Estudos e Pesquisas em Psicologia
2025, Vol. 25. e82396, doi:10.12957/epp.2025.82396
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE
Ensaio Sobre Totalitarismo e Linguagem - Aproximações Psicanalíticas
Essay on Totalitarianism and Language - Psychoanalytic Approaches
Ensayo sobre Totalitarismo y Lenguaje - Enfoques Psicoanalíticos
Walter Firmo de Oliveira-Cruz a, Sandra Djambolakdjian Torossian a
a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
O presente trabalho, realizado no formato de ensaio psicanalítico, busca estabelecer aproximações entre o discurso articulado pela extrema direita, especialmente no que concerne a seus aspectos totalitários, instrumentais e purificadores, e a construção de narrativas pautadas na redução da linguagem a uma condição bidimensional, plana, pervertida e reduzida à sua função de informação. Foi investigado o discurso extremado através de suas manifestações como ódio, xenofobia, racismo, machismo, exclusão e violência em suas diversas nuances, demostrando os impasses criados para a produção de questionamentos, ruptura de certezas e possibilidade de pensamento a partir da pluralidade de pontos de vista. Concluiu-se que no mundo que seria organizado por códigos binários como uma estrutura regida pelas combinações informáticas de 0 - 1, sem possibilidade para contradições, metáforas, equívocos ou aberturas, há uma negação daquilo que conhecemos como sendo da ordem do inconsciente. Um espaço pretensamente sem furos ou restos. Neste sentido, percebemos então uma aproximação particular entre essa linguagem, que opera como blocos de sentidos, os discursos da crescente onda de extrema direita e uma perversidade social presente no contexto ávido por performances e resultados.
Palavras-chave: extrema direita, psicanálise, linguagem, sujeito contemporâneo.
ABSTRACT
The present work, carried out in the format of a psychoanalytic essay, seeks to establish similarities between the discourse articulated by the extreme right, especially regarding its totalitarian, instrumental and purifying aspects, and the construction of narratives based on the reduction of language to a two-dimensional condition, flat, perverted and reduced to its information function. Extreme discourse was investigated through its manifestations such as hatred, xenophobia, racism, machismo, exclusion and violence in its various nuances, demonstrating the impasses created to produce questions, rupture of certainties and the possibility of thought from the plurality of points of view. It was concluded that in a world organized by binary codes as a structure governed by computer combinations of 0 - 1, with no possibility for contradictions, metaphors, mistakes or openings, there is a denial of what we know as being of the unconscious order. A space supposedly without holes or debris. In this sense, we then perceive a particular rapprochement between this language, which operates as blocks of meaning, the discourses of the growing extreme right wave and a social perversity present in a context eager for performances and results.
Keywords: extreme right, psychoanalysis, language, contemporary subject.
RESUMEN
El presente trabajo, realizado en formato de ensayo psicoanalítico, busca establecer similitudes entre el discurso articulado por la extrema derecha, especialmente en lo que respecta a sus aspectos totalitarios, instrumentales y depurativos, y la construcción de narrativas basadas en la reducción del lenguaje a una condición bidimensional, plana, pervertida y reducida a su función informativa. Se investigó el discurso extremo a través de sus manifestaciones como el odio, la xenofobia, el racismo, el machismo, la exclusión y la violencia en sus diversos matices, demostrando los impasses creados para la producción de preguntas, la ruptura de certezas y la posibilidad de pensar desde la pluralidad de puntos de vista. Se concluyó que en el mundo que estaría organizado por códigos binarios como una estructura regida por combinaciones informáticas de 0 - 1, sin posibilidad de contradicciones, metáforas, errores o aperturas, existe una negación de lo que conocemos como ser del orden inconsciente. Un espacio supuestamente sin agujeros ni escombros. En este sentido, percibimos entonces un particular acercamiento entre este lenguaje, que opera como bloques de significado, los discursos de la creciente ola de extrema derecha y una perversidad social presente en un contexto ávido de actuaciones y resultados.
Palabras clave: derecha extrema, psicoanálisis, idioma, sujeto contemporáneo.
O termo "crise" frequentemente é empregado no debate público sem muita precisão, nomeando, na maioria das vezes, instabilidades políticas, econômicas, sociais ou morais. Especificamente no contexto político brasileiro, as crises costumam atingir especialmente as entranhas dos poderes do Estado, vistos com desconfiança por parte da população. Tal percepção costuma refletir o entendimento de que ao invés de haver nas instituições a defesa dos interesses públicos, muitas vezes se impõem causas particulares, a corrupção ou a leniência com esta. Coube historicamente às correntes políticas chamadas progressistas, situadas à esquerda, a ideia de uma postura de maior proximidade com as demandas do povo e, consequentemente, uma vigilância a este respeito. Este entendimento havia sido transformado nos últimos anos no país, especialmente por meio dos ataques dirigidos ao governo da presidenta Dilma Rousseff, cujo segundo mandato foi iniciado em 2014 e interrompido através de um golpe executado por parte do Congresso Nacional em 2016, após a acusação de crime de improbidade administrativa. A cena forjada a partir desse evento já anunciava o que poderia vir a seguir: o terreno estava sendo preparado para a tomada do poder. Vimos neste caso, uma vez mais, que a crise não é meramente acidental ou contingencial, mas um método empregado para desestabilizar e agir sobre suas consequências.
Diferentemente daquele realizado em 1964 - civil, militar e empresarial e que queria evitar o alinhamento do país com a esquerda mundial - o golpe de 2014 pretendia a tomada de poder em defesa de suposta moralização, alcançada pela implementação de uma agenda de interferência e regulamentação dos costumes. Assim, "Deus, pátria e família", lema resgatado da Ação Integralista da década de 30 do século passado, colocava em causa não apenas o combate à corrupção, mas também uma retomada de valores conservadores. Segundo escreveu Schilling (2015, s/p) na época, a ideia de "fortalecer um congresso conservador e reacionário, seria suficiente para que a agenda da direita - contra direitos, estivesse presente". Assim, temas como maioridade penal, estatuto da família, armamento da população, escola sem partido, políticas de gênero, aborto, entre tantos outros, assumiram o centro do debate eleitoral, desviando o foco das questões sociais, econômicas e da intensificação de políticas neoliberais.
Após esse período, o que se viu foi a consolidação de um contexto que em pouco tempo levou à presidência um projeto bastante diverso daquele que havia vencido as quatro últimas eleições majoritárias no país. Tomou conta do poder um discurso claramente conservador, com fortes características fascistas e que veio a se mostrar antidemocrático e negacionista. Defendendo a ditadura ("o erro foi torturar e não matar"), a violência policial, o sexismo e a violência contra a mulher, a discriminação religiosa, a homofobia, a devastação ambiental, o racismo, e a xenofobia, entre tantas outros impropérios, Jair Bolsonaro venceu as eleições de 2018 com quase 10 milhões de votos de vantagem em relação a seu opositor no segundo turno, o candidato Fernando Haddad.
Através do discurso que se autointitulava como "antipolítico", foi defendida a retomada de valores conservadores com uma base apoiadora formada em grande parte por aquilo que ficou conhecido como "bancada bbb" (bala, boi e bíblia), fazendo referência aos que, de alguma forma, lucram com a violência, o agronegócio e a religião. Esta base política, como escreveu Endo (2015, s/p), se tratava de "grupos que atentam contra a mesma democracia que os colocou no poder, para, por via de dispositivos democráticos, se preservar indefinidamente no poder". Assim, foi necessário atravessar o trágico período da pandemia de COVID-19 sob um governo negacionista, tendo como consequência direta mais de 700 mil mortes associadas à doença. Um período obscuro da história do país.
Passados, então, quatro anos, em 2022 a maioria da população do país voltou a escolher um projeto comprometido com uma agenda democrática em seu sentido amplo, recolocando Lula na presidência após 12 anos de sua saída do cargo e um período de 580 dias na prisão. No entanto, é preciso destacar, a vitória ocorreu em segundo turno, com uma vantagem inferior a 2% dos votos, revelando um país claramente cindido. Apesar do obscurantismo e das enormes perdas que assolaram o povo brasileiro, mais de 58 milhões de eleitores seguiam apoiando o ex-presidente Bolsonaro no final de 2022, mantendo polarizado o debate. A recusa ao resultado das urnas levou à invasão e depredação dos prédios dos Três Poderes da República em janeiro de 2023, evidenciando uma nova tentativa de golpe.
O movimento pendular, alternando sentidos, parece atestar mais uma vez que não se avança em uma única direção sem percalços e retrocessos ou mudanças. O mal-estar na cultura persiste. Algo retorna e insiste no campo social até mesmo quando se apresenta sem a "pele de cordeiro" que costuma falsear proposições mais radicais. A fala que exclui, que violenta, que busca destruir o Outro naquilo que se mostra enquanto diferença, continua a produzir uma estranha adesão até mesmo entre aqueles que são diretamente alvo de seu ataque.
Considerando então o contexto político polarizado, não apenas do país, mas também do cenário mundial, o presente trabalho, por meio do ensaio, busca estabelecer aproximações entre o discurso articulado pela direita radical, incluindo seus aspectos totalitários e seu caráter purificador e instrumental e a construção de narrativas pautadas na redução da linguagem a uma condição bidimensional, plana, pervertida e reduzida à uma função meramente informativa (Costa, 2020).
Com relação à escolha da produção de um ensaio sobre o tema, seguimos o pensamento de Rivera (2017) naquilo que diz respeito ao campo da ética mais do que sobre a questão de estilo assumido na escrita. "No ensaio se põe em questão autor e mundo, a um só tempo e de modo fiel à dimensão da experiência de todo pensamento" (2017, p. 12). Esta compreensão tem estreita proximidade com a psicanálise na medida em que se coloca como abertura ao pensamento crítico, sem a pretensão de uma dominação do eu. Assim, antes de estar numa certa posição externa à escrita, entendemos que o sujeito está incluído, borrando a linha que separaria o relato objetivo dos fatos e a ficção. Costa (1998) propõe que "Em toda e qualquer enunciação o sujeito é, ao mesmo tempo, aquele que conta e aquilo que é contado" (1998, p. 90). Ainda que não possa se reconhecer na construção de um argumento, o Sujeito sempre está implicado. Segundo Hartmann (2023), "a ausência do ato enunciativo nos lança em um não lugar, restando somente os enunciados sem uma demarcação possível de serialidade, temporalidade" (2023, p. 150).
O sujeito, diante de um contexto que muitas vezes se apresenta sombrio, busca pontos de luz que façam furo na superfície densa e opaca do presente. Didi-Huberman (2011, p. 61), traz a ideia de que o "princípio esperança" é a possibilidade de formar um clarão, um ponto de luz que permita lançar bases para o futuro:
Se a imaginação - esse mecanismo produtor de imagens para o pensamento - nos mostra o modo pelo qual o Outrora encontra, aí, o nosso Agora para se liberarem constelações ricas de futuro, então podemos compreender a que ponto esse encontro dos tempos é decisivo, essa colisão de um presente ativo com seu passado reminiscente.
A ideia de ensaio traz, assim, a possibilidade de fazer fluir o texto, tal qual o próprio processo psicanalítico, deixando-se percorrer através do fio que liga os pontos e os tensionamentos, mantendo, ao mesmo tempo, possibilidades de abertura. Adorno (2003, p. 18), ao referir-se ao ensaio como método, escreveu que:
Os critérios desse procedimento são a compatibilidade com o texto e a própria interpretação, e também a sua capacidade de dar voz ao conjunto de elementos do objeto. Com esses critérios, o ensaio se aproxima de uma autonomia estética que pode ser facilmente acusada de ter sido apenas tomada de empréstimo à arte, embora o ensaio se diferencie da arte tanto por seu meio específico, os conceitos, quanto por sua pretensão à verdade desprovida de aparência estética.
Assim, a possibilidade de trabalho que não dicotomiza sujeito/objeto, implicando aquele que escreve de forma a se reconhecer como sujeito da enunciação desde o recorte do tema até suas conclusões, atende à necessidade que o tema impõe. A enunciação é a forma que se tem de apropriação do passado e do futuro, instaurando o presente, o aqui e agora. No ensaio "o pensamento se desembaraça da ideia tradicional de verdade" (Adorno, 2003, p. 27). Finalizando esta parte, buscamos em Rivera (2017, p. 16) uma amarração entre a psicanálise e o ensaio da seguinte forma:
Sobre esta base, podemos dizer que a reflexão psicanalítica tende ao ensaio, na medida em que tenta, com frequência, buscar em outros campos o que lhe seria próprio - e assim não cessa de repetidamente descentrar-se, experimentando a cada vez a vertigem da sua origem alheia.
Projetos de Poder
Sistemas de governo com práticas totalitárias após desestabilizar, conquistam o poder, quando não por golpe de Estado, pela promessa de solucionar problemas sociais, políticos, morais ou econômicos. A organização destes projetos inicia com a delimitação (ou mesmo produção) daquilo que seria o mal a ser combatido - é preciso dar nome ao suposto problema - criando a ideia da existência de um inimigo para buscar apoio popular e implementar as medidas consideradas necessárias para combatê-lo. Neste sentido, os contextos sociais de fragilidade (baixa escolaridade, opressão, pobreza ou decadência, por exemplo), são terrenos propícios para que os discursos que se apresentam como salvadores conquistem as bases necessárias para se estabelecerem. O surgimento de um mestre, de um guia, de uma figura que defenda e encarne o salvador que olha para seu frágil rebanho, acaba sendo um elemento importante na construção desse cenário. Recentemente foi visto isto sendo criado mais uma vez, agora no país vizinho através da figura controversa de Javier Milei. Assistimos à criação de uma guerra onde o Outro é caracterizado como inimigo e precisa ser combatido. Chemama e Hoffmann (2020), sintetizaram da seguinte forma: "De certa maneira, uma guerra é sempre conduzida em nome de uma pátria, a terra do Pai, de uma traição, de um ancestral" (2020, p. 126).
Ao longo da história os movimentos que levaram ao poder discursos e práticas totalitárias ocorreram inúmeras vezes, sendo instalados com maior ou menor grau de legitimidade, violência ou crueldade. Levando em consideração apenas o que se passou em alguns países do continente europeu, testemunhou-se no século XX o surgimento do fascismo na Itália, do nazismo na Alemanha, do salazarismo em Portugal e do franquismo na Espanha. Embora estes tenham se caracterizado como regimes totalitários associados aos ideais da extrema direita (nacionalismo radical, discriminação e extermínio dos diferentes), é preciso também incluir o período stalinista da antiga União Soviética como um regime totalitário de extrema esquerda (no que tange à busca pela abolição das classes sociais), perseguindo e executando opositores e exigindo sacrifícios cada vez maiores em nome do Estado. Para além do holocausto judeu durante a Segunda Guerra Mundial, houve o holodomor (massacre de ucranianos pelo governo stalinista) e o genocídio armênio perpetrado pelo Império Turco-Otomano. Todos realizados em períodos próximos e que resultaram na morte de milhões de pessoas.
É preciso fazer uma observação que diz respeito a uma espécie de hierarquia vigente que atribui diferentes valores a diferentes vidas, conforme, por exemplo, a etnia ou região em que ocorrem. Antes do projeto nazista ser implementado na Segunda Guerra, a Alemanha já havia produzido aquele que ficou conhecido como o primeiro genocídio do século XX: cerca de 80% das populações Nama e Herero, na Namíbia, foram mortas com a utilização de práticas de campo de concentração. Os massacres realizados no período colonial, em que o continente africano foi dividido entre as potencias europeias, atingiu milhões de pessoas. Matar, deixar morrer ou querer transformar um grupo específico através de programas sistemáticos sustentados por discursos que justificam a destruição na forma de projeto, caracteriza o genocídio.
Entre tantas guerras e massacres, acompanhamos o horror que se instalou na região da Faixa de Gaza, no Oriente Médio. Regimes totalitários associados a projetos de extermínio, de eliminação daquilo que é construído como algo que limita, algo da ordem do diferente. "Todo sistema totalitário desumaniza uma vítima de forma mais ou menos contingente", escreveu Calligaris (2022, p. 67).
Temos que o nazismo (Nationalsozialismus) foi aquele que se tornou mais emblemático mundialmente por diversas razões. Não apenas pelo território em que ocorreu e por sua crueldade genocida, mas também pelo julgamento de seus líderes e pela propagação do testemunho e registro daqueles que dele sobreviveram. A derrota do III Reich possibilitou que suas entranhas fossem conhecidas, diferente de outros regimes que conseguiram esconder e apagar seus rastros.
No documentário O Triunfo da Vontade, da diretora Leni Riefenstahl (1935), é possível acompanhar parte do que ocorreu no 6° Congresso do Partido Nazista, em 1934, na cidade de Nuremberg, a partir do olhar construído pelo próprio Reich. Em cada detalhe do filme (não somente naquilo que retrata e através dos discursos de seus líderes, mas também na técnica utilizada pela diretora), é possível depreender os ideais que estão ali lançados: a ordem, o sentido de união (nacionalismo) gerado por aquilo que seria a opressão do inimigo externo, a força, a monumentalidade e a estética empregada. Além de uma simbologia pensada em detalhes, as cenas e falas buscam mostrar uma nação ferida, mas orgulhosa. Movimentos de massa, olhares, ritmos, a ideia transmitida é de que tudo se encontra em harmonia criando uma espécie de grande corpo. Nos registros feitos pela diretora, percebe-se que não há imagens com desvios, vacilos, erro ou desordem. É apresentada uma forma de organização que não produz restos.
Esse gestual, que copia o funcionamento de uma máquina, foi incorporado por muitos regimes na medida em que coloca o sujeito na posição de instrumento. Homens-máquinas desempenham a função de peças de um sistema que representa mais do que a soma de suas individualidades: a subtração da singularidade exalta a grandiosidade da união. Em Estados totalitários a diferença é vista como dissidência ou conspiração, na medida em que compete com a existência da massa homogênea. É preciso que haja uma entrega, que cada sujeito assuma uma posição instrumental. Difícil não lembrar das cenas de Modern Times em que os operários da fábrica se confundem com as ferramentas que manipulam. Ali, o personagem de Chaplin não deixa de ser aquele que, como resto, denuncia essa subtração subjetiva a que o sujeito é colocado enquanto massa, a partir da industrialização.
Certeza, Dúvida e a Falta como Posição Ética
A clínica psicanalítica possibilita a escuta daquilo que muitas vezes se aproxima desse ideal de "exatidão máquina", em que a diferença ou a falha são negadas. É semelhante àquilo que se coloca muitas vezes nas queixas neuróticas, especialmente no dialeto produzido pelo obsessivo. Sabemos que, se por um lado o obsessivo se caracteriza pela busca de uma certeza, o que se constitui como seu principal sintoma é a dúvida, o medo da impotência, da falha e a insegurança. O discurso fechado, assertivo e a imposição de ideias o protege daquilo que o assombra.
No entanto, esse efeito, que nomeamos como sintomático, não se apresenta no discurso totalitário da extrema direita. Ali, a dúvida encontra-se suprimida. Neste campo discursivo ocorre uma espécie de realização imaginária da onipotência: flerta com a possibilidade de um tamponamento imaginário daquilo que se inscreve como falta. O discurso extremado, fascista por vezes, que tem resposta para tudo e não se confronta com a dúvida ou a falta, ocupa o lugar de ideal imaginário. Por esta razão acaba sendo tão apelativo: há uma certeza inabalável. "Imbrochável", para utilizar a curiosa expressão do ex-presidente. Assim, aquilo que é visto em um primeiro momento como seguro, assertivo, sem furos ou falhas, ao mesmo tempo encobre a fragilidade daquele que se põe a proteger uma posição que, sabemos, resta sempre impossível. Afinal, não é senão pelo efeito da castração que se sustenta o laço social.
A condição de um corpo/massa despersonalizado, que elege um elemento externo - líder, circunstância ou norma a quem se ofereça - permite assumir uma posição instrumental. O Outro, potente e confiável, a quem se encontra alienado, é aquele que "sabe", que decide e ordena. Neste sentido, remete à figura do pai imaginário, ideal, onipotente, que escaparia à castração.
Em seu trabalho sobre a perversão social, Calligaris (2022) apresentou a hipótese de que esta, diferentemente das chamadas perversões sexuais, se caracteriza justamente pela falta de engajamento subjetivo. Isto é, na perversão social o que se encontra é um sujeito apático, dessexualizado na medida em que não lida com o limite imposto ao gozo. Não no sentido da construção de uma montagem capaz de colocar o recalque em suspensão, mas da própria suspensão do gozo. Precisa Calligaris (2022, p. 48):
A matança não parece ter sido consequência de uma espécie de "libertação" de alguma selvageria primitiva e que tomava a sua forra contra um mandamento social fundamental - por exemplo, não matarás. Pelo contrário, ela parece ter sido possível justo por se excluírem da atividade, dentro do possível, aqueles que pudessem tirar vantagens da execução ou encontrar meios de gozar com ela.
Afinal, podemos perguntar, o que marca a diferença entre se estar em uma posição engajada, lutando para transformar o mundo que se vive e quando se está alienado num sistema em que o sujeito se submete àquele que vem a ocupar uma posição de comando? Sabemos que algum grau de alienação é a própria condição do sujeito na sua relação com o Outro, mas há aí uma questão ética, na medida em que permite situar distintamente a posição do sujeito diante da diferença. Não se trata de entrar no campo deontológico, dos deveres e da moral, mas de manter a estrutura da falta, do desejo em sua singularidade.
Outro elemento que se articula com este ponto diz respeito a proximidade que pode ser identificada entre práticas autoritárias e uma masculinidade expressa de forma viril. A imagem do líder como pai protetor, potente, que vem para salvar a sociedade da degradação e expurgar aqueles que ameaçariam corrompê-la, coincide com um ideal de masculinidade que legitima o exercício do poder, valorizado e reconhecido dentro do sistema patriarcal. Na atualidade, através do fortalecimento e propagação dos temas sustentados especialmente pelas pautas feministas, há uma série de ideais historicamente construídos colocados em questão, produzindo assim fendas, fraturas naquilo que amalgamou gênero, orientação sexual, controle e exercício de poder numa performance compreendida hoje como claramente abusiva. A onipotência do discurso da extrema direita, frequentemente misógino e que valoriza a retomada do lugar hierárquico do homem na sociedade, se apresenta como uma tentativa agonizante de saída para a questão.
O Eu Paranoico
Um dos pontos centrais reivindicados pelo discurso da extrema direita, diz respeito à retomada dos "valores da família", atingida em cheio pelo declínio do patriarcado. No entanto, segundo Safatle (2020), mesmo com esse declínio, "A família burguesa acabará por ser preservada, mesmo que sua figura de autoridade traga as marcas de seu enfraquecimento" (2020, p. 46). Exatamente por ser frágil, será ainda mais violenta: o "pequeno grande homem".
Para os saudosistas da chamada "família tradicional", a entrada das mulheres no mercado de trabalho teria deixado o lar desprovido do cuidado e olhar materno, tendo consequências na formação dos novos cidadãos. Assim, as "falhas" da nova estrutura família (segundo o modelo ideal burguês), gerariam uma onda desagregadora, individualista e carente de valores cristãos. Os feminismos, a exemplo de outros movimentos emancipatórios contra hegemônicos, estariam levando a uma degradação da sociedade na medida em que produz fraturas nas identidades estabelecidas ao longo de séculos; deturpando a ordem, o "lugar natural" de cada um. A falta de uma figura potente, respeitada e temida, produziria, entre muitas consequências, uma horizontalização nas relações que poderia levar a uma perda de direção. Na compreensão de Moschen e Costa (2014, p. 223),
A procura por um pai absoluto e despótico ronda o sujeito. O encontro com essa miragem traz o terrível efeito de suspender o pensamento, com todos os desdobramentos que isso pode trazer. A banalidade do mal prolifera no vazio do pensamento, nas condições nas quais os homens se veem dispensados de pensar.
O efeito da quebra das identidades vivida no contexto contemporâneo nos leva à questão sobre a forma como o Eu é construído, uma vez que é a partir de processos de identificação e socialização que se estabelece uma relação, paranoica, com o outro. O Eu torna-se cristalizado justamente através da identidade. Colocá-las em discussão produz aberturas que precisam ser sustentadas. Safatle (2020, p. 35) faz um percurso importante no sentido de compreender, junto com Lacan, o processo de fragilização da construção do Eu e a consequente criação de condições psíquicas para que o fascismo possa emergir: o Eu se constitui como uma instância ao mesmo tempo rígida e violenta:
Lembremos como, para Lacan, há uma rigidez própria ao Eu que o leva a falar de certa "estagnação formal", chegando a compará-lo a figura de atores congelados em um frame de filme ou mesmo a uma "estátua". Isso quer dizer que sua identidade é necessariamente rígida, como uma "fortaleza" acossada, presa a uma imagem que parece estar a todo momento a ponto de ser invadida por outro. Uma fortaleza assombrada por desejos de imunização.
O Eu, fragilizado em sua identidade, carente de referências devido ao "Declínio da Imago Paterna", como há décadas nomeou Lacan (1938/2003), produziria não um efeito de emancipação social, mas sim de duplicação e ampliação de si: "Imagens agora alimentadas por relações de projeção de onipotência e submissão" (Safatle, 2020, p. 39). A fragilidade do Eu implicaria, paradoxalmente, no efeito de onipotência e aniquilamento do Outro.
Binário e Bidimensional
A onda crescente não apenas de políticos, mas de governos alinhados ao pensamento ultradireitista no cenário contemporâneo, faz reacender a preocupação com o fortalecimento de ideias que os aproximam de estados totalitários, quando não de regimes genocidas e golpismos. Ataques à ordem democrática têm sido realizados à luz do dia, tendo o apoio de parte das populações que facilmente se vê convencida pelo discurso de ódio e ataque dirigido ao Outro. Mais do que a razoabilidade das ideias, o que impera é a adesão simplista baseada em efeitos difusos do discurso radical.
Simultaneamente, temos a ampliação e o fortalecimento de ideias e práticas que discutem a organização social, produzem quebra de paradigmas e subvertem dicotomias binárias, tais como homem/mulher, preto/branco, rico/pobre, entre outras. Assim, voltamos à questão: não se estaria buscando nos ideais defendidos hoje pela extrema direita maneiras de sustentação daquilo que se configurou ao longo de séculos como certezas e que hoje se encontra ameaçado pela quebra de identidades rígidas? O recrudescimento do pensamento conservador na atualidade não se constituiria, então, como sintoma agonizante daquilo que por séculos ocupou o lugar de "verdade" e que ameaça sucumbir? Não é no questionamento e enfraquecimento de valores considerados seguros, naturais e cristãos, que explode a violência no tecido social como forma última de fazer valer uma potência ameaçada?
O discurso de ódio, xenófobo, racista, machista, excludente e violento em suas mais diversas nuances, pronunciado abertamente, sem disfarces e amplamente empregado por aqueles que se apresentam como defensores de uma forma de organização social ameaçada, demonstra a dificuldade que se tem em produzir aberturas, questionamentos, romper certezas e pensar a partir da pluralidade de pontos de vista. Sujeitos que no século XXI assumem habitar um planeta "plano", achatado e bidimensional nas diversas concepções que podemos dar a esta expressão. Um mundo que seria organizado por códigos binários como uma grande estrutura regida pelas combinações de 0 - 1, sem contradições, metáforas, equívocos ou fendas, negando exatamente aquilo que conhecemos através da psicanálise como sendo da ordem do inconsciente. O mundo do totalitarismo equivale a um mundo que se pretende sem furos ou restos ou contradições.
Neste sentido, percebemos então uma aproximação particular entre a linguagem totalitária, operando numa lógica binária, agenciada tal qual o trânsito de informações cibernéticas, os discursos da crescente onda de extrema direita e uma perversidade social presente no mundo ávido por performances e resultados. Não à toa, coaches se apresentam prontos para assumir o lugar de mestres.Seriam as "novas palavras do poder", como nomeou o vol. 63 da revista Quaderni, já em 2007? Uma sociedade que opera atrás de resultados e performances, efeito de uma política que coloca em jogo o neoliberalismo? Dardot e Laval (2016, p. 353) definem bem este momento quando dizem que:
O novo sujeito é o homem da competição e do desempenho. O empreendedor de si é um ser feito para "ganhar", ser "bem-sucedido". O esporte de competição, mais ainda que as figuras idealizadas dos dirigentes de empresa, continua a ser o grande teatro social que revela os deuses, os semideuses e os heróis modernos.
Paixão pela Instrumentalidade
No capítulo A Sedução Totalitária, do livro Clínica do Social - ensaios (1991), Calligaris analisou a fala do principal arquiteto do partido nazista alemão, Albert Speer, na ocasião de seu julgamento em Nuremberg por seus crimes de guerra. Segundo Calligaris, Speer construiu um argumento de defesa baseado na ideia de que uma vez que se tivesse construído os meios técnicos para que a guerra fosse realizada, não havia como evitá-la. Seria apenas uma questão de tempo. Calligaris chamou então a atenção para um ponto importante: o que estaria em jogo neste engajamento na técnica, na posição instrumental, seria a possibilidade da saída do sofrimento neurótico, reduzindo sua subjetividade a uma condição de alienação. Algo que nomeou como uma "paixão pela instrumentalidade"(Calligaris, 1991, p. 111).
Sabemos, no entanto, que o processo de alienação produzido pelo nazismo foi muito mais profundo do que meramente uma submissão à técnica disponível naquele momento: trata-se de um projeto que envolveu, entre tantos pontos, a segregação, a criação de castas e o genocídio. Lembramos que em O Futuro de uma Ilusão,Freud escreveu que "enquanto a humanidade faz contínuos avanços no controle da natureza, podendo esperar avanços ainda maiores, não se constata seguramente um progresso igual na regulação dos assuntos humanos" (1927/2014, p. 234). A evolução no campo da razão não assegura a criação de um patrimônio psíquico na humanidade. Deste modo, o que vemos é que o caminho da barbárie à civilização mais elevada é também o caminho de cada sujeito em seus processos psíquicos. Há algo que precisa sempre ser reinventado: a cada geração, mas também em cada sujeito.
Não foi à toa que o arquiteto Speer teve uma ascensão rápida e veio a se tornar um dos líderes nazistas. Convidado por Goebbels (famoso ministro da propaganda) para reformar a sede do partido em Berlim, foi especialmente através da construção da cenografia da Manifestação de 1º de maio de 1933 que Speer conquistou lugar no alto escalão do partido. A tribuna gigantesca que criou diante de três bandeiras com altura de um prédio de seis andares, iluminada por 130 projetores militares além dos feixes luminosos cortando o céu, renderam-lhe o convite para criar a imagem monumental do congresso do partido em Nuremberg. Sabe-se que a estética totalitária tem um papel importante na construção destes regimes. Não apenas através da cenografia hiper-realista de grandes proporções, mas também por meio da noção de coletividade, de massa conquistada pela desindividualização de personagens e narrativas. Além disso, é dada ênfase ao conjunto: a coreografia, os corais, os corpos e o esforço físico. As vestimentas e a tecnologia têm igualmente um lugar de destaque: passam a ser uma espécie de extensão dos corpos, transmitindo a ideia de força. São uniformes, mas também motocicletas, carros de combate, aviões, armas, insígnias, etc., símbolos que desempenham uma função particular de demonstração de pertencimento, potência e virilidade. Eco (2019) lembra que foi o fascismo italiano, a primeira ditadura de direita a dominar um país europeu. Foi, também, o primeiro a criar "uma liturgia militar, um folclore e até mesmo um modo de vestir" (2019, p. 29).
Esta extensão homem-máquina pode ser representada de diversas maneiras: o ditador fascista italiano tinha especial apreço por desfilar pelas ruas pilotando motos seguido por seus apoiadores. Como que numa espécie de cópia barata, testemunhamos as cenas produzidas por Mussolini na Itália fascista da década de 1930 se repetirem quase cem anos depois no Brasil, apelidadas por aqui de "motociatas".
Práticas Discursivas e Sentidos Totalizantes
Na aula de seu Seminário ocorrida em janeiro de 1973, Lacan, em um momento que pode ser considerado já tardio em seu pensamento, afirmou não existir uma realidade que pudesse ser considerada pré-discursiva: "Cada realidade se funda e se define por um discurso" (1985, p. 45). Essa observação demarca bem uma ruptura com uma visão naturalista do mundo, de uma realidade dita concreta, sendo fundamental na sustentação de que a realidade só pode ser pensada como efeito discursivo. Isto é, de que a realidade é a ordem ao qual o sujeito está ligado por estar na linguagem. Em Freud, muito cedo já encontramos um primeiro passo nesta mesma direção: estabeleceu uma distinção entre realidade externa e o que chamou então de realidade do pensamento.
A partir dessa noção mínima, estando especialmente atentos aos discursos totalitários que vêm sendo produzidos em nosso tempo, encontramos uma questão que diz respeito às práticas discursivas que se estabelecem (e consequentemente delineiam) compreensões de mundos com características bastante particulares. Pensar no léxico, no repertório de palavras disponíveis nas línguas, se torna também uma forma de pensar como se esboçam as diferentes realidades.
No pós-Guerra, em 1947, Victor Klemperer, publicou o livro intitulado LTI: anotações de um filólogo. Ex-professor de letras latinas na Universidade de Dresden (Alemanha), foi demitido de seu trabalho por leis raciais, uma vez que era judeu. Contendo textos extraídos de parte de seus diários escritos ao longo de toda uma vida (particularmente no período de ascensão do nazifascismo), Kemplerer fazia anotações de tudo o que via e ouvia a cada dia a fim de poder constituir e transmitir um testemunho aos seus alunos, caso sobrevivesse ao Holocausto. A abreviatura "LTI", quer dizer Lingua Tertii Imperii (Língua do Terceiro Império)efoi criada por ele como uma forma de disfarçar seus manuscritos da temida polícia secreta nazista (Gestapo). Pela condição que tinha por ser casado com uma ariana e considerado assimilado, Kemplerer foi um dos poucos judeus que conseguiu relatar o que acontecia no país a partir da perspectiva de fora dos campos de concentração. Desta forma, pôde identificar como se processavam as torções e adulterações feitas pelo Regime nos sentidos e nas conotações das palavras, assim como no emprego de siglas e termos que passaram a ser utilizados com a finalidade de produzir uma espécie de naturalização das práticas totalitárias e de extermínio.
Segundo Kemplerer, através da mecanização da língua alemã se instaurou condições suficientes para sustentar toda a brutalidade e a crueldade genocida, tornando-a algo aceitável para grande parte da população média. Isto é, através da automação dos pensamentos e dos atos repetidos à exaustão, construiu-se uma certa naturalização destes. O antissemitismo se propagou e o nazismo sutilmente foi tomando conta de corpos, comportamentos e pensamentos. Concluiu que as ditaduras não se instalam somente pela força, mas também, em grande parte, pela colonização das mentes e da construção de ideais por parte das elites sociais e econômicas.
Pois bem, retomar e avançar na compreensão de como se deu a ascensão do discurso nazista pode contribuir para que se possa olhar com, digamos, alguma distância e crítica as transformações contemporâneas do laço social. Sobre este ponto, tomando este trabalho de Klemperer como referência, o psicanalista francês Yan Diener (2022) escreveu LQI - Notre Langue Quotidienne Informatisée (LQI - Nossa Língua Cotidiana Informatizada). A exemplo de Klemperer, construiu um pequeno diário a partir do momento em que considerava que ainda seria possível ser estabelecida a diferença entre a palavra e a comunicação.
Em seu trabalho, Diener (2022) identifica e analisa a forma como a linguagem está se transformando no mundo contemporâneo, especialmente no que diz respeito à perda do espaço da palavra: com todos os códigos que permeiam a vida cotidiana, temos cada vez mais comunicação e menos lugar para a palavra. Com isto, segundo destaca o autor, perde-se muito em relação às condições de enunciação: o tom, o ritmo, a pontuação e a modulação da voz. Isto é, exatamente a parte singular daquele que faz uso da linguagem através da fala. A enunciação mantém a vida na língua, trazendo a dimensão do passado e do futuro. Segundo Hartmann (2023), "A ausência do ato enunciativo nos lança em um não lugar, restando somente os enunciados sem uma demarcação possível de serialidade, temporalidade" (2023, p. 150).
Retomando o percurso de Diener, ao remontar a história da informática o autor chega até Alan Turing e os rudimentos daquilo que se tornaria o computador, articulando os fundamentos da informática com o discurso totalitário do nazismo. Durante a Segunda Guerra, Turing liderou a construção de uma máquina capaz de quebrar a criptografia nazista gerada pela máquina alemã Enigma. Acredita-se que este feito possa ter antecipado o final do conflito em aproximadamente um ano, uma vez que permitiu aos aliados conhecer antecipadamente as manobras militares dos alemães. Diener estabeleceu assim a conexão entre o surgimento da informática e sua relação com a linguagem nazista: "nosso meio de comunicação mais corrente, o computador, encontra uma de suas origens nas comunicações militares da Alemanha nazista" (2022, p. 20).
Avançando um pouco mais nesta direção, é possível perceber que este sistema de criptografia utilizada pela informática, a "linguagem máquina" acaba por produzir uma espécie de apagamento do sujeito da enunciação, tal qual reconhecida pela psicanálise. Ou seja, aquela que situa o sujeito desejante. Diener (2022) precisa:
Quando um desejo reprimido é cifrado, criptografado como um rébus, disfarçado como no sonho, no sintoma ou em um lapso, se trata de uma criação singular com as palavras do sonhador. Por outro lado, a codificação feita pela linguagem máquina impõe um sentido único, sem significação equívoca, sem metáfora: é um código puro, que realiza um segundo bloqueio, que impede chistes (2022, p. 29, tradução nossa 1).
Assim, podemos reconhecer na linguagem da informática um sistema de codificação totalizante, que não abre espaço para que possa ocorrer os mal-entendidos, as polissemias, os lapsos, enganos ou chistes. Uma linguagem sem equívocos que tenderia também a achatar os sujeitos à condição bidimensional 0-1, muito próxima daquele ideal que parece tomar conta da existência regrada pelo discurso neoliberal e da linguagem contratual. Um discurso que visa não apenas expandir o poder do capital como inspirar e legitimar a extrema direita na busca por reassegurar uma hegemonia branca, masculina e cristã (Brown, 2019). Sabemos como esses discursos orbitam em torno de uma proposta própria dos regimes que operam na lógica da totalitária.
Então, é interessante perceber que se na fala da histérica haveria a produção de um discurso que faz laço na medida em que demanda ao Outro, na neurose obsessiva o que temos é justamente o ódio e a tentativa de apagá-lo; sua organização é defensiva diante da ameaça de castração. Articula-se assim o que encontramos na linguagem da extrema direita, o dialeto do neurótico obsessivo e o discurso neoliberal. Dito de outra forma, quando se tenta produzir a abolição do sujeito da enunciação, lugar do inconsciente e crucial para a psicanálise, o que se torna possível é a mecanização e o esvaziamento da capacidade criativa. É forçado um achatamento a uma posição bidimensional. Uma posição que busca anular o Outro, atuando de forma disruptiva com o laço social. Os mecanismos de isolamento e racionalização, tão bem descritos ao longo da obra freudiana, empobrecem as possibilidades de conexões e associações.
Considerações Finais
Temos então que a linguagem do mundo cibernético se organiza como binária, achatada, sem profundidade. Como um espaço plano que pode ser comparado com as telas dos equipamentos eletrônicos em sua característica bidimensional. Neste sentido, se aproxima da linguagem totalitária, drenada, esvaziada de dimensão imaginária.
A força com que a tecnologia entrou na vida contemporânea faz com que a própria língua esteja sendo subvertida, trazendo os termos e injunções da computação para o cotidiano. Assim, uma infinidade de expressões pertencentes ao campo cibernético acabou por invadir os espaços de vida: deletamos, zapeamos, cancelamos, curtimos, seguimos e deixamos de seguir. Mas também somos ligados e desligados de empresas, fazemos networking e jobs em startups, de preferência unicórnios. E por aí segue uma infinidade de expressões que foram incorporadas no cotidiano, criando novas redes de significação e produzindo consequências em relação à posição do sujeito na linguagem.
Os blocos de sentidos operam na mesma lógica do discurso totalitário a partir de injunções capazes de produzir a obliteração do sujeito desejante. Rompe com algo importante para estruturação do sujeito, isto é, com a pergunta fundamental que na infância se faz: - O que ele quer quando me diz isso? Quando não há espaço para que a pergunta "o que o Outro quer de mim?" possa ser colocada, criando assim uma falha no Outro até então absoluto, não se estabelece as possibilidades para criação da demanda.
De certa forma, esta alienação na linguagem binária, sem espaço para a pergunta sobre o que o Outro quer, produz o que pode ser considerado como uma espécie de gozo autístico, pois não envolve a existência de uma falha no Outro. Como escreveu Costa (2022, s/p) "a informação é imediata, não mediada, deixando-nos sem memória, sem dúvida, sem a dialética que sustenta o pensar".
Referências
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Endereço para correspondência
Walter Firmo de Oliveira-Cruz - cruz.w@uol.com.br
Recebido em: 29/02/2024
Aceito em: 14/11/2024
Notas
1 Do original: "Quand un désir réprimé est chiffré, crypté comme dans un rébus, déguisé dans un rêve, dans um symptôme ou dans un lapsus, il s'agit d'une création singulière, avec les mots du rêveur. Alors que le codage par le langage machine impose un sens unique, sans signification équivoque, sans métaphore: c'est un codage pur, qui fait barrage au second degré, qui empêche les mots d'esprit" (Diener, 2022, p. 29).
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