Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e83398, doi:10.12957/epp.2024.83398
ISSN 1808-4281 (online version)

 

DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE

 

Análise da Atividade de Psicólogos nas Prisões: Uma Leitura Clínica do Trabalho

 

Analysis of Psychologist's Activity in Prisons: A Clinical Reading of the Work

 

Análisis de la Actividad de los Psicólogos en Centros Penitenciarios: Una Lectura Clínica del Trabajo

 

Rodrigo Padrini Monteiro a, Leonardo de Miranda e Silva b, Carlos Eduardo Carrusca Vieira b, João César de Freitas Fonseca b, José Newton Garcia de Araújo b

a Governo do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
b Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O presente artigo constitui um relato de pesquisa e aborda a atuação de psicólogos em prisões, considerando a instituição prisional como violadora de direitos humanos fundamentais e como incapaz de contribuir para a integração dos encarcerados à sociedade. Nesse contexto, os psicólogos enfrentam obstáculos ligados à dinâmica da segurança e do punitivismo. A formação insuficiente e as contradições presentes em suas atividades relacionam-se com conflitos identitários e levam, muitas vezes, à burocratização do trabalho, resultando na naturalização das violações dos direitos dos encarcerados. Esta pesquisa, realizada com 30 profissionais da Psicologia, busca compreender os sentidos atribuídos por eles às suas atividades, analisando seus papéis na instituição e suas experiências ao lidarem com indivíduos considerados irrecuperáveis pela sociedade. A coleta de dados envolve análise documental, observação participante, entrevistas individuais semiestruturadas e grupos de discussão. Os resultados destacam a necessidade de espaços coletivos de discussão - qualificada e crítica - sobre a atividade para promover a saúde dos psicólogos, bem como o desenvolvimento do poder de agir e o estabelecimento de alianças externas ao ambiente prisional.

Palavras-chave: Psicologia, sistema prisional, clínicas do trabalho, direitos humanos, ética.


ABSTRACT

This article constitutes a research report and addresses the role of psychologists in prisons, considering the prison institution as a violator of fundamental human rights and incapable of contributing to the reintegration of inmates into society. In this context, psychologists face obstacles related to the dynamics of security and punitiveness. The lack of proper training and the contradictions inherent in their work often lead to identity conflicts and bureaucratic processes, resulting in the normalization of violations of prisoners' rights. The research, conducted with 30 psychology professionals, aims to understand the meanings they attribute to their works, analyzing their role within the institution and their experience in dealing with individuals considered irrecoverable by society. Data collection involves documentary analysis, participant observation, semi-structured individual interviews, and discussion groups. The results emphasize the need for qualified and critical collective spaces for discussing their works to promote psychologists' well-being and empower them, as well as establishing external alliances beyond the prison environment.

Keywords: Psychology, prison system, labor clinics, human rights, ethic.


RESUMEN

Este artículo constituye un informe de investigación y aborda la actuación de los psicólogos en prisiones, considerando la institución penitenciaria como violadora de los derechos humanos fundamentales y como incapaz de contribuir a la reintegración de los reclusos en la sociedad. En este contexto, los psicólogos enfrentan obstáculos relacionados con la dinámica de la vigilancia y el punitivismo. La formación insuficiente y las contradicciones presentes en sus actividades se articulan con conflictos identitarios y, a menudo, conducen a la burocratización del trabajo, lo que resulta en la naturalización de las violaciones de los derechos de los encarcelados. La investigación, realizada con 30 profesionales de la psicología, busca comprender los significados que atribuyen a sus trabajos, analizando sus papeles dentro de la institución y sus experiencias al tratar con individuos considerados irrecuperables por la sociedad. La recopilación de datos incluye análisis documental, observación participante, entrevistas individuales semiestructuradas y grupos de discusión. Los resultados enfatizan la necesidad de espacios colectivos - cualificados y críticos - para debatir sus trabajos y promover la salud de los psicólogos, así como el desarrollo de sus capacidades de acción, además de establecer alianzas externas más allá del entorno penitenciario.

Palabras clave: Psicología, sistema penitenciario, clínicas laborales, derechos humanos, ética.


 

 

O trabalho dos psicólogos nas prisões é um trabalho possível? A questão provocativa, que norteia este estudo, sintetiza inquietações relativas à atividade profissional de psicólogos no contexto institucional das prisões. Como discutido na tese de doutorado que origina este artigo (Monteiro, 2022), não há uma resposta simples. Nosso objetivo, portanto, é contribuir para a compreensão desta atividade, trazendo à tona alguns elementos de uma realidade, muitas vezes, desconhecida por grande parte da sociedade, e favorecer a construção de uma atuação ética e comprometida com a garantia dos direitos humanos.

Nesta pesquisa, que surge a partir de diferentes experiências profissionais e acadêmicas dos autores, propusemos, por meio de uma análise da atividade ancorada nas abordagens clínicas do trabalho, refletir sobre o cotidiano de trabalho dos psicólogos nas prisões e compreender a experiência laboral na perspectiva do sujeito. Buscamos ainda - em uma perspectiva crítica das relações entre trabalho, processos de subjetivação, saúde e adoecimento - investigar os sentidos atribuídos ao fazer.

Com base em uma pesquisa qualitativa - que foi realizada no período de outubro de 2020 a agosto de 2021, que empregou análise documental, observações, entrevistas individuais e grupos de discussão e que contou com a participação de 30 profissionais -, argumentamos que o trabalho dos psicólogos nas prisões não é impossível, mas podemos afirmar categoricamente que ele tem sido impedido, desvalorizado e rechaçado.

Defendemos a perspectiva de que as exigências do trabalho real nas prisões, os obstáculos e as dinâmicas institucionais da segurança (que busca segregar o perigo por meio do controle disciplinar e do rigor extremo) e do punitivismo (por meio do qual a punição ocorre somente para excluir e produzir vingança, não para causar qualquer tipo de responsabilização e de retificação) subjugam os psicólogos. Essa submissão leva os profissionais a experimentarem profundas contradições entre o que as diferentes prescrições determinam e o que a realidade lhes demanda. Observou-se que, em muitos casos, ao não se apropriarem de suas atividades de forma crítica, os profissionais experienciam sofrimentos e conflitos identitários, sendo levados ao empobrecimento e à burocratização de suas atividades, bem como à naturalização de violações de direitos dos presos e ao cerceamento da autonomia dos psicólogos.

O que descrevemos tem múltiplas causas, como discutiremos a seguir, e há possíveis saídas, tais como a criação de espaços coletivos de discussão qualificada sobre a atividade, o aumento do poder de agir e da crítica sobre o trabalho, o fortalecimento de alianças com atores externos ao ambiente carcerário.

Iniciamos nossa reflexão apresentando os fundamentos teóricos deste estudo, baseados na abordagem da Psicologia do Trabalho (Bendassolli & Soboll, 2011). Em seguida, examinamos, sob uma perspectiva sociológica e histórica, a origem das prisões e suas lógicas constitutivas. Posteriormente, discorremos sobre o papel desempenhado pela Psicologia no âmbito prisional.

Psicologia do Trabalho

Este estudo sobre a atividade dos psicólogos no sistema prisional é conduzido sob a perspectiva teórica das abordagens "clínicas do trabalho" (Bendassolli & Soboll, 2011), as quais compreendem a centralidade social e psíquica do trabalho na vida dos sujeitos. Tal análise considera o trabalho como um eixo que articula a atividade, as relações de poder, os processos de subjetivação, de saúde e de adoecimento, as lógicas organizacionais e institucionais em uma vertente político-social e clínica, voltada à promoção e à preservação da saúde dos trabalhadores, por meio da transformação do trabalho e do desenvolvimento dos sujeitos.

O conceito de trabalho, aqui, não se restringe ao trabalho assalariado, mas abrange toda a atividade humana dotada de finalidade e capaz de transformar o mundo e os sujeitos (Lhuilier, 2014). Conforme essa definição, são implementados dispositivos metodológicos clínicos para convocar os sujeitos a refletirem sobre suas práticas, objetivando a análise e a transformação da atividade.

Ademais, valemo-nos da clássica distinção, feita pela ergonomia francófona, entre o trabalho prescrito e o trabalho real, compartilhada pelas abordagens clínicas do trabalho. Compreendemos, assim, que entre a prescrição (o que deve ser feito) e a realidade (o que se faz) existe um hiato incontornável, uma vez que os sujeitos mobilizam sua criatividade e resolutividade, transformando e criando os meios para realizar sua atividade (Clot, 2010).

Neste estudo, destacamos alguns conceitos advindos da Clínica da Atividade (Clot, 2010), da Ergologia (Schwartz, 2023) e da Psicossociologia do Trabalho (Lhuilier, 2014).

Primeiramente, valemo-nos de alguns princípios da Clínica da Atividade, abordagem criada por Clot (2010) e colaboradores, que se dedicam, ao longo das últimas quatro décadas, ao estudo do trabalho. Tal opção funda nossa principal linha de argumentação: a deterioração do gênero profissional e suas consequências sobre o processo de construção identitária, na experiência solitária de trabalho e na limitação das estratégias para ultrapassar as prescrições, bem como para resistir a elas.

O conceito de gênero profissional é significativo para este estudo. Entre a prescrição e a realidade, há sempre um trabalho de reorganização da atividade pelos coletivos profissionais, o que chamamos de gênero da atividade (Clot, 2010), uma espécie de prescrição informal partilhada por determinado coletivo, a qual influencia a constituição da identidade e dos modos de agir vinculados ao ofício. Ressaltamos que o coletivo, nessa perspectiva, não é apenas a soma dos indivíduos, mas também a história construída conjuntamente, capaz de amparar o sujeito e de permitir o seu desenvolvimento.

Para Clot (2010), a saúde consiste na possibilidade de superar e de instituir normas, e não na mera conservação de si. Assim, o sofrimento no trabalho está intimamente ligado à atividade impedida, ou seja, ao fato de os sujeitos desejarem trabalhar conforme seus valores individuais e ideais do coletivo de trabalho, mas não poderem. Neste sentido, é fundamental considerar a dimensão coletiva da atividade para compreender os impedimentos impostos, ainda que de modo parcial, à atividade de trabalho no contexto prisional, bem como a necessidade de adequação às normas do ambiente de segurança, que pode, por vezes, entrar em conflito com os preceitos éticos da Psicologia. Observar as relações entre a atividade impedida e o sofrimento é, portanto, fundamental para essa análise.

As contribuições da Ergologia, fundada pelo filósofo francês Schwartz e pelos seus colaboradores, são igualmente relevantes para este estudo. Schwartz (2023) afirma que a atividade jamais se reduz aos protocolos e às prescrições; em vez disso, ela resulta de debates concentrados em normas e valores, os quais são inerentes à atividade humana e se constituem como uma dimensão invisível do trabalho. Tais debates manifestam-se nas "dramáticas dos usos de si", conceito que expressa a ideia de que, em toda atividade, os sujeitos são convocados a decidirem entre usos de si, requeridos pelos outros e/ou orientados por seus próprios valores e normas (Schwartz, 2023).

Incorporamos, além disso, contribuições específicas da Psicossociologia do Trabalho. Em especial, retomamos o conceito de "trabalho sujo", cunhado pelo sociólogo americano Hughes, na década de 1950, "para quem tal trabalho se referia a tarefas e ocupações percebidas como degradantes ou que provocavam alguma forma de nojo" (Bendassolli & Falcão, 2013, p. 1156). Para Lhuilier (2014), esse conceito compreende, analiticamente, ofícios relacionados a lixo, faxina, doença, morte, loucura, velhice, marginalidade e deficiência, sendo associados a situações, vivências e atividades rechaçadas, negadas e rejeitadas pela sociedade. Em uma acepção mais ampla, tais trabalhos integram o conceito de "negativo psicossocial".

Entendemos que as perspectivas teóricas e os elementos conceituais apresentados permitem investigar as vivências dos psicólogos que participam deste estudo, assim como se articulam às categorias de análise aqui propostas. Na sequência, contextualizamos o campo de pesquisa, discutindo o cenário das prisões no Brasil, especialmente em Minas Gerais, e suas lógicas constitutivas.

Prisões no Brasil e em Minas Gerais

As prisões são ambientes singulares na história e se constituem como instituições mortíferas (Rauter, 2016), impactando todos que estudam, trabalham ou vivem dentro delas. Na visão de Nascimento e Bandeira (2018), essas instituições são marcadas por "violações sistemáticas de direitos, torturas e tratamentos degradantes, epidemias e inúmeras mortes causadas por doenças tratáveis" (p. 112).

Ao longo da história, há mudanças significativas nas políticas penitenciárias. Segundo Foucault (1987), evoluímos de um sistema que sanciona as penas como castigo, suplício e afirmação de um poder soberano centralizado para um sistema disciplinar disseminado pela sociedade, sob princípios da correção e da suposta integração dos indivíduos presos à sociedade, com objetivo de prevenir crimes futuros, delinquências e transgressões das normas vigentes. A sociedade, nessa ótica, reserva-se moralmente o direito de punir o desviante e de recuperá-lo, estando amparada por uma ampla gama de conhecimentos técnico-científicos, não se tratando mais apenas de segregar, mas de reformar o criminoso para que nela possa habitar novamente.

As críticas de Oliveira (2011) sobre a genealogia da prisão, discutida por Foucault (1987), ajudam-nos a compreender a transposição dessa instituição para a nossa realidade. O autor brasileiro concorda com a ideia de que o suposto humanismo presente na reforma penal é constituído pela emergência de uma nova sociedade: a sociedade disciplinar. Entretanto, argumenta que os princípios modernos e científicos aludidos por Foucault (1987) são, ainda hoje, irrelevantes para a cultura brasileira, um contexto "onde a violência escancarada sempre foi o método por excelência de investigação policial e de punição" (Oliveira, 2011, p. 323). Para ele, se a sociedade disciplinar não se concretiza integralmente em qualquer lugar no mundo, no Brasil sequer há uma organização social minimamente disciplinada.

No Brasil, a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) estabelece, no artigo 1º, que a execução da pena "tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado". Em contrapartida, dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Ministério da Justiça, 2023) mostram um percentual de presos provisórios - sem condenação - de aproximadamente 25%. Em junho de 2023, embora existam 489 mil vagas, verifica-se uma superlotação: mais de 650 mil pessoas presas e vários estabelecimentos acima da capacidade (em média 33%), impedindo a garantia de direitos básicos, como a integridade física e a privacidade.

Assim, a prescrição legal de integrar os encarcerados à sociedade e de orientar o retorno de cada um deles à convivência não se mostra exequível, sobretudo em virtude do processo de encarceramento em massa, superlotação e surgimento de novos presídios, que privilegiam a privação de liberdade em detrimento do investimento em alternativas penais, que não envolvam aprisionamento (Conselho Nacional do Ministério Público, 2016). O sistema penal brasileiro apresenta um quadro de deficiências estruturais graves e de condições desumanas de custódia, não praticando o mínimo preconizado pelas normas legais (Nascimento & Bandeira, 2018).

Parte significativa da população carcerária brasileira está em Minas Gerais, o segundo maior estado no ranking nacional do encarceramento, com aproximadamente 70 mil presos distribuídos em mais de 170 unidades prisionais da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP). Em junho de 2023, são 50 mil vagas para abrigar um total de 70 mil encarcerados, o que representa aproximadamente 40% de superlotação. Inclusive, no ano de 2023, o estado registra taxa de 322 presos a cada 100 mil habitantes, valor próximo da média nacional (Ministério da Justiça, 2023).

Os psicólogos, assim como outros profissionais, desenvolvem suas atividades nesse contexto, marcado pela violação sistemática de direitos, como veremos adiante.

Psicologia e Prisões

A atuação dos psicólogos nas prisões desenvolve-se conforme os princípios da Psicologia Jurídica, particularmente, no contexto do cárcere, onde atuam na execução das penas restritivas de liberdade e de direitos. Contudo, essa caracterização não é simples, pois tais psicólogos estão inseridos na interseção dos campos jurídico, social, clínico, do trabalho e da saúde, elevando o nível de complexidade desse exercício profissional.

No Brasil, a presença dos profissionais de Psicologia no campo jurídico, particularmente no contexto carcerário, já acontece há décadas e precede a promulgação da Lei de Execução Penal - LEP, em 1984 (Lei nº 7.210/1984), e a regulamentação da profissão do psicólogo, em 1962. A Psicologia alia-se, no fim do século XIX e no início do século XX, ao Direito, à Medicina e à Criminologia, buscando ser reconhecida como ciência, em uma perspectiva positivista (Ministério da Justiça & Conselho Federal de Psicologia, 2007). Essas primeiras aproximações ocorrem, principalmente, em razão de questões emergentes da época, como os manicômios judiciários e os loucos infratores. Somente a partir da década de 1960, observamos o ingresso dos primeiros psicólogos nas prisões, presença intensificada nas décadas seguintes, especialmente como consequência do reconhecimento do uso de testes nessas instituições (Ministério da Justiça & Conselho Federal de Psicologia, 2007).

Apesar de esses profissionais já atuarem nas prisões antes dos marcos legais específicos, é apenas com a LEP, na década de 1980, que temos uma formalização oficial do lugar da Psicologia e das suas funções nos estabelecimentos prisionais. Em suas disposições, no artigo 5º, a LEP estabelece: "Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal". Tal classificação, conforme o artigo 6º, é feita por uma comissão multidisciplinar, tendo ao menos um psicólogo como um de seus membros. É exclusivamente na composição da Comissão Técnica de Classificação (CTC) e na realização dos exames previstos que os psicólogos aparecem explicitamente na LEP.

É importante observar que a assistência psicológica, ainda hoje, não está prevista no Art.º 11 da LEP (Lei nº 7.210/1984), no que se refere ao direito do preso à assistência à saúde. Por mais que os direitos sociais dos cidadãos, dentre eles a saúde, estejam previstos na Constituição Federal (1988), e que entendamos que, ao falar de saúde, estamos considerando uma saúde biopsicossocial, pode-se dizer que a assistência psicológica nas prisões, especificamente, se tornou uma prescrição somente com a publicação do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP) (Ministério da Saúde, 2003) e, posteriormente, com a PNAISP (Portaria Interministerial nº 1/2014). Tais mudanças vem produzindo impactos na atuação do psicólogo, de modo que uma atuação basicamente restrita à classificação e execução da pena vem sendo ampliada com uma perspectiva de assistência à saúde e garantia de direitos, e crítica à existência das prisões (França et al., 2016).

De acordo com França et al. (2016), o incremento de uma literatura crítica em Psicologia, a partir da década de 1990, traz novas perspectivas de atuação, acompanhadas por mudanças legais e políticas. Como explicam Pacheco e Vaz (2015), "as práticas de cuidado, respeito, atenção e acompanhamento afetivo e efetivo aos sujeitos presos passam a ser propostas como práticas psicológicas substitutivas aos posicionamentos avaliativos e deterministas que até então vigoravam hegemonicamente nos presídios" (p. 181).

Assim, as correntes hegemônicas da Psicologia, por muitos anos, legitimaram a instituição prisional e não realizaram uma crítica fundamentada e explícita à lógica de exclusão e de estigmatização das prisões. Como sintetiza Rauter (2016), um aparato crítico busca "superar nossa condição de ser apenas um dente numa engrenagem mortífera" (p. 52), fazendo-a emperrar.

Segundo o Conselho Federal de Psicologia (2021), em seu mapeamento sobre o trabalho dos profissionais a nível nacional, observa-se que, ainda hoje, permanecem as limitações da atividade dos psicólogos nas prisões, bem como a falta de reconhecimento profissional, estrutura e condições de trabalho, e a desvalorização de sua atividade. Adicionam-se ainda formações e capacitações acríticas e positivistas, além do número insuficiente de profissionais para atender às demandas da área (França et al., 2016).

Portanto, são atribuições do psicólogo nas prisões, no cenário atual: participar da CTC; planejar e executar ações de atenção básica à saúde; aplicar testes psicológicos e elaborar laudos; realizar atendimento aos familiares e aos trabalhadores do sistema prisional em emergências; e cumprir os respectivos trâmites burocráticos de cada tarefa (Secretaria de Estado de Administração Prisional de Minas Gerais, 2016; CFP, 2021).

De acordo com o Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (Ministério da Justiça, 2023), no período de janeiro a junho de 2023, 1.319 psicólogos atuam nos estabelecimentos prisionais do país. Em Minas Gerais, em julho de 2021, são 229 profissionais diretamente vinculados à Secretaria, mas apenas 143 estão em exercício em unidades prisionais, sendo o restante distribuído em unidades de custódias alternativas, transitórias, socioeducativas ou administrativas. Considerando a população encarcerada, cada psicólogo é responsável por classificar e acompanhar mais de 400 presos, o que sem dúvida, na percepção dos profissionais, é impossível.

Para Medeiros e Silva (2015), as amarras são muitas. A distância entre o prescrito ("o que deve ser") e o real ("o que é") fica explícita quando uma atuação, envolvendo populações carcerárias, famílias, profissionais e instituições, na promoção da saúde e na defesa dos direitos humanos, com frequência se limita a uma tarefa burocrática, o que se reflete na execução de atividades de modo repetitivo, automático e pouco crítico.

De fato, a literatura indica a necessidade de uma tarefa de reconstrução que nos parece hercúlea para um profissional, muitas vezes, sozinho em uma instituição dominada pela dinâmica da segurança, que privilegia a manutenção da ordem e da disciplina (Oliveira, 2011), sob os efeitos da "prisionização" (Barros & Amaral, 2016). Tal conceito refere-se ao processo de "aculturação", isto é, a uma espécie de adoção de hábitos e costumes, de modos de pensar e sentir, de comportamentos e de valores característicos da prisão (Pacheco & Vaz, 2015), que são vivenciados não só pelos encarcerados, como também, pelos funcionários da estrutura prisional, o que impacta a sua vida fora do trabalho (Barros & Amaral, 2016).

 

Metodologia e Pesquisa de Campo

A tese que origina este artigo baseia-se em uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso (Deslauriers & Kérisit, 2010), e utiliza os pressupostos teórico-metodológicos das abordagens clínicas do trabalho, convocando os próprios sujeitos a refletirem sobre suas práticas e tendo como foco a análise da atividade.

Nesta pesquisa, optamos pela amostragem não probabilística (ou intencional), que "não se constitui ao acaso, mas sim em função de características precisas, que o pesquisador pretende analisar" (Deslauriers & Kérisit, 2010, p. 138). A fim de aprofundar a compreensão do fenômeno, é realizada a triangulação dos conteúdos, a partir dos seguintes procedimentos: análise de documentos, observação participante, entrevistas individuais semiestruturadas e grupos de discussão.

Para o exame do material, é empregado o método de análise de conteúdo. Seguimos as três fases descritas por Bardin (1977): (i) a pré-análise; (ii) a exploração do material; (iii) o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Em todas essas etapas, utilizamos o ATLAS.ti 9, um software desenvolvido para análise e categorização de dados qualitativos.

Em relação aos aspectos éticos para pesquisas envolvendo seres humanos, adotamos as exigências previstas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), aprovado no comitê de ética sob o número de certificado n° 28822520.3.0000.5137.

Conforme a proposta de criar uma amostra não probabilística, optamos por selecionar as cinco unidades prisionais da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) com maior número de psicólogos. Essa escolha busca possibilitar que a pesquisa se torne via de acesso e referência para a compreensão de outras realidades, tendo em vista que esses estabelecimentos contam com a presença de mais de um profissional de Psicologia e de diversas populações privadas de liberdade - masculino, feminino e misto.

Em síntese, no período de outubro de 2020 a agosto de 2021, são realizados: a) 12 visitas às cinco unidades prisionais da RMBH; b) observação de 37 atendimentos individuais aos presos, observação de 8 visitas virtuais 1, entrevistas individuais e presenciais com 13 psicólogos (tais atividades contabilizaram 68 horas de observação); c) entrevista individual e remota com 1 psicólogo; d) 4 encontros temáticos virtuais em grupo (duração de uma hora e meia cada, contemplando 15 novos psicólogos participantes); e) 1 encontro final em grupo, com duração de duas e horas e participação 13 psicólogos, sendo um deles novo participante, mediante categorização prévia do material empírico, para discutir os produtos parciais encontrados. Ressaltamos que tais atividades são realizadas com autorização dos profissionais e dos sujeitos atendidos.

Como apresentado, participam do estudo 30 psicólogos, sendo 22 atuantes na RMBH e 8 em outras regiões de Minas Gerais (esclarecemos que, no total, tivemos 37 participantes em potencial, codificados de S1 a S37, e tal codificação é mantida devido à exclusão posterior de ausentes). Entre eles, 12 atuam nas prisões há mais de dez anos e nenhum havia ingressado há menos de quatro anos. São 27 efetivos por meio de concurso público e 3 contratados temporariamente, sendo 24 mulheres e 6 homens.

A seguir, discutimos resultados e apresentamos propostas de intervenção.

 

Resultados e Discussão

De modo geral, os resultados obtidos nesta pesquisa revelam que o papel dos psicólogos nas prisões ainda é controverso e mal compreendido pelos profissionais e pela instituição. Há uma descrença unânime na configuração atual das prisões voltadas para a recuperação, uma distância entre o sentido do trabalho, positivo e vinculado ao cuidar, e o ponto de vista negativo para a sociedade, relacionado à noção de privilégio do preso. Não há capacitação específica para o trabalho desses psicólogos, que é aprendido no cotidiano, isoladamente ou com ajuda de antigos colegas. Os atravessamentos institucionais na dinâmica da segurança e da lógica punitiva se contrapõem, frequentemente, aos princípios éticos da profissão. A prioridade dada à classificação das pessoas privadas de liberdade, combinada ao déficit do número de psicólogos, faz com que o acompanhamento dos programas individuais de execução da pena restrinja-se a poucos presos. Há certas naturalizações de rotinas que violam os direitos dos presos e que cerceiam a autonomia profissional. Todos esses elementos resultam em fortes impedimentos da atividade, desgastes da saúde dos trabalhadores e adesões acríticas aos mecanismos repressivos da instituição.

Na categoria de análise denominada "identidade profissional", reunimos conteúdos relativos ao embate entre as variadas prescrições do trabalho, as formações insuficientes para a atuação e as escolhas profissionais que não evidenciam interesse particular pela área. Essa categoria realça como tais fatores impedem a consolidação de um coletivo forte e de um gênero da atividade vivo, levando a uma prática que não consegue se desenvolver em face dos desafios e adversidades, bem como a uma frágil e controversa identidade profissional.

"Eu acho que as pessoas não entendem muito bem o que a gente faz aqui" (S1), disse um dos entrevistados. Os psicólogos nas prisões são psicoterapeutas? Classificadores? Garantidores de direitos? Profissionais da saúde ou da segurança? Ou de ambas? "Apagadores de incêndio"? Peritos? Na verdade, verifica-se o exercício de todos esses papéis, simultânea ou distintamente, já que o trabalho desses psicólogos é cercado de incertezas sobre o objetivo ou sobre a função.

No que concerne à instituição, tem-se a expectativa de "evitar agravos que são inerentes à privação de liberdade", como afirma S3, minimizando conflitos e acalmando presos mais agitados ou indisciplinados.

As incertezas quanto às funções dos psicólogos nas prisões destacam as múltiplas fontes de prescrição do trabalho. Sobre isso, S5 questiona "você já parou para pensar quem é o seu cliente? É o Estado? É o preso? Porque quando você responde essa pergunta, você consegue entender muito para onde você vai direcionar o seu trabalho".

Assim, essa profissional (S5) questiona a partir de qual prescrição irá atuar e como irá reconhecer o sujeito atendido. Já para S14, os psicólogos podem desenvolver a autonomia dos sujeitos encarcerados, atuando de forma subversiva e transgredindo a expectativa da instituição. Portanto, o debate sobre normas e valores está posto no âmbito da atividade, sendo permanente, como descrito por Schwartz (2023).

Tais controvérsias no exercício da atividade, associadas à formação insuficiente, à atuação solitária e ao gênero profissional enfraquecido e incapaz de sustentar o poder de agir, produzem a sensação de "cair de paraquedas", uma metáfora comumente utilizada pelos entrevistados. Esse processo conduz os psicólogos a reproduzirem a lógica de dominação do ambiente carcerário, envolvendo inclusive a violação de direitos dos atendidos e o cerceamento da autonomia profissional. Nesse sentido, referimo-nos a prescrições que caminham na contramão dos princípios e das diretrizes éticas da profissão, bem como que precisam ser confrontadas e colocadas no debate de normas, pois não colaboram para o propósito da atividade, tampouco para a saúde mental no trabalho desses psicólogos.

Nas reflexões sobre a categoria "trabalho sujo e sentido do trabalho", discutimos a visão negativa que a sociedade tem sobre o psicólogo nas prisões e, em contraposição, a visão positiva que os próprios profissionais constroem sobre os seus fazeres.

Para Lhuilier (2014), existe uma divisão moral e psicológica do trabalho, a qual incide na diferenciação das profissões socialmente reconhecidas como prestigiadas e desejáveis, por um lado, e das desconhecidas e indesejadas, por outro. Os julgamentos sobre determinadas atividades contaminam simbolicamente aqueles que as realizam. Assim, o trabalho nas prisões está frequentemente vinculado à noção de "negativo psicossocial", como descrito por Lhuilier (2014), pois é rejeitado e marginalizado, permanecendo nos bastidores como um extrato negativo da sociedade, como ressaltam Barros e Amaral (2016) ao discutirem o trabalho dos psicólogos neste contexto.

Como afirmam Medeiros e Silva (2015), "não podemos deixar de mencionar que ocorre, também, uma articulação, no senso comum, entre a noção de direitos humanos e o privilégio de bandido" (p. 107). Essa visão contraditória, que designa direitos como privilégios, deturpa o exercício dos psicólogos nas prisões, assim como entende a situação de trabalho como um contexto de ameaça iminente, como se fosse necessário ter muita coragem para realizar tal ofício. O profissional S15 realça: "a instituição ainda não tem ‘isso' de ver o profissional como favorecedor de melhoras", revelando a incompreensão da própria instituição sobre a atividade.

Até mesmo colegas usam expressões pejorativas para classificar o trabalho dos psicólogos, como se tais profissionais estivessem ali para vitimizar os presos ou para "passar a mão na cabeça". Como resume S1: "a grande maioria dos que fazem a segurança não dão valor ao nosso trabalho. Tem até o apelido, né? De ‘mãe de preso'. Não entendem que a gente trabalha com direitos". Há ainda uma espécie de vergonha ao relatar a área de atuação, como expressa S4: "nós somos muito marginalizados pela sociedade, nosso trabalho… a sociedade acha que preso, que bandido bom é bandido morto, né?".

Nesse contexto, Medeiros e Silva (2015) acrescentam que a prisão não trata e nem é capaz de "regenerar" os sujeitos. Isso fica evidente na percepção dos entrevistados, sobretudo porque eles não se identificam como suporte para a integração do encarcerados à sociedade, uma ação considerada impossível no modelo carcerário vigente.

Dessa forma, resta aos profissionais atribuírem um sentido positivo, pautado no fato de contribuírem com uma escuta qualificada e humanizada, a qual torna menos difícil a passagem pelo sistema carcerário. Contudo, questionamos se essa ressignificação seria suficiente para proteger a saúde desses profissionais e para produzir algum desenvolvimento da atividade, fortemente impedida e limitada.

A terceira categoria de análise, "precarização e empobrecimento da atividade", busca discutir os impactos do trabalho sobre os psicólogos, bem como cria conexões entre os impedimentos e o enfraquecimento da atividade, observados no desgaste do trabalhador e, muitas vezes, em uma adesão acrítica aos mecanismos repressivos da instituição. Vale destacar que, segundo Antunes (2018), a precarização do trabalho é elemento típico do neoliberalismo na contemporaneidade, marcado não só pelos modelos flexíveis de emprego, instabilidade, acesso limitado a benefícios e a algum nível de desproteção social, como também pela fragmentação dos coletivos e falta de condições adequadas. Nesse sentido, o que se percebe é que, mesmo para os funcionários que são efetivados por concurso público - a grande maioria dos entrevistados -, a precarização se dá através da citada fragmentação dos coletivos e da falta de condições adequadas para realização do trabalho.

Inclusive, sobre o desgaste do trabalhador, S16 afirma: "A gente se esforça muito, né? Assim, a gente trabalha mais para poder trabalhar, desgasta mais para conseguir fazer o nosso trabalho, do que efetivamente trabalhamos". Revela, assim, a dramática para realização de um ofício em um espaço cercado por contradições (Schwartz, 2023), onde há predomínio dos procedimentos de segurança.

Nesse sentido, a precarização insere-se na trama institucional, pois os psicólogos parecem estar impedidos pela própria lógica em que o trabalho está inserido. Como bem resume S26: "o meu trabalho não é impedido, mas ele não é facilitado, sabe?".

Os psicólogos, portanto, veem-se inseridos na dinâmica institucional que torna o trabalho, em alguma medida, impossível. A despeito disso, S17 expõe: "A gente tem que ficar pedindo para trabalhar o tempo todo". Ora, essa é uma face do impedimento, dado que as condições materiais para a execução da atividade deveriam fazer parte do trabalho prescrito. No entanto, mesmo quando estão presentes, como no programa individual que norteia a execução da pena, tais condições são inviabilizadas pelas demais prescrições regidas pela dinâmica da segurança dentro do cárcere, sendo comum os psicólogos atenderem os presos uma única vez.

Sobre isso, S18 relata a fala de um preso: "será que eu vou voltar mais aqui? Eu conheço cadeia, eu já passei em várias, vocês não dão conta. Não é que não dão, porque não querem nos atender, é que vocês não dão conta de nos atender, talvez eu nem vou voltar mais aqui". A classificação dos presos, premissa principal da LEP, torna-se um processo sem continuidade, sobretudo por estar desvinculado do suposto tratamento penal devido às faltas de acompanhamento e de assistência à saúde, restritas aos casos mais graves.

Por fim, além do cenário precário, esses profissionais relatam desmotivação e frustração, resultantes de uma atividade, às vezes, limitada e impedida, voltada ao mero cumprimento de carga horária e ao ócio, levando tais trabalhadores ao desgaste. S16, por exemplo, afirma: "parece que a gente está enxugando gelo, que corre, corre, corre e nunca alcança aquele objetivo. É muito frustrante e angustiante".

Em consonância com o empobrecimento da atividade, detalhamos aqui a quarta categoria de análise: "naturalização de violações dos direitos e da autonomia profissional".

Já vimos que, entre os princípios fundamentais do Código de Ética Profissional do Psicólogo (Resolução CFP n.º 010/2005), está a noção de que os psicólogos devem trabalhar para promover a saúde e contribuir para a eliminação de quaisquer formas de negligência, violência e opressão. Devem também rejeitar situações em que a Psicologia seja aviltada, posicionando-se de forma crítica nos contextos em que atuam. Sabemos que as demandas institucionais, na dinâmica da segurança e da punição nas prisões, contrapõem-se aos princípios éticos da profissão e levam esses trabalhadores, conforme indicou Schwartz (2023) a debates de valores e normas, como: devemos seguir o Código de Ética Profissional ou as prescrições do sistema de justiça e da instituição empregadora?

A resposta para essa questão é complexa. Verifica-se que, diante dos impedimentos, "a psicologia começa a ser burocrata, preenchedora de formulários, de respostas e de demanda", como revela S15. Contudo, torna-se também insensível às violações de direitos dos encarcerados, aderindo, muitas vezes, de forma acrítica às regras burocráticas, em detrimento das premissas de assistência e de integração à sociedade.

Naturalizar significa tornar inquestionável algo que, na verdade, seria uma criação social e histórica passível de mudanças. Segundo Accorssi et al. (2012), a partir do momento em que naturalizamos fenômenos sócio-históricos, atuamos somente para reproduzir ou para acentuar desigualdades, deixando de efetivamente reagir contra injustiças.

Em nossa pesquisa, observamos, de modo geral, a aceitação e a naturalização das condições e das limitações impostas pela dinâmica institucional das prisões, relativas à organização do trabalho e aos princípios éticos. Verificou-se que, em alguns casos, os profissionais indicaram um posicionamento crítico, ainda que, muitas vezes, este não possa ser colocado em prática. Essa naturalização revela-se na prática de atendimentos sem as condições adequadas de sigilo, sem tempo suficiente para uma classificação adequada e sem a possibilidade de adotar os encaminhamentos necessários para cada caso. Como afirma S3, "eu me sinto meio impotente, porque, pelo nosso código de ética, a gente deveria, inclusive, denunciar essas violências, né? Eu nunca me senti à vontade para fazer essas denúncias". É comum os psicólogos relatarem o receio de denunciar alguma violação ou de exigir o cumprimento dos princípios éticos, pois tais trabalhadores podem sofrer retaliações e perseguições institucionais, como indicou Rauter (2016), ao observar os riscos que os profissionais enfrentam caso não aceitem reproduzir a engrenagem institucional da prisão.

Para Massa (2019), em um cenário marcado pela violência cotidiana, "é possível localizar uma minimização da violência institucional e mesmo uma progressiva naturalização tanto do ambiente inóspito quanto de suas práticas" (p. 167). Segundo a autora, estar alienado em relação ao próprio ofício é uma estratégia para não adoecer.

Lima (2007) sinaliza que, quando o gênero se deteriora, o desenvolvimento da atividade fica impedido. Assim, deixa de haver um coletivo capaz de amparar os sujeitos e de possibilitar novas formas de existência, acarretando uma queda do poder de ação dos indivíduos. Nesse contexto, segundo Clot (2010), os indivíduos tendem ao isolamento e a ficar sem os recursos necessários para mobilizar as atividades, que passam a ser, acima de tudo, fonte de sofrimento.

Finalmente, na última categoria de análise, "resultados do trabalho, garantias e estratégias de resistência", discutimos os frutos observados nesta pesquisa, na perspectiva dos psicólogos, e as saídas individuais e coletivas para garantir direitos aos encarcerados.

Frente aos elementos impeditivos da realização do trabalho, observamos que os sentidos produzidos pelos psicólogos acerca de suas atividades estão vinculados a expectativas de fazer alguma diferença na vida dos encarcerados e de lhes oferecer uma escuta mais qualificada e sensível, de maneira "que o sujeito de alguma forma suporte o que a gente chama de esse poder mortífero da prisão" (S27). Conforme os profissionais, os resultados de seus trabalhos apresentam-se em encontros fortuitos, ainda que raros, com pessoas que já passaram pelo cárcere. Observam-se outros resultados na conquista de alguns direitos para os presos, tais como o acesso à escola, ao trabalho, ao atendimento especializado, ao contato familiar e à conscientização de alguns colegas da segurança, humanizando suas práticas.

No que concerne às estratégias de resistência, os psicólogos buscam reivindicar, junto aos gestores, itens básicos demandados pelos presos, como colchões, uniformes e produtos de higiene. Procuram também articular, junto a outros profissionais, os atendimentos e os serviços necessários - da justiça, do serviço social e da enfermagem, por exemplo. De modo geral, os profissionais apontam que ainda há muito a ser feito. Como afirma S34, "nem sempre a gente é compreendido, mas a gente continua fazendo", concluindo ser necessário "resistir mesmo dentro desse lugar que não foi feito pra gente, mas onde nos cabe, onde a gente tem que estar e onde a gente tem que lutar pra continuar estando".

De acordo com S28, uma das estratégias para garantir os direitos humanos e para reduzir as violações é se aproximar dos agentes de segurança e lhes explicar o trabalho dos psicólogos naquele local. Os psicólogos reforçam as importâncias de manejar o dia a dia e de construir relações de confiança a fim de realizar as atividades. Segundo S5, "a segurança é soberana, então você tem que saber ter um jogo de cintura dentro disso… Você vai descobrindo seus parceiros aqui dentro, sabe? Foi uma estratégia minha e, quando você descobre seus parceiros, você consegue trabalhar bem".

 

Considerações Finais

Este estudo decorre de inquietações discutidas no convívio com colegas psicólogos que trabalham nas prisões de Minas Gerais. No início, perguntamos: o ofício dos psicólogos nas instituições carcerárias é possível? Como dissemos anteriormente, podemos afirmar que, se não é impossível, é extremamente restrito.

Observamos, no contexto prisional, a falta de uma capacitação adequada e a construção de uma identidade profissional controversa, esvaziada do gênero da atividade e do coletivo de trabalho fortemente capaz de amparar os indivíduos na tomada de decisões e no compartilhamento de estratégias de resistência. Acrescente-se que a administração prisional, em consonância com a visão de parte da sociedade, ainda entende o trabalho dos psicólogos nas prisões como um privilégio para os encarcerados, o que inclusive se verifica no déficit de profissionais e na falta de perspectivas para novos concursos públicos.

Ao longo desta pesquisa, notamos psicólogos também naturalizando práticas que violam os direitos dos presos e que desrespeitam a autonomia e a ética profissional; por isso, precisamos indagar: seguiremos assistindo à reprodução de lógicas já existentes, ou produziremos novas maneiras de agir e de existir nessa instituição?

 Por mais que nossas intervenções possam ter produzido mudanças, na medida em que os entrevistados desenvolvem novas formas de analisar suas atividades, o cenário é complexo e exige novas frentes de investigação. Muitas de nossas conclusões parecem-nos um ponto de partida, e não um ponto de chegada. São fotografias de um contexto pouco discutido e merecedor de atenção, afinal, há muito a ser feito.

Acreditamos que uma forma de modificar a realidade prisional é fortalecer o coletivo de trabalho dos psicólogos nas prisões, criando alianças internas e externas, especialmente com setores da sociedade ligados aos direitos humanos. Além disso, professores e estudantes de Psicologia devem se envolver nesse contexto por meio de oficinas, visitas técnicas e estágios, com compromisso social e ético, para contribuir na transformação dessa realidade. Assim, reforçamos a importância das perspectivas clínicas do trabalho para compreender e transformar a atividade, considerando a articulação entre trabalho, saúde e processos de subjetivação.

Consideramos que o trabalho dos psicólogos nas prisões impõe uma série de desafios. A história das prisões mostra que não é fácil modificar, desconstruir ou substituir dispositivos, especialmente aqueles que permanecem respaldados por boa parte da sociedade, a qual muitas vezes entende a justiça como punição, exclusão e vingança.

A Psicologia, assim como os psicólogos que trabalham nas prisões, deve ser crítica e deve combater o que a lógica prisional e os seus mecanismos mortíferos insistem em perpetuar. Esperamos que este estudo, juntamente a muitas outras produções científicas, possa contribuir para os desenvolvimentos de uma Psicologia e de um exercício profissional comprometidos com a ética e com a garantia dos direitos humanos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rodrigo Padrini Monteiro - rodrigopadrini@gmail.com

Recebido em: 12/04/2024
Aceito em: 12/09/2024

 

 

Notas

1 As visitas virtuais acontecem em virtude da pandemia da Covid-19, pois diante das restrições sanitárias para prevenção do contágio, em março de 2020, as visitas presenciais dos familiares aos presos são suspensas. Dessa forma, as visitas virtuais são criadas como uma forma de manter o vínculo. As visitas virtuais acontecem em virtude da pandemia da Covid-19, pois diante das restrições sanitárias para prevenção do contágio, em março de 2020, as visitas presenciais dos familiares aos presos são suspensas. Dessa forma, as visitas virtuais são criadas como uma forma de manter o vínculo.

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de doutorado do primeiro autor (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, Capes PROSUC - Modalidade II, por meio da PUC MINAS).

 

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