Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e82867, doi:10.12957/epp.2024.82867
ISSN 1808-4281 (online version)
RESENHA
Um Percurso Inventivo de Pesquisa e Existência
An Inventive Path of Research and Existence
Un Camino Inventivo de Investigación y Existencia
Edson Passetti a
a Núcleo de Sociabilidade Libertária, São Paulo, SP, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Resenha do livro de Heliana Conde que trata de metodologias, pesquisas e práticas voltadas para a proveniência da psicologia institucionalistas e da história do grupalismo-institucionalismo no Brasil, com ênfase na história oral. Uma obra de referência também para compreender a vida como arte. Heliana Conde estabelece uma perspectiva de complementação com a história oral, dimensionando suas procedências, implicações e sugestões para o saber da psicologia como disciplina e às múltiplas subjetividades. O livro produz no leitor não só a necessária revisão de sua formação e situação no presente como propicia outras possiblidades de ampliar a crítica e mais do que apenas a crítica, inventar jeitos de fazer politizados, radicalizados e surpreendentes aos envolvidos. Trata-se de um livro que discute e propõe conversações sobre relações, poder e verdade. Heliana Conde nos deixou pessoalmente em 4 de março de 2024, mas ela permanece inteira neste livro com o tanto de história oral a ser arquivada, lida e transformada sobre esta mulher, psicóloga, historiadora, transgressora inventiva, amante da liberdade e, principalmente, amiga sem aspas.
Palavras-chave: psicologia institucionalista, história oral, pesquisa.
ABSTRACT
Review of the book by Heliana Conde which deals with methodologies, research and practices focused on the provenance of institutional psychology and the history of groupism-institutionalism in Brazil, with an emphasis on oral history. A reference work also for understanding life as art. Heliana Conde establishes a complementary perspective with oral history, sizing its origins, implications and suggestions for the knowledge of psychology as a discipline and multiple subjectivities. The book not only produces in the reader the necessary review of their formation and situation in the present, but also provides other possibilities for expanding criticism and, more than just criticism, inventing politicized, radicalized and surprising ways of doing things for those involved. It is a book that discusses and proposes conversations about relationships, power and truth. Heliana Conde left us in person on March 4, 2024, but she remains intact in this book with so much oral history to be archived, read and transformed about this woman, psychologist, historian, inventive transgressor, lover of freedom and, above all, friend without quotes.
Keywords: institutional psychology, oral history, research.
RESUMEN
Reseña del libro de Heliana Conde que trata sobre metodologías, investigaciones y prácticas enfocadas en la procedencia de la psicología institucionalista y la historia del grupismo-institucionalismo en Brasil, con énfasis en la historia oral. Una obra de referencia también para entender la vida como arte. Heliana Conde establece una perspectiva complementaria con la historia oral, dimensionando sus orígenes, implicaciones y sugerencias para el conocimiento de la psicología como disciplina y sus múltiples subjetividades. El libro no sólo produce en el lector el necesario repaso de su formación y situación en el presente, sino que también brinda otras posibilidades para ampliar la crítica y, más que crítica, inventar maneras politizadas, radicalizadas y sorprendentes de hacer las cosas para los implicados. Es un libro que discute y propone conversaciones sobre las relaciones, el poder y la verdad. Heliana Conde nos dejó personalmente el 4 de marzo de 2024, pero ella permanece intacta en este libro con tanta historia oral por archivar, leer y transformar sobre esta mujer, psicóloga, historiadora, inventiva transgresora, amante de la libertad y, sobre todo, amigo sin comillas.
Palabras clave: psicología institucionalista, historia oral, investigación.
"Botafogo, Botafogo, campeão desde 1910...". Sim, é ela a criança na foto ao lado da "enciclopédia" Newton Santos e, simplesmente, de Mané Garrincha. É Heliana Conde 1. Com H. A minha torcedora mais querida do Botafogo. A amiga com quem troco coisas, palavras, bebidas, práticas e muitos relatos importantes de memórias e lembranças que, certa vez, culminaram em sorriso largo na subida da rua Teodoro Sampaio, dentro do automóvel, aqui em São Paulo. Estive e estou com Heliana em um tempo indeterminável.
Estive próximo de sua pesquisa de pós-doc sobre Foucault no Brasil (Ensaios sobre Foucault no Brasil: presença, efeitos, ressonâncias, também editado pela Lamparina) e, agora, dou de olhos e mãos no volume de sua tese de doutorado feita livro. Constato, na apresentação do livro, uma generosa "orelha", escrita por um (ex-)orientando, A. C. Cerezzo. Com Heliana, o imprevisto pode ser e será. O livro tem uma "advertência" deliciosa, um aviso - e não ameaça ou intimidação, acompanhada de Fellini, Gaudí e Laerte: "o que este livro pretende é destampar um aparelho de pesquisa, dando acesso àquilo que pode causar choque elétrico, quando se desobedece à cautela acadêmica. Assim como raramente resistimos, quando crianças, a desmontar brinquedos" (Rodrigues, 2023, p. 12).
A academia é punitiva ao castrar invenções sob a normalização do suposto rigor científico e por ser narcisista no interior do mesmo regime. Mas Heliana Conde, vindo com Foucault, tem claro que as chamadas ciências humanas são apenas representações. E nos convida à história, à memória de gentes, da psicologia, dos seus parentescos e dos argentinos exquisitos. Então, com ela acompanhando García Márquez, "a vida de uma pessoa não é o que lhe aconteceu, mas o que ela se recorda e como recorda" (Rodrigues, 2023, p. 20). Como em Macondo, antes e depois de rei, lei e fé. Quanto a "cavalos do diabo" (ver nota 53, p. 40), importa ressaltar que se há dois percursos da psi, um é o das continuidades psicanalíticas, e o outro (o de Heliana), advindo do que ela chama de chegada da segunda geração de exilados argentinos nos anos 1970, que colaborarão para a história da psicologia institucional no Brasil. E se os cavalos do diabo reaparecerão exuberantes no adendo final do livro (pp. 445-446), está colocado o percurso da pesquisa por meio da história oral, tal como o leitor a encontrará ao final do livro, acompanhando a assimilação do erre em francês, caro a Fernand Deligny, uma maneira de avançar, de caminhar, e como sublinha Heliana Conde, "em castiço português, vagueio, espalho-me, flutuo..." (p. 427). Estamos diante da psicologia institucional, a chegada dos argentinos associados aos brasileiros e possível de ser traçada numa cartografia de singularidades, durante uma devastadora ditadura civil-militar. Como diria o instaurador Pierre Joseph-Proudhon, é na destruição que se encontra a potência da invenção de liberdade.
Abertura de percursos
A psicologia institucional francesa foi decisiva, a partir da experimentação em Saint-Albain, com o trio formado por François Tosquelles, psiquiatra anarquista fugido da ditadura franquista, o psiquiatra católico Paul Balvet e o comunista Lucien Bonnafé, propiciando o coletivo de ação, rompendo cadeias asilares e enfrentando os nazistas. Foi a primeira investida da psicologia institucional, segundo Robert Castel, acompanhada por Heliana Conde, e que se abre à segunda, livre do domínio do Partido Comunista e do pavlovismo científico da URSS, voltada para a psicanálise lacaniana, também presente na criação da Clínica La Borde, em 1953, por Félix Guattari e Jean Oury, em Cour-Cheverny. Enfim, não se trata de um modelo francês prevalecendo sobre o das comunidades terapêuticas inglesas. Mas de algo que se fará do seu jeito no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro (meio em vizinhança com Belo Horizonte e São Paulo, flertando com a antipsiquiatria e embasando a reforma psiquiátrica), com presenças singulares e múltiplas, voltadas para a resistência à ditadura civil-militar. Se na França houve a resistência ao invasor externo, o nazismo alemão, aqui foi contra as forças repressivas de Estado, que abandonaram, mais uma vez, sua alegada neutralidade para esmagar quem não rezasse pela cartilha da democracia do futuro elaborada pelos estadunidenses financiadores de ditaduras. De outro modo, é imprescindível considerar as gerações de argentinos, segundo Cecília Coimbra,para compreender como se forma, formata, desforma e disforma a psicologia institucional no Brasil. Não há um caminho único, mas um comum entre os que estão sob ditaduras, ainda que isso não gere obrigações ou exigências de homogeneidades. Há algo configurando-se por fora da psicanálise, da psicologia convencional, que produz e provoca algo resistente dentro e contra as instituições asilares, e contra o domínio inquestionável tanto da psiquiatria como da psicanálise.
Heliana Conde não esconde movimentos para tratar dos institucionalistas, escancarando suas reflexões sobre Thomas Kuhn e paradigma, Paul Feyerabend anarquizando metodologias (e Heliana é uma rara pesquisadora que recorre a análises anarquistas e anarquizantes sem se declarar anarquista) e a referência para explicitar que nada é puro, chegando a Michel Foucault. Tudo para entrar na história oral, vinda da universidade estadunidense, obviamente no pós-II Guerra Mundial, com Allan Nevins, em 1948, mas marcada pelas incursões do "boêmio" Joe Gould, o professor Gaivota, em 1920, no Greenwich Village, ouvindo os vencidos. Com o passar do tempo, a história oral veio a ser programa em 1954, em Berkeley e, na Ucla, em 1959, prioritariamente registrando gravações de indivíduos da elite. A história oral, todavia, acoplará, como sublinha Diana Vidal, a experiência-documento, história-particular e história imagem-ação. Heliana, então, marca outro ponto, mostrando que são os movimentos libertários que melhor lançam mão da história oral entre os anos 1960-1970 e a desviam das acomodações elitistas. Talvez esteja aí o momento em que se constata a ausência do importante livro de Hans Magnus Enzensberger, O curto verão da anarquia, apenas citado (Rodrigues, 2023, p. 351) durante a investida de Conde na obra de Edgar de Decca, em especial no artigo de 1999, para o qual ele colhera as informações anteriormente no encontro anarquista de 1993, na mesma Barcelona. Para Enzensberger, a história é uma invenção para a qual a realidade fornece os elementos, antecipando Michel Foucault.
Em 1967, ocorreu a fundação da Oral History Association, da The Oral History Review, e veio o fim do imperativo arquivístico, substituído pelo ativismo expresso plenamente no filme-documentário de Peter Davis, Corações e mentes, de 1974, sobre a guerra do Vietnã. A história oral, finalmente contornará as fronteiras do tradicionalismo metodológico em 1975, quando advém o crescimento da história social com E. P. Thompson e o seu História da formação da classe operária, de 1963, rompendo com o oficialismo do PC da URSS e criando outras perspectivas para a pesquisa fundada no marxismo (a história oral acadêmica).
Tudo pronto para Heliana traçar sua análise do institucionalismo no Brasil. "Nenhuma memória é inocente" (Rodrigues, 2023, p. 112), parodiando o ninguém é inocente dos anarquistas diante do tribunal. Cita os "livros sagrados" do institucionalismo, de Deleuze, Lourau e Lapassade a Foucault, que "redundam em monstruosos ecumenismos" (p. 136, nota 189). Fazer análise institucional é dispor-se ao confronto constante (ainda que dificuldades inúmeras sejam colocadas atualmente pela hegemonia neoliberal e, portanto, a chegada de mais um desafio; guardadas as devidas distâncias, o mesmo se passa com a somaterapia; e ao seu modo prossegue a arrumação das demais psi). Heliana, ao seu jeito, ainda faz uma história oral da psicologia como ela mesmo declara um tanto gauche, um tanto torta. Faz a história de todos os dias, de massas anônimas. Acompanha Kant e Foucault na reflexão sobre os limites (analítica da verdade) e a ultrapassagem desses limites (ontologia histórica do presente). A história oral, enfim, esteve próxima da New Left inglesa com os movimentos feministas e antirracistas, da cultura, via Antonio Gramsci, os contrários (o Popular Memory Group) à calmaria britânica. Heliana Conde não é para quem pretende estabilidade, pacificação doutrinária.
A força da história oral
Diante das considerações vitais de Alessandro Portelli (que não era historiador, muito próximo da literatura) e Luisa Passerini (pesquisadora, voltada às atitudes operárias diante do trabalho, com proveniência na psicanálise), estamos, na companhia de Heliana Conde, intimamente ligados com a militância e suficientemente distanciados das interpretações de partidos operários. Conde se coloca em posição similar à de Patricia Duncker em Alucinando Foucault: é impossível se afastar depois de conhecer!
A história oral retira a aura de fidedignidade inquestionável dos documentos escritos "frequentemente marcados por tendenciosidades de classe. Para ilustrá-lo, refere-se aos processos judiciais italianos, em que os registros escritos não contêm as palavras efetivamente ditas pelas testemunhas, e sim um sumário ditado pelo juiz ao escrivão" (Rodrigues, 2023, p. 187), obviamente contra os acusados de terrorismos. As fontes orais são inesgotáveis e indicam a incompletude dos trabalhos de história escrita.
Segundo Heliana Conde, o Ibrapsi (Instituto Brasileiro de Psicanálise), por sua vez, optou por uma leitura althusseriana da psicanálise, uma imposição marxista, ainda que contivesse "possíveis simpatias pela crítica foucaultiana" (Rodrigues, 2023, p. 215), além da defesa das práticas grupais. E por aqui vai a "viagem" pela história oral e as devidas condições para uma cartografia a partir dos anos 1980, relacionando memória, biografia e narrativa no percurso proposto para a história do grupalismo-institucionalismo no Brasil. Retira-se do(a) pesquisador(a) a chamada última palavra. Porém, entre o oficial e o alternativo, há memórias fragmentadas. Há a voz humana e a importância de pessoas que falam umas com as outras. O livro, então, abre-se para uma reflexão sutil e imprescindível sobre o silêncio a partir do relato de Portelli sobre um grupo de anarquistas, até bastante inexpressivo, que se recusa a falar com as mídias. Seguindo Elias Canetti, Conde informa que é a resposta inteligente que dá fim às perguntas, estancando o poder de perguntar que fortalece o inquiridor. E mesmo porque, segundo Portelli, ninguém revela tudo sobre si, exceto quando da luta por liberdade e na busca de diálogo. Enfim, nem tanto assim, pois o diálogo supõe um mestre superior que detém a verdade; diríamos, lembrando John Cage, que o silêncio não é ausência de ruídos.
Na América Latina, a Argentina (Instituto di Tella), o México (Unam) e o Brasil (CPDOC da Fundação Getúlio Vargas) aparecem como os lugares oficiais da história oral. Heliana Conde mostrará outros lugares, outros espaços, ainda que sempre atravessados pela história política. Afinal, há a história das elites e a dos vencidos. Em conexão com a procedência nos Estados Unidos, seus pensadores e instituições universitárias, em conexão com Fundação Ford e a Capes, sob o paradigma arquivista de Columbia, coloca em questão um dos lados da história oral, o oficial, que não se desprende do outro, o da militância e o do ativismo alternativo.
No Brasil dos anos 1970, surge o CPDOC com "as meninas" disponíveis a ouvir histórias da elite. Concordando com Bernardo Sorj, no livro de Daniel Pécaut, Conde deixa claro que as instituições governamentais não estavam repletas de intelectuais críticos, como pretendiam fazer crer, e que estes conviviam pacificamente com o regime político nada disponível à crítica. No Brasil, foram as ciências sociais que se abriram para a história oral. Por isso, nos anos 1980, quando "consolamo-nos com a Nova República" (Rodrigues, 2023, p. 246), a questão da cidadania trouxe a história oral a reboque e grandes empresas estatais e agências governamentais passaram a se interessar em coletar e recuperar memórias e o fizeram. Enfim, "como esperar um entrevistador continente-e-desejante de diferenças, alteridades e desvios, se ele só está autorizado por um contrato que prevê resultados comemorativos, hagiográficos e harmonizadores? [...] Como imaginar um momento crítico após o contratual e o instrumental" [...] (p. 254). A chegada aos anos 1990 encerra o terceiro e penúltimo movimento do livro, repleto de títulos e subtítulos emprestados da literatura e do cinema, provocando a imaginação do leitor. Esses anos estão marcados pelo distanciamento do campo universitário da história e que olha para a história oral com indiferença. Todavia, foram os anos de institucionalização da história oral com vários encontros regionais. Despede-se Heliana Conde de um "real percebido como polêmica" (p. 265). E era assim que ela pretendia se situar e situou a história oral e seus propósitos.
Mutações
"Mutações" é o título do movimento derradeiro em direção à "memória dos agentes com vistas a uma reinvenção dos percursos do institucionalismo no Brasil" (Rodrigues, 2023, p. 350). Tudo passa a estar conectado também à insurreição de saberes situada por Michel Foucault, principalmente contra os efeitos de poder centralizados. Eis Heliana nos levando para o rompimento com tradicionalismos teóricos em um século deleuziano. Importam descentralizações; serão elas que estancarão não só centralidades de poder mínimas ou máximas, mas centralizações com poder de comandar. Eis a importância da análise institucional e do grupalismo-institucionalismo no Brasil. Eis, também, um percurso a ser percorrido por andarilha(o)s da liberdade com cuidados para com o trabalho de campo e ao trabalho narrativo, cuidados, segundo Heliana Conde, que nenhuma teoria pode dispensar.
Falar em memória é regressar, principalmente, a Alessandro Portelli. Deleuze e Foucault ganham o devido destaque: "[...] a forma estética já não se confunde com a comemoração de uma partida ou de uma chegada, e sim da criação de caminhos sem memória" (Rodrigues, 2023, p. 373). Não se trata de opor a memória coletiva em Halbwachs com Pollack e os historiadores que, inevitavelmente, tendem a se ver entre psicólogos e cientistas sociais, no contraponto indivíduo x sociedade. A grande virada veio mesmo com os trabalhos de Portelli e de Passerini. O artigo "Clínica nômade", de Suely Rolnik, é que "põe a funcionar uma esquizoanálise-travessia" (Rodrigues, 2023, p. 404), sublinhando não haver "excessos em si, mas fronteiras sempre móveis entre sanidade e loucura, neurose e psicose, identidade e singularidade" (p. 405). A história oral, segundo Conde, só tem a ganhar com a aproximação com a esquizoanálise, "desde que tanto uma como a outra se percebam mais como invenções que como interpretações" (p. 405), mais experimentações que doutrinas; mais éticas do que modelo relacionado à verdade.
Tratar de história oral é tratar de saber disciplinar e, principalmente, das implicações decorrentes de biografias. Foucault dizia que a biografia e a autobiografia são vaidade, elogio de si, ou, como situa Conde, registro bem próximo dos tempos neoliberais de 1970 em diante. (Mas eu, pelo menos, gosto demais de duas autobiografias, a de Elias Canetti e a Thomas Bernhard, agitando e atiçando minha memória esquecida, questão de subjetividade, de modo de subjetivação, enfim, de superação do sujeito).
Há algo entre Pierre Bourdieu (o biográfico como ilusório), Michel de Certeau (desmistificação do rigor de Bourdieu) e Giovanni Levi (tom fraternal com Bourdieu não obscurece a eventual inimizade entre irmãos) que leva ao fim do contraponto indivíduo x sociedade (mais uma vez).
Mutações são possíveis "via agenciamentos na história (história oral)" (Rodrigues, 2023, p. 425).
Heliana Conde retira das variadas pesquisas sobre história e história oral o que pode ser amalgamado como heterodoxia do psicossocial militante. E vem, então, o direito de errar por meio da declaração e Deleuze a Claire Parnet como linhas de errância, e o já citado erre do francês emprestado de Deligny.
O adendo imprescindível
O livro se encerra, mais uma vez, como um adendo chamado de encontro intempestivo, quando Heliana Conde situa Georges Lapassade, de passagem pelo Brasil. Era o início de 1970, durante a ditadura civil-militar, na Belo Horizonte do braço leigo eclesiástico que redundou em AP (Ação Popular) nos anos 1960, e em quase tudo que gerou as heterodoxias que levaram à reforma psiquiátrica no Brasil, à história da análise institucional no Brasil, o grupalismo ou uma maneira de rejuvenescer o marxismo, com os cavalos dos deuses negros das possessões, da quimbanda, de Oxalá, ou no dizer do próprio Lapassade, contra "os padres de Oxalá, da ‘linha branca'" que se dedicam a desfazer os efeitos da outra magia. "Podemos mesmo perguntar", diz Lapassade, "se a magia negra não foi inventada para arranjar cliente para a magia Branca" (Rodrigues, 2023, p. 451). E ponto final, ou melhor, ponto e vírgula, mais um...
Antes de embarcar para o Brasil, Georges Lapassade organizou "Três bilhões de perversos", o número 12 da revista Recherches (interceptada, censurada e desaparecida pelos burocratas na França e em outros Estados, democráticos ou não), sob responsabilidade de Félix Guattari. Lapassade vem também ao Brasil a convite do The Living Theatre, em temporada e estadia no Brasil no início dos anos 1970, e presente no V Congresso Internacional de Psicodrama e Sociodrama, encerrado antes mesmo do início pela repressão policial. Cecília Coimbra que o diga.
Lapassade ainda proporá, conforme seu livro Os cavalos do diabo, uma autogestão tropicalista. Bons tempos a serem revisitados desde a recusa do projeto institucional de Lapassade pela Universidade Federal de Minas Gerais. E os psicanalistas que interditaram e confiscaram certo discurso que considera análise-quimbanda. Mais uma possibilidade de revisitar essas sugestões era de consagração do decolonial na universidade. Com Heliana Conde e sua inventiva pesquisa, o percurso fica ainda mais instigante.
E eu encerro esta resenha com palavras emprestadas de Svetlana Aleksiévitch, em Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear (2016, p. 372): "Não há fronteira entre o fato e a ficção, um transborda sobre o outro. Mesmo a testemunha não é imparcial. Ao narrar, o homem cria, luta com o tempo assim como o escultor com o mármore. Ele é um ator e um criador".
Heliana Conde nos deixou pessoalmente em 4 de março de 2024. Mas ela permanece inteira neste livro com o tanto de história oral a ser arquivada, lida e transformada sobre esta mulher, psicóloga, historiadora, transgressora inventiva, amante da liberdade e, principalmente, amiga sem aspas.
Referências
Rodrigues, H. B. C. (2023). No rastro dos "cavalos do diabo": memória e história para uma reinvenção de percursos do paradigma do grupalismo-institucionalismo no Brasil. Lamparina.
Aleksiévitch, S. (2016). Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear. Companhia das Letras.
Endereço para correspondência
Edson Passetti - edson.passetti@uol.com.br
Recebido em: 17/03/2024
Aceito em: 25/04/2024
Notas
1 Nesta resenha, refiro-me à autora como Heliana Conde, como a professora era conhecida. Para fins de referência textual, utilizo seu último sobrenome, Rodrigues, conforme as normas APA, adotadas pela revista.
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