem que a própria linguagem não somente molda o que se tenta descrever, mas também é quase indistinguível do que se tenta dizer". É verdade que, pouco tempo depois, Lacan faz um profundo uso da cibernética, mas esse uso possui um tom diferente; muito mais afeito à dimensão da mensagem e à maneira como a cibernética pode iluminar o funcionamento combinatório da linguagem. Algo que abordaremos em um trabalho posterior.
Considerações Finais
Poucos diálogos entre psicanálise e cibernética foram estabelecidos de forma profícua nos EUA. Sumariamente, o diálogo entre psicanálise e cibernética aconteceu de quatro formas por quatro autores diferentes (Le Roux, 2013). A primeira forma de "diálogo", na verdade, foi a hostilidade, que envolve principalmente McCulloch, como vimos. Já o diálogo que Kubie estabeleceu foi uma forma de pensar uma fundamentação, para a psicanálise, sobre uma base cibernética e neurofisiológica. Gregory Bateson, integrante do grupo dos cientistas sociais das Conferências Macy, fez uso de alguns elementos psicanalíticos, mas seu trabalho não obteve repercussão no meio. Wiener, por sua vez, recomendava fortemente uma reformulação epistemológica da psicanálise a partir da cibernética. O matemático não tinha nenhuma objeção essencial à prática psicanalítica, mas entendia que as noções energéticas encontradas no texto freudiano estariam obsoletas e deveriam ser substituídas pela então terminologia cibernética.
Quando a cibernética chega ao território francês, o único psicanalista que se interessou por ela foi Lacan. Contudo, segundo Le Roux (2013), nenhuma das modalidades positivas de diálogo influenciou diretamente esse interesse. Esse ponto de vista diverge, todavia, do de Dupuy (1996), que sugere a influência dos trabalhos de Kubie sobre o psicanalista francês. Por mais que a cibernética tenha contribuído para repensar teoricamente alguns conceitos da psicanálise, Le Roux (2013) considera que, se Lacan seguiu a recomendação de Wiener, isso ocorreu por intermédio de seus "conselheiros matemáticos": Georges-Théodule Guilbaud (1912 - 2018) e Jacques Riguet (1921 - 2013). Para o comentador, as preocupações de Kubie estariam mais presentes na neuropsicanálise, que é mais disseminada no contexto anglo-saxão do que no francês (Le Roux, 2013) e, acrescentemos, no brasileiro.
Pode até ser, mas um aspecto que não deixa de chamar a atenção, é o fato de a incidência mais forte da cibernética sobre a psicanálise de Lacan se encontrar justamente na reformulação epistemológica do conceito freudiano de compulsão à repetição. É verdade que dificilmente outros aspectos da psicanálise de Kubie poderiam ser alinhados à de Lacan. Ambos divergem quanto à direção de tratamento, além de terem considerações muito diferentes acerca do uso da teoria e da ética psicanalíticas. No entanto, o fato de ambos abordarem o problema da compulsão à repetição sobre o sujeito abre margem para repensar se não haveria, mesmo que mínima, uma influência do pensamento cibernético de Kubie, que articula feedback e repetição neurótica, sobre a empreitada de Lacan em tratar o assunto. O problema da compulsão à repetição é o que mais interessa ao psicanalista francês para pensar a ordem simbólica e a insistência do significante atuante de forma imperativa no sujeito, em articulação com questões derivadas da cibernética e da teoria da comunicação. De qualquer modo, não temos espaço suficiente para abordar detalhadamente essa hipótese de investigação, deixando para examiná-la em um ensaio futuro 5.
Levando em consideração que a cibernética se encontra nas origens das ciências cognitivas (Dupuy, 1996), desembocando, por exemplo, na IA, redes de neurônios artificiais e nas teorias dos sistemas auto-organizados e complexos, restaria, ainda, fazer uma atualização dessa abordagem dos circuitos de feedback com o estado atual das discussões, na intenção de compreender o que se sustenta e o que não mais se sustenta no tratamento dessas questões. Recentemente, Iannini (2024) esboçou algo próximo a isso, mas que ainda precisaria ser minuciosamente explorado.
Por fim, podemos considerar que essa discussão nos permitiu entrever algumas questões, muitas vezes deixadas de lado pela literatura psicanalítica, e que podem ser melhor desenvolvidas em trabalhos futuros: (1) há precedentes na discussão entre psicanálise e cognitivismo, apesar de haver resistência da comunidade psicanalítica nesse sentido; (2) esse é um caso que ilustra a participação da psicanálise no debate científico de sua época, não estando, portanto, completamente apartada dos desenvolvimentos técnico-científicos que lhe são conexos; (3) a "psicanálise cibernética" de Kubie talvez seja uma influência quase "subterrânea" na apropriação lacaniana da cibernética em seu programa de "retorno a Freud", que teve início pouquíssimo tempo depois das articulações propostas pelo psicanalista estadunidense (hipótese que precisaria ainda, em todo caso, ser demonstrada); e, por fim, (4) este ensaio de natureza histórico-conceitual teve como objetivo resgatar um diálogo com um movimento responsável pelas origens das ciências cognitivas, pensando em um precedente que viabilize pensar o diálogo de uma psicanálise que esteja atenta às problemáticas do século XXI.
Referências
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Endereço para correspondência
Bernardo Sollar Godoi - bernardosollar@gmail.com
Recebido em: 11/04/2024
Aceito em: 25/09/2024
Notas
1 É verdade que formular a origem da história de um pensamento possui algum grau de arbitrariedade. Afinal, é sempre possível rastrear influências prévias e atribuir diferentes precursores em decorrência de concepções aproximadas. Sabemos que a história da máquina é muito mais antiga e que existem noções de autômato desde a Grécia e a China antigas. Além disso, na modernidade, não era nada incomum atribuir uma natureza maquínica ao humano. Descartes considerava a matéria corporal uma máquina. La Mettrie teoriza sobre o homem-máquina e sua capacidade de ordenar a si mesmo. Além do mais, há aqueles que atribuem a origem da cibernética (de maneira similar à teoria dos jogos) ao cálculo de probabilidades de Pascal, como é o caso de Lacan (2010). De qualquer maneira, a visão de Dupuy tem relação com o impacto mais direto dos estudos dos autores em questão no desenvolvimento da cibernética.
2 O circuito fechado acontece quando um circuito elétrico é completo e a corrente elétrica percorre o caminho em "círculo". Já no circuito aberto há uma lacuna, e a corrente elétrica não é capaz de retornar ao ponto de origem. No nosso caso, estamos lidando com questões neurofisiológicas, que serão tratadas posteriormente.
3 Circuitos reverberantes são circuitos formados por neurônios que ativam uns aos outros em circuito fechado, portanto, o impulso nervoso possui um trilhamento circular. Dessa forma, o último neurônio do circuito estimula o primeiro de forma recorrente. Tem-se aqui um circuito de retroalimentação positiva. O tempo é variado de acordo com a função fisiológica em questão e com o número de neurônios necessários para executar essa função.
4 Vários autores consideram o uso da biologia por Freud como "metáforas", algo que, todavia, é primorosamente refutado por Simanke (2020, 2023).
5 Esse assunto foi abordado em minha tese de doutorado. Está sendo elaborado um texto que enfoque na maneira como Lacan manuseia as referências cibernéticas a propósito da compulsão à repetição, para ser submetido à publicação em breve.
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