Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e83250, doi:10.12957/epp.2025.83250
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

Entre Joanas e Medeias: Para Desatar os Nós entre Gênero e Psicopatologia

 

Untying the Knots: Gender and Psychopathology Split Among Joanas and Medeas

 

Entre Joanas y Medeas: Para Desatar los Nudos entre Género y Psicopatología

 

Marianna Protázio Romão a

a Instituto Junguiano do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Este estudo sobre representações culturais do mito de Medeia explora a persistente ligação entre a categoria de gênero mulher e a psicopatologia. A partir de uma perspectiva crítica feminista examina-se uma deturpação entre natureza feminina e construção social, ao longo de momentos históricos nos quais as ditas características estiveram ligadas. O objetivo é ressaltar essa associação enraizada no discurso oficial, que gera discriminação nos cuidados de saúde mental e nas representações de si do gênero feminino. Em uma leitura junguiana, utilizando a análise de discurso situado como método, investiga-se duas obras: a clássica Medeia de Eurípides de 431 a.C. (2013); e Gota d'água (1975/2019) de Chico Buarque e Paulo Pontes, contextualizada no Brasil sob regime militar. Nas obras analisadas, as principais descobertas apontam para a emoção intensa e vulnerabilidade como atributos centrais de Medeia e Joana. Sugerem ainda a presença da diferença autoral, encontrada na ótica descolonial da obra brasileira. Na conclusão, a amplificação simbólica junguiana das representações culturais do feminino mostra-se um recurso interessante para desestabilizar os discursos institucionalizados da clínica, que encobrem sofrimentos psicológicos originados por questões de gênero. Aponta-se assim a necessidade de revisão de conceitos para promover abordagens psicoterápicas mais atualizadas nos campos ético e político.

Palavras-chave: prática clínica, teoria dos discursos, psicopatologia, estudos de gênero, psicologia analítica.


ABSTRACT

This study on cultural representations of Medea's myth explores the persistent link between gender category of women and psychopathology. From a critical feminist perspective, it examines historical moments where such characteristics have been connected to a distortion between feminine nature and social construction. The aim is to highlight how this association is rooted in official discourse, generating discrimination in mental health care and in self-representations of female gender. In a Jungian reading, using situated discourse analysis as a method, two works are investigated: the classic Medea by Euripides from 431 B.C. (2013) and Gota d'água (1975/2019) by Chico Buarque and Paulo Pontes, contextualized in Brazil under the military regime. The main findings point to intense emotion and vulnerability as central attributes of Medea and Joana in the analyzed works. The results also suggest the presence of authorial difference, found in the decolonial perspective of the Brazilian work. In the conclusion, the Jungian symbolic amplification of cultural representations of the feminine proves to be an interesting resource for destabilizing the institutionalized clinical discourses that conceal psychological suffering originating from gender issues. Thus, the need to revise concepts to promote more up-to-date psychotherapeutic approaches in the ethical and political field is highlighted.

Keywords: clinic, discourse theory, psychopathology, gender studies, analytical psychology.


RESUMEN

Este estudio sobre representaciones culturales del mito de Medea examina la persistente conexión entre la categoría de género mujer y la psicopatología. Desde una perspectiva crítica feminista, examina momentos históricos donde tales características han reflejado una distorsión entre naturaleza femenina y construcción social. El objetivo es resaltar cómo esta asociación está arraigada en el discurso oficial, generando discriminación en el cuidado de la salud mental y en las auto-representaciones del género femenino. En una lectura junguiana, utilizando el análisis de discurso situado como método, se investigan dos obras: Medea de Eurípides (431 a.C./2013) y Gota d'água (1975/2019) de Chico Buarque y Paulo Pontes, contextualizada en Brasil bajo el régimen militar. Los principales hallazgos apuntan a la emoción intensa y la vulnerabilidad como atributos centrales de Medea y Joana. Los resultados sugieren además la presencia de la diferencia autoral, encontrada en la óptica decolonial de la obra brasileña. En la conclusión, la amplificación simbólica junguiana de representaciones culturales de lo femenino se muestra herramienta útil, desestabilizando los discursos institucionalizados que encubren el sufrimiento psicológico radicado en cuestiones de género. Así, destaco necesidad de revisión de conceptos para enfoques psicoterapéuticos más actualizados en el campo ético y político.

Palabras clave: clínica, teoría de los discursos, psicopatología, estudios de género, psicología analítica.


 

 

Medeia é uma figura complexa e que vem sendo continuamente associada à porta-voz de um espectro sombrio do feminino, uma "serial-killer" (Sztulman, 1996), que também espalha os rumores de: "Maga, astuta (métis), bandida, estranha, estrangeira, bárbara, deusa, desmembradora ou esquartejadora (diasparagmós), excluída, exilada, errante, banida e expulsa, infanticida, dotada de charme e magias, bem como de encantamentos e feitiços, feiticeira" (Sztulman, 1996, p. 127, tradução nossa). Sua mitografia é vasta, estudada nas mais diversas áreas de conhecimento e representada desde a épica, a poesia, a tragédia, até as mais recentes novelas literárias, na pintura e no teatro, na música, na ópera, na escultura.

Neste trabalho apresento um recorte de pesquisa sobre a associação entre a categoria de gênero mulher e a psicopatologia em duas representações teatrais de Medeia. A pesquisa foi realizada através de uma leitura situada (Fuss, 1999) de duas obras que retratam a heroína mítica: uma delas é a clássica, que configura o personagem que mais tarde reaparecerá com frequência na cultura ocidental, a peça teatral Medeia de Eurípides de 431 a. C. (2013); e a outra obra é o musical Gota d'água de Chico Buarque e Paulo Pontes (1975/2019). As duas diferem bastante tanto temporal quanto culturalmente: uma nasce na Antiguidade grega, enquanto a outra, no Brasil contemporâneo sob o governo militar. Minha intenção é, primeiro, apontar e debater o potencial normatizador e/ou emancipatório destas representações de Medeia para as mulheres, no discurso e na prática da psicologia clínica, desde uma perspectiva de gênero. Almejo também apontar para o imaginário como recurso terapêutico na criação de variantes narrativas resistentes aos padrões normativos de subjugação e, assim, desestabilizar - pela via da narrativa - a perpetuação de traumas que atravessam tempo e espaço, como os descritos em Medeia.

A abertura à polissemia das imagens míticas permeia a leitura comparada dos dois textos. Isso como modo de uma tônica de leitura ou bem um olhar pelo qual leio, mais do que como uma ferramenta de interpretação ou análise. Tal abordagem pode ser compreendida na psicologia analítica a partir do método analítico filológico de Carl G. Jung (1935/2022) de amplificação simbólica. A visão junguiana é da pluralidade psíquica, segundo a qual uma diversidade de arquétipos complexos, relações Self-objeto, dramatis personae psíquica, "deuses", entre outras entidades relativamente autônomas, convivem na psique em uma dinâmica que pode ser representada pela metáfora política de uma sociedade plural (Samuels, 1992, p. 20). Retomo tal visão nas considerações finais, sob o entendimento do manejo clínico, diante das limitações que a psicoterapia usualmente enfrenta para uma prática inclusiva e democrática.

Considerando que "realidade é o que atua na alma humana" (Jung, 1931/2016, p. 55), a hipótese é que as narrativas do mito contadas pela via da diferença abrem espaço para a representação de traumas de origem política, em um compromisso com as verdades sentidas nesta seara da experiência humana (Romão, 2019). A disseminação de tais enredos é um instrumento terapêutico na medida em que só somos capazes de identificar-nos através de contínuas reapropriações de nossa história em interlocução com o outro (Butler, 2015).

Recorro à análise do discurso (Foucault, 1971/2014) como metodologia, acrescida da perspectiva crítica feminista da cultura. O eixo da leitura situada é, por um lado, de Hélène Cixous (1975/2022) com o conceito da écriture féminine, uma visão poética da diferença plural, que revela o corpo indissociável da leitora/escritora como posição-sujeito que cria suas próprias representações. E por outro lado, acrescento a leitura de Diane Fuss (1999), do essencialismo como estratégia de coalizão política. Fuss (1999) costura desde a teoria lacaniana o lugar do sujeito que lê como itinerante, ensejando o diálogo com o texto, saindo de significados fixos para novas posições e sentidos, posição que conversa bem com a visão junguiana pluralista e democrática da psique, "que tenta reconciliar as diferenças sem impor uma falsa síntese", postulada por Samuels (1992, p. 10).

Seguindo a proposição de Teresa Cabruja Ubach (2005), revela-se necessária a produção de conhecimento mais flexível, mas ao mesmo tempo mais comprometido sociopoliticamente, com o qual poderão trabalhar a psicologia comunitária, a antipsiquiatria, a psicologia crítica e a psicologia feminista. A luta é por uma análise interdisciplinar e sócio-histórica das teorias que classificam e constituem a definição do normal e do patológico no contexto de uma sociedade plural e em constante mudança.

Na análise pergunto se é possível entrever a complexidade do mito de Medeia quando não se está atravessado pelas marcas das diferenças de gênero e/ou demais subalternidades (Spivak, 2010). É de se esperar que as perspectivas clássicas da psicologia não contemplem a representação do mito sob o crivo de gênero e político, mas a perspectiva contemporânea (Samuels, 1992), sim. Na análise e crítica literárias, ocorre situação análoga (Lauretis, 1989) e, nesta direção, a metodologia segue o entendimento das teorias contemporâneas, incluindo a análise do discurso (Foucault, 2014).

A análise evidencia ainda os discursos que levaram Medeia a ser relacionada à psicopatologia, uma atribuição na qual se baseiam muitos discursos institucionais que discriminam a mulher no campo da saúde mental. O páthos desta tragédia costuma ser lido como intensidade emocional doente, sendo generalizado como um aspecto feminino. Tal associação entre emocionalidade feminina e psicopatologia pode ser uma das causas de diagnósticos equivocados dos sofrimentos psíquicos, que na realidade são causados pela desigualdade de gênero. Como essa, há diversas outras dimensões não médicas (Caponi, Mazon & Bianchi, 2023) que levam às prescrições maciças de psicofármacos para as mulheres da atualidade.

Compartilhando esta compreensão, entrevemos, nos resultados de análise destas representações culturais, modos femininos plurais, emancipados do imaginário patriarcal que povoa as interpretações sobre a nada normativa mulher-Medeia. Nas conclusões, a busca é por amplificar os sentidos do mito através de uma leitura polissêmica, com crítica social feminista. As considerações finais apontam para uma atuação na clínica psicológica e analítica assentada em um ethos político,no que concerne à categoria mulher e à experiência da emocionalidade, sempre marcadas pela vulnerabilidade social do gênero feminino.

Problematizando as Relações na Tríade Saúde-Doença-Gênero

Entendo a categoria identitária mulher, de acordo com Fuss (1999) e Spivak (2010), como um espaço múltiplo, no qual podem ser agregadas uma diversidade de sujeitos e experiências sem que, para isso, elas precisem ser definidas irremediavelmente por determinadas características. As individualidades e suas identidades subjacentes são, neste sentido, "psiques plurais", na denominação do junguiano Andrew Samuels (1992). O corpo sexuado é uma dessas experiências, e será referido aqui também como posição-sujeito, com experiências de ordem simbólica e material (Braidotti, 2004), por meio do qual também pode ser articulada uma existência contracultural, ou melhor,relato de si/representação da experiência individual minoritária (Romão, 2019).

De acordo com Ubach (2005), o procedimento de "psicologização" e "patologização" das condições e histórias de vida não levam em conta nada além do repertório promovido pela linguagem médica. Segundo a autora, a psicologia diferencial de gênero, por muito tempo, afirmou padrões inatos nas diferenças de comportamento entre homens e mulheres; a psicologia social desenvolve estudos que propõem teorias da personalidade e da identidade estereotipadas, com diferenças nas realizações, preocupação por si mesmo, agressividade e até mesmo no nível de moralidade (Ubach, 2005, p. 133).

Para a clínica contemporânea, vale questionar: como alguém se torna mulher desde uma "experiência subjetiva" não especular do gênero masculino universal? Segundo Lauretis (1989, p. 27), dado que a teoria psicanalítica clássica concebe o sujeito como não-generizado ou um sujeito neutro, e que a subjetividade só é produzida a partir da linguagem, portanto, o sujeito feminino se encaixaria no esquema analítico em no máximo três instâncias: (1) como ponto de resistência à cultura patriarcal, (2) como potencialmente subversivo, ou (3) como estruturado negativamente em relação ao falo (Lauretis, 1989, p. 22).

No campo da psicologia clínica de base analítica, sabemos da associação dos conceitos clássicos de animus e anima aos gêneros masculino e feminino, como contrapartes sexuais, arquetípicas do indivíduo. Neste território, a depender do uso que se faça do conceito de animus, estereótipos de gênero são reforçados de maneira francamente discriminatória. Marie-Louise Von Franz, por exemplo, reconhecida analista junguiana que foi paciente de C. G. Jung, afirmou em entrevista que as mulheres no feminismo imitam os homens, comportando-se de maneira bruta, similar ao padrão arquetípico do animus, pois não são autoconfiantes com sua própria feminilidade (C. G. Jung vídeo archives, 2020).

Contemporânea a essa afirmação de Von Franz, Sáez (1979) nos ajuda a identificar na história as ligações feitas entre o sexo feminino e as categorias sociais marginalizadas, e que os órgãos sexuais femininos e suas capacidades reprodutivas sempre estiveram sob tentativa de controle, se não pela lei ou pela filosofia, então pela família, pelo cristianismo ou, por fim, pelo discurso médico científico.

Na Inquisição, outro momento histórico em que a lei e a religião decidiram o destino de milhares de mulheres, o interesse da Igreja caminhou paralelo à elevação do status da formação médica acadêmica, à qual só poderiam acessar os homens das classes sociais mais ricas (Sáez, 1979). Mais tarde, no século XVII, iniciam-se as internações em manicômios repetindo os mesmos papéis de organização social que a Inquisição havia instituído, mas agora com a instrução de reabsorver o desemprego e controlar custos, dentro de uma nova ordem econômica fomentada pela industrialização (Ubach, 2005).

Ubach (2005) alude à criação do Hospital Salpêtrière - fundado no século XVII, na França, por Luís XIV - como uma prisão com política absolutista de internar em regime fechado desocupados (incluindo crianças e mulheres pobres) que enfeiavam a cidade. No início do século XX, Salpêtrièreassumiu o status de um manicômio ocupado majoritariamente por mulheres, denunciadas por seus maridos, pais ou tutores legais e que se tornavam cobaias de experimentos e teorizações da psiquiatria e da psicanálise nascentes.

Entende-se, assim, que tal como o status da verdade (Foucault, 2014), o status da loucura mudou em grande parte devido à história ideológica de nossa sociedade. Ubach (2005) aponta que paralelamente ao surgimento do Iluminismo, desenvolveram-se as ideias de responsabilidade individual e supremacia da razão como as faculdades mais elevadas do ser humano, retomando um valor da Antiguidade Clássica. Dentro dessa lógica de produtividade, a loucura (por sua "improdutividade") foi vista como desvio. Assim, quando uma mulher desafiava a ordem estabelecida, a opção de interná-la se tornou amplamente utilizada.

Passando ao século XIX, Romo (2005) reflete sobre a imagem da mulher vitoriana e as representações culturais de gênero na produção do conhecimento científico. Elas eram a maioria das usuárias de opiáceos por serem associadas a uma menor capacidade que os homens para enfrentar a dor (Romo, 2005, p. 15). O uso de opiáceos por parte das mulheres também era justificado por razões ligadas à reprodução, já que os médicos acreditavam que as mulheres eram particularmente vulneráveis à insanidade mental por fatores biológicos e atividades relacionadas à maternidade e à sexualidade (Romo, 2005, p. 16).

As repercussões dessa realidade são ainda contemporâneas e podem ser encontradas nos temas de pesquisa em saúde discutidos no "Dossiê Saúde mental e gênero: por uma agenda de pesquisa latino-americana" que Caponi, Mazon e Bianchi (2023) apresentam. As autoras manifestam a urgência de novos estudos na área, dada a "lacuna importante em torno da pesquisa e análise do problema da medicalização, biomedicalização, diagnósticos e medicamentos em saúde mental com uma perspectiva de gênero". É nesta direção que o mito, a literatura e, em última instância, a cultura delineiam-se como ferramentas de resistência e transformação nas práticas clínicas psicológicas.

Como Reler um Mito Criticamente sem Perder o Olhar Simbólico

Elegi falar de Medeia e Joana, atenta ao propósito de lançar um olhar sobre certa violência narrativa que incide sobre diferentes existências (Butler, 2015). Violência que é também devida à prevalência do paradigma cultural moderno no qual, segundo Foucault (2014), os ideais e modelo heroico gregos constituem os modelos positivos de subjetividade.

Se por um lado, do ponto de vista psicológico (Jung, 1950/2011), o mito revela-se como uma produção gregária que, em última instância, fortalece a comunidade que o vivenciacomo vital, por outro lado a tragédia grega como principal veículo na discussão da mitologia na sociedade, além de sua dimensão estética e psicológica, se converteu em uma instituição social e política (Brandão, 1999/2015), um material para agenciar coletivamente e enunciar o inconsciente e o desejo.

Neste sentido, tendo a análise do discurso situado como metodologia, exponho também os condicionantes ideológicos e alguns lugares de fala dos autores, a partir dos quais o sujeito se expressa, deixando claro que este tampouco é livre para dizer o que quiser, pois as instituições preestabelecem e perpetuam muito do seu significado.

Além desta faceta coletiva do discurso, levo em consideração na análise psicológica e literária a dimensão individual da autoria, da ordem do corpo sexuado e investimentos do desejo (Braidotti, 2004). Pois ainda que o autor não seja identificado como o indivíduo falante, o inconsciente e o desejo, quando aliados ao seu pensar, conferem potenciais distintivos únicos, pelos quais é ressaltada a sua capacidade de "produção existencial" (Guattari, 2007, p. 211).

Esta camada de análise é pertinente na mesma medida da investigação clínica, ou seja, para entender quais são os atravessamentos simbólicos na escrita/fala do autor/analisando, bem como na leitura/escuta do leitor/analista (Braidotti, 2004; Butler, 2015). Considerando a potência da inter-relação entre a literatura e as diferentes teorias e práticas analíticas da clínica (Lauretis, 1989), trago no texto indagações e possíveis respostas sobre estes pontos.

A ferramenta de análise do discurso, contudo, não esgota as potencialidades do mito e da literatura do ponto de vista dos símbolos e sua polissemia (Jung, 1950/2011). A linguagem do mythos se diferencia do lógos, pois se expressa por símbolos, aparenta-se mais à arte, atraindo todo o irracional do pensamento humano, sendo, por isso, um fim em si mesma (Brandão, 1999/2015).

A presença do mito na análise é necessária, pois preenche a lacuna do contato com o potencial plural do imaginário (Samuels, 1992). Sendo a cultura não-hegemônica um reduto potente de representações da diversidade de modos de existências, o corpus literário deste artigo reafirma Jung (1950/2011, p. 17), quando diz: "A psique não é uma coisa dada, imutável, mas um produto de sua história em marcha".

No campo da liberdade política, nas comunidades plurais contemporâneas, demanda-se das individualidades marcadas pela diferença, antes de tudo, afirmar-se (Birulés, 2012) utilizando a sua força criadora, numa transformação no nível cultural. Já no campo da psicologia, é vital seguir contando suas próprias estórias e outras histórias, revelando variantes que resistem vivas a um padrão subjugador totalitário. Apontando, assim, para novas formas de afirmar a si mesmo seja no texto ou na psicoterapia, restaurando identidades fragmentadas pelo trauma e pela violência narrativa (Romão, 2019).

Na encruzilhada das leituras da psicologia analítica e da crítica literária feminista, encontrei-me diante do impasse de ler os mitos e outras produções literárias sem reduzi-las a interpretações fechadas e semióticas do sujeito enquanto produto material, fadadas a permanecer exclusivamente na ordem do ativismo político.

Encontrei portas de saída a partir do trabalho de Hélène Cixous e sua proposta de que também é possível reler e reviver o mito, sem a necessidade de interpretá-lo semioticamente (Zajko & Leonard, 2006), revitalizando as palavras mitológicas antigas através de novas palavras, as reescrituras. Para além de revelar o sistema hierárquico e androcêntrico que produziu o mito, Cixous entende a importância de engajar-se politicamente, de maneira profundamente criativa em relação ao modo como as coisas poderiam ter sido ou com um futuro a ser ainda imaginado (Zajko & Leonard, 2006, p. 3).

Como já proposto por Cixous (1975 como citado em Ubach, 2005), a diferença deve ser compreendida em uma perspectiva múltipla e não em oposições. A leitura do mito como desconstrução de dicotomias está em sintonia com a necessidade de desestabilizar e promover o surgimento de novos significados para as oposições herdadas como natureza-cultura, público-privado, saúde mental-doença mental, emoção-razão etc. (Ubach, 2005, p. 136).

É neste marco que inscrevo a releitura das duas obras em questão, no intuito de ressaltar emoções, discursos e símbolos, tanto na narrativa clássica grega quanto na brasileira contemporânea, onde os nós entre o gênero e a psicopatologia possam ser desatados. Neste percurso, o trabalho irá evidenciar os mecanismos do discurso pelos quais as mulheres sofrem discriminação no campo da saúde mental, sugerindo novas práticas menos excludentes para o campo da prática da psicoterapia.

Corpus Literário: Medeia e Gota d'água

Existem inúmeras versões do mito de Medeia. As referências à sua magia estavam nos textos de Homero, quatro ou cinco séculos antes de Eurípides escrever sua famosa versão. Heródoto conta que ela foi raptada pelos gregos (Pausânias, 1950/2022), assim como existem versões em que ela teve quatorze filhos; em algumas versões ela termina com Héracles; e em outras, com Egeu (Pausânias, 1950/2022). Em relação ao filicídio, pelo qual Medeia é conhecida, o geógrafo Pausânias no século II a.C. nos conta em sua obra Descrição da Grécia, Livro II (1950/2022, p. 68), que os filhos de Medeia foram "lapidados pelos Coríntios".

Assim como essas, há muitas outras revisões históricas sobre a culpabilidade de Medeia, como a do romano Cláudio Eliano entre os anos 170 e 235 d.C.:

Que não é a ela, e sim aos coríntios, que é preciso imputar a morte de seus filhos. Que Eurípedes, a pedido dos coríntios, inventou esta fábula, que ele ambientou na Cólquida, fazendo disso assunto para sua tragédia. Enfim, que a arte do poeta fez que a mentira prevalecesse sobre a verdade. Os coríntios, para expiar o assassinato dessas crianças e para compensá-las por intermédio de uma espécie de tributo, oferecem ainda todos os anos sacrifícios em sua honra. (Eliano, 1772/2009, p. 147-148).

Eurípides deu amplitude mítica à versão mais conhecida, através de uma narrativa clássica - no ano de 431 a.C. -, ganhando o terceiro lugar no festival ateniense de teatro em homenagem a Dioniso. Assim sua Medeia imediatamente adquiriu uma dimensão de autoridade religiosa. Nessa obra, Eurípides encena como Medeia, depois de trair seu reino e sua família, ajudando Jasão a obter o velocino de ouro (pele de carneiro), foi por sua vez traída e abandonada em Corinto, depois de dez anos juntos e dois filhos. Na mesma tragédia somos relembrados de que Jasão não fora sozinho àquele país distante, onde conheceu e se apaixonou por Medeia, ele levou consigo, para vencer o destino, quase todos os heróis gregos, no navio Argos, tendo como objetivo principal trazer para a Grécia o velocino de ouro para se tornar rei.

Eurípides sugere, ao longo da encenação da tragédia, como a heroína, em sua grande dor por ter sido substituída pela jovem filha do soberano de Corinto e ser expulsa de lá sem esperar amparo para si mesma ou para os dois filhos, planeja e consegue matar o rei e a futura esposa de Jasão. Medeia, dividida entre as hipóteses de deixar os filhos com o ex-companheiro ou arriscar-se - com seu status legal de meteca - a mantê-los sozinha, planeja e executa igualmente o hediondo filicídio.

Em suma, Medeia é célebre hoje por um crime atroz que, na versão de Eurípides (2013), cometeu contra seus próprios filhos. Seu motivo seria punir o marido Jasão por trai-la com a filha do rei de Corinto, que ambicionava galgar o ponto máximo do poder ao desposar a princesa. Nesta tragédia, tanto a princesa como o próprio rei também morrem vítimas dos poderes mágicos de Medeia.

Gota d'água é uma tragédia contemporânea escrita com uma proposta explícita dos autores, no prefácio, da obra de forte crítica ao milagre econômico brasileiro da década de setenta, que aumentou exponencialmente as desigualdades sociais no Brasil, trazendo muitos prejuízos para a classe trabalhadora: "Isoladas, às classes subalternas restam a marginalidade reprimida, contida, sem saída. (...) A Gota d'água, a tragédia, é uma reflexão sobre esse movimento que se operou no interior da sociedade, encurralando as classes subalternas" (Buarque & Pontes, 1975/2019, p. 14).

Segundo Coelho (2008), a peça ganhou em sua estreia o Prêmio Molière, mas em protesto contra a censura do regime militar, os autores não compareceram para recebê-lo. Buarque e Pontes introduziram alterações em relação ao mito original de Medeia para adaptá-lo à realidade do país, já que seu objetivo era de crítica social. As duas personagens femininas, Medeia e Glauce, a segunda esposa de Jasão, perdem seus nomes e se tornam Joana e Alma, enquanto os personagens masculinos principais mantêm os seus, Jasão, Egeu, Creonte. No entanto, essa não foi a única alteração significativa para essa análise.

A ação, no musical Gota D'água, se passa em um bairro pobre carioca, em um tipo de conjunto habitacional de classe baixa, com pequenos prédios de propriedade do rico e capitalista Creonte. A obra explica que Joana abandonou seu marido, mais velho, para viver com um compositor de samba catorze anos mais jovem que ela, que era Jasão. Seus amigos mais próximos eram o casal Egeu e Corina. Esta última fazia o papel da Ama na versão de Eurípides. Egeu, que em Eurípides ajudara Medeia prometendo-lhe abrigo nos arredores da cidade de Corinto, em Gota d'água é um homem com grande consciência política (Coelho, 2008), líder do movimento democrático do bairro e que, a partir de sua oficina mecânica, organizava os vizinhos para reclamar dos juros abusivos cobrados por Creonte.

Buarque e Pontes ambientam sua peça com diversas referências culturais populares do Brasil: a música ali cultivada eram o samba e outros ritmos populares; a linguagem usada é também popular, os personagens ocupam posições "laborais" que talvez não sejam compreendidas por um público que não conheça a realidade social do Brasil naquela época: há "sambistas", "gigolôs" e, mais comuns, lavadeiras e cozinheiras. Em relação à questão religiosa presente em Medeia pelas constantes referências do poeta aos deuses gregos, Coelho (2008) chama a atenção que Gota d'água faz uso de um interessante sincretismo religioso, mesclando divindades gregas, católicas e do Candomblé.

Coelho (2008) aponta ainda que, de maneira geral, o enredo de Gota d'água segue o da clássica peça de Eurípides, com a diferença de que seu final introduz uma mudança muito importante: o poder de Medeia sucumbe ao de Creonte e da sociedade patriarcal que o sustenta. Joana tenta sem sucesso envenenar Creonte e Alma, e acaba por dá-lo a seus filhos e ingeri-lo ela mesma. A Medeia de Buarque e Pontes comete filicídio, mas também se castiga com o suicídio, um arremate importante para o debate estabelecido nesta análise.

É interessante refletir sobre a relação entre os elementos nucleares que compõem cada uma das obras, tanto do ponto de vista analítico junguiano, quanto da crítica social feminista. Cada perspectiva, à sua maneira, desenvolve uma análise complexa de situações-problema que se fazem presentes tanto na obra Medeia, quanto em Gota d'água. Dependendo da obra lida, pode-se encontrar o estrangeiro, o pobre, o marginal, o sem acesso e o inacessível, o estranho, o alheio, o fora da ordem, o poderoso de um reino desconhecido, a mulher em suas variadas expressões. Todos eles se justapõem, se incluem ou excluem, mas mais do que isso, todos eles se resumem na figura de Medeia, uma mulher que subverte tudo o que está posto, que desafia e congrega tudo o que foi dito e o não dito.

Análise do corpus

A ordem de escolha e disposição dos dados seguirá duas linhas temáticas: aquelas que falam sobre a categoria mulher e a que refere a categoria loucura ou ainda, da vinculação entre emoção, loucura e o ideal de normalidade.

No primeiro discurso público de Medeia - que também foi inovador como o primeiro discurso que uma mulher fez no espaço público da pólis em uma tragédia grega - e na fala de Joana sobre as características que elas associam como condição da categoria identitária mulher, a posição-sujeito de Medeia e Joana parece ser a de aceitar a identidade atribuída e não efetivamente identificar-se com ela; a análise de outros fragmentos do texto permitirá ampliar essa compreensão.

MEDEIA
De tudo que é vivo e tem vontade, [230]
mulheres somos as mais lamentáveis criaturas.
(Eurípides, 2013, par. 230)

As características essencialmente femininas que Joana descreve não são de forma alguma femininas por essência, mas sim por construção social e, por consequência, pelo olhar do outro em relação a esta categoria social. Fica indicado no discurso, tanto de Medeia quanto de Joana, que a mulher de que falam é constituída a partir da alteridade do verdadeiro sujeito do discurso, que está por trás do texto, o homem.

JOANA
Se [Deus] fosse [grande], não criava duas coisas: Primeiro pobre, segundo mulher... Não me iludo... (…)
Que venha e volte, entre e saia, que monte e desmonte, que faça e que desfaça...
Mulher é embrulho feito pra esperar, sempre esperar... Que ele venha jantar ou não, que feche a cara ou faça graça, que te ache bonita ou te ache feia, mãe, criança, puta, santa madona
A mulher é uma espécie de poltrona que assume a forma da vontade alheia. (Buarque & Pontes, 1975/2019, p. 75).

No entanto, ao se identificarem sob essa categoria, Medeia e Joana seguem atravessadas por outras posições durante seu caminho de assimilar novos conceitos e se livrar dos antigos. O que não muda, contudo, é a consciência da opressão social. Assim, esse caminho ou experiência continuada (Fuss, 1999), apesar de paradoxal, é libertador, pois permite a elas escolher como agir com base nesta consciência ampliada.

Podemos encontrar essa múltipla posicionalidade do sujeito em ambas, porém já aparecem diferenças entre as duas personagens no critério ‘mulher', denotando desde já quem está por trás do texto e os atravessamentos que ensejam nesta representação mítica. Enquanto a Joana de Buarque e Pontes (2019) estabelece uma relação de continuidade entre pobre e mulher, Medeia de Eurípedes oscila em outra direção. Apesar de chamar a mulher de "lamentável criatura", ela afirma em seguida que diante de certa adversidade, ligada a uma injúria na conjugalidade, a posição muda.

MEDEIA
Então, o que eu queria de ti é isto: se eu tiver alguma chance e
encontrar um meio engenhoso de, [260]
com justiça, fazer meu marido pagar por esses males...
[e também o tal presentinho... A menina com quem casou]
Não conteis nada! Mulher é cheia de medo, fraca para ver batalha e ferro,
mas quando acontece ser, na cama, injuriada, [265]
aí não existe outra mente mais sanguinária.
(Eurípedes, 2013, par. 260-265).

Também merece ser analisada uma divergência fundamental que revela o atravessamento das autorias nas peças: a posição-sujeito designada a Medeia e Joana por outras mulheres personagens das respectivas tramas. Os diálogos na obra clássica ilustram a Ama apontar o caráter duro de Medeia, que provoca medo. Neste ponto, a diferença se faz presente na autoria descolonial de Buarque e Pontes, que se posicionam abertamente como críticos sociais já no prefácio da obra. Em relação a Joana, as mulheres a descrevem como "mais mulher do que muito macho", o que coroa uma bela associação entre mulher e imagens desestabilizadores das dicotomias comuns nesta suposta oposição, desfazendo a lógica binária que encerra e atribui significados de desvalor às mulheres em relação aos homens.

CORINA - Não sei, não dá, certo é que não está
E olhe bem que aquilo é muito mulher
ZAÏRA - Ela é bem mais mulher que muito macho
ESTELA - Joana é fogo...
MARIA - É fogo...
NENÊ - Joana é o diacho
CORINA- Pois ela está como o diabo quer
Comadre Joana já saiu ilesa
De muito inferno, muita tempestade
Precisa mais que uma calamidade
pra derrubar aquela fortaleza.
(Buarque & Pontes, 1975/2019, p. 25).

Essa posição-sujeito aqui atribuída a Medeia e Joana pela Ama e pelas vizinhas, respectivamente, é uma posição também escolhida e afirmada pelas protagonistas em outras passagens do texto. Esta múltipla posicionalidade de Medeia e Joana é o que lhes permite reivindicar seus direitos desde uma posição que é, em última instância, de subalternidade - e Joana tem consciência disso.

Daí vem a necessidade proposta por Fuss (1999) de que, como essência, o sujeito tenha a identificação política, para que ao ler ou ao discursar, sua narrativa se alinhe sob uma categoria tendo claros seus objetivos. Este último parece ser o caso de Buarque e Pontes, que ressaltam continuamente a realidade material e simbólica que precede e atravessa a categoria mulher. A seguir compartilharei alguns fragmentos de outros personagens de Gota d'água que fazem referência à questão da essência feminina x identidade mulher como construção social.

NENÊ:
Não há beleza nem esperteza capaz de resistir à natureza...
CORINA:
Isso é que não
Não, não e não. Repare a cor dos meus cabelos
A boca amarga com seis dentes amarelos
A bunda que caiu e a falta de tesão
O peito que bichou e a pomba que é um bagaço
As varizes da perna e as pelancas do braço
Foi só a natureza, foi fatalidade?
Pois sim, Nenê. Que idade hoje você me dá?
Sessenta? Errou. Quarenta e três por completar
As damas das novelas e da sociedade
aos cinquentinha fazem pose no jornal
e mostram a barriga no Municipal
Você, Nenê, quanto é que tem?.
(Buarque & Pontes, 1975/2019, p. 33).

Em relação aos dados que fazem referência à emoção e à loucura, considero fundamental situar o contexto que antecede a decisão de Medeia/Joana de cometer os crimes, que em nada atesta psicopatologia, mas luto, desamparo, iniquidade. A contínua referência de Medeia ao seu desejo de morrer demonstra que seu desejo não tem mais um ponto de ancoragem nessa existência. Até esse ponto, quando Medeia ainda fala no espaço privado dentro de sua casa, seu eu estava afirmado em função de seu desejo por Jasão. Ao se deparar com a inexistência do objeto desejado, ela não sabe mais onde se afirmar. Sua identidade, aqui, ainda necessita de uma ancoragem além da função social de esposa para se manter inteira. O eu está em processo de fragmentação, como pode ser observado no trecho:

MEDEIA
Aiali!
Atravesse a minha cabeça a chama celeste!
O que eu ganho ainda estando viva? Phu! [145]
Que na morte me perca! Que uma vida de desgraça abandone!
(Eurípedes, 2013, par. 145, grifo nosso).

Medeia e Joana se afirmam a partir de sua dor, identificam-se com a dor, a ponto de Joana declarar:

Me responda, mestre Egeu, o senhor alguma vez já sentiu
a clara impressão de que alguém lhe abriu a carne e puxou os nervos pra fora
de uma tal maneira que, muito embora a cabeça inda fique atrás do rosto,
quem pensa por você é o nervo exposto? É assim, mestre, que eu estou ferida. (Buarque & Pontes, 1975/2019, p. 121).

Joana afirma ainda que há algo que a mantém ligada à vida, que é seu ódio. O sofrimento pela "ingratidão, humilhação, desprezo, dor da traição, solidão" se engolido, se mantido para dentro, não a deixará continuar vivendo, a aniquilará. Com isso, Joana justifica sua existência a partir da necessidade de vindicação de justiça, de propagar seu ódio, de se vingar; essa é a posição-sujeito agora escolhida que lhe permite sobreviver.

JOANA
Pra não ser trapo nem lixo,
nem sombra, objeto, nada,
eu prefiro ser um bicho,
ser esta besta danada
Me arrasto, berro, me xingo,
me mordo, babo, me bato,
me mato, mato e me vingo
me vingo, me mato e mato
(…)
(Buarque & Pontes, 1975/2019, p. 62-63)

Tanto Medeia como Joana precisam encontrar uma âncora para sua consciência que não seja a posição da mulher vítima passiva. Ambas explicam, cada uma à sua maneira, a importância de sua posição como protagonista; que elas não existem em função do outro masculino, mas existem em função de seu desejo e de sua coalizão política. Dessa forma, é muito interessante a reviravolta que Joana dá, ao passar de objeto (trapo, lixo, sombra, nada) para sujeito de suas ações (um bicho, uma besta revoltada).

De fato, esse discurso de Joana segue o mesmo caminho da virada descolonial dada por Spivak (2010) em seu texto Pode o subalterno falar?. Joana aqui, ao compreender que ao se identificar com o papel de vítima, de subalternidade atribuída, estaria na verdade se identificando com o "nada", cria a possibilidade de sua luta, ao se tornar uma protagonista caricatural de sua própria dor. Ela utiliza o recurso do essencialismo estratégico para sair do discurso de subalternidade, assumindo o papel de besta revoltada, bicho - talvez uma hipérbole do que seria uma histérica, na linguagem sexista - fazendo com que supere a possibilidade de continuar sendo controlada.

Medeia e Joana são exemplos de mulheres que, apesar de toda a opressão imposta pelos aparatos sociais do patriarcado, afirmaram-se numa luta pela justiça que acreditavam merecer. A condição mental das duas, atestadas nas narrativas aqui em análise, não consegue mascarar a origem de seu sofrimento psíquico na iniquidade social de gênero. Medeia triunfa, mas miseravelmente se desumaniza, enquanto Joana sucumbe no auge de sua vulnerabilidade. Ambas, porém, são referências para a capacidade reivindicativa da mulher que, mesmo dolorosamente, se desloca do discurso atribuído a ela pelos papéis de gênero.

 

Discussão e Considerações Finais

Partindo da análise do discurso da tragédia clássica, encontramos a narrativa encomendada e sentenciada pela conjuntura social e de gênero, tendo suas repercussões culturais reforçado historicamente interpretações enviesadas sobre uma suposta feminilidade adoecida, como se os crimes fossem obra da natureza do sexo feminino. Tal como um cânone psicológico, o mito contado nesta tragédia é uma representação de gênero e guia a escuta dos profissionais clínicos que trabalham com a saúde mental, daí a importância de recriar frente a ele outras versões, desde outros lugares-sujeito e outras experiências simbólicas do feminino.

Analisando a posicionalidade do autor, atravessado por sua própria experiência simbólica e materialidade, entendo que o destino da protagonista sob o olhar de Eurípides não pôde divergir da concepção de mulher que aquela sociedade cultivava e, até mesmo, compreendia. Tanto que, para dar sentido a tal jornada, o poeta precisou retirá-la de Corinto no carro de fogo do seu avô estrangeiro, deus Hélio. Medeia não caberia mais na categoria de mulher mortal, e tampouco poderia ser considerada heroína na acepção clássica do termo.

Aprofundando a análise do corpus desde a concepção junguiana da psique plural, Chico Buarque e Paulo Pontes foram capazes de revivificar o mito amplificando e diversificando suas ramificações simbólicas, trazendo a pólis para o centro da discussão. Joana nesta representação, apesar de sucumbir à dor, se deslocou da feminilidade atribuída e denunciou a origem social e de gênero do seu sofrimento psíquico numa atmosfera emocional e simbólica "exusíacas" (Simas, 2023). O termo "exusíaco" recém-cunhado pelo historiador Luiz Roberto Simas, que popularmente se define por "engolir de um jeito para cuspir melhor" (Rodrigues Junior, 2017, p. 13) dá um sentido ainda mais amplo à fala de Joana: "Ingratidão, humilhação, desprezo, dor de corno, solidão, encho a boca disso e cuspo pra dentro faço um bolo de rancor bem no centro do estômago" (Buarque e Pontes, 2019, p. 123, grifo nosso).

Relendo a representação de Joana a partir de um referencial clínico junguiano, de amplificação simbólica e de sentido teleológico, é oportuno recorrer ao imaginário mítico-religioso brasileiro a partir do qual a própria Joana se afirma, lançando-o como rota de saída para encantar-se numa Pomba-Gira, deslocando-se do corpo de essência para habitar outras formas de ser no mundo, mas não morrer. Afinal, ainda dentro do repertório mítico amplificado por Simas (2023), a Pomba Gira é uma exu feminina e, na "Pedagogia das Encruzilhadas" (Rodrigues Junior, 2017), Exu orixá ensina que é comendo o mundo e cuspindo tudo pra fora, de uma outra forma, que se produz a transformação e a resistência.

Este final, em que Joana comete suicídio, demonstra a intenção dos autores de representar cenas das tragédias cotidianas, comuns, nos rincões mais pobres de nossa sociedade tão desigual. Um desfecho como esse - que pouco diz sobre uma enviesada associação entre a mulher e a loucura -, reverbera a invisibilidade dos estratos populacionais mais sofridos de nossa sociedade.

Entendo, por fim, que existências diferentes são marginalizadas e que os desdobramentos psíquicos advindos da perda de vínculos e legalidade fragmentam a própria noção de "eu", chegando por vezes a culminar na desumanização do indivíduo. Ainda assim, o aspecto político segue sendo o eixo central e não pode ser esquecido como marco ético na análise psicológica. As perspectivas social e de gênero sobre como tais traumas de origem política podem acontecer são constantes que devem ancorar todo o processo, de modo a não subjetivar ou individualizar questões coletivas e materiais.

A partir deste olhar delineia-se, para o campo da psicologia clínica analítica, incorporar à leitura que faz dos mitos uma perspectiva política atada às representações e práticas culturais. Assim como, diante das limitações enviesadas de gênero que pautam o olhar dos profissionais de saúde em geral, mas especificamente na prática da psicoterapia, abre-se o caminho para o recurso junguiano da amplificação simbólica no manejo clínico, com vistas às variáveis minoritárias das histórias, fora dos cânones do sujeito neutro que detém a autoria das representações, mantendo controle sobre nossas próprias identidades.

Do contrário, o trabalho com mitos e outras narrativas coletivas pode tornar-se homogeneizador e estéril, estagnado em experiências que não se afinam com as realidades sociais e psíquicas contemporâneas plurais. O que é o mesmo que transformar o campo da prática psicoterápica em um manancial de reproduções das violências narrativas que incidem sobre a saúde mental das populações mais vulneráveis. Esta é uma responsabilidade ética que precede o trabalho com a miséria humana, por ter como base uma leitura plural da psique individual e coletiva.

 

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Endereço para correspondência
Marianna Protázio Romão - mariprotazio@gmail.com

Recebido em: 02/04/2024
Aceito em: 24/08/2024

 

Agradecimento: A autora agradece à orientadora da pesquisa Profa. Dra. Teresa Cabruja (UB/UdG) e à Profa. Dra. Carlinda Pate-Nuñez (UERJ) pela correção desde a Teoria da Literatura e Letras Clássicas da versão inicial do artigo.

 

 

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