ARTIGOS

 

Experiência em clínica do trabalho com profissionais de T&D de uma organização pública

 

Experience in clinic of work with training and development professionals from a public institution

 

 

Márcia Lucia Borges de Melo GomesI, *; Suzana Canez da Cruz LimaII, **; Ana Magnólia MendesIII, ***

I Conselho de Justiça Federal, Brasília, Distrito Federal, Brasil
II Universidade Federal Fluminense – UFF, Rio das Ostras, Rio de Janeiro, Brasil
III Universidade de Brasília – UnB, Brasília, Distrito Federal, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo relata uma experiência em clínica do trabalho com profissionais da área de treinamento e desenvolvimento de uma instituição do Poder Judiciário, baseada nos princípios da Psicodinâmica do Trabalho. Trata-se de uma modalidade de pesquisa que privilegia a escuta do sofrimento. Participaram sete servidores públicos. Realizaram-se cinco sessões com o grupo e os dados foram analisados com base na análise dos núcleos de sentido de acordo com Mendes (2007). Os resultados evidenciaram que nesta realidade de trabalho o prazer é resultante da identificação com o trabalho e da sua utilidade para o desenvolvimento das pessoas no contexto organizacional e social enquanto que o sofrimento é proveniente da falta de reconhecimento no trabalho. As principais estratégias defensivas referem-se ao isolamento e ao individualismo. Considera-se que a experiência favoreceu a circulação da palavra no espaço de discussão e, desta forma, contribuiu para o engajamento e a expansão da subjetividade.

Palavras-chave: Clínica do trabalho; Prazer e sofrimento no trabalho; Organização pública.


ABSTRACT

The study reports on an experience in clinic of work with training and development professionals from a Federal Judicial Institution in Brazil, based on the principles of Psychodynamics of Work. It is a research modality that privileges the listening to suffering. Seven government employees participated in this study. Five group sessions were conducted and the data were analyzed based on the Nucleus of Meaning analysis, according to Mendes (2007). The results showed that in this working situation pleasure is a result of identification with the job and the perception of its utility for the workers own development in the organizational and social contexts, whereas suffering is proceeding from the lack of recognition at work. The main defensive strategies adopted by the subjects are isolation and individualism. It can be considered that the group experience favored the discussion practices and, thus, the enrollment and enhancement of subjectivity

Keywords: Clinic of work; Pleasure and suffering at work; Public organization.


 

 

1 Introdução

Esta experiência de pesquisa em clínica do trabalho ocorreu em uma área de treinamento e desenvolvimento de pessoas, de uma instituição do Poder Judiciário, com o intuito de construir um espaço coletivo de reflexão sobre a organização do trabalho.

A atividade de treinamento e desenvolvimento de recursos humanos – T&D destina-se a promover o desenvolvimento humano nas organizações, com a finalidade de garantir a qualidade e produtividade dos serviços, a partir do desenvolvimento humano e capacitação profissional. Como essa função foi concebida a partir de valores, premissas e necessidades oriundas do modelo taylorista-fordista, guarda, portanto, identidade de propósito com ele. E assim, por sua origem e pela forma como vem sendo conduzida tradicionalmente, acredita-se que esta função tem se constituído mais como um instrumento de consolidação da ideologia e prática de utilização do homem como instrumento, ao invés de um meio que contribua para o seu desenvolvimento como profissional e como pessoa.

Essa forte tendência da área e a nova lógica da acumulação flexível do capital que subordina organizações e suas práticas de gestão às tendências do sistema produtivo, exigindo estratégia de atuação, processos de trabalho bem delineados e competências organizacionais e profissionais coerentes com essa lógica transforma o indivíduo cada vez mais em um ativo, um patrimônio que, como qualquer outro, deve adaptar-se às constantes mudanças estabelecidas pelo capital e à multifuncionalidade na execução da tarefa.

Desta forma, nesta nova lógica, exigem-se pessoas inovadoras, criativas, talentosas, flexíveis, estratégicas, que saibam gerir pessoas e trabalhar em equipe; mas, ao mesmo tempo, tudo que escapa ao previsto e ao controle do poder é visto como problema, impedindo, assim, que as características que são exigidas sejam realmente praticadas e reconhecidas (SIQUEIRA, 2006).

É nesse contexto de incoerências que se encontra a difícil missão do profissional da área de gestão de pessoas, e mais especificamente de T&D, de ser o principal agente entre a organização e as pessoas, tendo que ser o grande motivador, disseminador de ideias e formador de opinião, para o desenvolvimento de projetos que só receberão apoio até onde atender aos interesses da organização.

Aparentemente o trabalho de unidades de T&D vai de "vento em popa", tendo em vista a quantidade de atividades que realizam, tais como: diagnósticos, programas educacionais, consultorias, avaliações, entre outros, mas o que parece existir é uma insatisfação generalizada, tanto por parte dos próprios profissionais, que não conseguem ver resultados efetivos do trabalho que realizam, como dos profissionais clientes desses serviços que não sentem os benefícios que essas atividades deveriam proporcionar.

Assim, o sentido de beleza e utilidade (DEJOURS, 2007) que o trabalho desses profissionais poderia proporcionar parece não se cumprir e o vazio de significado pode ser provocador de vivências negativas para a subjetividade, podendo fazer emergir estratégias defensivas para camuflar o sofrimento, que faz transparecer uma aparente normalidade em contextos de trabalho onde essa atividade é desenvolvida.

Ao pesquisar estudos sobre as vivências de sofrimento e prazer em profissionais que atuam em atividades voltadas para a gestão de pessoas em organizações, encontraram-se dois estudos. Um dos estudos, de Gui (2002), teve como finalidade investigar as representações sociais a respeito do prazer e sofrimento no trabalho dos profissionais de recursos humanos em uma instituição financeira. Os resultados mostraram que esses profissionais reconhecem a existência de prazer e de sofrimento na realização da atividade. Ficou constatado que, apesar de terem consciência de sua responsabilidade para com o bem-estar dos profissionais da organização, permanece certo sentimento de impotência que perpassa suas representações a respeito do papel do profissional de recursos humanos.

Outro estudo, de Oliveira (1997), com profissionais de recursos humanos no setor público, teve como objetivo analisar a influência dos fatores de prazer e sofrimento no significado do trabalho e na formação da identidade desses profissionais. Essa pesquisa levantou fatores que mostram o trabalho público vazio de significado e de sentido de utilidade e um ambiente nutrido por uma cultura de desmando que impede a verdadeira função do servidor público que deveria ser a de engajar a subjetividade para criar algo de valor para a sociedade, mas ao contrário, é arrastado por uma cultura de submissão que o faz submeter-se a um processo de alienação, pondo o seu conhecimento à disposição de interesses e ideias alheias a sua visão sobre a função pública. 

Esses estudos apresentaram dados importantes sobre o sofrimento vivenciado por esta categoria profissional. Entretanto, a presente proposta de intervenção, por meio da criação do espaço de discussão, se assemelha a esses trabalhos no que se refere à pesquisa de vivências de prazer e sofrimento e de estratégias defensivas, mas se propõe a ir além da investigação e favorecer a análise crítica da atividade, a busca do sentido e de novos rumos para o coletivo de trabalho, a partir de uma ação do próprio grupo de profissionais.

Esta experiência de criação de um espaço de discussão, denominada por Dejours (2004) de clínica do trabalho, apresenta princípios teóricos e metodológicos particulares. Originalmente, o autor em 1986 propõe como etapas do método, ainda não denominada clínica do trabalho, a pré-pesquisa, a pesquisa propriamente dita, a análise da demanda, análise do material da pesquisa, a observação clínica, a interpretação e a validação e refutação. Com os avanços dos estudos no Brasil, conforme descrito por Mendes (2007) e Merlo e Mendes (2009), identificam-se variações nestas etapas, de modo a viabilizar a experiência em clínica do trabalho, mantendo a fidelidade aos princípios norteadores e realizando adaptações no modo de aplicá-los.

Nesta perspectiva, este estudo contribui para o avanço das pesquisas neste campo de estudo, sendo um dos primeiros realizados com profissionais de T&D no serviço público. Como tal, apresenta como objetivo analisar a organização do trabalho, as vivências de prazer e sofrimento e as estratégias de mediação adotadas entre os profissionais que atuam na atividade de treinamento e desenvolvimento de uma organização do Poder Judiciário. Parte do pressuposto de que a livre circulação da palavra no espaço de discussão, viabilizada na experiência da clínica do trabalho favorece o engajamento da subjetividade, contribuindo para a transformação das estratégias defensivas em mobilização subjetiva e o sofrimento em prazer.

 

2 Método

2.1 O grupo de trabalhadores

A organização do trabalho analisada faz parte de uma estrutura voltada para a capacitação e aperfeiçoamento profissional. O trabalho da área consiste em realizar todo o processo de capacitação e definir políticas, diretrizes e estratégias de ensino. Participaram dos encontros sete servidores da referida unidade, sendo um do sexo masculino e seis do sexo feminino. Eles se encontram na faixa etária entre 38 e 56 anos e receberam nomes fictícios de Antônia, Gabriela, Tereza, Pedro, Joana, Olga e Alice. Quanto à hierarquia seis são gestores e uma é servidora sem função comissionada.

2.2 A clínica do trabalho

Como mencionado anteriormente, o estudo se inspira na clínica do trabalho descrita por Dejours (2004), mas assume feições próprias em função das especificidades do contexto, adaptando ou revisitando as etapas propostas originalmente e criando novos caminhos para a condução da pesquisa. Deste modo, diferentes encaminhamentos foram dados para o presente estudo. Descreve-se a seguir as etapas e procedimentos utilizados.

2.2.1 Pré- pesquisa e análise da demanda

Parte-se de dois pressupostos essenciais: o voluntariado dos participantes e a concordância da instituição para a realização da enquete. Essa fase caracteriza-se por criar condições objetivas para a realização da pesquisa, apresentar e difundir os princípios da Psicodinâmica do Trabalho e da enquete entre os trabalhadores, identificando voluntários interessados em participar das demais etapas e organizar os grupos.

A Psicodinâmica do Trabalho parte de uma demanda expressa. No entanto, a demanda que gera a intervenção, por vezes proposta pela direção das empresas ou chefias, nem sempre é a mesma expressa pelos trabalhadores. Nessa etapa, busca-se compreender a demanda do grupo que participa do estudo, tendo como base alguns princípios: entender quem formula a demanda, o que se solicita e a quem a demanda é dirigida. Essa reconfiguração da demanda norteia toda a construção de hipóteses e interpretações a serem formuladas pelos pesquisadores durante o desenvolvimento dos grupos.

No contexto de trabalho pesquisado percebe-se grande complexidade com relação à organização do trabalho e a necessidade de fazer circular a palavra, possibilitando que o coletivo de trabalho se posicione sobre o sofrimento contido. Esta é uma demanda latente, mas não explícita. Assim, para fazer emergir a demanda optou-se, primeiramente, por transmitir informações para os profissionais sobre os principais conceitos que compõem a psicodinâmica do trabalho, bem como sobre o método de intervenção, buscando conquistar a confiança em relação ao método e a legitimidade perante o grupo para atuar na intervenção.

O trabalho foi conduzido pela pesquisadora e contou com a participação de duas outras pesquisadoras que contribuíram na análise do processo grupal como coletivo de controle. A postura da pesquisadora foi a de facilitar a livre expressão da fala, escutar, refletir, propiciar o debate acerca da organização do trabalho, das vivências de prazer e sofrimento e da mobilização subjetiva, contribuindo para a mudança na forma de pensar, sentir e agir do grupo (MENDES, 2007).

2.2.2 A pesquisa

A pesquisa constitui-se das discussões grupais propriamente ditas que ocorrem em intervalos que dependem das possibilidades da organização em disponibilizar o conjunto dos trabalhadores durante o período de trabalho. O propósito dos grupos é o de desencadear uma reflexão e uma ação transformadora. Essa fase é subdividida em quatro etapas: análise da demanda, análise do material da enquete, observação clínica e interpretação.

Nesta experiência, após a composição voluntária do grupo, realizou-se 05 sessões coletivas que ocorreram no período de junho e julho de 2008, com duração de uma hora e meia, em uma sala de reunião fora da unidade de trabalho dos participantes, mas nas dependências da organização.

A primeira sessão destinou-se a apresentar o cronograma, o método de intervenção, os objetivos e a duração do trabalho, bem como firmar compromisso, por meio de um contrato psicológico que abordou aspectos como assiduidade, responsabilidade, postura, respeito, sigilo e ética entre outros requisitos para o trabalho em grupo. As demais sessões tiveram o objetivo de refletir sobre a organização do trabalho e os fatores que favorecem a vivência de prazer e sofrimento no trabalho.

2.2.3 Análise do material da enquete

O material da enquete é o resultado das vivências subjetivas expressas pelo grupo de trabalhadores durante os encontros. Esse material é apreendido a partir das palavras e do contexto no qual elas são ditas, enfim, da formulação que os trabalhadores fazem da sua própria situação de trabalho.

Para contribuir com este processo de análise, as sessões foram gravadas, transcritas e analisadas, utilizando-se a análise dos núcleos de sentido (ANS), criada por Mendes (2007), adaptada da análise de conteúdo, desenvolvida por Bardin (1977).

A enquete foi estruturada a partir dos princípios teóricos da psicodinâmica do trabalho, entretanto, com adaptações consideradas necessárias. Neste sentido, utilizou-se esta ferramenta de análise dos dados que se considera coerente com os pressupostos adotados na investigação.

As categorias foram construídas de acordo com os objetivos do estudo, em três eixos: organização do trabalho, vivência de prazer e sofrimento e estratégias de mediação coletivas e individuais.

2.2.4 A observação clínica e interpretação

Nessa fase, os pesquisadores buscam registrar o movimento que ocorre entre o grupo de trabalhadores e o de pesquisadores. Não se trata de resumo do conteúdo das sessões, mas de fazer aparecer ideias e comentários, interpretações, mesmo que provisoriamente formuladas. Esta etapa foi viabilizada nos encontros entre as pesquisadoras que acompanharam o grupo e os pesquisadores especializados do laboratório de psicodinâmica e clínica do trabalho da Universidade de Brasília.

2.2.5 Validação e refutação

Ao longo das sessões, a partir das elaborações, interpretações, hipóteses, temas e comentários registrados durante cada encontro, se confecciona um relatório que é discutido com os trabalhadores. Seu conteúdo é, ao longo das discussões, validado ou retomado. O relatório visa favorecer a reapropriação do material da pesquisa (produzido em conjunto, a partir da reflexão dos participantes não-pesquisadores) e a elaboração do saber frente às situações de trabalho e sua modificação. Neste estudo, foi construído o relatório final, seu conteúdo foi validado junto ao grupo participante da atividade e, posteriormente, apresentado à gestora da unidade e aos demais trabalhadores da referida unidade da organização.

 

3 Resultados

3.1 A circulação da palavra

Na primeira sessão coletiva, a pesquisadora convidou o grupo a falar sobre suas vivências no trabalho, seus sentimentos e percepções com relação a aspectos da organização do trabalho. No segundo encontro, a discussão girou em torno das vivências de prazer e sofrimento no trabalho, a partir da forte expressão colocada por Alice "o Trabalho é meu bem e meu mal." Na terceira sessão a pesquisadora solicitou que eles falassem sobre as formas de enfrentamento aos aspectos contraditórios da organização do trabalho. Pedro iniciou sua fala abordando a atuação da área de T&D, a partir desse direcionamento os demais participantes foram discutindo sobre as vivências de trabalho na atuação de T&D, expressando diferentes aspectos envolvidos como os problemas de gestão da área, o perfil e preparo dos gestores e as dificuldades em relação à cultura do órgão.  Na quarta sessão, a pesquisadora convidou o grupo a discutir sobre o que poderia ser feito para mobilizar o coletivo a buscar alternativas para enfrentar o sofrimento ante as questões pontuadas. Por fim, compartilharam a importância da experiência do grupo e sugeriram sua continuidade.

3.2 Analisando as verbalizações compartilhadas

Foram definidos três núcleos de sentido, que serão apresentadas adiante, a partir das verbalizações compartilhadas no espaço de discussão. As temáticas observadas em cada categoria serão apresentadas conforme a vivência ocorrida ao longo dos encontros, da forma que se segue:

3.3 Organização do trabalho

De acordo com os participantes, a gestora da unidade é muito acelerada, está num ritmo muito além dos outros membros da equipe. A própria gestora reconhece que há certo desequilíbrio e que as pessoas deveriam "puxar o freio de mão", mas ao mesmo tempo teme que a área não dê as respostas que precisam ser dadas. Percebem que precisam checar a escuta e buscar um entendimento comum com relação às expectativas da gestora para conseguirem alcançar o que ela realmente quer buscar de resultados para a área. Os participantes relataram intenso ritmo de trabalho: "gente, é coisa demais!", e sobrecarga de trabalho. Esta problemática sobre o perfil da gestora e em relação ritmo intenso de trabalho e sobrecarga foi discutida desde o primeiro encontro e permaneceu presente em todas as sessões.

Os participantes consideram que não existe critério para o exercício da função de gerente. As pessoas que ascendem a esses cargos e funções comissionadas são bons técnicos que se destacaram por dominar determinada matéria, ou pessoas indicadas que não atendem nem a esse critério, mas os aspectos referentes à gestão não são avaliados e nem desenvolvidos. "A gente não é preparado para ser gerente [...] não temos preparo pra isso, porque nunca fomos treinados [...] porque você não tem qualidade pra aquele cargo e a gente vai tentando se adequar." Essa problemática foi abordada explicitamente e com bastante ênfase no primeiro encontro e implicitamente em todos os outros.

Por uma decisão política da hierarquia superior toda a estrutura do órgão foi transferida para a sede de outra organização, sendo que esta não tinha espaço suficiente para comportar todas as unidades, e assim, a área de T&D foi instalada, em um lugar abafado, sem ventilação, "é muito ruim ficar fechada." Isso causou grande revolta em alguns servidores: "Ainda não aceito ficar dentro desse buraco, em lugar fechado."

Os participantes relataram que a comunicação não é clara e nem franca e isso prejudica muito o andamento do trabalho e faz crescer um sentimento de culpa e desqualificação na equipe: "a gente tem que se comunicar melhor." As questões referentes à comunicação estiveram em pauta em todos os encontros. Entre as idas e vindas dos assuntos, sempre o problema da comunicação emergia, levando o grupo a vislumbrar no espaço de discussão uma saída para esta dificuldade do coletivo de trabalho.

Os participantes avaliam a área como uma ferramenta importante da instituição, "se o RH continuar nesse ritmo vai certamente ser a ferramenta mais poderosa da instituição porque vai acompanhar o que se fala hoje do capital intangível, desde a seleção até a preparação para a aposentadoria." Compreendem que o objetivo da área é a produção de conhecimento e identificam a função social da sua atividade. "É a produção do conhecimento que vai levar o T&D a atingir o seu objetivo." O desafio é sensibilizar as áreas e gestores da sua importância. "Aí o órgão tem que ser sensibilizado, a partir de objetivos bem definidos para que se efetive realmente uma política de T&D voltada para a questão da gestão." Eles não têm muita clareza sobre a visão que as outras áreas têm deles. Avaliam que é um processo demorado, mas que já teve um desenvolvimento muito grande. Todos indicam que depende deles o crescimento da área o que gera culpa em muitos momentos, e a falta de sensibilização de muitos gestores e dos parceiros de RH traz sentimentos de falta de reconhecimento: "Será que nós estamos mostrando todas as nossas ideias para a instituição? Nós estamos dando tudo de nós?". Esse tema começou a ser abordado no terceiro encontro.  A princípio, a temática foi explorada de forma bastante teórica e racional, enfatizando a evolução e importância da atividade, ainda como algo distante, fora do contexto, mas no decorrer das falas foi emergindo entraves presentes na cultura do órgão e na própria postura dos profissionais, o que, novamente, instigou os participantes a refletirem e questionarem aspectos presentes na organização do trabalho.

3.4 Vivências de prazer e sofrimento

"O trabalho é meu bem e o meu mal" – Os profissionais relataram o paradoxo entre o bem e o mal que o trabalho causa. Se por um lado manifestam prazer e satisfação pelo fato de trabalharem com aquilo que gostam e pelas amizades que construíram, por outro lado, demonstram grande sofrimento relacionado à sobrecarga e ritmo de trabalho, à falta de comunicação aberta e franca, à desmotivação por não encontrarem ambiente favorável à expressão de talentos, à falta de reconhecimento e valorização. Esse tema foi verbalizado por uma participante no primeiro encontro e serviu como temática do encontro seguinte, quando todos expressaram seu ponto de vista e discutiram acerca desse paradoxo.

Demonstram amor pelo trabalho e admiração pela natureza do trabalho, que é o de fomentar conhecimento, de difundir ideias, de propiciar o desenvolvimento das pessoas e da organização.  "Eu gosto muito do que eu faço, eu gosto muito de trabalhar, aliás, eu gosto de trabalhar!". Além da demonstração de amor, expressam sentimento de grande paixão e de identificação com a causa da educação, por isso se engajam física e psicologicamente numa entrega apaixonada. Outro aspecto abordado pelos participantes é o espaço de aprendizagem existente no trabalho que é visto como algo idealizado. Esse tema surgiu no primeiro encontro e continuou presente em todas as falas que se referiam ao prazer no trabalho.

Os profissionais compartilham um sentimento de culpa por serem muito bem pagos para prestarem um serviço público e não darem as respostas que precisam ser dadas, não por falta de vontade ou de competência, mas porque a cultura da organização não permite: "anda me incomodando o valor que a gente ganha e não dá respostas." Esclarecem que, em consequência disto, acomodam-se e quando se percebem estão mais se servindo do público do que prestando o serviço que deveria ser prestado para a sociedade. "Tem quinze anos que eu estou mamando no serviço público sem muito retorno." Esse foi um dos aspectos relacionados ao mal que o trabalho causa, abordado no primeiro encontro por duas participantes e discutido com mais ênfase no encontro seguinte por todos os participantes.

Os servidores não se sentem valorizados pela organização, "nunca ninguém me reconheceu como, capaz e isso me atordoa." Não se sentem reconhecidos nem a título de feedback nem de orientação, "reconhecimento que eu falo que está acima do valor financeiro, o reconhecimento a título de feedback mesmo, olha você está indo pelo caminho certo, ou não." Apesar de toda empolgação e de dar tudo de si se sentem angustiados e frustrados com o descaso da organização e com a sua estrutura. "Então é essa a questão que eu acho, a questão valorativa, não me sinto valorizada [...] embora eu dê tudo de mim".A falta de reconhecimento é uma vivência forte de sofrimento que foi abordada enfaticamente por todos os participantes assim como o ritmo intenso de trabalho e a sobrecarga.

3.5 Estratégias de mediação coletivas e individuais

Os participantes comentaramque devido às decepções com as pessoas e com a organização alguns se isolaram e passaram a focar sua atenção estritamente no trabalho, principalmente em atividades repetitivas e rotineiras. "Eu percebo um movimento na secretaria que as pessoas reagem se isolando e isso é péssimo." Existe muito medo de discutir os problemas mais graves, "eu prefiro jogar a sujeira debaixo do tapete". Tentam minimizar os problemas buscando um clima de alegria e por isso investem nas festas de confraternização. "Nós reagimos agindo com jogo de cintura. Eu não enfrento o conflito. Isso é uma estratégia, porque, no ambiente público, precisamos de defesa, o que é bem diferente do ambiente privado." Outra estratégia adotada para lidar com o trabalho é acelerar a realização das tarefas: "eu não consigo desacelerar e isso é ruim porque eu não consigo".

Do primeiro ao último encontro eles descreveram estas diferentes formas de lidar com os aspectos críticos da organização. Os profissionais relatamsentir a necessidade de dialogar sobre as questões difíceis da organização. "Eu acho que o importante é criar esse espaço de conversação, acho que o objetivo não é aonde isso vai chegar, mas sim conversar, se abrir, pra não ir pra casa pensando." Percebem os ganhos de falar clara e abertamente sobre todas as dificuldades e de conhecer melhor uns aos outros para poder confiar. "É, acho que quando você conhece, passa a confiar e diminui o egoísmo." "Acho que é uma oportunidade de colocar pra fora o que está contido." Enxergam esse espaço de fala e escuta como uma oportunidade e não como ameaça, acreditam no diálogo, no olho no olho e desejam discutir os problemas para melhorar as pessoas e o ambiente. "Acho que o ganho maior é a gente se perceber e se mobilizar." Acreditam que, havendo mudança no ambiente, as novas pessoas que chegarem vão se comportar de acordo com a conduta do grupo. "Eu acho que os encontros poderiam continuar acontecendo quinzenalmente com o mesmo grupo e depois, à medida que a gente fosse avaliando os ganhos, e aí ir formando novos grupos, até a secretaria inteira estar conversando e se mobilizando."

 

4 Discussão

Observa-se que nesta experiência de trabalho coloca-se um paradoxo entre o prazer e o sofrimento uma vez que, por um lado, o grupo identifica a importância e o valor da sua atividade, que é a produção do conhecimento no contexto organizacional, mas, por outro, sentem-se impossibilitados de agir nessa direção e apresentar os resultados esperados, numa experiência de impotência.

O grupo identifica como impedimentos, especificamente, os entraves da própria organização para as atividades da área, em decorrência de uma cultura rígida, hierarquizada, burocrática, formal e autoritária, regida por um prescrito regulamentado a partir do rigor da lei.

Consideram que a natureza da tarefa e o espaço para a criatividade são aspectos positivos e facilitadores para a atividade se desenvolver e se destacar como modelo de atuação no âmbito das instituições públicas, e assim obter o reconhecimento do seu valor social. Contudo, particularidades da unidade, somadas à resistência da organização, neutralizam esse diferencial e reforçam o conflito vivenciado pelos profissionais de recursos humanos, que, de forma geral, não conseguem romper com as barreiras culturais para atuar de acordo com a sua expectativa.

Desse modo, a dinâmica do reconhecimento que deve ser observada na relação existente entre o trabalhador, seu engajamento na realização do trabalho e o reconhecimento pela qualidade do trabalho desenvolvido fica interrompida, uma vez que a contribuição dos profissionais para a organização não retorna como retribuição.  Em função da contribuição no trabalho, do esforço e da inventividade, o sujeito espera uma retribuição simbólica na forma de reconhecimento à sua identidade. Esta ruptura no trabalho dificulta a transformação do sofrimento em prazer.

Assim sendo, nessa realidade de trabalho, o prazer é resultante do fato de esses profissionais identificarem-se com o trabalho e com sua utilidade para o desenvolvimento das pessoas no contexto organizacional e social, mas, como a dinâmica do reconhecimento não se realiza, todo o investimento psíquico para obtenção do prazer fica interrompido, uma vez que não há retorno para a subjetividade, como bem retratado no paradoxo bem-mal presente na fala compartilhada dos participantes.

Essas vivências manifestam-se nesse grupo causando sentimentos de insatisfação, indignidade, inutilidade, desvalorização, que culmina com a desmotivação e consequente desistência especialmente dos servidores mais antigos.

Percebe-se que, para mascarar o sofrimento causado pela organização do trabalho, utilizam-se de estratégias defensivas: "eu não consigo quebrar as barreiras culturais e aí eu tenho que viver no conflito, buscar as minhas defesas e harmonizar." Os recursos defensivos utilizados referem-se ao isolamento, a auto-aceleração e ao estabelecimento de relações pautadas no cinismo empregados individualmente e/ou coletivamente por esse grupo para conseguir manter-se no trabalho sem adoecer.

Ao decidirem, espontaneamente, participar deste espaço de discussão da clínica do trabalho, esses profissionais se dispuseram a enfrentar os riscos de entrar em contato com suas dificuldades. Eles consideraram esse espaço mais como uma oportunidade de colocar para fora o que estava contido há muito tempo, o que demonstrou mobilização subjetiva em prol do coletivo.  Entretanto, ao mesmo tempo em que se mobilizam em direção à continuidade do espaço de discussão, colocam em dúvida a coragem do grupo para enfrentar o "olho no olho", ou seja, a autenticidade e verdade, porque pressupõe a construção da confiança e cooperação que foi perdida ou está profundamente comprometida.

O espaço de discussão, portanto, depende da cooperação e supõe a construção de uma obra comum, construída com a convergência das contribuições singulares e das relações de dependência entre os sujeitos que estão na cena do diálogo, na busca de reconhecimento de um pelo outro (MENDES; CRUZ LIMA; FACAS, 2007).

Nessa experiência percebe-se que, ao entrarem em contato com sua própria dor e a do outro, foi gerado um sentimento de solidariedade e de respeito, instalando-se um clima de cooperação, propício à continuidade do espaço de discussão, apesar das dúvidas e inseguranças. Assim, foi demonstrada a força transformadora que tem a palavra compartilhada.

A fala desses profissionais possibilitou o confronto e a reflexão sobre aspectos que eram percebidos nas atitudes e vivenciados individualmente, mas que nunca tinham sido discutidos no grupo, e, assim, foi possível o contato com o sofrimento individual e do outro, levando a um entendimento sobre as causas do sofrimento coletivo.

Foi percebido um pensamento comum de que os aspectos que compõem a organização do trabalho, tais como: a comunicação, a falta de cooperação e de reconhecimento são desencadeadores de sofrimento, e que, portanto, devem ser discutidos no espaço de discussão.

Utilizando a metáfora do pêndulo, os aspectos positivos parecem fluir até que esbarram numa barreira invisível que impede as vivências positivas do trabalho e retornam para o profissional como frustração das expectativas, desencadeando defesas que impulsionam os trabalhadores a se engajarem novamente, movidos pelo afã de obter reconhecimento, persistindo no mesmo movimento, até as estratégicas fracassarem pela via do adoecimento.

Isso pode ser observado com relação ao sentido do trabalho, à realização do trabalho, à comunicação, à coordenação, aos relacionamentos. Ao mesmo tempo em que os profissionais percebem o T&D como propulsor do desenvolvimento organizacional e social e de aprendizado e desenvolvimento para a unidade, a falta de reconhecimento da importância desse trabalho perante os dirigentes e parceiros é desencadeador de sofrimento. Ao mesmo tempo em que sentem prazer em atender às demandas que a gestora apresenta, buscando o reconhecimento, sentem-se frustrados porque o curso do trabalho se perde no meio do caminho e não se traduz nos resultados almejados. Ao mesmo tempo em que existe abertura para discutir e confrontar aspectos da organização do trabalho, tendo em vista o discurso democrático de que tudo pode ser questionado e negociado, isso não se manifesta, restando uma obediência cega a tudo que é proposto, culminando em relacionamentos marcados pelo individualismo. 

Por meio da adesão espontânea de participar dessa proposta de criação do espaço de discussão, o grupo iniciou um mergulho para além da superfície calma mantida pelas defesas, buscando trazer à tona o que está fielmente encoberto pelo véu das defesas, e assim alterar o movimento pendular para o de triangulação entre trabalhador – engajamento - reconhecimento.

 

5 Considerações finais

Considera-se que os objetivos desta pesquisa foram atingidos e se confirmou o pressuposto de que a livre circulação da palavra no espaço de discussão permite o engajamento e a expansão da subjetividade, na busca da transformação das estratégias defensivas em mobilização subjetiva e o sofrimento em prazer.

Diante do que foi apresentado, observa-se que a experiência da clínica do trabalho é uma potência na direção da mobilização, revela o prazer-sofrimento e as defesas. Seu êxito encontra-se na possibilidade de fazer a palavra circular, em transformar fala em ato. Este efeito é sempre alcançado, mas nem sempre o ato se transforma em ação sobre a realidade de trabalho. Cada grupo tem sua história e pode ter vivências tão dolorosas e cronificadas que a ação até é capaz de reorganizar o sistema de defesa mas não necessariamente de transformar a organização do trabalho. No caso deste grupo, um primeiro passo foi dado, a continuidade da experiência da clínica do trabalho é recomendada, vislumbrando a ação transformadora da realidade, ao proporcionar a protagonização dos sujeitos na cena do trabalho e sua emancipação.

 

6 Referências

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GUI, R. T. Prazer e sofrimento no trabalho: representações sociais de profissionais de recursos humanos. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 22, n. 4, p. 86-93, 2002.

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MENDES, A. M. (Org.). Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisa. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.

MENDES, A. M.; CRUZ LIMA, S. C.; FACAS, E. P. (Orgs.). Diálogos em psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, 2007.

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OLIVEIRA, M. J. S. O significado do trabalho no setor público: um estudo exploratório. 1997. Número de páginas. 132f. Dissertação (Mestrado em Administração) - Programa de Pós-Graduação em Administração, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1997.

SIQUEIRA, M. V. S. Gestão de pessoas e discurso organizacional.  Goiânia: Ed. da UCG, 2006.

 

 

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Ana Magnólia Mendes
SQN 206 Bloco K apto 105, CEP 70244-110, Brasília – DF, Brasil
Endereço eletrônico: anamag.mendes@gmail.com

Recebido em: 27/05/2010
Reformulado em: 08/10/2011
Aceito para publicação em: 18/10/2010
Acompanhamento do processo editorial: Ana Maria Lopes Calvo de Feijoo

 

 

Notas

* Especialista em Psicodinâmica do Trabalho.
** Mestre em Psicologia Social, Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações.
*** Doutora em Psicologia.