Estudos e Pesquisas em Psicologia
2024, Vol. 24. e82409, doi:10.12957/epp.2024.82409
ISSN 1808-4281 (online version)
DOSSIÊ PRÁTICAS PSI EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE
As Medidas Socioeducativas e a Ideia de Autonomia: Desafios para os Profissionais
Socio-educational Measures and the Idea of Autonomy: Challenges for Professionals
Las Medidas Socioeducativas y la Idea de Autonomía: Retos para los Profesionales
Jacqueline de Oliveira Moreira a, Carlos Roberto Drawin b
a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
b Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia, Belo Horizonte, MG, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
A partir da constatação de algumas dificuldades na compreensão da ideia de autonomia por parte de profissionais que atuam nas medidas socioeducativas de internação, propomos, neste artigo, realizar uma reflexão teórica sobre este conceito, pensando em suas origens e desafios. Assim, iremos desenvolver o artigo defendendo a tese da construção da autonomia como um princípio fundamental do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), visto que essa noção comporta a aposta na capacidade progressiva dos jovens em exercerem seus próprios direitos e responsabilidades. Depois, oferecer subsídios teóricos e conceituais acerca da ideia de autonomia, baseados sobretudo no pensamento kantiano, de modo a distingui-la do mero arbítrio da vontade individual. Enfim, procuramos enfatizar que a construção da autonomia requer considerar a condição de vulnerabilidade e de necessidade de proteção especial dos jovens em conflito com a lei. Desse modo, pretendemos contribuir para o debate junto aos profissionais da medida socioeducativa, revelando a complexidade e importância da construção da autonomia no esforço de pensar alguns marcadores cotidianos que ajudem a viabilizá-la com os jovens que cumprem medidas socioeducativas.
Palavras-chave: medida socioeducativa, autonomia, adolescência, ECA.
ABSTRACT
Based on the findings of some difficulties in understanding the idea of autonomy by professionals who work in socio-educational detention measures, we propose, in this article carry out a theoretical reflection on this concept, thinking about its origins and challenges. Therefore, we will develop the article defending the thesis of the autonomy construction as a fundamental principle of the Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as this concept entails a belief in the progressive capacity of youth to exercise their own rights and responsibilities. Then, offer theoretical and conceptual support for the idea of autonomy, based mainly on Kantian thought, in order to distinguish it from the mere discretion of the individual will. Finally, we seek to emphasize that the construction of autonomy requires considering the condition of vulnerability and the need for special protection of youth in conflict with the law. Therefore, we intend to contribute to the debate with professionals in socio-educational measures, revealing the complexity and importance of building autonomy in an effort to think about some daily markers that help to make it viable with the youth who are undergoing socio-educational measures.
Keywords: socio-educational measure, autonomy, adolescence, ECA.
RESUMEN
A partir de la constatación de algunas dificultades en la comprensión de la idea de autonomía por parte de los profesionales que actúan en medidas educativas de internación, proponemos, en este artículo realizar una reflexión teórica sobre este concepto, pensando en sus orígenes y desafíos. Por ello, desarrollaremos el artículo defendiendo la tesis de la construcción de la autonomía como un principio fundamental del Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ya que esta noción abarca la apuesta en la capacidad progresiva de los jóvenes para ejercer sus propios derechos y responsabilidades. Posteriormente, ofrecer subsidios teóricos y conceptuales sobre de la idea de autonomía, basado sobre todo en el pensamiento kantiano, con el fin de distinguirla del mero arbitrio de la voluntad individual. Finalmente, buscamos enfatizar que la construcción de la autonomía requiere considerar la condición de vulnerabilidad y la necesidad de protección especial de los jóvenes en conflicto con la ley. De esta manera, pretendemos contribuir al debate junto a los profesionales de las medidas socioeducativas, revelando la complejidad y la importancia de la construcción de la autonomía en el esfuerzo por pensar algunos marcadores cotidianos que ayuden a viabilizarla para los jóvenes que cumplen medidas socioeducativas.
Palabras clave: medida socioeducativa, autonomía, adolescencia, ECA.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei n.º 8.069/1990), promulgado no Brasil, representou uma inovação significativa na legislação voltada para a proteção dos direitos infantojuvenis. Entre suas principais inovações, destacam-se a consagração do princípio da prioridade absoluta, a criação dos conselhos tutelares, a instituição de medidas socioeducativas e a ênfase na participação infantojuvenil.
As medidas socioeducativas expressam a responsabilidade do Estado diante do desafio social e jurídico representado pelo ato infracional cometido por um adolescente. As seis medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) são: Advertência, Obrigação de reparar o dano, Prestação de serviços à comunidade, Liberdade assistida, Semiliberdade e Internação em estabelecimento educacional. O Art. 121 do ECA estabelece que a medida de internação, que é privação da liberdade, está sujeita aos princípios de brevidade e excepcionalidade.
Foucault mostra como as instituições de confinamento, como prisões e outras formas de encarceramento, têm a função de controlar os corpos, moldar os comportamentos e naturalizar a punição. No capítulo final de "Vigiar e punir" ele observa: "a generalidade carcerária, funcionando em toda amplitude do corpo social e misturando incessantemente a arte de retificar com o direito de punir, baixa o nível a partir do qual se torna natural e aceitável ser punido" (Foucault, 1977, p. 265) Cabe ressaltar, portanto, que, apesar das justificativas restaurativas e pedagógicas, a lógica disciplinar se mantém e de forma ainda mais explícita nos casos de privação de liberdade. O encarceramento se constitui como meio de vigilância contínua, com a instauração de um conjunto de procedimentos que visam moldar os indivíduos e os grupos de acordo com normas sociais hegemônicas e com a manutenção do poder estabelecido A internação tende a reproduzir essas formas de controle e exclusão sobre jovens que se originam, na maioria das vezes, de contextos sociais já marginalizados e, desse modo, intensifica a marginalização em relação à cidadania ao invés de promover a inclusão social. Assim, os sistemas penal e prisional podem funcionar, observa Foucault, como aparatos institucionais integrados ao mecanismo da guerra "que funciona sob e nas relações de poder" (Foucault, 2010, p. 40).
Batista (2010), criticando o encarceramento no Brasil, ressalta que a privação de liberdade é vista como uma solução fácil, ignorando outras abordagens mais eficazes e humanas, como as medidas de apoio familiar, escolar e social. Desse modo, o Estado prefere investir em prisões e em políticas repressivas do que em sistemas de educação, saúde mental e políticas sociais que poderiam, de fato, prevenir a entrada desses jovens no universo infracional.
Além das críticas estruturais, há também críticas pedagógicas e psicológicas, porque a experiência de encarceramento pode reforçar traumas prévios e agravar problemas emocionais nos jovens. O confinamento tende a amplificar sentimentos de rejeição, abandono e violência internalizada. Como investir na construção da autonomia de um jovem que se encontra encarcerado? E o que é a autonomia senão o reconhecimento da cidadania intrínseca desses jovens?
Não podemos deixar de mencionar que, por vezes, a sociedade e o sistema judiciário rotulam o comportamento do adolescente, sobretudo, o jovem de periferia, como criminoso e ou tendo um comportamento patológico. Rosa e Vicentin (2010) exploram a complexidade do comportamento adolescente, especialmente em relação aos atos infracionais. As autoras argumentam que o imaginário social sobre a juventude é marcado por uma visão estigmatizada, segundo a qual os adolescentes que cometem atos infracionais são frequentemente vistos como perigosos e irreformáveis. Esse imaginário é influenciado por fatores sociopolíticos como a influência das mídias e a adoção de determinadas políticas públicas, que reforçam a ideia de que esses jovens representam uma ameaça à ordem social. As autoras também analisam o ato infracional em si, sugerindo que ele pode ser uma forma de expressão do jovem, uma maneira de se afirmar ou reagir a contextos sociais e familiares adversos. No entanto, em vez de serem compreendidos em suas complexas articulações, esses atos são frequentemente criminalizados e tratados de forma punitiva.
Na mesma perspectiva de localizar e analisar as contradições presentes no ECA e efetivadas por sua implementação o artigo de Moreira et al. (2019) trabalha os paradoxos contidos na ideia de autor do ato infracional, pois se, de um lado, nela encontramos o reconhecimento do adolescente como um sujeito, de outro a noção de autoria pode dar margem a riscos e desvios de interpretação que podem surgir no momento em que se acopla a noção de autor à concepção de ‘crime', podendo, pois, produzir a ideia de um sujeito criminal, como proposto por Michel Misse (Moreira et al, 2019, p. 1).
Autonomia e Responsabilização: Nas Medidas Socioeducativas
Sabemos que todos esses componentes podem convergir na estigmatização do jovem autor de ato infracional e influenciar no processo de responsabilização jurídica pelo ato infracional. Endossamos a perspectiva de Vicentin (2011) em seu empenho de pensar a tensão e complementariedade existentes entre a responsabilização individual do adolescente em conflito com a lei e a estratégia de desresponsabilização do Estado em contextos de vulnerabilidade social. As medidas socioeducativas não podem responsabilizar os adolescentes de modo a eximir a responsabilidade prévia do Estado, pois o jovem deve ser considerado sujeito de direitos e deveres, e suas infrações devem ser tratadas de forma a permitir sua reintegração social. Esse princípio é parte integrante do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu objetivo de equilibrar proteção e responsabilização e, portanto, não pode ignorar ou minimizar as circunstâncias de vida dos adolescentes, como a pobreza, a violência, a falta de acesso à educação de qualidade e os contextos e laços frequentemente fragilizados em decorrência da violência estrutural. A responsabilização do adolescente não pode se assentar na desresponsabilização do Estado quando ele não é capaz de garantir direitos sociais, como educação, saúde, moradia, proteção dentre outros. O sistema de justiça tenta equilibrar proteção e punição, mas frequentemente recai no modelo unilateralmente repressivo que penaliza jovens que já são vítimas de negligência social e estatal. Esse paradoxo pode ser identificado na aplicação de medidas de privação de liberdade, onde a vulnerabilidade social é amplamente ignorada. A privação de liberdade, ao invés de oferecer uma solução educativa e de inclusão pode, antes, reiterar a marginalização do jovem e o aprisionar no ciclo da violência.
Vicentin et al. (2012) sugerem a necessidade de uma reconfiguração das políticas de responsabilização juvenil, que inclua uma análise mais ampla dos fatores sociais que levam os adolescentes à infração. Isso envolveria uma compreensão mais ampla de responsabilidade, seja por não ignorar o contexto social em que esses jovens vivem, seja por reconhecer de modo mais explícito o dever do Estado na criação de condições estruturais adequadas para o desenvolvimento de adolescentes em situação de vulnerabilidade. Além disso, o conceito compreensivo de responsabilização deve incluir as diferenças existentes entre os seus aspectos jurídico e subjetivo.
Souza (2015) argumenta que a responsabilização dos adolescentes deve ser compreendida para além da dimensão estritamente jurídica, considerando também aspectos subjetivos e inconscientes presentes no comportamento dos jovens. A partir da Psicanálise, a autora analisa como o conceito de responsabilidade pode ser articulado com a experiência subjetiva do adolescente, seja em suas relações familiares, sociais, seja em suas vivências internas.
A autora sugere que a medida socioeducativa, quando aplicada, não deve priorizar a punição, mas, antes, deve promover um espaço para que o adolescente possa refletir sobre seus atos e compreender as suas consequências. Isso implica uma abordagem que não apenas impõe a responsabilização associada à punição e à culpa e às suas consequências nocivas, mas que também auxilie o jovem a internalizar de forma construtiva a sua compreensão como sujeito responsável por seus atos e, portanto, como sujeito de direito.
Parece-nos importante ressaltar que o conceito compreensivo de responsabilização como foi anteriormente referido e a proposta de construção da autonomia dos adolescentes que se encontram em privação de liberdade podem convergir, apesar da diversidade de suas bases teóricas e modos de realização. Mas, as contradições entre proteção e punição, direitos e violação, autonomia e assistencialismo, persistem. Assim, Arantes (2009) ao discutir a ideia de proteção integral para crianças e adolescentes, efetua uma crítica a essa premissa ao insistir no reconhecimento da capacidade de crianças e adolescentes para o exercício dos seus direitos. A questão essencial consiste em discernir como se pode usar a proteção integral sem, no entanto, confundi-la com a proteção dispensada pelo sistema tutelar menorista, vigente no Brasil em quase todo o século XX.
A proteção deve ser articulada com a autonomia, processo no qual quem protege deve primeiramente esforçar para que todos os envolvidos participem da concepção e da concretização do que seja proteger de modo a contribuir para uma construção coletiva. Assim, coloca-se uma questão fundamental: a concepção dos direitos humanos de crianças e adolescentes implica uma certa tensão, entre o acolhimento de uma pessoa ainda em desenvolvimento e o reconhecimento de que trata de um sujeito de direito, ou seja, a polarização entre proteção e autonomia. O objetivo de nosso texto consiste em trazer, a partir de algumas constatações práticas, alguns subsídios teóricos para essa questão fundamental.
Não se trata de um problema abstrato, mas a sua proposição emerge do próprio Estatuto quando enfatiza a participação ativa dos jovens em decisões que os afetam diretamente, nos âmbitos familiar, escolar ou comunitário, destacando, desse modo, um ponto essencial para o programa de construção de sua autonomia. Como está explícito no Art. 60. Do ECA que trata da atenção integral à saúde do adolescente no Sistema de Atendimento Socioeducativo ao propor a seguinte diretriz:
I - previsão, nos planos de atendimento socioeducativo, em todas as esferas, da implantação de ações de promoção da saúde, com o objetivo de integrar as ações socioeducativas, estimulando a autonomia, a melhoria das relações interpessoais e o fortalecimento de redes de apoio aos adolescentes e suas famílias; (Brasil, 1990, p. 158)
Assim, no ECA, a ideia de autonomia do jovem autor de ato infracional abrange diversos aspectos, como a participação nas decisões que o afetam, porém respeitando sua opinião de acordo com a idade e maturidade, o direito à informação e o acesso a espaços que promovam seu desenvolvimento saudável. Sabemos, contudo, que a articulação da ideia de autonomia com o arcabouço normativo do ECA requer uma abordagem cuidadosa, pois a legislação busca equilibrar a proteção dos direitos infantojuvenis com o gradual reconhecimento de sua autonomia. Esse equilíbrio impõe uma transição gradual entre a proteção do sujeito vulnerável, colocado, ao menos parcialmente, como dependente da instituição pública e seu reconhecimento como sujeito autônomo. Desse modo, na perspectiva do ECA, há diferentes níveis no processo de realização da autonomia.
A palavra "autonomia" aparece duas vezes na Lei n.º 12.594 (2012) - Sinase. A primeira surge no artigo 17, capítulo II, sob o título Do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade,artigo inserido no título II, Dos direitos fundamentais). Assim, conforme reza o supracitado artigo: "O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais".
Como se pode ver, a ideia de autonomia está intimamente associada aos valores fundamentais do respeito e da dignidade presentes na expressão "inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral". O segundo aparecimento do termo se dá no artigo 60, inciso I, na Lei n.º 12.594 (2012) Sinase que consta do capítulo V (Da atenção integral à saúde de adolescente em cumprimento de medida socioeducativa), e repete o Art. 60 do ECA.
A palavra não aparece com destaque especial, mesmo porque ela já passou a circular amplamente na linguagem comum, sem maior precisão conceitual. No entanto, podemos entender, pelos contextos nos quais ela está situada, sua vinculação com os objetivos básicos e gerais do projeto socioeducativo, que se propõe como um instrumento de educação para a cidadania. Apesar disso, não devemos nos esquecer de que o projeto socioeducativo também tem um aspecto punitivo e responde à demanda social pela responsabilização dos jovens por seus atos infracionais.
Por conseguinte, é importante ressaltar que a discussão sobre a construção da autonomia, seja na letra da lei, seja na materialização desta, precisa se dar de forma cuidadosa, reconhecendo os desafios, impasses, possibilidades e limites, pois a ideia de autonomia, quando voltada para a adolescência, em especial, para o adolescente sob a condição das medidas socioeducativas, pode gerar dúvidas e equívocos. De um lado, o ECA prevê um espaço ativo do adolescente em situação de medida socioeducativa, de modo a viabilizar a constituição de sua subjetividade; de outro, esse objetivo pressupõe o respeito à sua dignidade.
Aparentemente, autonomia e dignidade são valores convergentes e, entre eles, não há contradição. No entanto, sob o termo genérico "dignidade", encontram-se situações concretas e contraditórias como graves carências econômicas e sociais, severas deficiências culturais e simbólicas, desorganização familiar, condicionamentos territoriais e sociais, territoriais, além disso, a especificidade das dimensões psíquicas das adolescências em geral e de cada adolescente em particular. A desconsideração desses elementos constitutivos da dignidade de cada um pode ser contraproducente, produzindo uma mensagem de negligência e abandono. Segundo Eça e Nunes (2021, p. 1): "Somente será possível a construção da autonomia com princípios democráticos, quando houver o envolvimento de todos os integrantes no processo educativo, valorizando a presença e a participação dos diversos segmentos".
Sabemos que a construção da autonomia como projeto educacional não pode se dar abstratamente em relação à cidadania democrática, o que certamente se coloca num horizonte político muito mais amplo, mas não pode ser perdido de vista. Como se vê o problema da construção da autonomia está referenciado nos textos que asseguram a base jurídica das políticas de proteção às crianças e adolescentes. Além disso, se tais políticas somente se tornam efetivas por meio da atuação dos envolvidos em sua implementação, parece-nos importante perguntar: Qual a concepção de autonomia dos trabalhadores da medida socioeducativa de internação?
O Diálogo com os Profissionais: Dificuldades na Construção do Conceito de Autonomia
É fundamental esclarecer que a presente reflexão não é resultado de pesquisa científica. Uma das autoras tem 10 anos de trabalho efetivo no "Fórum Permanente de Medidas Socioeducativas" de Belo Horizonte e compõe a "Comissão de Propostas Socioeducativas".
O "Fórum Permanente de Medidas Socioeducativas" de Belo Horizonte é uma importante iniciativa voltada para a promoção, discussão e aprimoramento das políticas públicas voltadas para adolescentes em conflito com a lei. Esse espaço reúne representantes de diversas instituições, como o Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Universidades, além de organizações da sociedade civil e especialistas na área de infância e juventude.
O Fórum se propõe a analisar, discutir e pensar melhorias nas práticas e políticas relacionadas ao cumprimento dessas medidas, buscando sempre um equilíbrio entre a responsabilização dos jovens e a promoção de seu desenvolvimento integral. Além disso, o Fórum atua como um espaço de diálogo e articulação entre os diferentes atores envolvidos no sistema socioeducativo, permitindo uma abordagem mais integrada e coerente no tratamento das questões relacionadas aos adolescentes. Através de reuniões periódicas, debates e grupos de trabalho, o Fórum fomenta a troca de experiências e o desenvolvimento de estratégias conjuntas para o enfrentamento dos desafios encontrados no cumprimento das medidas socioeducativas e juntamente com a Comissão, acima aludida, organiza um evento bianual de diálogo com os trabalhadores das medidas socioeducativas. Cada evento elege um tema central que é desdobrado em grupos de trabalho e no final uma plenária propositiva.
O evento de 2023 foi intitulado "Saindo da medida: reflexões sobre encerramento e efetividade das medidas socioeducativas", organizado em 5 grupos, a saber, 1. O "Plano Individual de Atendimento" (PIA) e o alcance dos objetivos das medidas socioeducativas de meio aberto e de privação de liberdade; 2. Construção de autonomia e o princípio da brevidade da medida socioeducativa de privação de liberdade; 3. Preparação do retorno à família e à comunidade na medida de privação de liberdade; 4. Substituição da medida socioeducativa e a transição da medida mais grave para medida menos grave; 5. Projeto de vida após o cumprimento da medida e o programa de acompanhamento de egressos.
A primeira resposta que surge no grupo nos convoca para a reflexão. Além da crítica sobre a idealização e a normatização jurídica da ideia de autonomia, alguns profissionais consideram que o adolescente já tem e pratica uma autonomia na vida quando, por exemplo, responde por exigências do patrão do tráfico. Nesse ponto, parece-nos fundamental retomar as origens filosóficas do conceito de autonomia articulada a dignidade, respeito e ética, ou seja, autonomia como a capacidade de decidir sobre aquilo que o sujeito julga melhor para si, dentro do parâmetro da lei; para diferenciar de uma escolha que não produz o melhor para si, pois se localiza fora da lei.
Mas, além dessa pequena confusão entre autonomia e decisões intempestivas, os profissionais formulam as seguintes questões: como construir a autonomia em um contexto social de violações de direitos? Como a conduzir num espaço institucional de restrição e privação da liberdade? A expectativa de comportamento autônomo em relação aos adolescentes em conflito com a lei não seria mera projeção de um adulto vivendo no mundo de seus direitos resguardados? As previsões implícitas nas medidas judiciais consideram as situações socioeconômicas e as características próprias das adolescências?
Guiados por algumas dessas indagações propostas pelos profissionais, procuramos aportar alguns subsídios teóricos acerca da ideia de autonomia, com base em algumas opiniões comuns entre os que trabalham com as medidas socioeducativas.
Formulação de um Problema
Ao conversar com alguns profissionais, constatamos certa dificuldade no entendimento da ideia de autonomia, assim como elementos oriundos da prática quotidiana que podem contribuir para a concreção do conceito. Talvez o maior equívoco seja a identificação da autonomia com o livre-arbítrio, ou antes, com o arbítrio supostamente livre. Uma grande massa de jovens pobres, vivendo nas periferias das grandes cidades e esmagados pelas condições adversas de suas vidas, segue o caminho da adaptação social e busca a sobrevivência, aceitando trabalhos exaustivos, de baixíssima remuneração e sem qualquer proteção jurídica. Para eles, a vida que levam é um destino contra o qual seria inútil se rebelar. Eles compõem a imensa maioria dos socialmente "adaptados", e seu conformismo silencioso é julgado com ambivalência pelos segmentos mais ricos da sociedade. Ora como virtude, pois sua aceitação das coisas como são e sempre serão, e sua submissão à lei são vistas como um comportamento tranquilizador e motivo de discreto elogio: são boas pessoas. Ora como fracasso, pois, numa sociedade cuja medida é o sucesso financeiro e a capacidade de consumo, e envolvida pela crença no êxito como resultado do empreendimento individual, a pobreza irremediável é vista com maldisfarçado desprezo.
Por isso, os transgressores da lei, aquela minoria dos jovens infratores, cujo comportamento criminoso ganha grande espaço na mídia, torna-se objeto de um juízo contundente e generalizante de condenação. Contundente, pois todos, mesmo os setores mais críticos da sociedade, sentem-se por eles ameaçados. Generalizante, pois os hediondos, como o latrocínio e o estupro, obscurecem o fato de que a maioria das infrações se refere a delitos de pequena gravidade. No entanto, e há aqui uma ponta de ambivalência, alguns grupos mais politizados podem ver indícios políticos em suas ações, sobretudo quando elas se integram, de alguma forma, no crime organizado, em sua autojustificação por uma retórica de oposição ao establishment. Esses sinais de ambivalência aparecem em algumas opiniões de profissionais das instituições socioeducativas que traduzem a idealização presente na norma jurídica, ao considerar que os adolescentes infratores já são autônomos ao responderem, por exemplo, às exigências valorativas e normativas impostas pelo tráfico de drogas. Nesse sentido, o "fora da lei" encontra-se "dentro da lei", por encontrar-se integrado num tipo paralelo ou alternativo de legalidade. Nesse caso, sendo a "lei" o elemento constante ao qual o indivíduo está submetido, cabe ao trabalho socioeducativo inverter o significado do "dentro" e do "fora", isto é, converter a "lei" ilegal do crime organizado na "lei" legal da ordem jurídica, ou seja, converter o indivíduo infrator em cidadão, promovendo sua conversão jurídica.
Aqui surge o seguinte problema: se o indivíduo é o árbitro daquilo que é melhor para si, talvez os ganhos do crime (o acesso aos prazeres e bens de consumo, os sentimentos de poderio e coragem, o reconhecimento e o respeito por parte de sua comunidade de referência) possam ser avaliados como superiores às possíveis vantagens obtidas com a integração na legalidade. A lógica da punição consistiria em demonstrar que tais ganhos são inferiores às drásticas consequências do comportamento criminoso. Nesse caso, todavia, a punição prevaleceria sobre a educação. Pode-se compreender, então, como a opinião de que o adolescente já goza de autonomia antes mesmo do processo socioeducativo, opinião aparentemente favorável ao adolescente, acaba por restringir esse processo ao enquadramento jurídico do infrator sem enfrentar o imenso desafio de formá-lo em sua cidadania. Além disso, o enquadramento jurídico pode até mesmo convergir com a lógica punitiva.
A enormidade do desafio prático, com suas implicações políticas e estruturais, não pode servir de álibi para bloquear a discussão sobre o assunto, pois somente pelo discurso argumentado e público a ordem jurídica pode ser aperfeiçoada, mais bem interpretada e concretizada. Mas não haveria também, como já se aludiu antes, algo valioso, na opinião de alguns profissionais, de que o adolescente já goza de alguma autonomia ao participar, mais ou menos, de alguma organização criminosa? A resposta pode ser afirmativa se considerarmos que o contato mais próximo e quotidiano com os adolescentes pode ajudar a neutralizar a imagem midiática de eles serem criminosos inatos, "casos perdidos" e também contribuir para o reconhecimento de sua autonomia potencial, e, portanto, de sua capacidade para participarem da cidadania democrática. As poucas considerações que se seguem não têm outro objetivo senão oferecer alguns subsídios teóricos para uma discussão que envolve técnicos e outros profissionais de diversa formação.
Digressões Teóricas
A noção de autonomia tem larga história. Na tradição clássica, greco-romana, estabeleceu-se, sobretudo em seu dignificado político, como "o direito de se determinar independentemente de outro poder", seja no plano interno, em contraposição à tirania, seja em plano externo, em contraposição à dominação estrangeira (Nour, 2009, p. 76). A noção se associa, portanto, à liberdade em sua acepção positiva, isto é, não como arbítrio do indivíduo, mas como direito de participar da comunidade política cuja característica fundamental é o poder de criar as suas próprias leis, evitando não somente as interferências externas, mas o arbítrio de um tirano ou a anarquia dos interesses individuais.
Nessa perspectiva, a autonomia está vinculada à ordem legal, dentro da qual a liberdade poderá ser positivamente concebida e, portanto, juridicamente circunscrita. Os significados político e jurídico não poderão ser separados, o que suscita um problema ético essencial: qual a legitimidade da objeção à lei do Estado quando feita em nome da consciência moral? Esse foi o problema dramaticamente encenado por Sófocles quando Antígona, guiada por seu dever religioso para com o seu irmão, desafiou a proibição de Creonte, seu tio e representante do Estado. Onde residirá a autonomia, isto é, a norma (nómos) imposta a si mesmo (autós)? Nas leis não escritas, próprias à consciência moral de Antígona, ou na obediência às leis escritas, próprias à ordenação política e jurídica do Estado?
Esse problema, sumamente complexo e que até hoje suscita intensas discussões, não pode ser simplificado em posições excludentes, como se, de um lado, estivesse a ética e, de outro, o Direito. Ao contrário, as soluções unilaterais reproduzem o impasse, pois ferem quer o direito da consciência subjetiva, quer a consciência do direito objetivo, por isso essa tensão jamais inteiramente dissolvida constitui, como observa Paul Ricoeur, a dimensão trágica da ação (Nussbaum, 2009; Ricoeur, 1990).
O problema da autonomia envolve um conflito ético, extensa e profundamente tratado nas filosofias de Platão e de Aristóteles. Deixando de lado as diferenças entre os dois filósofos e os diversos aspectos e ricos matizes de suas propostas, podemos resumir sua matriz conceptual comum da seguinte forma:
Ela (a matriz conceptual) é representada pela ideia de lei (nómos), que deve permitir o estabelecimento de uma proporção ou correspondência (analogia) entre a lei ou medida (métron) interior que rege a práxis do indivíduo, e a lei da cidade que é propriamente nómos, e deve assegurar a participação equitativa (eunomia) dos indivíduos no bem que é comum a todos e que é, primeiramente, o próprio viver-em-comum (Vaz, 1988, p. 135).
O conflito ético seria, então, resolvido pela correspondência entre a lei, em seu significado político e jurídico, e a virtude, ou medida interior (areté) que rege o comportamento dos indivíduos. Essa correspondência, porém, pressupõe uma instância racional presente tanto nos indivíduos quanto na sociedade. Sem essa pressuposição, o conflito ético degenera em anarquia, com o predomínio do arbítrio individual, ou em tirania, com o triunfo do arbítrio do Estado. O arbítrio mostra como a anarquia e a tirania seriam as duas faces de uma mesma moeda.
De onde proviria, ou antes, qual seria o fundamento da racionalidade capaz de equacionar o conflito ético? Na tradição clássica, a razão seria inerente à realidade como um todo. Essa seria a concepção da razão cósmica, mas, com o advento da civilização cristã, a razão humana manifestaria a inteligibilidade de um mundo criado por Deus, e essa seria a versão teológica da razão cósmica. Daí decorreria, na cristandade medieval, a desconfiança em relação à liberdade de crença, porque ela poderia facilmente redundar num relativismo corrosivo dos fundamentos da ordenação social. No entanto, com as guerras civis de religião, nos séculos XVI e XVII, e o enfraquecimento institucional da cristandade, a liberdade de crença passou a ser vista como um valor essencial a ser ciosamente preservado e não como uma ameaça à paz social. Aqui já estão plantadas as sementes dos direitos humanos que vão se tornar uma das conquistas mais admiráveis da Modernidade (Kaufmann, 2013; Nour, 2009).
Apesar do extraordinário êxito jurídico e ideológico dos direitos humanos, permanece o risco da degenerescência do conflito ético. Após o declínio das concepções cósmica e teológica da razão, a consciência moral poderia se perder no confronto arbitrário das liberdades individuais, de modo a fazer do temor da conflagração generalizada das convicções um convite ao despotismo. Como evitar, então, que o caos dê ensejo à saída draconiana das ditaduras e totalitarismos? A pergunta, infelizmente, não é abstrata ou meramente retórica, pois a história contemporânea registrou, ao lado dos progressos democráticos, os terríveis rastros de violência produzidos pelo medo e insegurança das massas (Drawin, 2016; Drawin 2019).
Ora, no alvorecer de nossa época, ainda sobre as grandes esperanças suscitadas pelo esclarecimento, o filósofo alemão Immanuel Kant diagnostica, com extraordinária clareza, o perigo a se desenhar no novo horizonte da civilização moderna e, ao fazê-lo, repropõe, em termos verdadeiramente inovadores, os velhos dilemas inerentes aos conflitos morais: como conciliar a liberdade dos indivíduos com a ordem social sem a qual a liberdade vai se voltar contra si mesma? A resposta proposta pelo filósofo resulta da longa controvérsia secular acerca da inter-relação entre religião e moralidade.
Os indivíduos, empiricamente condicionados por suas paixões e necessidades, somente teriam por guia a evitação da dor e a busca do prazer, e assim orientados, estariam todos lançados numa guerra generalizada se não fosse a imposição da estabilidade necessária à vida pelo contrato garantido pela ação soberana do Estado. Não há um bem em si e externo ao travamento jurídico da sociedade capaz de impedir que a vida humana se torne "solitária, miserável, sórdida, brutal e curta" (Drawin & Moreira, 2021, p. 22; Hobbes, 2008, p. 109). Ou, ao contrário, poder-se-ia contrapor, os indivíduos poderiam se autogovernar, mesmo contrariando suas inclinações, porque trariam, em sua alma, a marca da bondade divina? Se assim for, então a moralidade não poderia prescindir da religião e, sobretudo, da noção bíblica da criação do ser humano por Deus.
A alternativa religiosa seria pouco viável numa sociedade cada vez mais secularizada e consciente da pluralidade das crenças; por outro lado, a saída contratualista poderia recair no já mencionado impasse do arbítrio sob o risco da polarização entre a anarquia e a tirania. A solução kantiana, concebida de modo a reconstruir a fundamentação da ética e, assim, assegurar sua universalidade, para além das particularidades dos costumes, valores e ordenações jurídicas, consistiria em demonstrar a existência de uma norma racional (nómos) na consciência moral de cada indivíduo (autós) e que, por isso mesmo, não seria obedecida por motivos extrínsecos, mas autoimposta por seu poder intrínseco de persuasão. A doutrina kantiana da autonomia foi apresentada por um comentador da seguinte forma:
A moralidade se centra em uma lei que os seres humanos impõem a si próprios, necessariamente se proporcionando, ao fazê-lo, um motivo para obedecer. Os agentes que são desse modo moralmente autogovernados Kant chama de autônomos. Extraiu esse termo do pensamento político dos séculos XVII e XVIII. Em que ele foi usado em discussões da ideia dos estados como entidades autogovernadas (Schneewind, 2001, p. 527).
A proposta kantiana nada tem de ingênua. Não se trata, como é óbvio, de postular, contra todas as evidências comportamentais, que os seres humanos sejam sujeitos naturalmente morais. Ao contrário, os sujeitos não agem espontaneamente de modo moral, mas seguem suas inclinações passionais. Eles, contudo, podem chegar, por seu próprio discernimento, a um critério para julgar o caráter moral ou não de suas escolhas e das situações em que se encontram. Esse critério ou princípio de autonomia, denominado como imperativo categórico, foi apresentado em duas fórmulas exemplares. A primeira estipula: "Age apenas segundo a máxima pela qual possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal" (Kant, 2010, p. 215).
A ação moral estabelece um vínculo entre o indivíduo e o interesse universal, e seu significado torna-se mais claro e concreto na segunda formulação: "Age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca como mero meio" (Kant, 2010, p. 243).
A condição de possibilidade do princípio de autonomia é a liberdade da vontade, ou seja, que ela possa ser movida, em princípio, por razões puras e não somente por objetos empíricos, como ocorre na causalidade natural. Poder-se-ia dizer que liberdade e racionalidade não se excluem, pois são as duas faces da mesma moeda, ou seja, da ação autenticamente moral oriunda da "vontade purificada da influência de qualquer princípio ou objeto heterônomo" (Caygill, 2000, p. 43). Essa purificação da vontade foi duramente criticada por diversos filósofos posteriores, como Hegel, Marx, Nietzsche e muitos outros. No entanto, Kant reconhece que é próprio do humano o pertencimento a dois mundos, pois sendo, por um lado, um ser racional (Vernunftswesen), tendo uma dimensão transcendental, é também, por outro, um ser natural (Naturwesen), mergulhado nas tramas da sensibilidade (Eisler, 1994).
Kant foi, por conseguinte, um filósofo essencial para a abertura do imenso desafio de pensar as contradições à ação, seja por rejeitar a visão otimista do progresso, como se avançasse ao lado do desenvolvimento material, seja por recusar a visão de um pessimismo paralisante, como se estivéssemos inexoravelmente aprisionados nas perversões de nossa vontade.
Considerações Finais e Implicações Práticas
Pensar as condições de possibilidade da ação pode parecer uma tarefa meramente especulativa, algo de interesse estritamente filosófico. Assim seria se o pensamento fosse um puro jogo de ideias, uma abstração seca e afastada da vida, quando, na verdade, as contradições da vida compõem o solo de onde o pensamento retira a seiva de sua fecundidade. A teoria e a prática se exigem na tensão dialética de sua reciprocidade. O que podemos, então, depreender da breve digressão teórica feita?
Em primeiro lugar, não custa reafirmar que uma decisão feita em nome de interesses exclusivamente particulares, utilizando a si mesmo e aos outros como meios para atingir algum objetivo, como a satisfação e o prestígio de um indivíduo ou grupo, não pode ser caracterizada como verdadeiramente autônoma, mas apenas como expressão do arbítrio e, portanto, de uma forma distorcida de liberdade. Esta, concebida como autonomia, como Kant propõe, ao tomar a humanidade como um fim e jamais como meio, e ao ser intencionalmente universal, aponta para o bem comum e não se confunde com uma atividade meramente instrumental na qual os meios são priorizados na busca de se obterem proveitos particulares. Por isso a ética está intimamente vinculada à política em seu sentido estrito, isto é, entendida como a busca conjunta de um bem comum.
Ora, a ação de um adolescente infrator, ainda que ele seja capaz de encarnar valores como a lealdade a um grupo e a grande coragem pessoal, não pode ser considerada como expressão de autonomia. Não o é nem efetiva, nem intencionalmente, porque não traz a marca da universalidade que caracteriza a ética, a razão prática e, por conseguinte, é infrapolítica, porque, apesar da retórica da revolta, não visa nem se compromete com o bem comum. Portanto supor que o adolescente infrator possa ser considerado como já sendo dotado de autonomia, em decorrência das tarefas que é obrigado a realizar em seu envolvimento com o crime organizado, pode levar à incompreensão do sentido político e pedagógico tanto das medidas socioeducativas quanto do ECA.
Em segundo lugar, cumpre também ressaltar, conforme já foi antes indicado, que a autonomia, sendo uma potencialidade do sujeito humano, é, desde sempre, atravessada por contradições e deve enfrentar continuamente obstáculos para sua efetivação como inclinações sensíveis e interesses particulares. Cabe considerar sobretudo o que diz respeito a todos nós e não apenas aos adolescentes, o quão frágil é nossa natureza a tornar a vontade impotente em escolher o bem (das Gute) para dele fazer sua máxima, e assim o tomar como a regra que deve orientá-la. Essa perversão da vontade (a de reconhecer o bem e, apesar disso, não ser capaz ou não se esforçar em realizá-lo) testemunha não apenas nossas limitações estruturais, mas também nossas possibilidades históricas, porque, embora não fazendo o que deveríamos fazer, podemos visualizar o dever no pensamento e conceber uma alternativa ao que de fato fazemos (Caygill, 2000; Höffe, 1986).
A argumentação kantiana mostra que, embora não haja como demonstrar a esperança, nem por isso ela é um sentimento vago e inteiramente carente de razões; aliás, sem esperança, a razão perderia de si mesma e reduzir-se-ia a uma racionalidade ressequida e apequenada (Muguerza, 1977). Dentro de certos limites, podemos apostar em alguns progressos sociais e jurídicos, e nisso se funda nosso compromisso político e pedagógico. Nessa perspectiva, se o adolescente infrator não é um sujeito autônomo, também não é um sujeito incapaz de alcançar certo grau de autonomia, pois esta não é um estado dado e definitivo, mas um movimento sempre incompleto a ser concretizado no exercício das ações morais.
A autonomia somente pode ser construída em condições políticas e pedagógicas propícias e, por isso, as medidas socioeducativas, como indica sua própria designação, não podem priorizar o controle, a punição e a segurança. E aí reside um formidável desafio: o adolescente apenas ingressa no sistema socioeducativo após ter cometido o ato infracional, o qual, por ser considerado ameaçador da ordem social, estigmatiza-o como incapaz de se integrar à cidadania e, por conseguinte, o objetivo político e pedagógico, inerente às medidas socioeducativas, pode se converter numa interdição institucional à sua própria efetivação. O enfrentamento desse desafio somente pode provir da prática dos profissionais por ele envolvidos e das reflexões por eles partilhadas. Apenas a experiência proveniente do trabalho e da convivência quotidianas com os adolescentes permite construir a articulação entre a ideia de autonomia, tal como foi anteriormente caracterizada, e a história pessoal de cada um deles, com as peculiaridades de suas personalidades e condições socioeconômicas e culturais. Afinal, a consciência dos atos infracionais por eles cometidos não deve ter prioridade em relação ao respeito pela subjetividade inviolável do adolescente, conforme o imperativo moral, segundo o qual todo ser humano deve ser tratado sempre como um fim e jamais como um meio.
Assim, para além da complexidade do conceito de autonomia, podemos pensar em marcadores para a construção cotidiana da autonomia com os adolescentes nas medidas socioeducativas de internação, como:
1) o respeito à singularidade da história de cada um;
2) a consciência da processualidade: a construção da autonomia é um movimento subjetivo e coletivo que se movimenta no tempo;
3) a individualidade: não existe uma única possibilidade de agir autônomo, é preciso estar atento às idealizações genéricas;
4) a exigência de princípios democráticos, porque uma escolha autônoma depende da oferta de possibilidades reais de equidade;
5) o respeito pela pessoa humana que, no caso do socioeducativo, pode ser traduzido na importância da compreensão de que o sujeito adolescente tem prioridade em relação a seu ato infracional;
6) a autoapropriação, ou seja, pensar a autonomia no interior do processo de construção de um discurso sobre si;
7) o enfrentamento da angústia constitutiva da autonomia em contraposição à pseudodesresponsabilização da heteronomia;
8) a importância do outro adulto no processo do adolescente, de construção de sua posição autônoma no interior das leis sociais.
Parece-nos fundamental defender a ideia de que a promoção e a construção da autonomia consistem num valor essencial para que os jovens possam participar ativamente da sociedade e assumir gradualmente o controle de suas próprias vidas, sem que isso implique em renunciar à proteção e o cuidado que lhes cabem. A autonomia envolve a capacidade de tomar decisões de forma consciente e responsável, e é construída por meio de experiências que permitam ao adolescente reconhecer suas potencialidades, limites e responsabilidades. Na privação de liberdade, o desafio é ainda maior, pois esses espaços são marcados por uma rotina rígida e por relações de poder que dificultam o exercício da autonomia. No entanto, proporcionar oportunidades de reflexão crítica e de participação nas decisões sobre suas próprias vidas pode transformar o ambiente. Programas educacionais, atividades culturais, esportivas e laborativas são ferramentas que auxiliam no processo de autonomia, pois permitem que o adolescente desenvolva habilidades práticas e socioemocionais, assim como a capacidade de tomar decisões com maior responsabilidade e consciência de seu papel na sociedade.
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Endereço para correspondência
Jacqueline de Oliveira Moreira - jacqdrawin@gmail.com
Recebido em: 29/02/2024
Aceito em: 19/09/2024
Financiamento: A pesquisa é financiada pela bolsa produtividade CNPQ.
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